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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei jan./abr. 2016
Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde do Brasil: inusitadas mediações
Complementary and integrating practices in the Brazilian Unitary Health System: unusual mediations/interventions
Maria Aparecida dos Santos
Atua como pesquisadora no Laboratório de Situações Endêmicas Regionais da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz - LASER/ENSP/FIOCRUZ. Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense
RESUMO
Como indagar sobre corpo-cuidado em saúde com filosofias de cosmovisões diferentes dentro do serviço público de saúde brasileiro (SUS)? Este texto busca mediações (ações que transformam) no curso das Práticas Integrativas e Complementares (PICs) no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS). Com metodologia inspirada na Teoria do Ator-Rede, acompanhada por autores como Latour, Law, Mol, Stengers, Márcia Moraes, dentre outros, o trabalho segue os actantes. Faz um recorte e propõe uma inflexão quando aproxima a ontologia de base oriental que costura vida-corpo-cuidado à arte-luta-saúde e dialoga com a lógica do cuidado de Annemarie Mole a normatividade da vida em Georges Canguilhem no ponto comum em que inúmeras negociações superam crises, produzem saúde e o bom cuidado.
Palavras chave: Teoria do Ator-Rede; Práticas Integrativas e Complementares; Corpo; Cuidado.
ABSTRACT
How to question body care in Health with philosophies of different cosmovisions, within the Brazilian Unitary Health System (SUS/UHS)? This text searches for mediations (actions which transform) in the Complementary and Integrating Practices' (CIPs) course, within the Unitary Health System. With a methodology inspired after the Actor-Network Theory, as seen in authors such as Latour, Law, Mol, Stengers, and Márcia Moraes, among others this work follows the actors, establishes a specific perimeter and proposes an inflexion when it approaches the oriental-based ontology that links life-body-care to art-fight-health, building a dialogue with the logic of care in Annemarie Mol and the normatization of life in Canguilhem, at the common point on which several negotiations overcome crisis, engendering health and good care.
Key words: Actor-Network Theory; Complementary and Integrating Practices, Body, Care.
RESUMEN
¿Cómo indagar sobre el cuidado del cuerpo en la salud con filosofías de cosmovisiones distintas, dentro del servicio público de salud brasileño¿ Este texto busca mediaciones (acciones que transforman) en el curso de las Prácticas Integrantes y Complementares (PICs) en el Sistema Único de Salud (SUS). Con metodología inspirada en la Teoría del Actor-Rede, en el sentido propuesto por Latour, Law, Mol, Stengers y Márcia Moraes, entre otros, el trabajo sigue los actores, hace un recorte epistemológico y propone una inflexión cuando se acerca de la ontología de base oriental que teje enlaces entre vida-cuidado del cuerpo y la arte-lucha-salud, estableciendo un diálogo con la lógica del cuidado en Annemarie Mol y la normatividad de la vida en Georges Canguilhem, en el punto común sobre el cual inúmeras negociaciones superan crises, produciendo salud y buenos cuidados.
Palabras-llaves: Teoría del Actor-Rede, Prácticas Integrantes y Complementares, cuerpo, cuidado.
Este texto propõe uma oportunidade de inflexão sobre o que "faz fazer" (Law &Urry, 2005; Mol, 1999) a convivência, no mesmo espaço institucional de saúde, entre saberes de ontologias diferentes, no que tange a modos de saúde e cuidado. Busca por mediações que surgem no processo das Práticas Integrativas e Complementares - PICs no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS).
Mediações aqui são tomadas como ações que transformam, ações não pacificadas1, mesmo que por vezes simples. Deste modo, "os mediadores transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam efeitos imprevistos" (Latour, 2012, p. 64).Neste sentido, a convivência das PICs nos centros de saúde do SUS pode aquecer, dar vida e abrir um leque de outros mediadores transformadores, pode fazer pensar os profissionais da saúde.
O que são as PICs? São práticas de cuidados em saúde com racionalidades próprias e cosmovisões singulares de acordo com a cultura de cada origem, tais como a Medicina Tradicional Chinesa, Medicina Ayurvédica indiana, Homeopatia, Termalismo Social, Medicina antroposófica e seus ferramentais de apoio à saúde (Luz, 1993; 2000; 2003). São práticas incentivadas pela Organização Mundial de Saúde - OMS no documento "Estratégia da OMS sobre Medicina Tradicional 2002-2005" (OMS, 2002), desde 2006, institucionalizadas no SUS como política de saúde (PNPIC - Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS, 2006), dentro da Atenção Básica, convivendo com a biomedicina e sua racionalidade biomédica.
Como metodologia inspirada na Teoria do Ator-Rede (TAR), os actantes são seguidos na ação como um ator-atuado descrito por Law e Mol (2008) como algo não determinado por aquilo que o rodeia, mas sim como tendo "sua própria teimosia e suas especificidades: é cheio de surpresas. Assim, a diferença que produz um ator não é previsível. Antes, pelo contrário, o que os atores fazem atuar é essencialmente indeterminado"(p.77).A escrita do texto é marcada por uma política da escrita no feminino, "não para a descoberta de uma 'outra' razão, mas a exploração daquilo que a razão pode, se for libertada dos modelos disciplinares" (Stengers, 1989, p.8).Por esta linha, buscamos fazer e pensar ciência povoando o mundo com outras histórias, outras versões.
Desta maneira, as PICs, como um ator-atuado, movimentam e são movimentadas por políticas, documentos, práticas, relações heterogêneas, escritas acadêmicas, disputas de classes profissionais, dúvidas em profissionais e usuários do SUS quanto à ontologia sobre que saúde e que cuidado faz fazer. Este texto propõe um caminho para pensar enquanto: a) aproxima a ontologia de base oriental que costura vida-corpo-cuidado à arte-luta-saúde; b) dialoga com a lógica do cuidado em Annemarie Mol (2008) e com normatividade da vida em Georges Canguilhem (1990) no ponto comum onde inúmeras negociações superam crises; e c) faz pensar como isto pode atuar nas práticas do cuidado no SUS.
Uma cena, um palco, uma dança
Com uma descrição narrativa sobre uma apresentação artística de dança no teatro chinês, redigido pelo diplomata e literato brasileiro Ricardo Primo Portugal (Portugal, 2011), propomos, em uma viagem meditativa dançada, irromper percepções de como a filosofia oriental vive corpo-cuidado em saúde pelas conexões que se materializam nas práticas de dança, arte, luta, em múltiplas artesanias da saúde, como corpos performados na diferença.
Em uma noite, no teatro da Companhia de Dança Moderna de Guangzhou (Cantão), província do Sul da China, no ano de 2010, um grupo apresentou um espetáculo de dança sobre a caligrafia e os caracteres chineses, um espetáculo chamado Sobre a Caligrafia. O espetáculo de dança se desdobrava como poesia coreografada em sequências de movimentos corporificados, entre longas mangas das vestes que reproduziam as cerdas das pontas dos pincéis, circunscrevendo formas e sombras que reproduziam estilos de época e de execução da caligrafia chinesa. Os corpos bailando, imitavam caracteres específicos e enunciavam radicais componentes das letras dançadas.
Em um instante, os bailarinos trabalhavam em zonas quadradas no palco, seus traços se combinavam dentro desse espaço, traçando a evolução histórica dos caracteres chineses. A dança desenhava formas amplas, voluptuosas, curvilíneas e vigorosas, de movimentos alongados que se vinculavam ao encantamento e à adivinhação em cascos de tartarugas e ossos de animais, levando aos bronzes da Dinastia Xia. Em outro momento, havia delicadeza e leveza nos movimentos e gestos, executados por bailarinas, em roupas prateadas brilhantes que no escuro se expandia, pela explosão de movimentos circulares velozes, ágeis, quase voadores, horizontalizados ...confundindo desenho de nuvens nas montanhas, como em certas pinturas tradicionais. Nuvens se dissolvendo a partir de um poema escrito em um canto superior da tela.
O cheiro do incenso encantava o ar e confundia os sentidos, fazia ferver o fascínio de estar em outra dimensão, em outro tempo, em tempo algum. Nada mais importava naqueles momentos.
A conexão com os movimentos lembrava vida vigorante, primaveril e poesia; a fixidez da letra, sólida e fria, nanquim preto no branco em papel de arroz lembrava um instante cristalizado, paralisado, de quase morte. De outra feita, em um novo movimento, diante da manifestação de outro ideograma, ocorria o renascimento. E assim por diante, de fluxos fugidios a instantes estáticos, em nós condensados se pressupunha a rede da vida.
O caractere reproduz e imita visualmente o corpo humano em diferentes posições e funções; o corpo em movimento anima o caractere conduzindo-o a significados, e manifestações de arte. A vida em seu curso, respirando, inspirando e expirando, derivando e ressurgindo, encenada no palco.
Fluidez no traço do pincel no canto da tela
A relação entre a dança e a caligrafia é muito antiga, na China, cujo exercício como arte é uma manifestação peculiar a esta cultura. A caligrafia é vista como dança fixada, congelada, concentrada a um espaço; a dança, uma caligrafia fluida ou estendida.
A arte da dança chinesa tem suas origens anteriores ao aparecimento do primeiro caractere escrito. Movimentos coreográficos das mãos e dos pés fazem expressar a reverência aos espíritos do céu e da terra, as estações do ano, aos aspectos da vida cotidiana e expressões aos sentimentos compartilhados de alegria, prazer e penar.
As lutas orientais são como caligrafias dançadas no ar e riscadas no chão. Ao usar instrumentos como leques, adagas, espadas, bastões de bambu, os corpos se metamorfoseiam em corpos estendidos, híbridos com suas ferramentas e os mesmos instrumentos, utilizados para a dança cultural folclórica, podem lutar, sulcando feridas abertas, marcadas pelo vermelho sangue ou podem trazer saúde. Como no Kung-Fu,Tai-Chi-Chuan, Tchi Kun, Tui Na, os exercícios feitos em ritmo lento, com atenção à respiração - à inspiração da luz do sol passando por pontos de acupuntura; movimentos circulares ou inspirados nos animais são praticados para aquisição da saúde.
O que os diferencia no toque é a intenção (guerreiro-ator-cuidador): um toque dos dedos da mão em um ponto de acupuntura no corpo do outro pode desbloquear o QI (fluxo de energia) estagnado e deixar fluir o rio da saúde em energia; porém, com a força empregada como arma, o mesmo toque pode fazer desfalecer, pode matar.
As práticas do cuidado e manutenção da saúde pelo viés oriental, muitas vezes, acontecem via atividades que são consideradas por nós ocidentais como lúdicas. Refiro-me aos exercícios, meditação, contemplação, dança e todo tipo de arte. Na visão da medicina oriental, tais atividades são importantes métodos terapêuticos para a manutenção da vida em saúde, num cotidiano de saúde fluida e reorganizada a cada instante de dificuldade. Como no Tchi Kun, corpos em atitude de gafanhotos, tigres, macacos, águias, serpentes, dragões e tartarugas são corpos múltiplos, híbridos, auscultados nos elementos natureza, que inscrevem múltiplas histórias.
Como tecer, então, essa rede com os fios puxados da cultura oriental versada aqui com a lógica do cuidado de Mol e a normatividade da vida em Canguilhem? De que saúde e de que cuidado estamos falando aqui?
A fluidez estancada, uma pedra no caminho - água que aceita desvio
Na visão ocidental da medicina, costuma-se entender pela racionalidade hegemônica da biomedicina que o caos no organismo leva a morte. A introjeção de talideia do caos-morte dá suporte e faz fazer em estudos, práticas e cuidados para controlar o movimento do desvio e estancá-lo.
A ideia de crise, fragilidade e adoecimento é pouco ou de forma alguma aceita como parte da vida e saúde por nós ocidentais. Não compreendemos a doença como parte da vida e oportunidade de ressignificação do trajeto. Isto envolve a população e o serviço de saúde como um todo, uma espécie de condensado cultural, sem paciência para o processo da travessia. No entanto, no momento de fragilidade e crise, pode-se encontrar uma nova ordem, um amadurecimento criativo da vida e do viver. Para tanto, é necessário estar afeito a posição de fronteira - entre o estado que era antes e o novo estado que será depois da crise. É nesta impaciência de ser um desterritorializado momentaneamente, que se encontra uma importante diferença entre a filosofia da medicina oriental e a da ocidental. É no cultivo da paciência, da calma, do tempo de aguardar, entre lançar a flecha e ser a flecha ou o alvo, é que se vive a dança da saúde.
Herrigel (1999), no seu pequeno livro Zen na Arte do Tiro com Arco, conta que, por cinco anos convivendo com um mestre japonês para a aprendizagem da sua arte "mística", descreveu-nos como sentiu o Zen através do tiro com arco. Esta arte lhe surgiu como um ritual que é "dançado" em movimentos espontâneos, sem esforço nem desígnio, que transformou todo o seu ser, para aprender a dobrar o arco "espiritualmente", como uma espécie de potência sem esforço e a libertar a corda "sem intenção", deixando o tiro "cair do arco como um fruto maduro". Quando alcançou o topo da perfeição, arco, seta, alvo e arqueiro passaram a estar fundidos uns com os outros e ele não atirava, "isso" acontecia-lhe (Capra, 1983, p. 103).
Falamos de um estado de ser fluido que valoriza o tempo do processo de espera para encontrar novos caminhos. Para Mol (2008), "a fragilidade faz parte da vida e a calma é imprescindível ao bom cuidado" (p. 25). Na saúde e nos modos de cuidado, Mol se afina com Boff, onde auscultar dá lugar à rigidez das recomendações inflexíveis e idealizadas, cuidar exige uma abertura ao outro, "(...) entrar em sintonia com, auscultar-lhes o ritmo e afinar-se com ele" (Boff, 2003, p. 96). Isso significa que, na lógica do cuidado, termo criado por Mol2, o paciente faz parte da equipe e os coletivos se auscultam e o conceito de normal com ontologias diferentes passa a ser colocado em outra instância que não o da biomedicina.
O termo normal em medicina, explica Canguilhem (1995),costuma ser identificado com o estado que se deseja restabelecer, no caso de acometimento de doenças. Normal, portanto, é aquilo que deve ser, mas também é entendido como aquilo que se encontra na média (p.97).Para este pensador,"(...) um ser vivo é normal num determinado meio, na medida em que ele é a solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder às exigências do meio (...)" (Ibidem, p.113).No entanto, o conceito de normatividade da vida irá fazer uma torção qualitativa na noção de normalidade, pois, no processo vital, os fatores que antecedem e determinam a emergência das normas podem ser alterados, aceitando as leis naturais em estado patológico (Puttini & Pereira Júnior, 2007, p.456).
Nesta ideia, o patológico não é ausência de uma norma biológica, mas a ocorrência de uma norma recusada pela vida. É um constrangimento da vida. A normatividade indica que a vida estabelece normas para si mesma e que essas podem ser negociadas e renegociadas para que se estabeleça o fluxo da vida (Canguilhem, 1995, p. 95-97).
Portanto, entender a vida como ideal à normalidade a ser alcançado traz insegurança e medos. Afasta a possibilidade de melhor convivência com o caos, desordens, acontecimentos inesperados, pedras no caminho e diferenças. Diminui a capacidade de produção de novos sujeitos e novas práticas, como faria a água ao aceitar o desvio, tomando a vida em seu movimento de produção de novas normas.
Na saúde, tanto Canguilhem como Mol buscam evidenciar que "doentes" e "crises" são momentos de vida, na sua lógica; e que diferentes seriam as pessoas saudáveis, pois "modos de ordenar" para Mol e "normatividade vital" para Canguilhem derivam mais de uma ação como verbo. Envolvem esforço contínuo em auscultar cada momento do processo do viver, tanto na saúde, na crise ou na doença e, mesmo agindo assim, como a instabilidade é certa, mesmo com atenção à ausculta da vida, não há controle. O que há é a relação com os eventos em ação. Como nos recomenda Ilia Prigogine, "a reconsideração do 'caos' leva também a uma nova coerência, a uma ciência que não fala apenas de leis, mas também de eventos, a qual não está condenada a negar o surgimento do novo, que comportaria uma recusa da sua própria atividade criadora" (Prigogine 2002, p.08).
Na lógica do cuidado, Mol (2008) sugere que "sincronizar as viscosidades da vida é um processo contínuo, ele segue, segue, segue, até o dia em que você morre" (p. 62). Nesta lógica, o tempo é diferente, pois não é linear, mas sim um tempo que gira, dá voltas e os problemas emergem. As práticas de saúde e cuidado não podem ser realizadas com movimentos robóticos, estanques, travados, previstos e controlados. Neste contexto, "estabelecer um alvo é uma parte do tratamento. (...) não faz sentido a fixidez sem levar em conta as negociações com as variáveis, sintonizar as variáveis umas com as outras, ajustar tecnologias a cada situação específica (...)" (ibidem, p. 63). Também para Mol é necessário variar as perguntas de quem cuida, de quem é cuidado e de quem pesquisa. Talvez a pergunta dos pesquisadores devesse ser mudada para: "O que uma pessoa com diabetes (com uma doença) faz cotidianamente para se manter em saúde?" (Mol, 2008, p.11).
Tais pensamentos ocidentais se aproximam à filosofia das terapias orientais que estão no SUS. Se, por algum contágio, essas ideias se misturarem às da biomedicina, alguma transformação ocorrerá, não se sabe como nem onde, mas haverá um efeito mediador como aquele conceituado na abertura do texto. É importante que a ideia de fluidez e variação, como uma tinta do pincel vista como nuvem no canto superior da tela, possa fazer parte da negociação do bom cuidado em saúde.
Normatividade da vida exige negociações e gera o bom cuidado
Na lógica do cuidado assim como na normatividade da vida, inúmeras negociações superam crises (Mol, 2008; Canguilhem, 1990). Se "A normatividade vital funciona através de crises e superações, estando intimamente ligada à existência e seus incontornáveis movimentos e diferenciações" (Canguilhem 1990, p.261), se, em Canguilhem, a normatividade da vida propõe criatividade, coragem para assumir novas normas, mesmo que carregando outras conformações de saúde, distantes daquele estado que já se foi, em Annemarie Mol, a lógica do cuidado necessita de criatividade e negociação, não pode ser expressa seguindo as regras da normalidade técnica.
Portanto, a vida, diante da possibilidade de constrangimento, cria novas normas. Esta nova forma de viver não é parada, estática ou segura. É como um Ouroboros3. Em algum momento encontrará nova crise, outro obstáculo e nova ação criativa, em um quantum constante de criação. Na lógica do cuidado, assim como na normatividade ou no pensamento da MTC (Medicina Tradicional Chinesa),não se quer o retorno ao estado anterior e sim a possibilidade de continuar amadurecendo na criatividade.
Conclusão
O que caracteriza o bom cuidado literalmente dito por Mol é "a calma, persistência, mas, de vez em quando, a improvisação ou lidar também com a deterioração. É um processo interativo e aberto" (Mol, 2008, p.23). Negociar é uma chance de experimentar de outra maneira, é uma oportunidade de recomeçar, renascer e aprender a viver Com, é uma oportunidade do bom cuidado. E isso instaura uma espécie de rede com a filosofia da medicina oriental apoiada na tradição cultural, articulada com a ideia de normatividade da vida que se apoia no aceite da fragilidade, levando a múltiplas conformações de vida que acompanha formas de cuidado mais sensíveis às variações do viver.
As PICs no SUS instauram a possibilidade de pensar a saúde de outras maneiras e os cuidados mais pautados na paciência, no aprendizado sobre o processo incerto, fugidio, ondulante de ter saúde e do bom cuidado com negociações a cada instante. São outros fatores de interferência no processo vital a partir do cuidado de olhar para a saúde e não para a doença.
Se, nos postos e policlínicas de saúde do SUS estão disponibilizando múltiplas formas de olhar para a saúde com outras cosmovisões e ontologias, tal multiplicidade convivendo em tensão no mesmo espaço físico aponta para novas normas do viver e do cuidar. Certamente estamos falando de traduções e também de criação de um cuidado performado, local, abrasileirado, que ainda necessita de pesquisas para ser nomeado. Por enquanto ...PICs.
Referências
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Recebido em 09/12/2015
Aprovado em 25/04/2016
1 Mediações não pacificadas levam em consideração o encontro estimulante com as controvérsias que fazem pensar. São mediações com base no conceito conferido pela Teoria do Ator-Rede (Latour,2012) em que, no encontro com mediações, nunca dadas de partida,é que ocorrem possibilidades de transformações, de criação, de invenção.
2 O conceito "a lógica do cuidado" é uma construção de Annemarie Mol (2008) que aposta na construção coletiva do cuidar.
3 Ouroboro é uma criatura mitológica em forma de serpente, cobra ou dragão que engole a própria cauda formando um círculo e, por isso, simboliza o ciclo da vida, a eternidade, a mudança, a fecundação, o nascimento, a morte, a ressurreição, a criação, a destruição, a renovação. Por isso é relacionada, no texto, às novas possibilidades do viver, em criação constante. Para saber mais ver o Dicionário de Símbolos http://www.dicionariodesimbolos.com.br/ouroboros/