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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.2 São João del-Rei maio/ago. 2016
Grupo com adolescentes em cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida: relato da experiência em um Centro de Referência Especializado em Assistência Social
Group of adolescents in a Socio-educational Measure Compliance of Assisted Freedom: experience report on a Reference Center Specialized in Social Work
Grupo de adolescentes en cumplimiento de Medida Socioeducativa de la Libertad Asistida: relato de la experiencia en un Centro de Referencia Especializado para la Asistencia Social
Aline Alflen SchmittI; Deise Maria do NascimentoII; Lucas SchweitzerIII
IPsicóloga, pós-graduanda em Gestão Estratégica de Pessoas na Faculdade Borges de Mendonça. E-mail: alinee.schmitt@gmail.com
IIPsicóloga, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: deisemn@uol.com.br
IIIPsicólogo, especialista em Avaliação Psicológica, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: lucass.schweitzer@gmail.com
RESUMO
O presente relato refere-se à experiência de estágio realizada em um Centro de Referência Especializado em Assistência Social da Grande Florianópolis, com um grupo de adolescentes em cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida. Para o desenvolvimento do trabalho, objetivou-se a reestruturação das potencialidades dos adolescentes, a discussão de questões relacionadas à descrença quanto às possibilidades de reinserção social e a promoção de estratégias para o reconhecimento de possibilidades na vida dos sujeitos. Como metodologia, foram utilizadas oficinas temáticas com assuntos relevantes no contexto cultural e social dos adolescentes. Os encontros permitiram pensar a Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida em outra perspectiva, destacando a importância de um ambiente de socialização. Os resultados apontaram uma mudança de comportamento dos jovens, maior capacidade de se comunicarem e de expressarem suas emoções.
Palavras-chave: Medida Socioeducativa; Liberdade assistida; Ato infracional; Adolescência.
ABSTRACT
This article refers to the training experience in the Specialized Reference Center for Social Assistance in the Great Florianópolis with a group of adolescents in compliance with d Socio-educational Measure of Assisted Freedom. For developing the work, it was objectified restructuring the potential of teenagers, discussing issues related to the disbelief of the possibilities of social reintegration, and promoting strategies with them to recognize the possibilities in their lives. The methodology used was to hold thematic workshops on topics identified as relevant to the cultural and social context of those teenagers. These meetings allowed thinking the Socio-educational Measure of Assisted Freedom with another perspective, as an effective socialization environment. The results pointed a change in behavior of the teenagers, an improvement of their communication skills, and a better expression of their emotions.
Keywords: Socio-educational Measure; Probation; Infraction; Adolescence.
RESUMEN
Este artículo se refiere a la experiencia en un Centro de Referencia Especializado para la Asistencia Social en la Grande Florianópolis con un grupo de adolescentes en cumplimiento de Medida Socioeducativa de Libertad Asistida. Para el desarrollo del trabajo, fue objetivada la reestructuración del potencial de los adolescentes, la discusión de temas relacionados con la incredulidad acerca de las posibilidades de reinserción social y la promoción de estrategias para el reconocimiento de las posibilidades en la vida de los individuos. La metodología utilizada fue la realización de talleres temáticos sobre temas identificados como relevantes para el contexto cultural y social de los adolescentes. Las reuniones posibilitaran pensar la Medida Socioeducativa de Libertad Asistida en otra perspectiva, identificando la importancia de un ambiente de socialización. Los resultados indicaron un cambio de comportamiento de los jóvenes, mayor capacidad de comunicación y expresión de emociones.
Palabras claves: Medida Socioeducativa; Libertad Asistida; Acto de infracción; Adolescencia.
Introdução
Quando um crime é cometido, costuma-se assumir como importante o estabelecimento de um culpado para o ocorrido, um responsável pela violação da norma de conduta em si. Esta é a base de um processo criminal: estabelecer o responsável pelo crime. A preocupação do processo, então, é com o passado, não com o futuro (Zehr, 1990). Dessa forma, para a justiça, em seu modelo tradicional, o foco está mais para estabelecer quem cometeu o crime do que em suas causas e consequências. Um ato violento, assim, deve ser retribuído com uma punição equivalente à intensidade da ofensa, em uma tentativa de dissuadir quem praticou o crime (Fukamachi, 2012).
A medida socioeducativa é uma forma de "punição" para adolescentes. Refere-se à aplicação de medidas judiciais para adolescentes que cometeram atos infracionais e foram julgados pela Justiça Especial para Crianças e Adolescentes. Ela tem como base a doutrina de proteção integral à criança e ao adolescente da Lei Federal nº 8.069, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, considerado um marco nos direitos desse segmento social. Essa lei objetiva a educação como prioridade na aplicação de medidas para as crianças e adolescentes, sendo que a educação, nesse sentido, não significa escolarização formal, mas a forma de execução das medidas judiciais (Craidy, 2011).
O presente relato de experiência, vinculado ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), tem por meta contribuir para o desafiador objetivo de efetivar a medida socioeducativa de acordo com o que prevê o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase),1 cuja "implementação objetiva primordialmente o desenvolvimento de uma ação socioeducativa assentada nos princípios dos direitos humanos" (Costa, Penso, Sudbrack, Jacobina, 2011, p. 381).
Conforme prerrogativas da Lei Orgânica de Assistência Social (Lei nº 8.742), as proteções sociais, básica e especial, são ofertadas precipuamente no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas),2 respectivamente, e pelas entidades sem fins lucrativos de assistência social. O Creas, cenário deste relato de experiência, é uma unidade pública de abrangência e gestão municipal, estadual ou regional, relacionado à proteção social especial de média complexidade. Ele representa uma referência para a rede de atendimento às situações de risco pessoal e social, especialmente em situações de violação de direitos.
Entre os serviços de média complexidade, está o Serviço de Proteção Social a Adolescentes em cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA), que tem a finalidade de prover atenção socioassistencial e acompanhamento a adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto (Ministério do Desenvolvimento Social [MDS], 2011). A implantação da Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida surge da necessidade de fornecer condições para o estabelecimento de novos projetos de vida e distanciamento da prática de atos infracionais. Para tanto, deve fortalecer laços familiares e comunitários e esforçar-se em integrar ações nas áreas de educação, saúde, lazer e trabalho (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012b).
Com base nesses pressupostos, o relato que se segue é produto da experiência de estágio, uma intervenção em um grupo de adolescentes em cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida, frequentadores de um Creas da região da Grande Florianópolis/SC. Considerando a complexidade da política pública atendida nessa intervenção, demarca-se que a inserção no Creas representa um ganho para a formação de profissionais, cujo relato perpassa pelo aprimoramento da prática profissional do psicólogo nesse âmbito. Além disso, novas propostas de intervenção podem ser pensadas a partir deste trabalho, configurando sua importância para o campo da pesquisa, bem como para a política pública e o público atendido. Cabe demarcar a relevância de focalizar a adolescência, por se tratar de um período atravessado por crises, inquietações, transformações biológicas, psíquicas e sociais, gerando conflitos e dúvidas (Maheirie, Urnau, Vavassori, Orlandi, & Baierle, 2005), período em que "o adolescente precisa de um espaço de expressão e de ressignificação de suas vivências" (Brasil, Almeida, Amparo & Pereira, 2015, p. 209).
Considerando a pertinência da inserção do psicólogo em políticas públicas e as reflexões acerca da adolescência e das políticas de proteção de crianças e adolescentes, essa experiência de estágio visou implementar ações que contribuem para o acesso às políticas públicas de Assistência Social. Buscou-se problematizar a realidade vivenciada pelos adolescentes, evidenciando as potencialidades deles e apontando temas importantes relativos à realidade e a projetos de vida deles.
Os objetivos dessa experiência se ancoram em uma perspectiva de Psicologia como prática profissional comprometida, ética e politicamente, com a transformação social. As intervenções se justificam ao considerar conceitos como vulnerabilidade social, desigualdade social, pobreza e violação de direitos, fundamentais para compreender como as pessoas podem ampliar suas potencialidades para o enfrentamento desses problemas, sempre visando à garantia de direitos e ao desenvolvimento dos sujeitos ou famílias (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012a). Além disso, pressupôs-se a convocação do adolescente à partilha das suas construções pelos seus locais de convivência e respostas perante a lei, considerando sua subjetividade e a produção de intervenções baseadas no compromisso com a garantia dos direitos preconizados no ECA e nas normativas internacionais (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012b).
Procedimentos metodológicos
A experiência de estágio aqui relatada foi realizada na sede de um Creas da região da Grande Florianópolis/SC, com um grupo de adolescentes em cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida. Os participantes eram adolescentes, com idade entre 12 e 18 anos, que praticaram algum ato infracional3 e cumpriam Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida. Em geral, frequentavam o ensino fundamental ou médio na rede de ensino municipal ou estadual. Conforme demanda estabelecida pelo Creas, o número de participantes foi de cerca de dez adolescentes por encontro, com prevalência de jovens do sexo masculino. O grupo foi de caráter aberto, isto é, poderia ocorrer a entrada e saída de membros no decorrer dos encontros, considerando a disponibilidade dos participantes e início ou fim da medida socioeducativa. Para a realização do grupo, foram utilizadas discussões temáticas, uso de figuras, músicas e vídeos, participação de convidados e técnicas de dinâmica de grupo.
O fato de o trabalho ser realizado em grupo justifica-se porque o adolescente protagonista de um ato infracional possui uma trajetória inscrita em um contexto complexo, impedindo que o foco da intervenção se restrinja ao jovem. Faz-se necessário compreender as relações que o envolvem, resgatando sua capacidade criativa para o desenvolvimento das relações sociais e consigo mesmo. Assim, desloca-se o foco exclusivo do adolescente como responsável por suas "dificuldades" e passa-se a entendê-lo em seu contexto cultural e social. Além disso, considerando que as estratégias de acompanhamento psicossocial podem ser diversas, essa experiência pautou-se no pressuposto de que grupos podem se constituir em espaço de vínculos e identificação de similaridades, estimulando a busca de soluções a partir de potenciais individuais e coletivos (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012a). Optou-se pelo grupo como forma de demonstrar uma alternativa complementar aos atendimentos individuais, contribuindo com o desafio atual da coletivização das demandas no âmbito da Assistência Social.
O contato com o campo de estágio foi realizado por meio de reuniões com a equipe do Creas, a fim de estabelecer um vínculo inicial e levantar a possibilidade de realização das práticas de estágio no local. Com o convênio estabelecido entre a universidade e a coordenação do Creas, foram acordadas as temáticas a serem trabalhadas, considerando modificações no planejamento caso outras demandas surgissem ao longo dos encontros. Nesses contatos iniciais, as temáticas estabelecidas com os profissionais do Creas foram: percepção de si e percepção do outro, preconceito, violência, drogas, família, orientação profissional, sexualidade, expressões artísticas. A etapa prática do estágio foi composta por oito encontros com atividades específicas, de acordo com as necessidades identificadas pelos profissionais do local e com a demanda despertada pelos encontros grupais. O convite aos jovens para participarem dos encontros foi realizado diretamente pelos profissionais do Creas.
Em relação ao andamento dos encontros, em todas as sessões os coordenadores e os participantes se apresentavam e havia uma exposição dos objetivos do trabalho, tendo em vista a variabilidade dos participantes ao longo dos encontros. Os sete primeiros encontros ocorreram em uma sala disponibilizada pelo Creas, com colchonetes dispostos em círculo, data show e aparelho de som. O último encontro foi realizado a céu aberto, em um espaço disponibilizado pela universidade vinculada.
Resultados e Discussão
O primeiro encontro objetivou identificar demandas, discutir a temática "Percepção de si e do outro" e estabelecer o contrato de grupo. Para a confecção do contrato, foram dispostas figuras com regras de convivência em dois cartazes, um indicando "pode" e outro "não pode". Os adolescentes foram orientados a escolher figuras que representassem regras, como o respeito e a compreensão, e colá-las nos cartazes, de modo que elas não fossem impostas, mas discutidas com base em suas escolhas. Na sequência, foram distribuídas folhas para que escrevessem características pessoais e compartilhassem a produção com os demais participantes. Essas atividades sobre a "Percepção de si e do outro" justificam-se, pois a adolescência é um período que abriga, além das mudanças biológicas, construções histórico-sociais que situam o envolvimento com o ato infracional como um dentre os agravos que compõem o quadro de vulnerabilidade dos jovens (Costa & Assis, 2006).
O segundo encontro foi dedicado à temática "Preconceito". Inicialmente, os coordenadores apresentaram vídeos para a problematização de situações de preconceito, seguindo-se o relato de situações cotidianas, sendo que os membros deveriam escrever em uma folha a primeira coisa que lhes "viesse à cabeça" relacionada às situações. Por exemplo: ao ser descrita uma situação em que uma pessoa malvestida e descalça entra em uma lanchonete, os membros citaram que "a pessoa era pobre e não tinha dinheiro para estar ali" e que "poderia ser um trabalhador que veio direto do serviço, ou um mendigo". A partir da atividade, os coordenadores buscaram evidenciar que o preconceito, um pré-conceito gerador de sofrimento, pode estar relacionado a aspectos como credo, cor, etnia e classe social, além de costumeiramente relacionado à diferença, comum às minorias (Aquino, 1998).
Por fim, os coordenadores solicitaram aos adolescentes que expressassem, por meio de pintura em uma folha, quanto preconceito já haviam vivenciado. Dentre os desenhos, chamou a atenção a produção de um adolescente que escreveu a frase "o tempo todo", com a explicação de que [o preconceito ocorre] "tanto comigo quanto da minha parte com os outros". Isso corrobora as afirmações de Salles e Silva (2008) de que as pessoas são costumeiramente incluídas em categorias que supostamente permitem prever identidades sociais, aqui compreendidas como referentes ao pertencimento a grupos sociais e à carga afetiva implicada nesse processo dialético relacionado à constituição identitária de cada sujeito. No entanto, quando o que é imposto ao indivíduo adquire conotações depreciativas, parte-se para estigmatizações em que o indivíduo passa a ser visto como diferente do normal, como desviante (Jacques, 1996; Goffman, 1998; Coutinho, Krawulski & Soares, 2007).
O terceiro encontro teve como objetivo discutir a temática "Violência", com a participação de um grupo de Rap. Inicialmente, os coordenadores apresentaram o tema do dia, "Violência", e indicaram que ele seria discutido mais detalhadamente pelo grupo. De forma geral, a temática foi abordada de modo a evidenciar as diversas vertentes do tema (tais como violência verbal, física, etc.), aproximando-o da realidade dos adolescentes e o exemplificando com relatos pessoais. Também houve a apresentação do vídeo O menino e a Árvore (https://www.youtube.com/watch?v=bNIoNXFNiFY) com o objetivo de propor estratégias de enfrentamento da violência por meio do trabalho em equipe.
No debate com o grupo de Rap, os adolescentes mostraram-se atentos às discussões. Muitos realizaram pontuações sobre o tema, como: "às vezes começo a me envolver com violência por causa de amigo", "às vezes um molequinho que é de gente boa e está de canto, tu de malandragem traz esse junto". Os relatos e a forma como as atividades foram conduzidas vão ao encontro do que afirmam Jacobina e Costa (2011): no processo de construção da sua identidade, o adolescente busca referências nos seus pares e troca experiências produtoras dos sentidos que organizam o que é ser adolescente, o que foi potencializado no grupo. Além disso, a utilização da música ao longo do encontro parte do pressuposto de que esse é um recurso gerador de respostas positivas às demandas de atenção ao sofrimento humano, capaz de reconstruir identidades, integrar pessoas, reduzir a ansiedade e construir autoestima positiva (Jacobina & Costa, 2011; Andrade & Pedrão, 2005). Tal perspectiva também corrobora a noção de que as expressões culturais possibilitam ao adolescente passar pelos desafios subjetivos da adolescência com menor dano e risco ao seu desenvolvimento (Brasil et al., 2015).
O quarto encontro teve como temática as "Drogas". Inicialmente, foram exibidos vídeos sobre o assunto, seguidos de discussões sobre os sentidos atribuídos aos vídeos: o trailer do filme Meu nome não é Johnny4 (https://www.youtube.com/watch?v=hitjyeros2s), o clipe da música Cálice, de Chico Buarque, cantada pelo Criolo Doido (https://www.youtube.com/watch?v=akZY0-6Rs0A) e o filme O bicho de sete cabeças5 (https://www.youtube.com/watch?v=u24WcelAjww). Esses vídeos foram importantes para discutir o uso de drogas e as consequências na saúde, trabalho, família e amigos. Por fim, os coordenadores entregaram aos participantes extratos de matérias jornalísticas envolvendo a temática "drogas", tais como a saúde de usuários, legalização de drogas, etc., solicitando posicionamentos quanto aos assuntos polêmicos abordados.
Com a utilização dos vídeos e notícias, foi possível refletir sobre o potencial de escolha dos adolescentes pelo uso ou não das drogas, de modo a evitar debates de cunho moralista sobre a temática. Nesse sentido, ao contrário de deter-se a padrões de correção de condutas (Costa & Assis, 2006), o objetivo dos coordenadores foi alcançar as dimensões do cuidado com os adolescentes, visando a potencialização da autonomia e da possibilidade de escolhas conscientes diante de questões polêmicas.
A temática do quinto encontro foi "Família". Inicialmente, foi apresentado o vídeo Família, da banda Titãs (https://www.youtube.com/watch?v=GJ8VqwDni6w), com o objetivo de iniciar o debate sobre as diferentes constituições familiares. Na sequência, foram distribuídas folhas para que os adolescentes escrevessem uma palavra definidora de "família", cujas definições relacionaram-na ao conceito de "união". Também foram apresentadas figuras com constituições familiares, por exemplo: famílias monoparentais,6 famílias ampliadas,7 família homoparentais8 etc. A ideia era que cada um escolhesse uma figura para a sua família e comentasse o motivo da escolha. Por meio dessas reflexões, pôde-se reforçar a existência de diferentes concepções e constituições de família.
Na sequência, foi apresentado o vídeo O lenhador e a raposa (https://www.youtube.com/watch?v=D18NHzdNYxU), a fim de discutir a importância da confiança entre os membros de uma família. Logo após, foi disposta uma cartolina com duas figuras: uma com uma família considerada "perfeita", com união e harmonia, e outra com uma família em conflito, para que cada um dissesse em qual das duas figuras sua família se encaixaria. Assim, surgiram discussões acerca dos tipos de família e comentários relacionando família a um contexto de união. Um elemento trazido pelos adolescentes foi que "não há família perfeita", reafirmando a importância do sentimento e o respeito entre os membros do contexto familiar, com a ocorrência de momentos de harmonia e de conflitos que se mesclam no convívio diário. Nesse sentido, cabe destacar que experiências com adolescente em risco social têm demonstrado que, dentre os fatores de proteção considerados mais significativos ao adolescente, estão os vínculos familiares fortes, o que legitima essa discussão na medida socioeducativa (Costa & Assis, 2006).
O sexto encontro objetivou a discussão dos temas "Amor", "Gênero" e "Sexualidade". Inicialmente, foi apresentado e discutido o clipe Amor e sexo, de Rita Lee (https://www.youtube.com/watch?v=ho-iGFctXe8), que remete a diferenças entre o conceito de amor e de sexo. O questionamento sobre essa diferença foi levado aos participantes do grupo, sendo entregues folhas para que os adolescentes escrevessem uma palavra relacionada a "amor" e outra a "sexo", com a posterior discussão das produções. De forma geral, os adolescentes relacionaram o "amor" a "sentimento", a algo concreto relacionado principalmente à família. Quanto ao "sexo", relacionaram-no a "vontade", "necessidade" e "atração física".
Para as discussões sobre gênero, foram apresentadas figuras com objetos e/ou situações, como boneca, carro, etc., sendo solicitado que cada adolescente escolhesse uma figura que remetesse ao sexo masculino e outra ao sexo feminino. Logo após, foi apresentado o vídeo 3 coisas que as mulheres não precisam que os homens façam (https://www.youtube.com/watch?v=KmEhFpwpFqw), que trata de papéis sociais atribuídos a homens. A discussão dessas atividades foi relacionada às ditas atribuições de gênero, pautando-se no pressuposto de que elas são construções históricas, culturais e sociais, problematizando a naturalização dessas relações. Isso ocorre porque os papéis ditos masculinos e femininos configuram o que seria pertinente ao homem e à mulher num dado contexto que impõe aprovações, restrições e reprovações apreendidas e transmitidas ao longo de gerações e durante o percurso da vida e não são naturalmente dadas (Negreiros & Féres-Carneiro, 2004).
Por fim, foi exibido um trecho do programa Amor e sexo,9 que trata de preservativos e da transmissão de Doenças Sexualmente Transmitidas (DSTs). Assim, foi discutido o conteúdo do vídeo e a importância da proteção em relações sexuais e as consequências da não utilização de métodos contraceptivos. Essa discussão acerca da sexualidade se faz importante devido ao aumento dos índices de gravidez e da incidência de DSTs entre os adolescentes (Taquette, Rusany, Meirelles & Ricardo, 2003; Maheirie et al., 2005). Chama a atenção que, mesmo em um encontro com uma temática polêmica, os participantes estiveram participativos, contribuindo para a discussão, o que pode estar relacionado à naturalidade com que o assunto foi discutido.
O sétimo encontro teve "Orientação profissional" como temática. Inicialmente, foram apresentadas informações sobre currículo e, em seguida, foi apresentada uma tirinha do Calvin e Haroldo (http://24.media.tumblr.com/tumblr_mdgmoeqskJ1rxmaupo1_500.jpg) que trata da responsabilidade presente nas escolhas e do impacto delas na vida. Também foi apresentado e discutido um vídeo demonstrando comportamentos a serem evitados em uma entrevista de emprego, expondo elementos como vestimenta, direitos em processos seletivos, perguntas em entrevistas de emprego, entre outros aspectos. Também foram apresentados exemplos de cursos de qualificação, técnicos, tecnólogos e graduação, e formas de ingresso, tais como bolsas de estudo oferecidas em universidades.
As atividades sobre "Orientação Profissional" foram relevantes para encorajar os adolescentes a vislumbrar trajetórias por meio do apoio de figuras representativas (Costa & Assis, 2006). Com isso, buscou-se tratar da entrada em uma faculdade ou da conquista de um emprego como uma possibilidade que, para muitos, não é vislumbrada. Além disso, seguindo o que afirmam Bardagi, Arteche e Neiva-Silva (2005), a ideia esteve em mostrar a escolha profissional e a saída para o trabalho como uma etapa importante para o desenvolvimento dentro da sociedade, como elemento construtor de identidade (Bardagi et al., 2005). Em linhas gerais, os objetivos do encontro foram pensados com a compreensão de que o período de aplicação da medida deve constituir um momento para a estruturação do projeto de vida, sendo que as atividades devem ter o potencial de despertar para uma construção do adolescente (Costa & Assis, 2006).
O último encontro, intitulado "Expressões Artísticas", teve como objetivo a realização de uma oficina de Grafite e Música, com a participação dos adolescentes e dos servidores do Creas - convidados mediante autorização dos adolescentes. O encontro ocorreu em um espaço da universidade, com a presença de dois grafiteiros e de uma banda de Rap local. O objetivo foi apresentar a relevância da arte para a inserção social e como forma de expressão de emoções. Como atividades, os grafiteiros apresentaram um histórico dessa manifestação de arte, a forma como ela se constituiu e sua importância, seguindo-se com a construção de desenhos em parceria com os adolescentes. A respeito dessa atividade, é possível afirmar que o grafite é um meio de expressão artística que os jovens utilizam para expressar sua opressão e como forma de reconhecimento ao mundo por meio da arte (Lopes, 2011). Nesse sentido, a utilização dessa estratégia pode ser de grande valia no contexto da medida socioeducativa.
Para o fechamento dos encontros, a banda de Rap verbalizou sobre a importância da música para a busca por um trabalho "honesto" e "digno" e como forma de expressão de suas emoções. Eles apresentaram suas músicas, todas com a temática relacionada à violência e a drogas, o que possibilitou uma retomada das discussões dos encontros anteriores. Destaca-se que a utilização da música, presente em diversos encontros do grupo, foi essencial, ao se considerar o envolvimento dos participantes com ela, bem como o fato de que fazer música possibilita construções de si mesmo e ampliação dos recursos de interação, sendo um importante veículo performático (Jacobina & Costa, 2011).
Considerações finais
Com a realização das atividades grupais, possibilitou-se algo diferente do que vinha sendo até então realizado no Centro de Referência que, antes, oferecia apenas atendimentos individuais. Esses atendimentos, apesar de abordarem aspectos relevantes, acabam por secundarizar aspectos como socialização e discussão de temáticas que importam na adolescência. Esse é um desafio enfrentado na prática profissional no Creas. Por isso, este relato, que aponta mudanças de comportamento dos jovens, maior capacidade de se comunicarem e de expressarem suas emoções, pode ser relevante para se pensar no aprimoramento da complexa prática dos profissionais que atuam no âmbito da política de assistência social, especialmente no que tange ao compartilhamento das demandas no contexto da Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida.
É possível afirmar que a experiência aqui relatada buscou possibilitar novas perspectivas de mundo para os jovens, com o cuidado de partir de uma realidade próxima à deles, de assuntos e formas de expressão particulares, como o rap e o grafite. Com os encontros, pode-se confirmar o que afirmaram Siqueira e Dell'Aglio (2006): que instituições, como o Creas, podem prover apoio social, favorecendo o desenvolvimento de aspectos saudáveis, mesmo diante das adversidades vivenciadas pelos usuários.
As atividades conduzidas levaram a romper com a ideia da medida socioeducativa como modelo unicamente de punição, indicando seu caráter socioeducativo e a importância de buscar outros referenciais, especialmente na superação do estigma de predição de fracasso atribuído aos adolescentes e ao sistema socioeducativo (Costa & Assis, 2006).
É possível ressaltar que essa proposta pode ser levada adiante, visto que o desenvolvimento dos adolescentes foi perceptível ao longo dos encontros e que as estratégias utilizadas podem ser aprimoradas e adaptadas a outros contextos. Reitera-se que a formação acadêmica carece de cada vez mais relatos de intervenções, visto que ainda são poucos os artigos encontrados sobre experiências similares, vinculadas à atuação do psicólogo em contextos de vulnerabilidade social e violação de direitos. Mais que isso, os adolescentes responsabilizados por um ato infracional carecem de intervenções profissionais implicadas em fazer diferente, buscar inovações e, principalmente, usar o potencial daqueles jovens, já desacreditados por muitos.
Um dos adolescentes, aqui chamado "Chavoso", dada a forma como se autoafirmou, chamou a atenção nos encontros por não aceitar participar das atividades - sendo respeitado em seu direito de escolha -, ao mesmo tempo em que raramente faltou às oficinas, sempre esteve presente e notadamente atento. No último encontro, percebeu-se sua real implicação com o processo: conversou com os coordenadores sobre o receio quanto ao encerramento do grupo e deixou seu desenho - seu nome marcado na parede da Universidade. Esse é um exemplo dos adolescentes que passaram pelo grupo e que demonstram que esse trabalho pode trazer efetivas mudanças ou reflexões por parte deles, mesmo diante de suas singularidades no grupo.
Por fim, cabe destacar a importância do contato e das visitas técnicas ao Creas, que trouxeram importantes indicativos das necessidades do local, facilitando o planejamento das atividades e dos objetivos deste relato de experiência. Tendo em vista que os assuntos discutidos nas oficinas temáticas abordavam a realidade dos jovens, havendo o respeito e o cuidado de se fazer uso de uma linguagem clara e acessível ao público participante, os resultados foram percebidos na mudança de postura dos adolescentes do grupo ao longo dos encontros. Eles iniciaram o processo bastante calados, mas com o passar do tempo demonstraram mais implicação com as atividades. Além disso, o retorno por parte da equipe do Creas, com feedbacks positivos trazidos pelos participantes, confirma os resultados do trabalho.
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Recebido em 27/09/2015
Aprovado em 01/07/2016
1 O Sinase, conforme a Lei nº 12.594, trata do conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas. O cumprimento em meio aberto da Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) objetiva estabelecer um processo de acompanhamento, auxílio e orientação ao adolescente, sendo catalisador da integração e inclusão social (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente [Conanda], 2006).
2 Cras e Creas são unidades públicas estatais instituídas no âmbito do Sistema Único de Assistência Social, que possuem interface com as demais políticas públicas e articulam, coordenam e ofertam os serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social.
3 Não foi utilizado como critério de inclusão o tipo de ato infracional cometido.
4 O filme apresenta um jovem que se envolve com tráfico de drogas e sua prisão. Ele suscita discussões sobre vulnerabilidade e imprevisibilidade de situações de uso de drogas.
5 Na cena, o pai do personagem "Neto" o leva para uma internação compulsória por causa do uso de drogas.
6 "Sob essa denominação, aninham-se pessoas que cuidam sozinhas de crianças [...]. Reúne-se, sob essa mesma sigla, solteiros, viúvos, divorciados", entre outros (Uziel, 2002, p. 23).
7 [...] "estamos diante de uma família [ampliada] quando encontramos um conjunto de pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e, ou, de solidariedade" (Ministério do Desenvolvimento Social. PNAS, 2004, p. 42).
8 "Situação familiar em que no mínimo o pai ou a mãe se assume como homossexual" (Uziel, 2002, p. 59). O uso desse termo foi escolhido de modo a aumentar a visibilidade dessa família (Uziel, 2002).
9 Apresentado por Fernanda Lima na Rede Globo. Vídeo indisponível na internet.