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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.3 São João del-Rei jul./set. 2017

 

ARTIGOS

 

Mediação grupal como estratégia de ressignificação da queixa escolar

 

Group mediation as a strategy for redefining school complaints

 

Mediación de grupo como estrategia de reformulación de la queja escolar

 

 

Larissa ParaventiI; Luísa ScaffII; Denise CordIII; Leandro OltramariIV

IPsicóloga. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail para contato: larissaparaventi@hotmail.com
IIPsicóloga. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestranda do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail para contato: luisascaff28@gmail.com
IIIProfa. Associada III do Depto. de Psicologia da UFSC. Email para contato: denise.cord@ufsc.br
IVProf. Adjunto IV do Depto. de Psicologia da UFSC. E-mail para contato: leandro.oltramari@ufsc.br

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva apresentar uma experiência de estágio curricular na área de Psicologia Escolar em um colégio público federal de Florianópolis. Buscou-se ressignificar a queixa escolar a partir da mediação referente a aspectos da relação vincular aluno-aluno, aluno-professor-conteúdo e aluno-escola. Partindo-se da análise psicodramática de grupo, foram desenvolvidas intervenções que viabilizassem o protagonismo dos estudantes, os quais participaram ativamente tanto da coleta de dados quanto da categorização conjunta dos temas identificados como indicadores de aspectos grupais conflituosos. Os resultados indicaram que criar com a turma espaços de planejamento, compartilhamento e avaliação reflexiva sobre seus processos de interação grupal e de ensino e aprendizagem repercutiu positivamente sobre aspectos da comunicação entre os estudantes e destes com os mediadores institucionais, além de modificar a forma de organização grupal anterior ao processo de intervenção e possibilitar maior autonomia às crianças na realização das tarefas escolares em sala de aula.

Palavras-chave: Psicologia escolar. Queixa-escolar. Mediação grupal.


ABSTRACT

The aim of this article is to present a university internship experience in educational psychology at a Federal public school in Florianópolis. The main objective of the interventions was to redefine school complaints about the students through mediation in aspects of the bonding experience in three levels: student-student, student-teacher-material and student-school. The interventions were based on group psychodrama analysis and developed to provide students the opportunity to actively participate in data collection and enable the joint categorization of themes identified as indicators of group conflicts. The results indicated that creating with the class a space for planning, sharing and reflective evaluation about their processes of group interaction, teaching and learning had a positive effect on aspects of communication between students and institutional mediators. It was also observed that experiencing a mediation process changed the previous group dynamic and allowed greater student autonomy when performing classroom tasks.

Keywords: Educational psychology. School complaints. Group mediation.


RESUMEN

Este artículo presenta una experiencia práctica curricular en el área de psicología escolar en una escuela pública de Florianópolis. Fueron replanteadas quejas escolares a partir de la mediación de los aspectos de la relación que une alumno-alumno, alumno-profesor y alumno-contenido-escuela. Mediante el análisis psicodramático del grupo, fueron desarrolladas intervenciones que permitieron el protagonismo de los estudiantes, ellos participaron activamente de la recopilación de datos, como también en la clasificación conjunta de las cuestiones identificadas como indicadores de los aspectos conflictivos. Los resultados indican que crear con el grupo espacios de planificación, intercambio y de evaluación reflexiva sobre sus procesos de interacción grupal, enseñanza y aprendizaje, tuvo un efecto positivo considerando los aspectos de la comunicación entre estudiantes y con los mediadores institucionales, así como modificar la forma anterior de organización del grupo y permitir una mayor autonomía de los niños en la realización de tareas escolares.

Palabras clave: Psicología escolar. Queja escolar. Mediación grupal.


 

 

A relação entre Psicologia e Educação é historicamente marcada pela perspectiva clínico-adaptativa, baseada em um padrão normativo e tecnicista de análise, uma visão reducionista da instituição escolar como espaço de socialização e uma prática de pesquisa enviesada pelo modelo clínico de intervenção escolar (Soares & Araújo, 2010).

O incremento da demanda para atendimento psicológico às queixas escolares se deu a partir da década de 1960 no cenário nacional. No entanto, o papel do profissional psicólogo no contexto escolar carecia de definição precisa, tendo esse fato contribuído para a produção de práticas e conhecimentos marcados por tendências psicométricas e experimentais que individualizavam a queixa e não levavam em conta as relações sociais no processo de entendimento das práticas de ensino e aprendizagem, característica de uma relação acrítica da Psicologia com a educação e com a sociedade (Araújo & Barbosa, 2010).

Somente décadas mais tarde a Psicologia passou a considerar a relação dialética que existe entre ensino-aprendizagem e as suas implicações na produção do fracasso escolar. Segundo Martinez (2010), o campo de atuação da Psicologia Educacional ainda é um importante tema de reflexões e de discussões entre os profissionais da área. A autora pontua que o processo de ensino e aprendizagem deve ser entendido como um complexo e rico espaço de transmissão cultural e formação da subjetividade. No entanto, é relevante ressaltar que, embora essas novas perspectivas estejam surgindo, ações reducionistas e medicalizantes que culpabilizam o indivíduo e não dialogam com o meio e suas relações - neste caso, o aluno que sofre queixas escolares - ainda são legitimadas por diversos profissionais da Psicologia (Eidt & Tuleski, 2014).

Nessa linha, de acordo com Cordazzo e Vieira (2008), o objetivo de uma escola é a aprendizagem e o desenvolvimento integral da criança, somente sendo possível o cumprimento desse papel ao proporcionar um espaço no qual outros aspectos da vivência infantil estão devidamente estimulados e desenvolvidos, como questões de maturação física e simbólica e a experimentação dos diferentes papéis sociais. Uma das maneiras mais eficazes de as crianças desenvolverem esse contato físico, social e de comunicação é por meio das brincadeiras. Para a discussão deste relato de experiência, consideramos a brincadeira de acordo com a perspectiva sociocultural, entendendo o brincar a partir da concepção de que é o social que caracteriza a ação na atividade lúdica do sujeito e de que a percepção que a criança tem do mundo dos objetos humanos definirá os conteúdos das brincadeiras (Cordazzo & Vieira, 2007; Marcolino & Mello, 2015).

Em relação às implicações do lúdico na Educação, é previsto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que a Educação brasileira, nos níveis fundamental e médio, deve proporcionar ao educando a "formação necessária ao desenvolvimento das suas potencialidades como elemento de autorrealização, preparação para o trabalho e para o exercício consciente da cidadania" (Cordazzo & Vieira, 2008, p. 13). Nessa óptica, o brincar é considerado um recurso que pode auxiliar os profissionais da Educação e da Saúde a desenvolverem as potencialidades e habilidades das crianças, sendo de extrema relevância para viabilizar o objetivo das escolas em não ser apenas um espaço de transmissão de conteúdos escolares, mas também apto a desenvolver e formar um cidadão de modo integral. Segundo Marcolino e Mello (2015), apoiando-se em Vygotsky e Elkonin, faz-se importante que já na primeira infância a escola participe como um suporte para as crianças, introduzindo novos objetos e temáticas lúdicas, visando ao seu desenvolvimento e aprendizagem.

No entanto, é relevante ressaltar que essas novas perspectivas surgem suscitadas por um referencial crítico da Psicologia, por exemplo, as obras clássicas de Maria Helena de Souza Patto (1984, 1991), que aponta a necessidade de superação de ações reducionistas e medicalizantes que culpabilizam o indivíduo e não dialogam com o meio e suas relações - neste caso, o aluno que sofre queixas escolares. Esse tipo de prática patologizante gera explicações para o fracasso escolar que se baseiam em instrumentos de medição da inteligência, atributos afetivos, motores e outros que podem ser utilizados para localizar a problemática no indivíduo, alternando hipóteses que giram em torno da dificuldade escolar, ambiente familiar ou condição econômica (Araújo & Barbosa, 2010). Refletir sobre tais funcionamentos no espaço escolar implica pensar também no fazer docente, já que esses profissionais frequentemente são depositários das mazelas do ensino, muitas vezes apontados como incompetentes, mal informados, egoístas e sem compromisso com seus alunos (Souza, 2007).

Em contextos escolares, há professores que se negam a abrir suas salas de aula à participação de estagiários ou profissionais da Psicologia, resultado evidente da publicização de trabalhos disseminadores de análises superficiais das dificuldades encontradas no sistema educacional formal. A Psicologia contribuiu muitas vezes para a significação da relação entre professores e psicólogos como sendo uma relação vertical, pautada em uma suposta superioridade do saber psi em relação ao saber docente, criando frequentemente a mesma hierarquização do saber-poder biomédico criticada pelos psicólogos. Para alguns professores, a participação de psicólogos em seus contextos de prática representa mais uma afirmação de suas incompetências, tornando mais difícil ou até mesmo impossível um atendimento conjunto às queixas escolares (Souza, 2007).

Dessa forma, é relevante ressaltar a necessidade de rever e reconsiderar como ocorre essa atuação do psicólogo no ambiente escolar, assinalando-se a revisão de determinadas perspectivas e concepções ainda baseadas em um modelo clínico de intervenção. Outra concepção de Psicologia escolar vem se estruturando e fortalecendo: a que se refere ao indivíduo como parte de sistemas relacionais construídos cultural e historicamente e reconhece a complexidade constitutiva dos processos sociais humanos, assim como a importância das práticas sociais na Educação (Martinez, 2010).

Tendo em vista essa perspectiva, o Programa de Atenção e Ressignificação às Queixas Escolares (Parque), desenvolvido conjuntamente por professores do curso de Psicologia e psicólogos escolares alocados em uma escola pública federal e vinculados ao Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional (Lapee), configura-se como uma possibilidade de intervenção em Psicologia escolar crítica para graduandos da Universidade Federal de Santa Catarina. Objetiva-se com o Programa articular teoria e prática no encontro da Psicologia com a Educação Escolar. As propostas de intervenção assumem diferentes e variadas formas, desde intervenções individuais com docentes e estudantes, até intervenções em salas de aula ou em grupos (de crianças, pais, professores ou outros atores sociais vinculados à instituição), buscando-se sempre alternativas à perspectiva da patologização e medicalização das queixas escolares.

Perante as queixas escolares e as tentativas de propor novas formas de lidar com elas, o vínculo aparece como uma estratégia possível de ressignificação. De acordo com Vandenbos (2010), entende-se por vínculo o "relacionamento entre dois ou mais indivíduos que significa confiança e aliança" (p. 1017), sendo o foco deste estudo o vínculo interpessoal, ou seja, aquele que se estabelece a partir de uma relação dialética entre os sujeitos ou entre sujeito e instituição. Esse laço baseado na confiança e parceria mostra-se fundamental no contexto escolar, no sentido de tornar as relações mais positivas, de maneira a otimizar e fortalecer o processo educativo, tendo em vista que o vínculo tem a finalidade de promover alterações no espaço educativo transformando-o num espaço não só de aprendizagem, como também de confiança (Eccheli, 2008).

Ainda nessa perspectiva alternativa à patologização e à medicalização das queixas escolares, relatos de experiência têm destacado o trabalho com grupos como fortalecedor de vínculos e potencializador das significações das queixas, além de ressaltar o desenvolvimento de grupos dentro da escola como importante estratégia e alternativa para a Psicologia Escolar (Lima, Machado, Ramalho & Corrêa, 2012; Rezende, Lima, Naves & Silva, 2010). Especificamente sobre a atuação do psicólogo com grupo de crianças, Rezende et al. (2010) afirmam que esse espaço se constitui como problematizador das queixas, além de possibilitar o reconhecimento dos recursos de cada criança e do grupo para o processo de ressignificação das vivências escolares. O psicólogo teria o papel de mediador dentro do grupo, valorizando as experiências de cada criança no coletivo, constituindo um espaço de movimentação, no qual as relações são transformadoras, pois o pensar a partir de pares propicia identificações e mobilizações (Souza, 2006).

Outra contribuição do trabalho com grupos advém do fato de o grupo refletir práticas, acontecimentos e sentimentos do contexto social. A escola é um espaço que envolve relações dialéticas entre os sujeitos e a instituição, construindo a subjetividade social dessa instituição e das pessoas que dela fazem parte (Martinez, 2010). Nesse sentido, quando se trabalha com grupos dentro da instituição, é possível, a partir de uma postura crítica, compreender os fatores que influenciam as experiências vividas por aqueles que compõem a escola e intervir criando práticas, acontecimentos que possibilitem "movimentar aquilo que estava cristalizado, produzindo diferenciações. Derivar, apostando em uma deriva que estivesse a serviço de processos de subjetivação, e não de assujeitamento" (Machado, 2004, p. 71). Esta tem sido uma das perspectivas das intervenções do Parque na instituição com a qual trabalha.

 

Método

A equipe do Parque é constituída por estagiários, professores, orientadores, psicólogos escolares lotados no colégio em questão e por profissional da Psicologia da clínica - escola do curso. O colégio trabalha com o Ensino Fundamental e Médio, porém o projeto tem como foco os alunos dos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental, pela compreensão de que tal ciclo é apontado por diversos estudos (Campezatto & Nunes, 2007; Nakamura, Lima, Tada & Junqueira, 2008; Rodrigues, Campos & Fernandes, 2012) como o período com demandas mais expressivas de queixas escolares. No período da presente pesquisa, a equipe do Parque tinha a possibilidade de trabalhar com as crianças do primeiro ao sexto ano, totalizando 345 alunos na faixa etária de 6 a 12 anos de idade.

O acesso às queixas escolares se deu por meio de uma reunião entre os professores do colégio e a equipe do Parque, que, a partir de um roteiro de encaminhamento, especificaram as queixas e selecionaram os possíveis contextos de intervenção que ficariam sob responsabilidade de duplas de estagiários e contariam com a participação de profissionais em Psicologia escolar lotados no colégio.

Este relato foca a experiência de estágio de uma das duplas da equipe em uma turma do quinto ano do ensino fundamental e sua transição para o sexto ano, cuja queixa escolar, produzida por professores e sistematizada pela professora regente da turma, indicava dificuldades no processo de ensino e aprendizagem devido ao excesso de conversa em sala de aula. O primeiro procedimento consistiu em fazer uma triagem de atenção e acolhimento à queixa, na qual foram realizadas observações diretas e indiretas no ambiente escolar para conhecer e compreender o contexto demandante. No fim das observações, efetivou-se entrevista devolutiva com a professora regente da turma, para compartilhar o que foi observado e discutir o plano de intervenção.

A finalidade dessa etapa foi integrar os docentes à proposta de intervenção, objetivando identificá-los com papel ativo e participante do processo, tendo em vista a importância de se pensar o trabalho do psicólogo escolar como complementar ao dos professores. Nesse sentido, Curonici e McCulloch (1999) apontam que o professor se torna o interlocutor privilegiado do psicólogo dentro do ambiente escolar e, portanto, os dois profissionais devem trabalhar numa posição de complementaridade. Durante a entrevista, estagiários compartilharam o que haviam observado em sala de aula de uma maneira geral, evitando focar nos alunos alvo de queixas escolares, delineando o campo da sua percepção como estando direcionado aos aspectos vinculares e à dinâmica relacional entre os estudantes, destes com os professores, o objeto de conhecimento e o contexto escolar como um todo. De acordo com as demandas depreendidas nas observações e avaliadas com a professora, definiu-se por realizar até 10 encontros com o grupo, intervenções nas quais seriam trabalhados aspectos da configuração vincular da turma entre si, com seus professores e com a escola.

O planejamento dos encontros girou em torno do desenvolvimento de um projeto de atividade extraclasse que os estudantes elegeram como sendo algo que gostariam de fazer juntos, sob a mediação de professores e da equipe de Psicologia escolar. Os primeiros quatro encontros foram utilizados para possibilitar a expressão, pelas crianças, de atividades definidas como as que gostariam de realizar em grupo e no contexto extraclasse. O conjunto das expressões individuais foi avaliado e o grupo definiu, levando em consideração modos de funcionamento da turma e critérios institucionais e operacionais para a efetivação de saídas mediadas do contexto escolar, assistir a um filme no cinema.

Definido o que queriam fazer juntos, o restante do tempo de intervenção foi utilizado para escolher o filme, o cinema, obter autorização dos pais e da escola, além de avaliar todo o processo e suas implicações nas interações e configurações vinculares. A cada encontro, o grupo desenvolvia atividades de planejamento e organização, algumas vezes dividido em subgrupos com tarefas diferentes. Desse modo, havia crianças efetivando entrevistas com gestores da escola e apresentando os dados obtidos ao grande grupo, outras pesquisavam a programação de cinema e mostravam as sinopses de filmes aos demais, algumas dedicavam-se à obtenção da autorização dos pais e à coleta de dinheiro para a compra coletiva de guloseimas. A equipe de Psicologia escolar, além de auxiliar na organização das tarefas, concentrou suas intervenções na mediação da dinâmica grupal de modo a intervir em aspectos obstaculizados da comunicação entre eles e com mediadores institucionais.

 

Resultados e discussão

Nessa escola, a transição do quarto para o quinto ano é marcada por um processo de reconfiguração das turmas, cuja composição final é resultado da integração de alunos provenientes de diferentes quartos anos. É importante destacar que essa mudança representou, para um número significativo de alunos componentes do grupo de intervenção, o afastamento de colegas com os quais compartilharam os quatro primeiros anos de escolarização formal, surgindo, em alguns casos, isolamentos dentro do grupo. Após análise das configurações vinculares observáveis e de suas implicações na dinâmica do grupo, inicialmente focou-se na fragilidade dos vínculos entre os alunos, buscando criar um espaço lúdico para a reestruturação vincular-relacional. Com o decorrer das intervenções, destacou-se a cristalização observada dos processos de comunicação e cooperação dos alunos entre si, destes com professores e com a instituição.

Assim como encontradas em estudos, observamos, na rotina dos alunos e em falas dos professores, referências à diminuição do espaço lúdico e das brincadeiras no Ensino Fundamental. De acordo com Cordazzo e Vieira (2008), nessa fase geralmente a preocupação dos professores e pais concentra-se nos estudos, e as motivações que as crianças ainda apresentam para brincar são desprezadas, não ocorrendo um reconhecimento da relevância da brincadeira como um meio para a construção social do sujeito. Em uma das atividades realizadas com os alunos, pedimos para que desenhassem ou escrevessem o que faziam nas séries escolares anteriores e que no quinto ano não fazem mais. As situações que mais apareceram foram atividades relacionadas à brincadeira e ao lúdico, como atividades para colorir e dobraduras e também a ida à brinquedoteca que, a partir do quinto ano, é retirada da grade de horário.

Autores afirmam que, embora tenham sido realizados poucos estudos que caracterizem as brincadeiras das crianças nesses espaços, a brinquedoteca contribui para o desenvolvimento infantil ao propiciar às crianças um ambiente com diversas atividades lúdicas, individuais e coletivas, além de constituir um lugar adequado para observar e conhecer de maneira mais completa a criança e suas interações (Macarini & Vieira, 2006).

Nas relações sociais e formação de vínculos, percebemos que, ao realizar mais atividades lúdicas em grupos - sem nenhuma avaliação ou nota, mas com um objetivo em comum, de criar um projeto escolhido e pensado pelos próprios alunos -, as tensões normalmente existentes devido à necessidade de aprovações e alcance de um determinado desempenho diminuíram e possibilitaram que os alunos trabalhassem em grupo e treinassem o convívio social de modo menos competitivo e sem punições. A conduta lúdica oferece oportunidades para experimentar comportamentos e diversificadas estratégias para lidar com os conflitos sociais que podem aparecer no decorrer da brincadeira ou atividade, além de propiciar um espaço de mediação para os professores (Cordazzo & Vieira, 2007; Marcolino & Mello, 2015).

Bomtempo et al. (1986) afirmam que, apesar de estudos já falarem há tempos sobre a importância da brincadeira, a Educação ainda substitui o jogo por atividades consideradas "mais sérias". Esse pensamento ficou evidente em falas dos próprios alunos. Ao debatermos qual seria a importância de a turma realizar mais atividades de lazer ou brincadeiras, o aluno 7 relatou que "isso seria divertido, mas eles não podem ficar perdendo tempo com brincadeiras, pois com isso não se aprende, somente com estudos". Essa visão permeia as escolas e os professores que ainda percebem a brincadeira como diversão, separada da Educação, como algo que não condiz com o aprendizado e os "conteúdos" de responsabilidade da escola.

Ao compreender as brincadeiras infantis como expressão de uma realidade interna e imaginária que é baseada na realidade externa, estamos considerando a primeira como manifestação individual da segunda, ou seja, das relações sociais (DaRos, 1994). Isto dito, é possível afirmar que com atividades lúdicas pode-se depreender as representações sociais que as crianças têm do mundo que as rodeia. Essa proposição destacou-se em uma das atividades finais efetivadas, quando solicitamos que as crianças fizessem uma dramatização de como elas imaginavam que seria uma ida da turma ao cinema. A representação evidenciou os estereótipos existentes na e sobre a turma, segundo os quais era composta por: grupo dos "faladores", dos que "só comem", dos que "ficam no celular" e dos "xingadores". Importante destacar a relevância desse momento no processo crítico e reflexivo do grupo sobre si e no contexto escolar. Ao dramatizarem, valendo-se do espaço protegido da intervenção mediada por psicólogos, maximizaram a representação de situações em que caracterizavam um grupo de xingadores, exercitando vários xingamentos nos quais revelaram aspectos de sua crítica ao modo como são disciplinados, especialmente por adultos e "a priori", ou seja, sem que tenham agido contrariamente às regras sociais, mas como crianças! Compartilhando suas percepções sobre a atividade coletiva de dramatização, avaliaram que adultos não se interessam pelo que têm a dizer, mormente se preocupam em corrigir como o dizem.

Considerando-se que, muitas vezes, as ações imaginadas estão subordinadas a determinados significados e interpretações baseadas em regras não compreendidas ou desconhecidas pelas crianças, pautávamos nossas intervenções pelo entendimento de que o brincar cria um mundo de possíveis ações que o dia a dia não permite exercitar e que estão além das possibilidades habituais das crianças. Na atividade exemplificada acima, ao permitirmos que os xingamentos fossem utilizados livremente e sem punição durante a dramatização, foi possível ressignificá-los como conteúdo não expresso da dinâmica relacional criança-adulto e alunos-escola (DaRos, 1994).

Nesse sentido, de acordo com Rezende et al. (2010), as atividades desenvolvidas durante os encontros se configuraram como disparadoras no processo, sendo significativa a forma como foram apresentadas ao grupo e as ressignificações possíveis a partir delas. Avalia-se que o projeto motivou e mobilizou o grupo para uma temática específica; no caso, o desenvolvimento de relações interpessoais mais autônomas e críticas a partir da cooperação para o alcance de um objetivo em comum: ir ao cinema juntos. Focar na tarefa, com seus limites e possibilidades, resultou no reconhecimento da fragilidade dos vínculos existentes devido à ruptura com suas turmas de origem, além da formação de novos vínculos na turma e contribuiu para a ressignificação de aspectos da queixa escolar, especialmente aqueles relacionados com a dificuldade de ensino e aprendizagem devida à dispersão e às conversas paralelas.

A proposta de formação de vínculos em todas as atividades estava permeada pela abertura a uma maior autonomia por parte dos alunos para realização do projeto, pois, segundo Petroni e Souza (2010), responsabilidade e participação na tomada de decisões são fatores que podem contribuir para que o sujeito desenvolva autonomia, e que esta se manifeste de variadas maneiras no contexto escolar. O reconhecimento da autonomia ficou evidente na escrita de alguns alunos durante a avaliação do projeto. O aluno 1, por exemplo, afirmou: "eu achei essa aula muito divertida, porque foi a primeira vez desse ano que deixaram a gente escolher o que fazer. Teve bastantes ideias, mas, pelo menos fizemos, alguma coisa que todos queriam". Já a aluna 2 ressaltou: "gostei de todas as atividades quando a gente escolheu o filme e também quando escolhemos o que a gente queria fazer". A aluna 3 demonstra o que aprenderam, quando se dá autonomia a elas: "vocês nos ensinaram a como se organizar para algo com antecedência".

Por outro lado, o protagonismo dos alunos em desenvolver o projeto evidenciou práticas cristalizadas da instituição que se mostraram limitadoras em relação às escolhas das crianças, como nos exemplos anteriores, nos quais dizem que pela primeira vez puderam escolher algo por si mesmos.

As ações institucionais limitadoras a projetos autônomos das crianças foram reafirmadas pela professora regente da turma, que compartilhou com os alunos experiências anteriores de saídas da escola sob responsabilidade dos professores, o que os levou a definir pela negação da assunção dessa tarefa. A conversa com a professora mostrou-se ao mesmo tempo limitadora da possibilidade de efetivação do projeto da turma e motivadora do grupo na criação de estratégias que o viabilizassem e foi avaliada positivamente pela equipe de Psicologia escolar referente aos objetivos da intervenção.

No contexto dessa conversa, a professora ressaltou a importância de procurarem saber dos limites e possibilidades de efetivar um projeto da turma, uma vez que a escola tende a apresentar propostas pré-definidas e exequíveis segundo seus critérios, que os estudantes muitas vezes desconhecem e sobre os quais não são convidados a refletir ou criar alternativas. Crianças e professora chegaram à conclusão de que muito da dispersão da turma estava relacionado com não compreender ou não ser convidada a compartilhar o sentido de tarefas comumente efetivadas em sala de aula. Nas palavras da professora:

Damos coisas prontas para vocês fazerem ou reproduzirem e no fim causa a maior confusão e certo estranhamento na turma vocês mesmos terem que tomar decisões como para realizar este projeto. Até mesmo uma certa passividade em resolver tarefas, esperando que a professora ou a equipe de Psicologia fizesse os arranjos necessários para que o projeto acontecesse.

Observou-se que o grupo, refletindo o contexto social no qual está inserido, espelhou as práticas limitantes. De acordo com Eccheli (2008), experiências repetidas de fracasso diminuem o senso de eficácia dos alunos, que passam a pensar que não têm capacidade para realizar a atividade, desistindo facilmente quando aparece uma dificuldade e não se julgando capazes de modificar o que foi imposto. Em diferentes etapas da intervenção, percebeu-se que as práticas cristalizadas da instituição impingiam muitas negações aos desejos das crianças. A tendência era desistir sem questionar, além da produção de discursos de antecipação do fracasso e desesperança, como a aluna 5, que afirmou: "esse projeto nunca vai dar certo", e a aluna 6, que comentou: "já que a gente não pode viajar, vamos fazer as camisetas das olimpíadas logo de uma vez".

Uma das hipóteses levantadas durante o processo é que a "indisciplina" da turma poderia estar relacionada tanto às repetidas experiências de fracasso por limitações externas quanto por uma falta de motivação da turma diante da falta de espaços lúdicos. Segundo Eccheli (2008), para evitar o fracasso ou desaprovação social, os alunos se esquivam das atividades de aprendizagem, sendo apáticos ou indisciplinados, como uma forma de se autoproteger de sentimentos como incapacidade, frustração, desmotivação e baixa autoestima.

Por fim, a queixa de indisciplina da turma foi interpretada como falta de motivação em alguns casos. Porém, durante o projeto, constatou-se que os alunos estavam motivados para a tarefa, embora ainda assim a "indisciplina" permanecesse muito mais pelo envolvimento dos alunos na tarefa do que por um movimento de esquiva, fato que se viu como positivo, pois, segundo Neri (1992), a participação ativa dos alunos é expressão de energia e do entusiasmo que surgem a partir de uma aprendizagem significativa. Portanto, vê-se no silêncio esperado em sala de aula uma questão a ser problematizada, pois ele pode representar uma desfuncionalidade do grupo, tendo em vista que essas homogeneizações ainda não superadas podem servir mais para produzir cristalizações do que para movimentar o que está instituído (Souza, 2004).

A estratégia de formação de vínculos para ressignificar a queixa de indisciplina também se mostrou efetiva, como vemos na fala da aluna 5: "a ideia de montar esse trabalho é muito bom, na minha [opinião] uniu mais a turma e ficamos mais amigos". Percebeu-se que, com o tempo, o próprio grupo se autorregulava e autoavaliava a turma como mais colaborativa. Segundo o aluno 7, "achei o projeto bem legal, pena que, no começo, muitos não colaboraram [todos não colaboraram!]. Com o tempo, o 5A começou a ajudar, colaborar, 'prestar atenção'". Nesse sentido, percebeu-se uma ressignificação da queixa inicial de dificuldades no processo de ensino e aprendizagem por excesso de conversas, visto que o excesso de conversa após a intervenção passou também a ser gerenciado pelo próprio grupo ao ter sua habilidade de autoavaliação e autorregulação reforçadas. Com isso, o foco da queixa, que poderia ser individualizante, centralizado em sujeitos específicos da turma, recebeu um significado enquanto grupo. Apostou-se na potencialização das habilidades grupais como instrumento para diminuição dos comportamentos que geraram a queixa inicial.

Além disso, foi possível concluir que as intervenções com o grupo potencializaram sua função mediadora entre a particularidade e a totalidade social, pois, a partir das reflexões efetivadas, alcançou-se uma maior abstração e generalização sobre a relação entre limites e possibilidades para a realização da tarefa segundo os determinantes sociais e do contexto escolar (Andaló, 2006).

Acredita-se que não só a equipe de psicologia atuou como mediadora ao valorizar as experiências de cada um no coletivo, mas o próprio grupo emergiu como mediador. De acordo com Andaló (2006, p. 34), "a mediação tem que ver com a passagem de um nível singular ou particular a um nível genérico, abstrato ou universal, e vice-versa. Ela expressa relações concretas e vincula mútua e dialeticamente momentos de um todo, indicando que nada é isolado".

Por fim, outra contribuição advinda do processo grupal foram as reflexões sobre as práticas, acontecimentos e sentimentos percebidos no contexto social. Nesse sentido, foi possível observar e refletir sobre as práticas institucionais que são coconstrutoras da subjetividade dos inseridos nesse contexto e podem atuar de forma a reforçar comportamentos e queixas considerados negativos pela dinâmica institucional, mas que ao mesmo tempo são produzidas e perpetuadas por ela. Ou seja, o grupo acaba por refletir e reproduzir aspectos macrossociais não desvelados por consequência de práticas individualizantes e cristalizadas e que acabam sendo atribuídos aos sujeitos dos processos de ensino e aprendizagem segundo a óptica da dificuldade do sujeito ou de uma determinada turma.

 

Considerações finais

Percebeu-se, por meio das intervenções, que a vivência da mediação proposta facilitou tanto a formação de novos vínculos quanto a ressignificação de aspectos que obstaculizavam a dinâmica grupal, tanto no contexto de sala de aula quanto no contexto institucional mais amplo. A queixa inicial de dificuldades no processo de ensino e aprendizagem devido ao excesso de conversa em sala de aula foi ressignificada, de forma que após a intervenção o excesso de conversa foi avaliado como motivação dos alunos para participar da tarefa e parte de uma aprendizagem significativa a partir da participação ativa dos alunos na tarefa proposta, reforçando na turma aspectos como vínculo, autonomia, autoavaliação e autorregulação. As atividades propostas viabilizaram momentos de diálogo entre os alunos e destes com outros atores institucionais e promoveram momentos de reflexão acerca dos limites inerentes às vivências na instituição escolar, contribuindo para a ressignificação dos modos de pensar sobre as possibilidades diante das limitações. Além disso, o projeto propiciou aos alunos a reflexão acerca das dinâmicas institucional e da turma, reforçando a ideia de que o contexto educacional é constituído pelos sujeitos que ali atuam, ou seja, é um espaço social de ensino e aprendizagem.

Entende-se que a mediação grupal se mostrou uma estratégia efetiva de ressignificação da queixa escolar, pois tirou o foco do sujeito e trouxe à tona uma visão mais crítica e abrangente do processo educacional. A criação de vínculos significativos entre a equipe de Psicologia escolar, as crianças e a professora regente de classe também se mostrou fundamental, tendo em vista que uma relação de confiança, cumplicidade e parceria se estabeleceu e propiciou a promoção de espaços de reflexão e comunicação indispensáveis para a mobilização do grupo na produção de novas significações perante conflitos, dificuldades e processos disfuncionais do contexto escolar.

Intervir na queixa escolar de forma contextualizada, levando em consideração as limitações/possibilidades inerentes à instituição e contemplando os fenômenos históricos existentes na escola, permitiu desvelar práticas engessadas e cristalizadas que estavam dificultando o processo ensino-aprendizagem desse grupo. Os resultados dessa intervenção levaram a equipe do Parque/Lapee a investir em estratégias de intervenção grupal com professores e demais agentes pedagógicos da escola em questão, com o objetivo de refletir e propor alterações nas relações institucionais e nas práticas escolares que podem estar contribuindo para a produção do fracasso escolar naquele contexto.

 

Referências

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Recebido em 24/10/2016
Aprovado em 06/11/2017

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