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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2018

 

Apoio social: modo de enfrentamento às vivências de humilhação e de vergonha em contextos de pobreza1

 

Social support: way of coping with humiliation and shame experiences in contexts of poverty

 

Apoyo social: modo de afrontamiento frente a vivencias de humillación y de vergüenza en contextos de pobreza

 

 

Maria Aparecida EstanislauI; Maria Zelfa de Souza FeitosaII; Verônica Morais XimenesIII; Alexsandra Maria Sousa SilvaIV; Márcia Skibick de AraújoV; Zulmira Áurea Cruz BomfimVI

IAssistente social e psicóloga formada pela Universidade Federal do Ceará
IIPsicóloga. Mestre e Doutoranda em Psicologia na Universidade Federal do Ceará
IIIPsicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade de Barcelona. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Pesquisadora PQ2 do CNPq
IVPsicóloga. Mestre e Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Professora do Curso de Psicologia da Faculdade Luciano Feijão
VPsicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Barcelona
VIPsicóloga. Doutora em Psicologia pela PUC-SP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará

 

 


RESUMO

Este artigo analisa as relações entre os processos de humilhação e vergonha, oriundos da situação de pobreza, e o apoio social como enfrentamento dessa condição. A pesquisa foi desenvolvida em uma comunidade urbana e uma rural de um estado do Brasil, com a participação de 417 sujeitos na aplicação de questionários e 38 nos cinco grupos focais. Buscou-se identificar os índices de pobreza multidimensional (IPM), aspectos quantitativos e qualitativos de humilhação e de vergonha relacionados à condição de pobreza e os tipos e frequência de apoio social recebido em situações difíceis na vida. O IPM é mais elevado na comunidade rural, a maior incidência de apoio foi na família e o baixo o índice de apoio formal encontrado nas políticas públicas. O apoio social se apresenta como modo de enfrentamento, pois permite aos sujeitos o sentimento de poder controlar a própria vida por sentirem que têm amparo em situações difíceis.

Palavras-chave: Pobreza. Vergonha. Humilhação. Apoio social.


ABSTRACT

This article analyzes the relation between humiliation and shame processes, that come from poverty, and social support as a way of coping with this condition. The research was conducted in an urban and a rural community of state of Brazil, with the participation of 417 subjects in the questionnaire application and 38 in 5 focus groups. It pretended to identify multidimensional poverty index (MPI), quantitative and qualitative aspects of humiliation and shame related to poverty condition and types and frequency of social support received in hard situations in life. MPI is higher in the rural community, the highest incidence of support was in the family, and formal support in public policy index was low. Social support is presented as a way of coping, it makes subjects feel they can control their own lives because they feel supported in difficult situations.

Key words: Poverty. Shame. Humiliation. Social support


RESUMEN

Este artículo analiza las relaciones entre los procesos de humillación y vergüenza, oriundos de la situación de pobreza, y el apoyo social como modo de afrontamiento de esta condición. La investigación se desarrolló en una comunidad urbana y una rural de un Estado de Brasil, con la participación de 417 sujetos en la aplicación de cuestionarios y 38 en los 5 grupos focales. Se buscó identificar los índices de pobreza multidimensional (IPM), aspectos cuantitativos y cualitativos de humillación y vergüenza relacionados a la condición de pobreza, y los tipos y frecuencia de apoyo social recibido en situaciones difíciles de la vida. El IPM es más elevado en la comunidad rural, la mayor incidencia de apoyo fue en la familia, y bajo el índice de apoyo formal encontrado en las políticas públicas. El apoyo social se presenta como modo de afrontamiento, pues permite a los sujetos el sentimiento de poder controlar su propia vida al sentir que son amparados en situaciones difíciles.

Palabras clave: Pobreza. Vergüenza. Humillación. Apoyo social


 

 

Introdução

A temática da pobreza é importante no atual cenário brasileiro, caracterizando-se como um fenômeno histórico, cultural e estrutural da nossa sociedade, acarretando implicações multidimensionais (Sen, 2000). Nessa condição, o sujeito empobrecido vivencia inúmeras situações em que é humilhado, negado, oprimido e explorado (Góis, 2008). Essas vivências geram sofrimento e vergonha de ser pobre, indo ao encontro de uma construção ideológica de culpabilização do pobre por sua situação de privação e exclusão (Sawaia, 2013).

Com base nisso, o presente artigo objetiva analisar as relações entre os processos de humilhação e vergonha, oriundos da situação de pobreza, e o apoio social, como modo de enfrentamento dessa condição, em contextos urbano e rural de um estado do Brasil.

A vergonha é uma vivência interna, pessoal, de julgamento moral negativo de não atender a um autoconceito ou a uma boa representação de si mesmo (La Taille, 2004). A humilhação se apresenta de diversos modos em condições de exploração e exclusão próprias de uma sociedade capitalista que impõe experiências de submissão a um tratamento discriminatório e injusto que ferem a dignidade, a honra da pessoa ou grupo (Lopreato, 2005), gerando um sentimento de impotência que afeta a saúde (Góis, 2012) e a participação social (Zavaleta, 2007).

Para enfrentamento dessas situações, o apoio social contribui para a vinculação entre pessoas submetidas a tais situações, assim como o sentimento de identidade (Menezes & Sarriera, 2005). Autoconfiança, satisfação, sentimento do controle de sua própria vida (Valla, 1999), capacidade de enfrentar problemas (Griep, 2003) e o bem-estar (Herrero, 2004), são aspectos decorrentes do apoio social, que por sua vez, promovem condições de vida e saúde mais favoráveis.

 

A pobreza para além da dimensão monetária

Compreendemos a pobreza não apenas em uma perspectiva financeira como defendida pela abordagem monetária, mas corroboramos com Sen (2000) que aborda a multidimensionalidade da pobreza enfocando as condições de privação e também as dimensões de saúde, renda, educação, habitação, relações sociais e padrão de vida.

A pobreza envolve a dominação dos sujeitos empobrecidos, a opressão, exclusão e alienação (Góis, 2008), em que lhes é negada a possibilidade de se perceberem como produtos e produtores de sua história, naturalizando as relações injustas e suscitando posturas fatalistas diante da vida (Martín-Baró, 1998). O fatalismo, por sua vez, consiste na crença de que uma força superior - como Deus, a sorte ou o destino - rege a vida de todas as pessoas, sem que seja possível qualquer interferência ou controle por parte do indivíduo, o que gera passividade, sentimento de impotência e resignação diante da condição social injusta.

De acordo com Sawaia (2013), em uma relação dialética, os sujeitos empobrecidos são incluídos pela exclusão de seus direitos, para que possam ser disciplinados aos moldes da estrutura excludente, mantendo o status quo. Santos (2013, p. 74) confirma quando diz que "esta exclusão atual, com a produção de dívidas sociais, obedece a um processo racional, uma racionalidade sem razão, mas que comanda as ações hegemônicas e arrasta as demais ações". Assim é que se compreende como a má distribuição e concentração de renda delatam o descaso e o pouco interesse em sanar essa crescente realidade. Assim, concebe-se que a pobreza é um problema histórico e social, de base estrutural, que envolve dimensões ideológicas, políticas, simbólicas, psíquicas e produtoras de relações de estigmatização e sofrimento que oprime o sujeito pobre, na constituição de sua identidade (Moura Jr. & Ximenes, 2016).

Kliksberg (2000), em estudos sobre a América Latina, aponta as falácias sobre as condições socioeconômicas, políticas e culturais em que vivem os povos latino-americanos. Essas falácias, envoltas pela ideologia dominante, rotulam, minimizam e neutralizam pensamentos e ações que poderiam vir a ser transformadores. O pensamento hegemônico promulga que a desigualdade é um fato da natureza, mantendo uma conjuntura que está posta e é comercializada como única possível. Essas proposições contribuem para que o sujeito empobrecido se veja como incompetente e ignorante, sinta-se envergonhado de se manifestar e naturalize a humilhação como parte do seu cotidiano. Tais falácias produzem sujeitos controlados, alienados, apáticos e detentores de uma fragilidade imaginária que os coloca a mercê do sistema e abre espaço para o sentimento de vergonha da pobreza e o sofrimento psicossocial.

Na esteira desse pensamento, Veras (2013, p. 40) demonstra como existe nos dias atuais uma "condenação irremediável da pobreza o que faz com que os pobres prefiram não se reconhecer como tal", pois apesar da privação de direitos, de emprego, de dignidade, existe uma inclusão precária nos processos econômicos de produção e consumo de bens e serviços do estritamente necessário à reprodução do capital.

De diversas formas, a sociedade passa a culpabilizar os sujeitos pobres por sua condição (Ximenes, Nepomuceno & Cidade, 2016; Accorssi, Sacarparo & Guareschi, 2012) e a reproduzir um discurso de senso comum e moralista de igualdade de condições, principalmente da parte de alguns setores econômicos, como as classes médias, por exemplo, que se beneficiam da mão de obra a baixo custo e na venda de produtos e serviços. Essa é, na verdade, uma dualidade de inclusão na esfera de consumo e exclusão não somente pela privação material, mas na discriminação, inferiorização e no estigma de pessoa pobre como perigosa. É o que defende Wanderley (2013), quando demonstra que a pobreza atualmente gera personagens que incomodam politicamente, uma vez que a exclusão forja "ameaçadores socialmente (são perigosos, pois não são simplesmente pobres, mas bandidos potenciais - a representação do pobre está se modificando entre nós: a sua identidade está cada vez mais relacionada à do bandido marginal)" (p.25).

Interessa-nos destacar, nesse fenômeno de exclusão/inclusão próprio de uma sociedade capitalista, a ocorrência do sofrimento ético-político explicitado por Sawaia (2013, p. 111), "o sofrimento gerado pela situação social de ser tratado como inferior, sem valor, apêndice inútil da sociedade". Essa autora aponta que a desigualdade social é uma ameaça constante à existência do sujeito, pois cerceia sua experiência e cidadania, impondo diferentes modos de humilhação e reforçando a vergonha e a culpa pela condição de ser pobre, dentro de uma sociedade que responsabiliza o indivíduo por seus fracassos, ainda que não lhe ofereça as condições necessárias para o sucesso (Sawaia, 2009). Considerando-se essas questões, vergonha e culpa apresentam-se "[...] como sentimentos morais generativos e ideologizados com a função de manter a ordem social excludente, de forma que a vergonha das pessoas e a exploração social constituem as duas faces de uma mesma questão" (Sawaia, 2013, p. 104). Destarte, uma cidadania cerceada implica a negação da participação, dos direitos básicos e da felicidade, garantindo a reprodução de uma identidade de oprimido e explorado, que fortalece a ideologia de submissão e resignação ao gerar intenso sofrimento e tristeza, os quais se cristalizam e se reproduzem de geração em geração (Góis, 2008).

Vergonha e humilhação fazem parte, assim, do cotidiano de pessoas impedidas de exercer seus direitos e que, dada a sensação interna de pequenez, impotência e fragilidade, sentem-se diminuídas em sua dignidade e altivez (Zavaleta, 2007). Assim, exprime-se a importância de investigarmos a relação entre o sentimento de vergonha e humilhação, na condição de pobreza, e a percepção dos sujeitos sobre as fontes de apoio social, em relação ao potencial desse apoio oferecer o suporte necessário para lidar com as situações adversas.

 

O sentimento de vergonha e humilhação: a marca de uma relação desigual no contexto de pobreza

Os aspectos psicossociais da pobreza estão relacionados às experiências de exclusão, discriminação, rejeição e também à compreensão dos mecanismos que são acionados psiquicamente para vivenciar tais experiências, forjadas na realidade social e histórica. Para Zavaleta (2007), a compreensão da pobreza multidimensional (Sen, 2000) passa pelos sentimentos de exclusão, discriminação e vergonha. As experiências de pobreza passam a fazer parte das estórias de vida das pessoas e têm implicações na sua forma de se posicionar e se relacionar socialmente. Essa exclusão ao longo da vida pode contribuir para que a pessoa empobrecida se ache incompetente ou incapaz de se expressar e ser compreendida ou se comportar de modo socialmente esperado. A possibilidade de não atender à expectativa do outro, ou de sua inadequação, pode levar ao isolamento e a não participação social, fragilizando os laços sociais interpessoais e comprometendo o suporte social necessário para enfrentamento dessas experiências de pobreza, como ressaltado por Zavaleta (2007), quando coloca que as experiências de vergonha e humilhação podem levar ao isolamento das pessoas, que evitarão participar de eventos sociais e de outras atividades tradicionais da comunidade.

O sentimento de vergonha está relacionado tanto a uma experiência de cobrança moral da própria pessoa (La Taille, 2004) ou um autojulgamento em atender ou não a um autoconceito, quanto a um aspecto relacional, com o outro que julga, ou que age em desacordo com esse conceito. A vergonha, assim, é uma vivência interna de julgamento moral negativo (da pessoa e do comportamento) que causa sofrimento, sensação de rebaixamento e inutilidade e que geralmente é acompanhada da vontade de fugir, esconder-se ou "afundar" no chão, para fugir da situação dolorosa. Soldera e Hashimoto (2009), 2009, p. 5 reforçam que "A pessoa, quando mantém o sentimento de vergonha, guarda-a para si, ainda que a mesma ocorra justamente na relação entre o indivíduo e a sociedade. E, se esse sentimento não for possível de ser elaborado, pode provocar no indivíduo sofrimento, tanto psíquico como social".

A situação de vergonha, muitas vezes, não precisa sequer ser observável publicamente ou diretamente intencional. Um olhar, um tom de voz, um ambiente e uma medida institucional podem provocar um autojulgamento negativo. Zavaleta (2007) considera a vergonha como o produto de um juízo subjetivo relacionado à crença de que deve se sentir envergonhado. Está atrelada a um desejo de fugir de determinada situação que lhe é percebida como inferior, pressupondo um autojulgamento.

A humilhação está relacionada a uma relação desigual em que um se posiciona com poder em relação a outro. Na humilhação, uma pessoa ou grupo é discriminado, tratado de forma indigna ou injusta, ferindo a honra e a dignidade. A humilhação é um sentimento moral

[...] fruto de uma relação assimétrica de comportamento depreciativo por parte de quem humilha, que fere a auto-estima de quem vivencia a experiência dolorosa de ser tratado com desprezo. Humilhar significa depreciar o outro, afirmar a posição inferior e subalterna do outro. A humilhação é um rebaixamento moral que afeta o bem-estar psicológico e físico, atinge o amor-próprio e viola os princípios de respeito e de dignidade humana. (Lopreato, 2005, p.248)

Em situações de humilhação, a identidade e os valores morais do indivíduo são atingidos e causam impacto sobre o seu autoconceito. A humilhação pode desencadear implicações psicossociais, como baixa autoestima, dificuldades na escola, delinquência, fobia social, dentre outras, sendo afirmada como um fenômeno eminentemente interacional, social e cultural. Entendemos com Góis (2012) que essa relação de humilhação se situa dentro de uma configuração socioideológica, desempenhando um papel central na forma como o indivíduo, numa relação desigual e opressora, se faz sujeitado. Portanto, podemos afirmar que a humilhação decorrente da realidade de pobreza é geradora de sofrimento psíquico, de uma ideologia de resignação e submissão e de um estresse negativo que podem desencadear, segundo Góis (2012, p. 131), um "circuito de reforço mútuo entre fracasso, ideologia, identidade fragilizada e estresse continuado, cuja consequência é mais dominação, exploração, fracasso, violência, submissão, sofrimento, fragilidade orgânica, situações de crise, doenças físicas, transtornos mentais e morte". Nessa relação de poder, o pobre está na condição de oprimido, condição essa que pode socialmente ser geradora do sentimento de vergonha. Para esse autor,

Essa grande parcela da população nasce na miséria, vive agredida, explorada, humilhada, desamparada e morre no anonimato. [...] É desse mundo absurdo que vem a demanda maior de doentes e a grande maioria dos usuários dos serviços de saúde e da assistência social. [...] É desse lugar social de escassez material e humilhação que vem a maioria da população brasileira. (Góis, 2012, p. 122)

As humilhações realizadas de forma sistemática, rotineira, impetradas por pessoas significantes, como a família ou por instituições, cujo propósito seria o de prestar apoio social ou proteção, podem levar os indivíduos a incertezas quanto aos seus valores e sua importância como pessoa e como sujeito com potencial realizador. Nesse sentido, considerando as implicações psicossociais da pobreza, podemos dizer que o enfrentamento cotidiano de práticas de humilhação vivenciadas pelas pessoas quando buscam atendimento nas políticas públicas, nas instituições de serviço judiciário, transporte, segurança, educação, dentre outros, pode levar a um sofrimento psíquico expresso por meio do adoecimento.

Tais práticas, muitas das vezes perpetradas por pessoas na mesma condição de oprimido, reproduzem em menor escala o contexto estrutural econômico e político de exclusão. Responsabilizam-se as pessoas em situação de pobreza pelas demandas sociais apresentadas e também, perversamente, pelo não atendimento de seus direitos básicos. No âmbito das relações pessoais, a humilhação mobiliza experiências psíquicas anteriores marcadas na história de vida desses sujeitos, fomentando mais uma vez julgamentos de inadequação e autodepreciação, ou seja, sentimentos de vergonha. Dessa forma, a pessoa pode sentir vergonha de ser pobre e também sentir-se culpada por essa situação de privação ou de não acesso a certos serviços, corroborando com uma ideologia hegemônica de que todos teriam possibilidade de ascender socialmente, independentemente da sua classe social de origem (Estanislau & Ximenes, 2016). Essa visão dominante da ideologia liberal supõe que todos partam de iguais condições e, desse modo, cada um deve atribuir somente a seu esforço pessoal as condições de ascensão.

Como nos apresenta Góis (2012), a situação de vulnerabilidade gera uma deterioração sociopsicológica em que as pessoas em situação de pobreza transitam entre necessidades materiais não atendidas, enfermidades físicas, medo, alcoolismo, violência e falta de perspectiva. Paradoxalmente, no entanto, as relações sociais e o funcionamento psíquico transcorrem em relações antagônicas, em funcionamento dialético, de forma que a mesma vivência de humilhação que engendra a vergonha, também germina as condições de enfrentamento e o alicerce para novas possibilidades. Como diz Góis (2012), apesar do sofrimento psíquico, do adoecimento e distresse da pobreza,2 se observa ainda a potência de vida capaz de gerar resistência, de enfrentar os problemas, "é ver que a criatividade continua intacta e o afeto permanece latente à espera de uma relação humana confiável e autêntica" (Góis, 2012, p. 138). Nessa perspectiva, o apoio social pode ser um laço que possibilite ações pessoais e sociais de enfrentamento.

 

Apoio social no enfrentamento da condição de pobreza

Herrero (2004) e Griep (2003) apontam os estudos de Durkheim, da Escola de Chicago, de Sidney Cobb e de John Cassel como primeiras teorizações mais consistentes sobre o apoio social. Com base nesses autores, Griep (2003, p. 14) adota a definição de apoio social como a "[...] percepção do indivíduo a respeito de pessoas em quem ele pode confiar e contar em situações de necessidade [...]". Esse julgamento, influenciado por estados psíquicos, é dinâmico e varia conforme o modo como o sujeito percebe e se relaciona com seu ambiente.

Quanto à percepção do apoio, Carapinha (2010) distingue o apoio social percebido do apoio social disponível. Quanto ao apoio social percebido, o sujeito acredita que este lhe será oferecido pela rede social em situações adversas, mesmo que esta efetivamente não o faça. Já o apoio social disponível, o sujeito realmente tem acesso, ainda que a princípio não o identifique. Carapinha (2010) e Zanini, Verolla-Moura e Queiroz (2009) classificam o apoio percebido como apoio social descrito, definido como um tipo de apoio específico, percebido como presente; e apoio social valorado, que diz respeito ao valor atribuído pelo sujeito ao apoio descrito, qualificando-o como satisfatório ou não.

A rede de apoio define-se como um sistema social aberto, em reorganização constante, construída individual e coletivamente (Menezes & Sarriera, 2005) por grupos de pessoas com quem o sujeito mantém contato e estabelece vinculações (Andrade & Vaitsman, 2002), permitindo a ligação do sujeito ao meio social, seu reconhecimento pelos demais e um sentimento de identidade (Menezes & Sarriera, 2005). Dessa rede provém o apoio social e seus benefícios, como o aumento da autoconfiança, do nível de satisfação com a vida, do sentido de controle sobre a própria vida (Valla, 1999), da capacidade de enfrentar problemas (Griep, 2003) e do bem-estar (Herrero 2004). Para Carapinha (2010), esses benefícios aparecem ao sujeito quando ele acredita que pode contar com as pessoas com quem interage. As diversas fontes de apoio possibilitam a redução dos impactos psíquicos emergentes da vergonha e da humilhação da pobreza, contribuem com o desenvolvimento de potencialidades dos sujeitos pobres e, assim, favorece estratégias de enfrentamento da pobreza (Silva, Feitosa, Nepomuceno, Silva, Ximenes & Bomfim, 2016).

Assim, o apoio advém das relações formais e informais que o sujeito estabelece na rede social. Conforme classificação de Carapinha (2010), o apoio informal é quando os recursos de enfrentamento se manifestam por meio de relações íntimas, familiares, de vizinhança, dos amigos, de associações comunitárias e da religiosidade. Esse tipo de apoio guarda relações com a dinâmica comunitária, à medida que favorece o fortalecimento dos vínculos coletivos e das relações de solidariedade e partilha em uma comunidade (Silva et al., 2016). Quando, por outro lado, sua origem são as políticas e serviços públicos, estamos tratando do apoio formal. Para Carapinha (2010, p. 12), o apoio é, portanto, um conceito multidimensional, que "[...] deve ser compreendido como uma experiência pessoal, sendo reconhecida a importância da intensidade com que o indivíduo se sente desejado, respeitado e envolvido, e não como um conjunto objectivo de interacções e trocas.".

 

Metodologia

A pesquisa teve como base o método misto, em que se articulou uma fase quantitativa com a aplicação de questionários, realizados em visitas domiciliares, seguida da fase qualitativa, que se deu por meio de grupos focais, na própria comunidade, onde as temáticas abordadas estavam vinculadas às implicações psicossociais da pobreza. Participou da pesquisa um total de 417 sujeitos em situação de pobreza multidimensional, residentes em uma comunidade urbana e em uma comunidade rural de um estado do Brasil. Os participantes tinham mais de 18 anos e moravam, há mais de um ano, nas referidas comunidades.

Na comunidade rural, foram aplicados 208 questionários, e na urbana somamos 209 questionários. Na etapa qualitativa, somente poderiam participar dos grupos focais os sujeitos que haviam respondido ao questionário quantitativo previamente. Foram realizados três grupos focais na comunidade rural (GF-R), totalizando 22 sujeitos e 2 grupos focais na comunidade urbana (GF-U) com 16 sujeitos.

Um importante aspecto pesquisado foi o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM) que foi construído com base no Índice de Pobreza Multidimensional (PNUD, 2010); e no Índice de Carências de Porto Alegre (Comim et al., 2007). Foram abordadas as dimensões de educação (anos de escolaridade), habitação (serviços básicos, utensílios domésticos), trabalho e renda (renda familiar e individual, necessidade, comportamentos de vender e pedir para poder comer), saúde (mortalidade infantil, atendimento médico, desnutrição, quantidade de refeições) e aspectos subjetivos (autopercepção de pobreza). Para a construção do IPM, primeiramente foram coletados dados de controle como idade, gênero, cor, estado civil, quantidade de filhos, tipo de moradia, quantidade de pessoas residentes na mesma casa, tipo de comunidade (urbano ou rural), religião, participação em grupos religiosos, participação em programa de transferência de renda e escolaridade. Para o instrumento, foram contempladas as dimensões de educação, saúde, trabalho e renda e habitação (PNUD, 2010) e também aspectos subjetivos (Ávila, Bagolim & Comim, 2012).

Para a mensuração foi utilizada a metodologia fuzzy, que converte informações abstratas em formato numérico. Assim, não utiliza a forma binária de falso e verdadeiro e utiliza uma lógica de variáveis ordinais, com o intervalo de 0 a 1. Cada variável tem um valor mínimo e um valor máximo. Nesse caso, na análise dos resultados no intervalo, quanto mais os valores das respostas estiverem próximos a 1, mais as pessoas serão consideradas privadas, ou seja, mais pobre. Quanto mais os valores estiverem próximos de 0, serão considerados com menor privação, ou seja, menos pobres multidimensionalmente. Em consonância com Comim et al. (2007), o cálculo do IPM foi feito a partir de uma média de cada uma daquelas dimensões referidas e em seguida se estabelecendo um IPM total.

Na escala de Vergonha e Humilhação, tomamos como base os indicadores de Zavaleta (2007) e adaptada segundo a linguagem e a realidade regional/local, considerando a importância da objetividade, as especificidades da nossa cultura, bem como as teorias sobre vergonha e humilhação relacionadas à pobreza. A escala de apoio social compôs-se de seis perguntas destinadas a identificar com que frequência (Nunca; Poucas Vezes; Frequentemente; Sempre ou Quase Sempre) os sujeitos consideravam poder obter ajuda, quando em situações estressantes, de fontes classificadas genericamente como amigos, família, vizinhos, igreja ou grupo religioso, projetos sociais/OnGs e Serviços Públicos (PSF, Cras, Creas, Escolas).

A análise quantitativa se deu por meio do software SPSS 20.0 e a qualitativa por meio da Análise de Conteúdo (Bardin, 1977), com o auxílio do software Atlas.ti 5.2. A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética e respeitados todos os procedimentos éticos de uma pesquisa científica.

 

Relações entre humilhação, vergonha em situação de pobreza

Em relação ao IPM, foi encontrado como média do valor total 0,2552, tendo 0,11229 como desvio padrão. Dos 417 participantes desta pesquisa, 227 pessoas estão abaixo da média do IPM: 135 na comunidade urbana (59,5%) e 92 na comunidade rural (40,5%). A partir da análise descritiva exploratória, foi possível encontrar os valores de IPM para cada uma das comunidades pesquisadas, sendo o IPM da comunidade urbana igual a 0,2290 e o IPM da comunidade rural igual a 0,2818, indicando que as pessoas mais empobrecidas estão no contexto rural e é possível perceber os desdobramentos disso nas condições de vida, trabalho, educação e saúde desses sujeitos.

No que tange à vergonha e humilhação, questionados se estavam de acordo com a afirmação de que "sentiriam vergonha de ser pobre", 94,9% dos pesquisados afirmaram que não. Esse dado é significativo, pois informa, assim, que somente 5,1% dos respondentes concordam com a afirmação proposta. Em complemento, quando perguntadas se "as pessoas da sua comunidade sentiriam vergonha de ser pobres", 43% responderam que sim e 30,4% responderam à questão seguinte afirmando que "as pessoas pobres deveriam sentir vergonha de si mesmas". Quando lhes foi perguntado se estavam de acordo com a afirmação de que "as pessoas que não são pobres fazem as pessoas pobres se sentirem mal", 77,6% responderam que sim. Embora o dado pareça contraditório, se constata a dificuldade de pesquisar sobre um tema que gera sofrimento. Essa negação talvez se justifique porque, na pesquisa, apenas 2% dos entrevistados disseram que "sentiria vergonha se alguém da família fosse pobre", no entanto, 39,8% acreditam que as pessoas da sua comunidade "sentiriam vergonha se alguém da família delas fosse pobre".

A dificuldade em confirmar as vivências de humilhação pode estar relacionada ao que foi defendido por Alencar e La Taille (2007, p. 219), que dizem que "as práticas de humilhação não são tornadas públicas pelo fato de a sua prova ser de difícil constatação ou pelo próprio desejo da vítima de esconder o seu sofrimento, ocasionado pela vergonha sentida".

Conforme a Tabela 1, os serviços de saúde apresentaram o maior percentual (48%) de pessoas que se sentiram humilhadas quando procuraram ou foram atendidas nesses locais.

No contexto de saúde, a humilhação foi percebida do seguinte modo, na fala da entrevistada:

Eu disse, pois tá bom é pra remarcar, pois vai ficar o exame aí que eu num vou pegar mais não, aí eu num venho mais aqui não, porque eu já tô cansada, é pra lá e pra cá, desde cedo que manda pra qui e manda praculá, vai pra porta tal, vai num sei pra onde, fica fazendo a gente, é... de criança, aquelas crianças, uma criança tola, mandando pra lá e pra cá [...]. (GF1-U)

Em relação às humilhações ocorridas por agentes das instituições, corroboramos com o apresentado por Decca (2005, p. 116), quando explicita que a humilhação estaria como uma ação intrínseca das instituições, pois "mesmo em sociedades democráticas a humilhação se perpetua sobre aqueles que são considerados cidadãos de segunda classe, por razões econômicas, étnicas ou de gênero. Embora nem sempre a situação de humilhar esteja na consciência dos agentes, a ordem institucional reforça esses atos" (Decca, 2005, p. 116).

Esse dado se correlaciona à percepção de não se sentir apoiado pelos serviços públicos - dentre eles, os de saúde - em que 51,8% dos entrevistados afirmaram nunca receber apoio dessa fonte, como será discutido adiante. Isso foi verificado também na análise das entrevistas, nas quais se expressou, por exemplo, a precarização de serviços públicos de saúde, o que ficou patente na seguinte fala: "[...] meu posto, do meu bairro, né, que a gente precisa[...] muitas vezes a gente tem que se deslocar pra outro canto, e quando chega lá também é pior ainda que o nosso e assim vai passando, né" (GF2-U). Essa fala se coaduna, inclusive, com os resultados encontrados por Brandão, Giovanella e Campos (2013), no que concerne à dificuldade para a marcação de consultas nos serviços primários de saúde, ou seja, aqueles que se caracterizam como a porta de entrada do Sistema de saúde.

Em segundo lugar, é na família que 42% dos entrevistados sentiram-se humilhados. Esse dado nos remete ao apresentado por Góis (2012) quando fala das três principais formas de manifestações do distresse da pobreza: a comunidade, a família e o próprio indivíduo. Para esse autor, a família distressada apresenta uma dinâmica desagregadora, o que pode afetar de modo diferenciado seus membros, expresso em um modo específico de viver, sofrer e adoecer.

Por outro lado, 93% dos entrevistados apontaram que recebem apoio da família, o que a faz aparecer como a principal provedora de apoio social. Esse apoio foi expressivo também nos grupos focais, como no segmento: "Pra mim a família é tudo de mais precioso que eu tenho na minha vida. É onde eu me apoio e, quando tenho um problema, são as primeiras pessoas que eu procuro, né, assim a família." (GF2-R). Percebe-se, nesse caso, a multidimensionalidade das fontes de apoio (Carapinha, 2010), o que possibilita situações contraditórias em que, na mesma fonte, o sujeito encontra a humilhação e o apoio para lidar com as situações difíceis.

Um dos participantes do grupo focal relata de forma detalhada algumas situações nas quais se sentiu observado de uma forma humilhante por sua condição de pobreza em estabelecimento comercial, quando relatou "Eu mesmo já fui várias vezes discriminado, assim, de tá em mercantis assim, o C., A., sabe. Aí eu confesso, e não é impressão minha não, as pessoa fica olhando sabe" (GF2U). No GF1 da comunidade urbana, um dos participantes afirmou sentir vergonha ao frequentar bairros considerados mais ricos. Harkot-de-La-Taille (1996) faz referência ao conteúdo que provoca humilhação e que pode estar relacionada à condição do sujeito, pois está centrada no estado da pessoa relacionado à sua origem, situação social, contexto de pobreza, familiar, etc.

Outros participantes relataram sentirem-se humilhados principalmente em lojas e supermercados, quando sentem ser olhados com desconfiança, por conta das roupas que vestem - ainda que afirmem que a roupa não é capaz de dizer do caráter deles -, ou precisam deixar suas coisas na recepção dos estabelecimentos. Relataram que, ao entrarem nas lojas, sentem-se compelidos a demonstrar que vão comprar algo, pegando as cestas dos locais ou já se disponibilizando a deixar as coisas na recepção, a fim de não serem confundidos com ladrões. Como exemplo, "Não tá na minha aparência. Mas a gente vê que a gente é discriminado mesmo, a gente não tem boa vestimenta, não tem um bom carro [...]" (GF1-U).

Analisando essa fala, recordamos que na classificação de La Taille (2004) uma das categorias de vergonha seria a vergonha-padrão, decorrente de se considerar fora de um padrão estabelecido socialmente, como o padrão de beleza, de consumo, dentre outros. Nesses casos, a pessoa se sente rebaixada moralmente por não atender a esse padrão estabelecido e sente vergonha por se considerar inadequada. Na fala da entrevistada, podemos dizer que houve a humilhação pelo fato de a pessoa se sentir inferiorizada, estando em uma situação de exposição, percebendo-se observada pelo olhar dos outros, e não atendendo ao padrão estabelecido de vestimentas que considera adequado para aquele ambiente. Nesse caso, a humilhação causará um sentimento penoso, de vergonha, porque a pessoa compartilha a imagem negativa imposta.

Conforme a Tabela 2, sobre a percepção dos entrevistados em relação ao tratamento diferenciado ou discriminatório em função da falta de dinheiro, os dados apontaram que 79,8% dos entrevistados acreditam que a falta de dinheiro prejudica ser atendido nos serviços públicos.

Nas falas dos entrevistados, podemos observar como é percebida a discriminação por ser pobre e morador de área rural.

Mas ninguém, eu, pra mim eu não fui descriminado sobre a pobreza, ou eu não ter o direito de chegar e dar bom dia, boa tarde a qualquer um cidadão, né? E conversar com um cidadão rico. Agora tem aquelas pessoas que tem aquele orgulho e tal e tal, né? Mas às vezes a gente não ia se apresentar muito, não ia se amostar muito por que sabia que ele era meio poderoso e a gente deixava ele de lado, né? E, aquele que tinha poder mais do que a gente, a gente fazia um jeito de não ocupar muito que era pra não ser descriminado por ele por que podia descriminar, se ele desconfiasse que a gente pode achar que merece, né? pode ser descriminado, não é? Por que aí o pobre, é o que? O pobre pode ser descriminado, aí vai ver a razão, mas vai ver não tem. Por que, ele acha que o outro é mais poderoso do que ele e fica humilhado [...]. Não, pra mim, eu nunca passe por essa não. (GF1-R, grifos nossos)

A fala do participante do grupo focal evidencia a recusa em aceitar a humilhação que o outro pode lhe impor, pois mesmo se reconhecendo como pobre, não aceita o rebaixamento moral, mantendo sua dignidade e honra. Sobre essa exigência do respeito à dignidade quando ela está ameaçada, Lopreato (2005, p. 248) diz que "significa recusar em pactuar com o rebaixamento provocado por uma situação de humilhação. Quando a dignidade é afrontada, a honra é afetada" e que a honra é a arte de se fazer respeitar. Ora, reconhecer-se como pobre não quer dizer que não tenha preservado dignidade e sua honra, até mesmo porque a dignidade não se limita às condições materiais, ela também é feita de bens psicológicos e morais, como defendido por La Taille (2004).

 

Apoio social como estratégia de enfrentamento da pobreza

A Análise de Confiabilidade, que considerou 380 casos válidos, garantiu a consistência interna da escala, ao revelar Alfa de Cronbach com valor de 0,702. O índice de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) no valor de 0,711, obtido na Análise Fatorial Exploratória, revelou grau de ajuste médio em relação à análise fatorial, e o teste de esfericidade de Bartlett (p<0,001) permitiu rejeitar a hipótese nula, apresentando valor 15 e nível de significância igual a 0, o que indica a adequação do modelo à análise fatorial. O determinante da matriz de correlação apresentou valor de 0,339, o que, de acordo com Menezes e Bastos (2010), aponta para a possibilidade da fatorialidade da matriz, com consequente possibilidade de análise dos fatores.

A Análise Fatorial Exploratória, com rotação Oblimin Direto, identificou que a escala apresenta dois fatores, que somam uma Variância Total Explicada de 59,9%. No primeiro fator, agruparam-se o apoio provindo dos amigos, família, vizinhos e igreja ou grupo religioso. Já no segundo fator, agruparam-se o apoio dos projetos sociais e serviços públicos. Com base nas considerações teóricas de Carapinha (2010) e Guedea et al. (2006), podemos sugerir que, no primeiro fator, estão alocados os itens referentes ao apoio informal, enquanto no segundo, encontramos o apoio formal.

Amparo, Galvão, Alves, Brasil e Koller (2008) referem o apoio como um dos fatores de proteção e afirmam que a identificação de um fator protetivo pode ser determinante para o surgimento de outros, como a autoestima e a autonomia, garantindo um bom desenvolvimento dos processos de resiliência. Por outro lado, a percepção do apoio depende da identificação de sua disponibilidade, o que está relacionado ao acesso à rede de apoio (Carapinha, 2010).

Ao analisar os dados da Tabela 3, encontramos ausência de apoio formal proveniente das políticas públicas (51,8%) e projetos sociais (61,6%), segundo a percepção dos sujeitos, o que também é mencionado por Brandão, Giovanella e Campos (2013), ao apontarem a pouca satisfação dos usuários em relação ao acesso aos serviços públicos de saúde. A falta de apoio dos projetos sociais e associações pode ser encontrada neste relato: "até mesmo a questão das Associações de Bairro, a gente não ver, antigamente tinha várias associações que as pessoas poderiam correr, tinha a questão de quando a pessoa tá com uma precisão de alguma roupa, ou até mesmo de alimentação" (GF1- U).

O apoio informal presente na família apareceu como principal fonte de apoio e pode ser identificado nesta fala: "Eu particularmente resolvo meus problemas, até agora eu tento sempre, em quem eu me apoio é recorrer aos familiares mesmo, né. Meus familiares, né" (GF2-R). Também está respaldada neste relato: "A minha família é meu porto seguro, sempre que a gente tem conversa né, se eu tou com algum problema eu converso com a minha mãe, com meu irmão. Pra mim é minha família, qualquer problema" (GF2-R).

O apoio dos amigos ficou em segundo lugar e também foi respaldado por Amparo et al. (2008, p. 172) quando afirmam "[...] estas redes de mútua influência como protetivas para o desenvolvimento socioemocional dos jovens [...]" em situação de vulnerabilidade, colaborando, inclusive, com o desenvolvimento de estratégias, por parte do sujeito, para lidar com situações estressoras e, podemos acrescentar, de humilhação.

Valla (2002) lança a hipótese de que a relação das classes populares com a religiosidade está orientada pela tentativa de se buscar uma explicação mais coerente para as situações opressoras em que se encontram, as quais derivam do crescimento desenfreado da urbanização, da negação de direitos e do aumento das demandas de bens individuais e coletivos. Assim, o apoio religioso ganha força quando o apoio institucional não é expressivo (Valla, 2002), tal como foi encontrada a importância da religião ou grupo religioso, identificada como a quarta fonte de apoio mais presente na vida dos sujeitos, de acordo com a Tabela 3. Sua importância delineou-se também nos grupos focais, como segue: "a religião une muito a comunidade" (GF2-R) e "Na igreja eu encontro [apoio], porque a igreja católica ela me conhece [...]. Eu sou bem recebida, né" (GF1-U). Nessa última fala, faz-se referência ao sentimento de ser reconhecido pelos demais, condição que Menezes e Sarriera (2005) elencam como uma das características do apoio. Como parte do apoio religioso, foi citada também a relação com as rezadeiras, como relataram os participantes: "As rezadeira? Se a gente tem fé a gente consegue né" (GF1-U) e "a gente procurava, né, a rezadeira. Eu procurava, quando eu tinha, né, minha filha ainda pequena" (GF1-U). Diante dessas colocações, refletimos o quanto a religião pode ser alienante e fortemente associada ao fatalismo (Martín-Baró, 1998), ao mesmo tempo em que é capaz de prover o sujeito de recursos para enfrentar a condição de pobreza, devendo ser discutida e analisada, então, a partir dessa dupla função aparentemente contraditória, mas que se complementam, uma vez que, como afirma Cidade (2012), o fatalismo resguarda um fator protetivo ao evitar que o sujeito entre em contato com aspectos da situação injusta em que vive, os quais não podem ser imediatamente modificados por ele.

 

Considerações finais

Ao analisar as implicações psicossociais da pobreza, percebemos o quanto os processos de vergonha e humilhação se fazem presentes e como são naturalizados e incorporados com algo normal e que é difícil de ser enfrentado. Os pesquisados tiveram dificuldade de constatar que sentem vergonha de serem pobres, porém quando analisam essa situação em outras pessoas, isso é mais fácil de constatar. Então o sofrimento e a angústia, gerados por essas situações de vergonha relacionadas à pobreza, favorecem um desenvolvimento de estratégias de enfrentamento por meio da sua negação a fim de poder conviver com esse sentimento. Já os processos de humilhação, que necessariamente precisam de pessoas ou de instituições para que ocorram, possibilitam uma expressão mais clara da discriminação relacionada à privação econômica. As especificidades desses processos subjetivos são desafios postos para o aprofundamento das implicações da situação da pobreza, principalmente quando é nos serviços de saúde o espaço em que há mais processos de humilhação.

Diante dos processos de humilhação e vergonha, o apoio social aparece com uma estratégia de enfrentamento em situações difíceis vivenciadas por pessoas em situação de pobreza. A família aparece como o principal espaço de apoio informal e o segundo lugar de humilhação, tendo em vista a gama de relações que são construídas no ambiente familiar. Dessa forma, aponta para a multidimensionalidade do apoio que é constituído de diversas facetas. O apoio informal presente na família, nos vizinhos e nos grupos religiosos tem como base a vinculação afetiva das pessoas e foram os mais citados pelos sujeitos pesquisados. No entanto, para o apoio formal presente nos projetos sociais e nas políticas públicas não foi atribuído o mesmo nível de importância, o que pode está relacionado com a falta de vinculação das pessoas com essas instituições.

Os desafios que se apontam a partir dessas discussões residem no fato de aprofundar estudos e pesquisas que discutam essas questões no sentido de desnaturalizar os processos de vergonha e humilhação decorrentes do contexto de pobreza e potencializar as fontes de apoio social formal e informal, como estratégias de enfrentamento de situações difíceis vivenciadas por essas pessoas.

 

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Recebido em 18/06/2015
Aprovado em 03/05/2018

 

 

1 Artigo resultante de uma pesquisa financiada pelo Edital MCTI/CNPq/MEC/CAPES N º 07/2011.
2 O distresse "é uma série disfunção organísmica de natureza relacional, indivíduo-ambiente social, geradora de ansiedade, depressão e desorganização dos órgãos e sistemas do organismo" (Góis, 2012, p. 121).

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