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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.3 São João del-Rei jul./set. 2018
EDITORIAL
Editorial
Ruth Bernardes de Sant'AnaI; Pedro AbrantesII; Saeed PaivandiIII
IProfessora Associada do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (Lapip) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). E-mail: ruthbs.ufsj@gmail.com
IIProfessor doutor da Universidade Aberta de Lisboa - Portugal. E-mail: pedro.abrantes@iscte.pt
IIIProfessor da Universidade de Lorraine - Campus Nancy Faculté de Lettres - e do Laboratoire Interuniversitaire des Sciences de l'Éducation et de la Communication - Lorraine, France (Lisec)
Já faz muito tempo que a educação escolar tem sido vista como um elemento central no processo de modernização das sociedades, aparecendo associada aos investimentos individuais e coletivos voltados para a mudança social, para o progresso econômico e para a justiça social. Porém, por diferentes razões, o avanço da globalização e do neoliberalismo tem levado, mais do que nunca, ao questionamento de uma equação linear entre progresso econômico, qualificação das populações e bem-estar social. No entanto, apesar da constatação de que a escola não consegue realizar a missão social a ela atribuída, isto é, instruir e socializar as novas gerações e garantir a inserção dos jovens no mercado de trabalho, o aumento da importância que a escolarização assume nos destinos dos indivíduos e a extensão do tempo de formação escolar modificam profundamente as relações dos jovens entre si, com suas famílias e com a escola. A massificação do ensino no interior de um sistema social que não tem trabalho para todos provocou descompassos entre os diplomas e os empregos, colocando em questionamento as promessas de mobilidade social via escolarização. Apesar disso, a educação escolar continua como depositário de fortes expectativas sociais para aqueles que concebem que seu papel não se resume ao trabalho de promoção de ascensão social em uma época de "inflação de diplomas". Apesar de todas as suas contradições, ela constitui um espaço importante de desenvolvimento de identidades juvenis, bem como de socialização intra e intergeracional, sobretudo para os jovens dos setores populares. Além disso, a escolarização contribui, em maior ou menor grau, para a relativa diminuição das heranças econômicas e culturais familiares no acesso aos diplomas universitários e para a mobilidade social ascendente de uma parcela significativa de pessoas.
Se a condição juvenil se confunde com o tempo de estudo para a grande maioria dos jovens, para os outros - sobretudo aqueles que viveram uma escolarização reduzida ou inoperante e se encontram fora da escola -, trajetórias mais diversificadas engendram outras formas de ser jovem, para além das representações sociais que acentuam o que se denomina o ofício do aluno e do estudante. O sistema escola não acolhe somente alunos e estudantes, mas também crianças e jovens que buscam se constituir como sujeitos autônomos e singulares: na escola, com a escola ou contra a escola. Ainda que existam jovens que escapam ao controle escolar, sob o efeito de mecanismos de exclusão exteriores ou interiores à escola, poucos, entre eles, escapam aos efeitos globais da massificação escolar, na medida em que essa massificação tem repercussão para todos sobre o prolongamento e a duração da cultura juvenil e sobre os modos de ascensão à vida adulta.
Foi com base nessa reflexão que propusemos um número temático à Revista Psicologia e Práticas Psicossociais (PPP), com o objetivo de reunir artigos de pesquisa e/ou intervenção que tratem do lugar direto ou indireto assumido pela escola na vida dos jovens (inclusive aqueles que dela "escaparam" ou que tiveram um acesso restrito a ela), com o objetivo de compreender melhor a articulação entre escola e os diferentes modos de ser jovem no mundo globalizado em que vivemos.
A escolha da PPP para abrigar o número temático por nós proposto se mostrou muito oportuna, principalmente em termos de atualização de conhecimento. Os 14 artigos aprovados congregam, sobretudo, relatos de pesquisa e relatos de experiência, cobrindo uma diversidade de temas e áreas de atuação, com enfoques diversos da Psicologia Social, da Educação e das Ciências Sociais. Essa pluralidade permite ao leitor cruzar diferentes registros sobre os diferentes modos de vida e condições juvenis na contemporaneidade. Os textos remetem às formas de ser aluno ou estudante, ou de ser jovem excluído dos estudos, em relação às experiências vividas dentro e fora do mundo da escola. De uma maneira geral, percebe-se uma sensibilidade dos autores para a escuta dos jovens, na busca de compreensão de como eles se movem, constituem-se como sujeitos e buscam afirmar suas identidades juvenis e atuar na transformação de seus contextos de existência mediato e/ou imediato.
Mas, se a condição juvenil é o traço comum aos sujeitos enfocados nos diferentes artigos, a trajetória escolar percorrida pelos sujeitos continua um marcador importante na distinção de quem são esses jovens e de como eles vivem a juventude. Por essa razão, escolhemos apresentar, primeiramente, os três artigos que tratam da juventude universitária, em seus diferentes registros sobre as experiências juvenis e sobre a formação escolar e não escolar desse segmento juvenil. Na sequência, segue-se um artigo sobre a apropriação do espaço urbano de classe por jovens pobres que, apesar de constituírem a faixa etária própria aos estudantes universitários, encerraram seus percursos escolares prematuramente. Os textos seguintes tratam, sobretudo, de jovens em idade do ensino básico, mas que em maior parte se encontram em defasagem idade-série, por vezes com evasão e abandono escolar. Dessa maneira, apesar das diferenças de contextos, esses textos, direta ou indiretamente, abordam questões comuns aos jovens dos setores brasileiros de baixa renda, tais como: abandono dos estudos, por vezes para trabalhar, acompanhado da dificuldade de obtenção de um trabalho no mercado formal; e gravidez precoce, muitas vezes por ausência de orientação sobre direitos sexuais, impedindo a continuidade de estudos, mais frequentemente das meninas do que dos rapazes.
A educação indígena, de quilombolas e de populações ribeirinhas foi reconhecida como educação para a diversidade cultural, por se tratarem de grupos com identidades específicas que devem ser valorizadas. Também são focos de atenção especial, na medida em que esses grupos populacionais apresentam particularidades sociais, econômicas, culturais e ambientais que exigem que eles sejam protegidos da vulnerabilidade. Consideradas as suas especificidades, as experiências desses três grupos culturais se cruzam, inclusive no que diz respeito às condições de vida e às formas de construção da identidade cultural, já que existem no Brasil comunidades ribeirinhas de indígenas, de pescadores e de agricultores, assim como comunidades quilombolas ou indígenas localizadas em regiões rurais e ribeirinha etc. Por outro lado, esses diferentes grupos têm em comum com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) a luta pela posse e demarcação da terra. No Brasil, após décadas de luta desses grupos sociais pelo reconhecimento de suas identidades culturais e pelo direito à demarcação de terras, foi estabelecido que qualquer política voltada para o atendimento das demandas educacionais dessas populações tem de levar em conta os seus modos de vida. Dessa maneira, constituíram-se no país leis que tratam dos direitos desses povos, que, no domínio da educação, propõem currículos com conteúdos relativos à diversidade cultural, pedagogias diferenciadas e formação de professores dirigidos a esses públicos escolares específicos. Entretanto, apesar do avanço na legislação, as pesquisas aqui apresentadas mostram que práticas excludentes ainda se encontram presentes, em maior ou menor grau, na escola pública. Entre essas práticas, a reprovação e a evasão escolar despontam como uma preocupação recorrente em diferentes artigos deste número temático.
Na linha de garantia dos direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, os últimos artigos deste número temático enfatizam o papel da escola na proteção integral desses jovens, analisam as trajetórias escolares de adolescentes em conflito com a lei e ressaltam tensões que ocorrem no processo de reinserção escolar de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. No caso específico do estudo da resiliência de jovens expostos a situações de risco de exclusão social, o último artigo nos indica a ressignificação do conceito de resiliência, a partir de uma posição crítica perante uma concepção que a concebe como um traço de personalidade ou uma habilidade individual inata.
Os artigos nos lembram que a ameaça de exclusão social se aproxima da experiência de vastos segmentos juvenis localizados na parte mais baixa da escala social, em um momento histórico em que as taxas de desemprego são altas, com forte presença de trabalhos precários e descontínuos e escassa proteção social por parte do Estado. Se para os filhos da alta burguesia os processos de globalização econômica e cultural afetam pouco ou nada a inserção profissional futura, o mesmo não acontece para muitos daqueles da classe média e dos setores populares, já que as incertezas sobre o futuro crescem quando as exigências de diplomação aumentam para obtenção de postos mais bem remunerados. No caso de estudantes universitários, esses jovens (e suas famílias) recorrem a múltiplas estratégias, inclusive aproveitando oportunidades de intercâmbios internacionais existentes no mundo globalizado, de maneira a aumentar as chances de inserção profissional e, ao mesmo tempo, de enriquecer as suas experiências juvenis. Nessa linha de raciocínio, o artigo "Lógicas de mobilidade, projetos profissionais e experiências interculturais dos estudantes internacionais no Quebec", de autoria de Mircea Vultur, do Institut National de la Recherche Scientifique Centre Urbanisation Culture Société (Québec), analisou as lógicas de mobilidade dos estudantes internacionais nessa região do Canadá, bem como seus projetos profissionais depois da diplomação e os efeitos culturais dessa experiência, ressaltando, entre outras coisas, que a incerteza prepondera no que se refere aos projetos de carreira após os estudos.
Uma concepção de juventude inserida em seu contexto social e histórico, recebendo a influência de todos os seus pertencimentos sociais, mas, ao mesmo tempo, tendo, como grupo social, a capacidade de ação e transformação de seu contexto orienta a pesquisa trazida pelo artigo "Juventude universitária e direitos de cidadania: sentidos atribuídos à igualdade de gênero", de autoria de Maria Lúcia Miranda Afonso[Autor des1] , Professora do PPG Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, do Centro Universitário UNA, em coautoria com Clície Aparecida Pereira Lourenço, da mesma instituição; Maria Ignez Costa Moreira, Professora do PPG em Psicologia da PUC Minas; e Marcos Vieira-Silva, Professor do PPG em Psicologia da UFSJ. Os autores fizeram o uso de um survey, estatisticamente significativo, com 423 universitários, de 18 a 29 anos, em três universidades, com o objetivo de compreender as relações de gênero e mudanças nos direitos das mulheres após a Constituição Federal de 1988. Conforme os resultados obtidos, a maioria concorda com afirmações genéricas sobre igualdade de gênero; porém, esse índice cai significativamente quando se trata da garantia de direitos pelo Estado. Valores tradicionais estão associados à família. As variáveis de impacto foram sexo (mulheres apoiam mais a igualdade de gênero) e religião (protestantes são mais tradicionais).
No artigo "Entre bagunças e rearranjos: performando outras práticas de ensino e aprendizagem em Psicologia", Debora Emanuelle Nascimento Lomba e Beatriz Prata Almeida, doutorandas pela UFRJ, relatam uma experiência coletiva de ensino-aprendizado da Teoria Ator-Rede (TAR). A partir de uma epistemologia nomeada pelas autoras como alternativa, ressaltam questões de caráter epistemológico muito importantes sobre a reflexão a respeito da cientificidade contemporânea. Apresentam a imagem de um mundo onde artefatos tecnológicos de inúmeros tipos participam "ativamente" no processo de "invenção" de diferentes versões da realidade, em um movimento de desordem e rearranjos que engendram efeitos inesperados e inovadores. Assim, a publicação desse artigo se reveste de importância para os interessados em conhecer a teoria ator-rede e/ou a arena de debate de interlocução dessa contribuição teórico-metodológica na atualidade - conhecimento suscetível de embasar estudos sobre as vivências juvenis para além dos contextos de ensino-aprendizagem.
Em uma perspectiva foucaultiana, que enfatiza como se desenha a busca de tutela/controle social e político sobre os modos de vida dos jovens pobres da periferia, as autoras do artigo "A periferia invade o centro: uma análise da apropriação do centro urbano por jovens pobres", Maira Ribeiro de Souza e Juliana Perucchi, respectivamente mestranda e professora na UFJF, apresentam uma pesquisa que trata das tensões políticas que podem advir quando os jovens pobres, da periferia, utilizam o palco do centro da cidade, habitado pela classe média, para expressar uma cultura juvenil baseada no rap e no hip-hop. No caso apresentado pelas autoras, o conflito se apresenta, sobretudo, na relação com a prefeitura e com os moradores do centro da cidade. Nesse contexto, coexistem diferentes posicionamentos dos interlocutores a respeito dos conflitos vivenciados, que apontam tanto para possibilidades de resistência quanto para a incorporação dos discursos dominantes.
Em "Ladainhas de juventudes: enredos de meninas-mulheres ribeirinhas e seus (des)encontros com a escola", Virginia Caroliny Silva Alexandre, doutoranda em Sociologia na UFS, e Maria Teresa Nobre, professora do PPG de Psicologia da UFRN, discorrem sobre a vida cotidiana de mulheres ribeirinhas de Aracaju, para além dos discursos de vitimização de mulheres. Dessa maneira, sublinham como as mulheres pesquisadas encontram maneiras de reinventar sua vida por um movimento cotidiano de repetições e mesmices, que as autoras denominam ladainha - noção que serve para pensar na repetição e na dinamicidade que constituem o cotidiano. Os enredos falam sobre o dia a dia de mulheres jovens e seus projetos de vida, sendo a escola vista, por um lado, como elemento importante para ascensão social e, por outro, como lugar que permite escapar momentaneamente das obrigações da maternidade precoce.
"O jovem e a educação indígena Tremembé de Almofala no Ceará", escrito por Maria do Socorro Sousa e Silva e Maria Isabel S. Bezerra Linhares, ambas inseridas na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), destaca o pioneirismo de uma comunidade indígena na reivindicação de uma escola referenciada na concepção de pluralismo cultural e de respeito e valorização de identidades étnicas, com garantia de acesso a conhecimentos gerais, sem precisar negar as especificidades culturais e a identidade de seu grupo. Jovens indígenas recebem formação em docência em cursos de ensino médio e superior para compor o quadro de professores da comunidade. Isso permite que eles se tornem mentores de novos conhecimentos e sistematizadores do conhecimento dos mais velhos a ser transmitido às novas gerações.
O artigo "Relações étnico-raciais e educação nas comunidades quilombolas", de Roseane Amorim da Silva e Jaileila de Araújo Menezes, respectivamente doutoranda e professora do PPG psicologia da UFPE, salienta os avanços legais no tratamento do povo quilombola, portador de saberes ligados a uma cultura afrodescendente que demarca as particularidades étnicas, culturais e políticas dessa população. O movimento negro lutou por uma proposta de respeito e valorização da diversidade cultural e conquistou o direito de entrada de conteúdos da cultura afro-brasileira no currículo escolar das escolas públicas, como pressuposto fundamental para uma educação antirracista. Porém, as comunidades quilombolas estudadas apresentam condições de vida marcadas pela precariedade e problemas típicos da educação rural, tais como isolamento, dificuldades de transporte, escolas precariamente instaladas e evasão escolar. Os 20 jovens pesquisados se encontram na faixa etária entre 18 e 22 anos; destes, oito evadiram da escola antes do término do Ensino Fundamental e apenas um finalizou o Ensino Médio.
Em "Oficinas com adolescentes do MST: sexualidade, diversidade sexual e gênero", Eliane Domingues, Maria Therezinha Loddi Libonni, Ana Flávia Cicero Conde, Aline Toporowiscz, Débora de Nez de Melo, Deborah Sartório Bazzoti, Elaine dos Santos Bergamaschi e Georgia Lara dos Santos, autoras com filiação à UEM, apresentam um relato de prática de oficinas sobre sexualidade, diversidade sexual e gênero, realizadas com jovens de uma turma em uma escola de agroecologia do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em oposição a uma abordagem baseada no binômio saúde-doença, centrada mais em uma visão biológica da sexualidade, as autoras procuraram estabelecer um ambiente dialógico e reflexivo nas oficinas, de modo que permitissem uma abordagem mais ampla da questão. Dessa maneira, no trabalho sobre gênero e diversidade sexual como temas geradores, evidenciou-se que os jovens preconizam práticas igualitárias e não excludentes. Porém, isso não transparece nas relações interpessoais estabelecidas entre eles, algo que também ocorre no interior do MST.
O tema da sexualidade juvenil também teve a contribuição dos autores do artigo "Diálogos com adolescentes sobre direitos sexuais na escola pública: intervenções educativas emancipatórias", de Helena Maria Campos, analista educacional na SEE-MG; Cláudia Gersen Alvarenga de Paiva, Técnica em Saúde Pública no Centro de Pesquisas René Rachou/Fiocruz; Isabella Campos de Araújo Mourthé, Psicóloga pela Fumec; Yago Freire Ferreira, estagiário na Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania; Marianna Campos Dias Assis, estagiária na Advocacia-Geral da União; e Maria do Carmo Fonseca, professora aposentada da UFMG. O trabalho, realizado em uma escola pública mineira, com alunos do Ensino Médio, parte da consideração de que o acesso à informação e a familiaridade com a temática da sexualidade constitui um direito sexual dos adolescentes. A pesquisa revelou que há falhas e omissões entre o que se estabelece nas leis e sua efetivação no cotidiano dos adolescentes, com violações aos seus direitos sexuais, pois não há serviços de saúde específicos que satisfaçam as suas necessidades de informação e acompanhamento; na escola, as informações qualificadas são pouco presentes, não há educação sexual para todos os alunos, e assim por diante. Os autores defendem que intervenções educativas emancipatórias, que considerem os conhecimentos científicos, os saberes de adolescentes e o pleno exercício da cidadania sexual, podem reduzir vulnerabilidades relacionadas à saúde sexual e gerar transformações na realidade.
"A escola dos alunos reprovados: um estudo qualitativo", de Leonardo de Oliveira Barros, doutorando na Universidade São Francisco, e Camélia Santina Murgo, do PPG em Educação da Universidade do Oeste Paulista, pesquisou 29 adolescentes com histórico de reprovação, regularmente matriculados no oitavo ano de uma escola pública estadual do estado de São Paulo. Os resultados indicam a predominância de percepções negativas sobre a escola, principalmente no que toca aos aspectos físicos do ambiente escolar e à relação com os professores, assim como a falta de atribuição de sentido sobre o ato de estudar. Para a maioria dos alunos, o sentido de estar na escola aparece mais associado às relações de amizades e à merenda escolar e menos ao ensino e ao professor. Assim, refletem os autores, há necessidade de democratizar o espaço escolar para que se constitua um ambiente ressignificado no processo de aprendizagem dos alunos reprovados.
A ação de uma Psicologia cuja prática rompa com um modelo clínico e individualizante, muito presente na profissão no país e consonante com a proteção integral das crianças e adolescentes, é discutida no artigo intitulado "Escola e demais Redes de proteção: aproximações e atuações (im)possíveis?", escrito por Carolina Nascimento Dias, mestre pela PUC-Campinas, e Raquel Souza Lobo Guzzo, doutora pela USP. A intersetorialidade, ou seja, a articulação entre pessoas (profissionais ou não) vinculadas a setores de atuação diversos, com diferentes atribuições e saberes, com vistas a enfrentar problemas complexos, referencia a reflexão das autoras. No interior desse modelo de atuação, o psicólogo escolar pode configurar um agente mediador da ação da escola, articulado às ações intersetoriais em redes de proteção à infância, pois, segundo as autoras, é por meio do diálogo interinstitucional que se torna possível romper com a cultura da patologização, judicialização e estigmatização, de modo a contribuir para que os diferentes profissionais percebam as crianças e suas famílias de forma integral. Com base nesse referencial, as pesquisadoras estiveram presentes na escola e na comunidade por meio do Projeto Ecoar, desenvolvido com professores, gestores, crianças, famílias e profissionais da rede de proteção.
Em "Trajetórias escolares de adolescentes em conflito com a lei: permanência e evasão escolar", Dominique Costa Goes Piazzarollo, Lorena Rossi Fernandes, Edinete Maria Rosa, autoras com filiação à Ufes, pesquisam adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em programas de liberdade assistida a fim de verificar as semelhanças e as diferenças nos processos de permanência e de evasão escolar. O discurso dos adolescentes destacou a importância da escola e mostrou o potencial protetivo desse contexto, especialmente quando estabelecidas interações sociais positivas. Foram encontradas dificuldades acadêmicas comuns ao público investigado, como reprovações, brigas e comportamentos disruptivos. De modo geral, a pesquisa enfatizou a complexidade do fenômeno investigado e, por conseguinte, mostrou que o enfrentamento da evasão escolar deve incluir ações em vários níveis, contemplando o estudante, a família, a escola e as políticas de educação do país.
"O adolescente em cumprimento de medida socioeducativa e sua inserção escolar", de Sanyo Drummond Pires, professor do Curso de Psicologia da UFGD; Myrian de Moraes Sarmento, analista de Educação Básica na Secretaria Regional de Educação, em Minas Gerais; e Marianna Florentina Lima Alves de Oliveira Drummond, mestre pela Ufop, procurou identificar as construções discursivas ligadas ao processo de reinserção escolar de alunos em cumprimento de medidas socioeducativas. Verificou-se um elevado grau de discriminação dos adolescentes no contexto escolar e a estruturação de discursos que culpabilizam os próprios adolescentes pela discriminação que sofrem. Por outro lado, os adolescentes não afirmam gostar da escola e do seu ambiente; ao contrário, muitos deles confessam não gostar de estudar, mesmo quando assumem a necessidade da escolarização, associada, geralmente, à inserção no mercado de trabalho.
Por fim, o presente número temático inclui "Resilience processes of Brazilian young people: Overcoming adversity through an arts program", artigo publicado em língua inglesa por Alex Sandro Gomes Pessoa, Renata Maria Coimbra, Camélia Santina Murgo, Adrian Van Breda e Alison Baker, membros de uma equipe internacional de professores e investigadores em Psicologia, de diferentes universidades. Após uma discussão teórica sobre o conceito de resiliência, aplicado ao contexto educativo, o estudo analisa um programa extracurricular de educação pelas artes, numa pequena cidade do estado de São Paulo. Por meio de entrevistas em profundidade, com seis jovens ex-participantes do programa, os pesquisadores identificam aspectos centrais na construção de ambientes educativos que favorecem a resiliência dos jovens, tais como a importância da flexibilidade, das atividades significativas e das relações positivas. Além disso, o estudo permitiu ponderar sobre os impactos do programa no compromisso social dos jovens e na elaboração de projetos profissionais e biográficos.
Os trabalhos apresentados neste número temático nos lembram que os objetivos sociais da escola pública passaram por uma enorme diversificação desde os anos 1980, no Brasil, com vistas ao tratamento das diferenças dos variados públicos dos setores populares que conquistaram o direito a um tempo de escolarização longo, antes dispensado somente aos setores abastados da sociedade brasileira. Os jovens investigados pelos diferentes autores mostram uma pluralidade de grupos sociais, atendidos pela escola, cujas trajetórias escolares, de participação em universos de pertença ou de referência de diferentes matizes socioculturais, indicam modos plurais de viver essa idade da vida no mundo contemporâneo. Os trabalhos aqui reunidos ressaltam também que, para um número expressivo de jovens, a instituição escolar não representa uma garantia de futuro e tampouco é sinônimo de conhecimento significativo e prazeroso. Se, para uma parte deles, a escola é vivida como uma fonte de satisfação, para outros constitui somente uma obrigação, um lugar pouco atrativo e monótono. Esses jovens encontram dificuldades em dar um sentido às atividades escolares, em construir um interesse real pelos estudos e desvinculam-se da escola por diferentes vias (evasão, abandono, entrada na delinquência etc.). Entretanto, essas experiências escolares, desenvolvidas ao longo da escolaridade, participam na construção da identidade juvenil dos diferentes grupos que passam pela escola, e mesmo daqueles que dela evadiram. Por um lado, embora, em cada momento do percurso escolar, entrem também em jogo na experiência do aluno fatores familiares, sociais e pessoais, os recursos internos à escola, seu projeto político pedagógico, seu clima relacional e as relações pedagógicas ali constituídas podem diminuir ou ampliar as tensões que porventura atravessem a progressão do aluno nas séries/níveis escolares em um momento biográfico em que ele lida com questões identitárias e de vivência de culturas juvenis. Por outro lado, o aumento crescente das atribuições sociais da escola pública brasileira de ensino básico não é acompanhado do acréscimo no investimento governamental em recursos humanos e econômicos para que cada estabelecimento possa, além da missão de instruir e socializar, ocupar o lugar de uma instância mediadora entre os alunos com suas famílias e com os diferentes setores responsáveis pelo bem-estar biopsicossocial desses jovens.
O número temático teve o sucesso de reunir uma diversidade de contextos e de dinâmicas de educação de jovens brasileiros. A revista se encerra, assim, com uma nota de esperança - mas também de responsabilização de todos que se dedicam ao campo educacional - acerca do modo como a educação pode, de fato, contribuir para a emancipação dos jovens.
Cabe-nos agradecer a todos que colaboraram na construção deste número temático: autores, pareceristas, comissão editorial, equipe de revisão e formatação e, especialmente, as professoras Maria de Fátima Aranha de Queiroz e Melo e Larissa Medeiros, assim como a responsável pelo suporte técnico, Elisângela Ferreira. Aprendemos muito neste trabalho coletivo.