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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.3 São João del-Rei jul./set. 2019
O ensino da ética em Psicologia Comunitária no Nordeste do Brasil: reflexões e apontamentos a partir do paradigma da libertação
The teaching of ethics in Community Psychology in the Northeast of Brazil: reflections and notes from the paradigm of liberation
La enseñanza de la ética en Psicología Comunitaria en el Nordeste de Brasil: reflexiones y apuntes a partir del paradigma de la liberación
Alana Braga AlencarI; Verônica Morais XimenesII; James Ferreira Moura Jr.III
IProfessora substituta do Departamento de Psicologia na Universidade Estadual do Ceará. Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará com bolsa Capes
IIProfessora titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Coordenadora do Núcleo de Psicologia Comunitária (Nucom) e pesquisadora do CNPq-2
IIIProfessor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Coordenador da Rede de Estudos e Afrontamento das Pobrezas, Discriminações e Resistências (Reapodere)
RESUMO
O ensino da ética em Psicologia Comunitária é constituído de dilemas e desafios. A Ética da Libertação traz uma perspectiva concreta de escolha pelas populações marginalizadas. Assim, objetiva-se analisar o lugar da ética no ensino da Psicologia Comunitária a partir do paradigma da libertação. A metodologia é qualitativa. Esta investigação foi realizada em instituições de ensino superior de um estado do Nordeste do Brasil que tinham disciplinas opcionais ou obrigatórias de Psicologia Comunitária. Assim, houve a análise documental dos programas das disciplinas de Psicologia Comunitária. Em seguida, foram realizados entrevistas e círculo de cultura com docentes e discentes vinculados à área de Psicologia Comunitária. Os resultados apontam que a ética é um tema transversal na disciplina, sendo o ensino desenvolvido por meio de aspectos práticos. A ética de libertação é compreendida e apontada como saída para uma atuação crítica em Psicologia Comunitária, mas não há apontamentos específicos sobre o seu ensino.
Palavras-chave: Psicologia Comunitária. Ética. Libertação.
ABSTRACT
The teaching of ethics in Community Psychology consists of dilemmas and challenges. The Ethic of Liberation brings a concrete perspective of choice to marginalized populations. Thus, it aims to analyze the place of ethics in the teaching of Community Psychology from the paradigm of liberation. The methodology is qualitative. This research was carried out in Higher Education Institutions of a state in the Northeast of Brazil that had optional or compulsory academic disciplines of Community Psychology. Thus, there was documentary analysis of the programs of the disciplines of Community Psychology. Then, interviews and a circle of culture were conducted with teachers and students linked to the community area. The results point out that ethics is a transversal theme in the discipline, with teaching being developed through practical aspects. Liberation ethics is understood and pointed out as an outlet for a critical role in Community Psychology, but there are no specific notes on its teaching.
Keywords: Community Psychology. Ethics. Liberation.
RESUMEN
La enseñanza de la ética en Psicología Comunitaria está constituida de dilemas y desafíos. La Ética de la Liberación trae una perspectiva concreta de elección por las poblaciones marginadas. Así, se pretende analizar el lugar de la ética en la enseñanza de la Psicología Comunitaria a partir del paradigma de la liberación. La metodología es cualitativa. Esta investigación fue realizada en Instituciones de Enseñanza Superior de un estado del Nordeste de Brasil que poseían disciplinas opcionales u obligatorias de Psicología Comunitaria. Así, hubo el análisis documental de los syllabus de Psicología Comunitaria. A continuación, se realizaron entrevistas y círculo de cultura con docentes y discentes vinculados al área de comunidad. Los resultados apuntan que la ética es un tema transversal en los syllabus, siendo la enseñanza desarrollada por medio de aspectos prácticos. La ética de liberación es comprendida y apuntada como salida para una actuación crítica en Psicología Comunitaria, pero no hay apuntes específicos sobre su enseñanza
Palabras clave: Psicología Comunitaria. Ética. Liberación.
Introdução
A Psicologia Comunitária (PC), que tem origens na Psicologia Social da Libertação (Góis, 2005), se constrói com suas semelhanças e especificidades. Ela está imbricada com os contextos sociais, políticos e culturais em que se desenvolve, ganhando diferentes nuances a partir da práxis desenvolvida nos diferentes territórios de atuação (Silva & Bomfim, 2013). É importante salientar que as formas de atuação da Psicologia Comunitária podem se dar de diferentes maneiras na mesma região, pois sua atuação está relacionada ao hibridismo e complexidade (Weisenfeld, 2014). No entanto, uma constante nas formas diversas de atuação da Psicologia Comunitária deveria ser uma práxis alicerçada em uma ética específica e voltada para a realidade comunitária (Winkler, Alvear, Olivares & Pasmanik, 2012b).
É no fim da década de 1960 e na década de 1970 que a Psicologia Comunitária começa a se constituir como campo de ação profissional na América Latina, orientada por reflexões éticas explícitas com respeito aos "Outros" da Psicologia e da Psicologia Social, questionando a alienação política desse campo do saber, colocando a necessidade de uma articulação da ciência e da prática para a transformação social (Castillo & Winkler, 2010). Há três características específicas comuns nas definições de PC: "sua aproximação ecológica à análise da realidade, dos processos sociais e dos indivíduos, [...] centrada em desenvolver recursos ou potencialidades do que em sanar os déficits, sua orientação eminentemente aplicada e sua clara vocação preventiva" (Musitu Ochoa, 2004, p. 17, tradução nossa).
Góis (2005) ainda aponta que a Psicologia Comunitária deve buscar o desenvolvimento dos moradores como sujeitos da comunidade, o desenvolvimento da comunidade como instância ativa do poder local e a construção de uma disciplina que enquadre teoria-prática e compromisso social. Essa práxis é de tal forma diferenciada que Montero (2004) afirma tratar-se de um novo paradigma de ciência que tem uma ontologia, uma epistemologia, uma metodologia, uma política e uma ética distintas. A dimensão ética diz respeito à definição do Outro e de sua relação na produção do conhecimento. Por meio dela, busca-se o respeito, a inclusão e a valorização do Outro. Os efeitos sociais produzidos nesse campo estão relacionados principalmente à problematização e à conscientização (Freire, 1987/2007), e à desideologização (Martín-Baró, 1998), com a organização da comunidade de acordo com seus interesses coletivos e com respeito aos direitos e deveres dos agentes internos e externos (Montero, 2004).
Segundo Góis (2005), a Psicologia Comunitária não partiu da teoria para a prática, mas, pelo contrário, focou-se em uma intenção política e ética de afirmação do compromisso social da Psicologia e da atuação em projetos sociais. Para Góis (2005, p. 51), a Psicologia Comunitária é
Uma área da Psicologia Social da Libertação; voltada para a compreensão da atividade comunitária como atividade social significativa (consciente), próprio do modo de vida (objetivo e subjetivo) da comunidade e que abarca seu sistema de significados e relações, modo de apropriação do espaço da comunidade, a identidade pessoal e social, a consciência, o sentido de comunidade e os valores e sentimentos aí implicados. Tem por objetivo a construção do sujeito da comunidade, mediante o aprofundamento da consciência (reflexivo-afetiva) dos moradores com relação ao seu modo de vida e ao modo de vida da comunidade.
Montero (2011), além do que foi sistematizado, ainda afirma que há um perfil identitário do/a psicólogo/a comunitário na América Latina que se posiciona como agente da mudança social com o compromisso político e ético com os mais necessitados. Esse posicionamento situa-se como uma crítica à neutralidade, fomentando a desideologização e a conscientização da opressão e da injustiça, a participação cidadã, a autogestão e o fortalecimento das comunidades.
Nessa perspectiva de implicação e solidariedade, cabem muitas reflexões acerca dos desafios próprios dessa área e da sua relação com o ensino da Psicologia Comunitária. Como aponta Freitas (2015), há complexas problemáticas vinculadas a dilemas operacionais relacionados aos métodos, à eficácia, à eficiência, à qualidade da participação das pessoas até os mais existenciais, que se referem ao respeito às necessidades e interesses da população, ao bem da coletividade e seus caminhos mais adequados para aplicação da disciplina.
A partir dessas definições e entendendo esse campo como fortemente pautado na ética, é importante diferenciar a definição de moral e ética. Para Montero (2010), a moral é aquilo que rege a ação humana em uma determinada espacialidade e temporalidade, ou seja, a moral está circunscrita culturalmente e relaciona-se com juízos de valor sobre o bem e o mal, sobre o que é correto, sobre os padrões e normas das ações humanas para o bem-estar pessoal e coletivo. A ética se coloca no campo reflexivo e sua base e finalidade é a preservação da vida humana e está baseada na relação com a alteridade.
Dussel (2012) corrobora com a definição trazida quando afirma que a moral está relacionada a práticas concretas, empíricas, de normas que se encontram dentro de um mundo dado e legitimam o domínio de um grupo ou de uma classe social. A ética, para o autor, é justamente a crítica transcendental, que vai além das morais, desde um ponto de vista da dignidade absoluta, transcendental, metafísica, do ser, de sua corporeidade, como pessoa com liberdade, com consciência e espírito.
A ética tem diferentes correntes e cosmovisões e o enfoque ético deste artigo aproxima-se daquele desenvolvido pelas correntes das Teorias da Libertação na América Latina, presentes no pensamento de Enrique Dussel com a Filosofia da Libertação. Dussel (2012) parte de uma análise global de um sistema-mundo que pretende totalizar-se com a globalização e cria o projeto de uma Ética da Libertação para pensar filosófico-racionalmente a situação real e concreta da maioria da humanidade excluída desse sistema. Segundo Guareschi (2008), a Ética da Libertação é desenvolvida por meio de uma nova lógica, que vai além das existentes, baseadas principalmente na racionalidade instrumental da modernidade.
Dussel (2012) mostra que a Ética da Libertação trata de trazer problemas cotidianos e sociais que assolam a vida da população em diversas facetas da exclusão. Assim, vida humana não pode ser entendida somente como "um conceito, uma ideia e nem um horizonte abstrato, mas o modo de realidade de cada ser humano concreto, condição absoluta da ética e exigência de toda libertação" (Dussel, 2012, p. 11). Dessa maneira, a libertação faz parte do âmbito relacional da subjetividade com a alteridade. Sánchez Vidal (2007, p. 289, tradução nossa) afirma também que a ética, em seu caráter social, "exige que nos responsabilizemos pelo nosso mundo e que usemos a liberdade e o poder que temos para recriá-lo como um produto humano e para humanos em vez de aceitá-lo como um dado inalterável".
A Ética da Libertação trata-se de uma ética cotidiana, crítica e coletiva que parte das populações excluídas e em favor delas. Nesse caso, sempre o Outro será um ser humano, um sujeito ético, uma vítima do sistema-mundo que por sua cotidiana morte exige uma ética da vida. Para Montero (2015), um ser humano não pode deixar de existir sem o outro, é necessário percebermos as reciprocidades de um ser singular que necessariamente se forma em um contexto social e é parte fundante deste.
A Ética da Libertação traz um chamado muito veemente às rupturas: não separaríamos uma ética para a formação profissional e uma ética para viver. Assim, a formação da ética em Psicologia Comunitária é fundamental. Para Dussel (2012), a Educação para um processo ético legítimo caberia no cotidiano, e a partir do diálogo coletivo e horizontal entre a comunidade de profissionais (formados e em formação), os atos morais seriam legitimados por esse coletivo. A ética libertadora para a profissão iria além da moral incrustada no saber psicológico, reconhecidamente pautado na individualidade, e passaria a um âmbito de trocas coletivas e construção conjunta de novos preceitos morais e novas validades. Uma reflexão que pautasse uma ética da vida e não apenas uma ética acadêmica ou de categoria profissional. Assim, este artigo tem como objetivo analisar o lugar da ética no ensino da Psicologia Comunitária.
Metodologia
A metodologia qualitativa foi utilizada devido à complexidade do objeto de estudo, que teve nuances dos fenômenos psicológicos e também educativos. Buscou-se uma metodologia coerente com o objeto e os objetivos do estudo, assim como com seu marco teórico, intentando uma construção dialógica e não somente lógica do conhecimento.
Cenário e participantes
A pesquisa foi organizada em dois processos: revisão e análise de fontes de informação documentária de programas das Disciplinas de Psicologia Comunitária de Instituições de Ensino Superior e entrevistas com docentes e discentes vinculados com experiências de formação na área comunitária. A pesquisa foi realizada no contexto de um estado do Nordeste do Brasil, nas Instituições de Ensino Superior (IES) que têm a graduação em Psicologia. Dentre elas, nosso foco foram as IES que tinham a disciplina Psicologia Comunitária como componente da matriz curricular, podendo ser obrigatória ou opcional/eletiva.
Nesse estado do Nordeste, em 2018, havia 33 IES que lecionavam Psicologia. Porém, em 2015, período da realização da pesquisa, totalizavam-se 13 IES. Em 2015, havia oito delas sediadas na capital (uma Instituição Federal, uma Estadual e seis Privadas) e cinco no interior do estado (somente uma Federal). Todos os cursos tinham duração de cinco anos. Em relação às informações sobre a presença e características da disciplina Psicologia Comunitária, temos que, das 13 IES, oito (61,5%) tinham Psicologia Comunitária como parte da matriz curricular. Havia um cenário no qual, na maioria das IES, a disciplina era obrigatória e teórico-prática, com carga horária variada. Todas as IES, que tinham a disciplina Psicologia Comunitária, aceitaram participar da pesquisa mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para IES e disponibilizaram o programa e conteúdo programático da disciplina.
Além das IES, fizeram parte da pesquisa professores e estudantes de Psicologia da área de Psicologia Comunitária. Participaram professores/as da disciplina Psicologia Comunitária, ou disciplinas afins, das IES do estado do Ceará, totalizando seis docentes. O perfil dos professores entrevistados é bastante variado em termos de experiências. O que há em comum entre eles é que, com exceção de um, todos tiveram práticas (de extensão universitária, estágios ou experiência profissional em políticas públicas) com a Psicologia Comunitária. Apenas dois não tiveram experiências profissionais e passaram diretamente do mestrado para a carreira de docente. Os demais tinham experiências em políticas públicas das mais variadas - assistência social, educação, saúde - variando de um mínimo de cinco a um máximo de 30 anos de trabalhos com PC. A maioria tem mais anos de experiência profissional em Psicologia Comunitária que em docência. Os professores foram identificados neste estudo com a letra P, acompanhado do número 1 a 6 pela ordem de entrevista.
Também participaram sete discentes que cumpriram os seguintes critérios: aceitar participar da pesquisa assinando o TCLE; já terem cursado a disciplina Psicologia Comunitária dos cursos e/ou estarem em estágio ou extensão na área; e estarem devidamente matriculados nas IES participantes. Dos sete estudantes que tiveram suas falas analisadas, apenas uma não cursou Psicologia Comunitária, tendo, porém, experiência de estágio e grupo de estudos na área. Também somente uma, dos sete, não passou por experiência de grupo de estudos, o que foi algo comum no perfil. Além disso, dois não tinham experiência na prática da PC, enquanto os outros cinco experimentaram a prática por via de estágio ou extensão. Os estudantes receberam nomes fictícios de flores.
Processos e instrumentos da pesquisa
Nesse estado do Nordeste, em 1988, a Psicologia Comunitária foi instituída como disciplina obrigatória na graduação, sendo a segunda graduação no Brasil a instituir isso. Também, nessa mesma região, foi lançado o primeiro livro de PC do Brasil, em 1993, além de ter um espaço de formação teórico e prático em PC.
O presente artigo é o desdobramento de uma pesquisa de Mestrado em Psicologia, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação de uma IES pública, que buscou compreender como se dava a presença da discussão e da sistematização de questões relacionadas à ética em Psicologia Comunitária na formação dos/as psicólogos/as. Também se inseriu no contexto de uma pesquisa nacional e de uma pesquisa multicêntrica na América Latina, proposta pela Rede Latino-Americana de Formação em Psicologia Comunitária (RLAFPC).
O primeiro processo da pesquisa esteve vinculado a um levantamento das IES de Psicologia do Brasil por meio da Plataforma e-MEC, buscando cadastrar informações gerais sobre as instituições. Foram cadastradas 560 IES até agosto de 2014. Após esse levantamento, esta produção focou na análise documental (Creswell, 2010) dos programas da disciplina Psicologia Comunitária especificamente no contexto do Ceará. O segundo processo foi de construção de dados com professores e estudantes, com a realização de entrevistas individuais e um Círculo de Cultura (Freire, 1987/2007), que se assemelhou à técnica do grupo focal (Roso, 1997). Essas entrevistas foram baseadas em um roteiro com perguntas abertas, no intuito de dar liberdade de resposta ao participante (Sampiere, Collado & Lucio, 2013). O terceiro processo foi a análise dos dados construídos nos dois primeiros processos.
Após contato e autorização das IES, foram recolhidos os programas das disciplinas Psicologia Comunitária das sete IES que o autorizaram. Os programas foram analisados a partir das categorias pré-definidas, com base na pesquisa multicêntrica da Rede Latino-Americana de Formação em Psicologia Comunitária: Concepção de Comunidade, Concepção de Ética, Concepção de Trabalho Comunitário; Metodologias de Ensino e Referenciais Teóricos de Ética.
Após essa etapa, foram realizadas as entrevistas individuais em profundidade com os seis docentes P1 a P6, nomeadas E01, E02, E03, E04, E05 e E06. Os professores foram contatados por e-mail, por telefone e/ou pessoalmente. Duas entrevistas com professores do interior se deram por telefone, as demais foram presenciais. As perguntas versavam sobre trajetória de formação, trajetória docente, potencialidades e desafios do trabalho e sobre aspectos do ensino da ética em PC. Já com os discentes, foi realizado um Círculo de Cultura (Freire, 1987/2007) nomeado de CC1. Eles foram convidados por listas de e-mails das coordenações e também por contatos individuais pelas redes sociais. Os temas geradores foram a formação e a ética em PC. O processo finalizou-se com uma síntese com sugestões para o ensino de ética em PC. A escolha de trabalhar com Círculo de Cultura com os estudantes se deu por uma metodologia participativa de trabalho em grupo, por ser uma metodologia utilizada na práxis comunitária e por mobilizar mais os discentes. Todas as informações construídas pelos docentes e discentes foram gravadas em áudio.
Os materiais das transcrições das entrevistas e do Círculo de Cultura foram analisados a partir das categorias citadas com o auxilio do software Atlas TI. Essas categorias foram criadas utilizando o método de análise de Conteúdo Temática (Bardin, 2011). É importante salientar que a pesquisa adequou-se aos preceitos exigidos para a pesquisa com seres humanos, submetendo-se à avaliação do Comitê de Ética, segundo a Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, com aprovação CAAE 21194613.3.0000.5334 e o Parecer nº 410.938.
O ensino da Ética em Psicologia Comunitária (PC) em um estado do Nordeste do Brasil
O ensino da ética em PC deve ser pensado de uma forma complexa, levando em consideração diversos aspectos de um cotidiano de formação, tais como métodos, teorias, estratégias pedagógicas, relações em sala de aula, cenários de formação etc. Por meio da análise documental dos programas das sete disciplinas de PC das IES participantes, foi percebido que o ensino de Psicologia Comunitária é feito com metodologias participativas, sendo o estudante sempre considerado um ator do processo de aprendizagem. As metodologias descritas contemplam a discussão e reflexões teóricas, quando se nota que a participação dos estudantes é sempre solicitada e o professor coloca-se muito mais como mediador do que como aquele detentor do saber, o que condiz com as metodologias utilizadas em comunidades.
Essa proposta, se convertida em prática, oferta aos estudantes uma vivência do que pode vir a ser a postura de um profissional facilitador de processos comunitários. Em um estudo desenvolvido no Chile, Peru, México, Uruguai e Colômbia, Winkler et al. (2016) analisaram 157 programas de disciplinas de PC e afins, concluindo que, apesar das diferenças entre os países e universidades, as disciplinas de PC frequentemente oferecem trabalho de campo, mesmo que com escassa explicitação da eticidade relacionada.
Além das discussões teóricas e diálogos sobre os textos das disciplinas, outro aspecto valorizado nas metodologias do ensino em PC no estado são também as interações interpessoais entre os estudantes e deste com o contexto comunitário. Estão presentes em todos os programas a realização de trabalhos em grupo pelos estudantes, assim como atividades de visitas a instituições, políticas públicas, comunidades e/ou movimentos sociais. Além do professor, dos estudantes, da realidade extraclasse e dos autores de Psicologia Comunitária, também é trazida para a sala de aula a possibilidade de refletir questões sociais atuais e o cotidiano dos estudantes, a partir de discussão de filmes, documentários etc. Como coloca P2, a inserção da prática em sala de aula é imprescindível.
[…] é complicado você fazer uma disciplina de Psicologia Comunitária sem ter uma inserção na comunidade, uma inserção num campo propriamente dito, né? Ser só teórica num é suficiente pra uma disciplina de uma área que nasceu na prática, né? Aqui, seja aqui na América Latina, seja no Hemisfério Norte, nasceu da prática a partir de reflexões, de atuação, seja promoção de saúde, seja em transformações das condições de opressão, mas nasceu na prática, né? (P2, E02)
Assim, compreende-se que aspectos da realidade social estão presentes nos espaços de ensino da Psicologia Comunitária, que demonstra sua vinculação com a perspectiva libertadora da ética. Martín-Baró (1998) propõe a necessidade de a atuação em Psicologia apropriar-se de forma crítica da realidade como estratégia de recuperação da memória histórica.
Pasmanik e Winkler (2009) afirmam que a formação ética profissional é um conteúdo de grande complexidade, com características multidimensionais e que abarcam a formação integral da pessoa, para além do profissional. Assim, toda a história pessoal e social contém elementos que podem servir de potencializadores ou constituírem-se como dificuldade à formação ética profissional. Essa dificuldade também é percebida pelos estudantes quando colocam:
Não deve ser fácil passar o que seria essa ética da Psicologia Comunitária pretender mostrar isso, como é essa ética, né? Se não pode ficar muito essa ética aqui. Ética é o código de ética, ética é a ética do consultório, ética é separado da sua vida. Você tá no trânsito, você não precisa ser ético. Você tá num restaurante, pode passar na frente de alguém. Sei lá, essas coisas assim, do dia a dia, né? […] Ela num pode ser só uma profissão, ela é um compromisso, realmente. Que aí é ético, político, histórico, ele vai transformando a própria pessoa, né? Só o outro vai ser [...] Então, eu acho que essa é a dificuldade, não deve ser fácil ter essa coerência. (Rosa, CC1)
Como a ética em PC é considerada um conteúdo relacional, a formação ética perpassa também as relações em sala de aula, entre professor e aluno, entre alunos e também destes com a instituição. Ao alçar considerações sobre o ensino da ética, os professores afirmaram que esse é um conteúdo transversal, nos seus programas não existe uma aula específica sobre ética, porém é um tema que perpassa o cotidiano tanto das discussões teóricas quanto das relações e posturas em sala de aula.
A concepção de ensino da ética em PC construída pelos docentes e discentes dizem de um ensino em que é imprescindível a dimensão prática. Mesmo nas IES onde a PC é uma disciplina teórica, os professores tencionam para que exista uma prática, seja na forma de trabalhos em grupo, seja na articulação com outras disciplinas, como práticas integrativas ou estágios básicos, pois "só em sala de aula a palavra comunitária começa a ficar vazia" (P6, E06). Como não existem aulas específicas com o tema da ética em PC, ela é entendida como presente em outras temáticas como: cidadania, responsabilidade social, compromisso com a libertação, compromisso social, responsabilidade; transformação social, não neutralidade, afirmação de valores e ideologias. Nesse ensino, a prática reflexiva e crítica sobre a sociedade, a universidade, as instituições e o cotidiano estão representados.
Essa questão da ética, ela é sempre um assunto transversal, né, porque, sempre que eu vou abordar a questão da Psicologia Social Comunitária, ela tem uma reflexão primeiramente crítica sobre a vida, sobre a forma que nós nos organizamos enquanto seres sociais, a forma que nos construímos enquanto indivíduos. Então, isso sempre remete a uma reflexão onde a dimensão da responsabilidade social, do papel social, vamos dizer assim, da ciência, da nossa profissão acaba se evidenciando. Então, a ideia de pensar em uma ciência ou uma profissão que se comprometa com o desenvolvimento humano, social, numa perspectiva crítica, já é algo que nos remete a dimensões éticas na disciplina. (P4, E04)
Winkler, Alvear, Olivares e Pasmanik (2012a) investigaram no Chile a percepção de estudantes e profissionais sobre a ética na prática e na formação em Psicologia Comunitária, sendo muito similar ao que se apresentou na nossa investigação: o ético como transversal e cotidiano. As autoras concluem que a formação profissional é um processo de aculturação, no qual os estudantes desenvolvem o sentido de si mesmos como profissionais éticos com a aquisição progressiva de tradições, valores e métodos da PC. Além de cotidiano e transversal, os sentidos trazidos pelos participantes da pesquisa do Chile foram categorizados como vagos, não havendo uma visão clara do que seria o ético no trabalho em PC, o que também pode se revelar neste estudo, quando a ética não é abordada de forma explícita, revelando suas afiliações teóricas e práticas.
Algo que pareceu suplantar esse sentido vago trazido pelos sujeitos participantes da pesquisa do Chile e que se mostrou como sedimentador dos conteúdos pelos relatos dos discentes e dos docentes do estado do Nordeste no Brasil foi a oportunidade de vivenciar a práxis da PC, principalmente pelas práticas de extensão.
Acho que facilidade, além disso que a Jasmim falou, pra mim é a questão de você aprender na prática, né, aí pensando na extensão. Você aprender Psicologia Comunitária e tratar com a ética da Psicologia Comunitária a partir da prática, que você tá lá vivenciando os contextos. Enfim, tá cara a cara com a população, com os sujeitos. (Lírio, CC1)
O que surge como facilidade para o ensino da ética são essas articulações possíveis a partir da prática, tanto com as possibilidades de participar de projetos de extensão quanto com a possibilidade de experimentar metodologias da PC em sala de aula: "pensando na sala de aula, a facilidade também vem com relação a isso, metodologias, a forma como o conhecimento é construído dentro da sala de aula" (Lírio, CC1). Sobre o aspecto da prática e do trabalho de campo na disciplina PC, Winkler et al. (2016) apontam para o risco de essas práticas serem pontuais, descontinuadas, o que desgasta o vínculo com as pessoas assim como o compromisso e a responsabilidade do trabalho.
Com relação aos atores para o ensino da ética em PC, tanto os docentes quanto os discentes concordam que atores são todos aqueles que estão em relação no cotidiano de formação e reconhecem a potencialidade de todos os envolvidos sem estabelecer hierarquias. Os envolvidos neste aprendizado ético são os sujeitos que estão em relação: estudantes, professores, sujeitos da comunidade, assim como outros interlocutores: os autores utilizados na bibliografia da disciplina e profissionais convidados a contribuir com a disciplina compartilhando suas práticas. Já em relação aos cenários do ensino da ética em PC, temos que essa formação busca se dar de forma ampla e abrangente, indo além do espaço acadêmico.
Outra questão imprescindível para se pensar a formação, seja de qual dimensão for, é a metodologia de ensino. As metodologias de ensino de Psicologia Comunitária identificadas são dialógicas, reflexivas e participativas. Ao perguntarmos aos professores quais metodologias utilizavam para a formação ética em PC, foi muito reforçada a imagem de uma metodologia participativa, por tornar o estudante ativo no processo de ensino.
Também a própria possibilidade de metodologias mais participativas de processos reflexivos, a própria realização de visitas, né? Então alunos que muitas vezes em sala de aula são extremamente críticos e reflexivos "ai, que bacana que lindo"! Aí você propõe fazer uma visita no Bom Jardim [um bairro em situação de extrema pobreza] e o aluno entra em pânico. (P1, E01)
Outra questão avaliada como muito importante na metodologia é o contato com a prática, a fim de sedimentar conteúdos, seja esse contato nas comunidades, políticas públicas, seja movimentos sociais, ou mesmo pela vivência das metodologias de facilitação comunitária em sala de aula. Percebe-se que os professores trazem a necessidade da implicação do discente na disciplina para que esta tenha qualidade. Ximenes et al. (2017) apontam que metodologias participativas devem conduzir a um ambiente democrático que possa contribuir com o fortalecimento da autonomia e das identidades pessoal, coletiva e comunitária. Não podemos afirmar categoricamente que as disciplinas em PC pesquisadas promovam esse tipo de ambiência.
Em termos de referenciais teóricos, os mais utilizadas pelos professores para o ensino da ética em PC foram, além de Cezar Góis, Maritza Montero, Jorge Sarriera, Silvia Lane e Pedrinho Guareschi, autores como Bader Sawaia e Martín-Baró. Esses dois últimos foram citados pelos professores como referenciais básicos do ensino da ética, tanto pela reflexão da primeira sobre o sofrimento ético-político quanto pelas reflexões do segundo sobre o papel do psicólogo. O ensino da ética é pautado em metodologias participativas e inspirado nas metodologias de atuação profissional do psicólogo comunitário. O ensino é concebido como não separado de uma prática e transversal à disciplina de PC, uma vez que os referenciais não são necessariamente específicos da ética, mas abordam em sua discussão sobre o papel do psicólogo e sobre o seu compromisso ético-político.
Por fim, apresenta-se a síntese criada pelos estudantes no momento do círculo de cultura com as sugestões para o ensino da ética em PC. O texto é uma frase aparentemente simples, porém plena de sentidos, sonhos e idealizações partilhadas em conjunto e construída coletivamente. Cada palavra presente nessa frase foi exaustivamente pensada e elaborada por um coletivo de estudantes que se implicou com o tema da ética na formação em Psicologia Comunitária e, com isso, com a formação dos futuros profissionais e com as comunidades com as quais irão trabalhar. O texto construído diz:
O ensino da ética em Psicologia Comunitária pode favorecer a oportunidade de vivência em diferentes realidades, o contato com metodologias da Psicom de maneira prática, a percepção das relações interpessoais como parte dessa formação e a reflexão teórica contextualizada com as questões atuais. Para isso, é preciso que se estenda o espaço de formação para além da sala de aula e das fronteiras da universidade, considerando como atores desse processo professores, estudantes e sujeitos comunitários. (Rosa, Lírio, Álisso, Amarílis, Dália, Jasmim, Tulipa, CC1).
Esse texto reverbera os sentidos trazidos tanto pelos teóricos, discentes e docentes e resume aquilo que eles consideram como propício para o ensino da ética em PC com seus métodos, seus referenciais, seus atores, seus cenários e suas relações, perpassados pelo modelo de sociedade, pelo modelo de universidade, pela proposta curricular de Psicologia e pelas noções de Psicologia Comunitária e de ética. Um ensino de uma Ética Libertadora, de uma ética em processo, de uma ética viva nas relações.
Dimensão conceitual e reflexiva da Ética da Libertação em PC
A partir dessas estratégias de ensino utilizadas, compreende-se que essa formação complexa, segundo Lane (2008), exige a manutenção de uma troca constante entre uma universidade em seu papel crítico, o profissional em sua capacidade de questionar, e a comunidade com suas necessidades e potencialidades. Assim, ocorreria um processo de atualização das sistematizações teóricas e, assim, da formação das/os psicólogas/os em um movimento espiral em constante evolução e contato com o mundo.
A análise de categorias sobre as temáticas presentes nos programas é apresentada no Quadro 1 com resumo das concepções de ética encontradas.
A categoria "concepção de ética" foi a que se mostrou mais timidamente nos programas. A palavra "ética" aparece explicitamente em seis dos sete programas analisados. Como orientação da pesquisa internacional e como inferência do sentido de ética, também consideramos como concepção de ética os significantes relacionados à cidadania, direitos, justiça social, participação, compromisso e empoderamento. Com a ampliação do leque de significados, temos a presença da temática da ética em todos os programas de PC analisados. No entanto, é importante observar que há somente uma menção direta sobre Ética da Libertação, apontando a invisibilidade da fundamentação teórica que alicerça essa categoria.
O mesmo fenômeno se mostra presente nos cinco países pesquisados por Winkler et al. (2016), onde, mesmo quando aparece citada nos temas e objetivos, a ética não tem seus conteúdos e concepções explícitos. O que é revelado como uma incoerência, dada a relevância do tema defendida por tantos teóricos e profissionais da área, como visto na introdução. A categoria ética, de forma geral, está relacionada a descritores como compromisso, política, consciência crítica, solidariedade, emancipação/transformação social, empoderamento, cidadania, Direitos Humanos, diferença e valores. Percebemos, então, que existe uma preocupação em se refletir acerca de valores sociais e comunitários, assim como sobre o horizonte das teorias e práticas nas disciplinas.
Pasmanik e Winkler (2009) afirmam que é preciso buscar meios para garantir que os currículos explícitos sejam coerentes com os currículos ocultos, em que os estudantes aprendem de forma incidental com a prática por participar daquele modelo de experiência educacional. Também se analisam nos programas os referenciais teóricos mais frequentemente utilizados para o ensino da Psicologia Comunitária, como exposto no Quadro 2.
O que é relevante nessa análise é a valorização da produção local, com autores como Góis, Ximenes e Rebouças Jr. Além disso, a maioria dessas produções tem uma relação com a Ética da Libertação, assim como os autores/as mais utilizados/as são brasileiros/as ou Latino/a americanos/as. Esse dado representa uma distinção das referências utilizadas em outras disciplinas, pautadas em um saber colonizado por visões estadunidenses e europeias. Os referenciais teóricos analisados nos programas das disciplinas de PC são coerentes com os princípios teóricos e metodológicos apresentados neste artigo, na medida em que contribuem para uma discussão pautada na realidade local, indo além da sala de aula e do consumo de ideias descontextualizadas ou colonizadas. Nesse sentido, os Outros da produção intelectual mundial são visibilizados, contribuindo para uma desconstrução da colonialidade de saberes (Quijano, 2010).
O conhecimento dos códigos da profissão presentes na ética profissional não garante uma formação ética e tampouco a deontologia, isto é, o estudo dos deveres de uma profissão corresponde à ética na formação. É necessário ir além dos códigos, que normatizam as responsabilidades da categoria. A reflexão ética na formação deveria ter uma conotação vivencial e cotidiana, para que o estudante, nas microrrelações em sala de aula, fosse levado a refletir sobre os princípios e valores que regem as suas ações e sobre as responsabilidades implicadas. Rodríguez, De la Cuesta, Recto e Mosquera (2016) contribuem com essa reflexão trazendo a importância da transversalidade da ética em seu caráter reflexivo nessa disciplina, assim como também a ênfase no papel da relação docente-discente nessa formação, seja ela mediada por conteúdos específicos, reflexões críticas, seja por suas atitudes e comportamentos.
O estudante Lírio traz esses conteúdos como a necessidade de posicionamento que a PC faz.
Aí, nesse caso, eu acho que a gente toma um posicionamento, né, falando, assim, dessa ética e Psicologia Comunitária, que é um posicionamento a favor daquele sujeito que, em vários aspectos, ele não é reconhecido, ele não é valorizado, né, pelo contrário. Então, a gente tenta... Cria uma ética que toma um posicionamento, né, nosso. A gente tenta resgatar esse sujeito, trazê-lo de volta a... resgatar suas potencialidades, também, né, torná-lo novamente um sujeito. (Lírio, CC1)
Assim, há um apontamento para a necessidade de atuar com indivíduos em posição de opressão, aproximando-se dos preceitos da Ética da Libertação. No entanto, também pode ser entendido pelo caráter social da ética, que "exige que nos responsabilizemos pelo nosso mundo e que usemos a liberdade e o poder que temos para recriá-lo como um produto humano e para humanos em vez de aceitá-lo como um dado inalterável" (Sánchez Vidal, 2007, p. 289, tradução nossa). A crítica à suposta neutralidade científica e ao distanciamento sem afirmação de valores aparece como um aprendizado acerca da ética em Psicologia Comunitária.
[…] às vezes, quando você discute ética e Psicologia no geral, às vezes, a discussão ainda é de uma Psicologia como ciência neutra. Então, você busca uma suspensão de valores e ideias e crenças na tentativa que aquele atendimento seja o mais, não sei, laico, o mais puro, não sei... neutro, NE? Quando se fala em ética em Psicologia Comunitária, você fala em ética da libertação, você fala de um povo latino, de um povo oprimido, você fala que você vai assumir uma postura e de que você vai ter valores a assumir.[...] tem uma dimensão política, tem um posicionamento político diante de lidar com a sociedade em que aquela pessoa tá. Eu acho que talvez haja essa diferença por isso, de que, às vezes, a Psicologia ainda tenta se colocar como algo que é neutro, que, às vezes, é atemporal, que não tem muito um lugar na História. (Jasmim, CC1)
Observa-se que a concretude desse público foco da Ética da Libertação está presente, pois essa fala caracteriza a opressão e a vincula com a situação de vulnerabilidade. É importante situar que o foco das ações e das intervenções em Psicologia Comunitária baseados no paradigma da libertação situa-se em comunidades em situação de pobreza (Goes, Ximenes & Moura Jr., 2015). Segundo Faraco e Jaeger (2010), a ética na intervenção social deve ser prática e realizável, construída a partir de valores socialmente relevantes, orientando de forma eficaz a resolução de conflitos, as ambiguidades, a identificação de metas e de objetivos no trabalho social. Um tema ético básico na intervenção social, segundo Sánchez Vidal (2007), é a relação com a comunidade, que deve ser igualitária, promovendo valores como a corresponsabilização e o empoderamento comunitário com transição de papéis e integração de funções diversas entre cada ator social (interno e externo). Nesse sentido, aparece o compromisso social e o empoderamento como partícipes do processo ético em PC.
Quando eu vejo Psicologia Comunitária, eu vejo um sujeito empoderado, eu vejo um sujeito de poder que vai poder tá agindo ali, uma vez que ele se dá conta que ele não só faz parte da realidade, mas ele é a realidade. Então, uma vez que ele tá ali e ele reconhece a participação, eu acho que surge algo, e algo que vai potencializar aquele sujeito. Então, a ética é importante, como a nossa colega apontou, com as pessoas que se comprometem. (Amarílis, CC1)
Outra relevante definição de ética para a PC encontra-se em Montero (2004), que afirma que o eixo da dimensão ética no chamado paradigma da Psicologia Comunitária está relacionado à "definição do Outro e sua inclusão na relação de produção de conhecimento" (Montero, 2004, p. 99, tradução nossa). A relação com o Outro, nesse sentido, deve ser pautada na igualdade e no respeito, assim como na consideração da responsabilidade de cada um por si e pelos outros. Essa dimensão, segundo a autora, se faz muito presente no trabalho comunitário, sendo imprescindível a integração das diferenças, o respeito e a inclusão, como propõe o docente P2.
Tinha também essa questão do Outro né, de você... De um respeito ao outro, de um respeito ao saber do outro, por exemplo, né? Você não achar que seu saber científico é o único que vale, né? Você considerar também o saber da comunidade, entender o modo de vida da comunidade e que esse modo de vida implica também em questões cognitivas de como é que ele compreende a vida deles [...] Então essa questão de pensar o outro, né, de respeitar a diversidade, né, de respeitar o outro e acolher o outro na sua alteridade, na sua diferença, né? É... Mas tinha também essa questão política, né? Um horizonte, você pensar um horizonte ético político. Você pensar e refletir sobre as condições sociais de vida em comunidades, né, das condições de opressão, das condições de injustiça. Você pensar num horizonte de superação dessas condições, você pensar num horizonte de emancipação. (P2, E02)
Muitas vezes, o sentido da ética em PC está pautado por um sentido ético político de emancipação e de transformação social. No entanto, é importante salientar que a inclusão desse outro, a partir do discurso anteriormente posto, está baseada em um sujeito abstrato. Dussel (2012) salienta a necessidade de corporificar esse sujeito oprimido que é central na Psicologia Comunitária. Devem-se assumir as problemáticas sociais vivenciadas pelos indivíduos em situação de opressão, posicionando-se a partir de valores que vão além do estritamente científico ou técnico de funcionamento de disciplinas e de papéis profissionais (Cantera Espinosa, 2004). Além de orientar-se pela teoria e pelo método, e até mesmo por uma deontologia, preocupa-se moralmente com a solução de problemas sociais. Sendo assim, a ética é um componente básico e inseparável da investigação e da intervenção comunitária, pois sua atuação é ideológica, dado o seu caráter histórico, cultural, político e utópico. "E a questão da ética, pra mim, em relação à formação acadêmica, ela aparece exatamente nesse momento em que eu me dou conta de que eu quero atuar como psicólogo comunitário no sentido de tentar minimizar as desigualdades sociais, sabe?" (Tulipa, CC1).
As vivências e estudos dos/das entrevistados/as retratam que a ética em PC não está separada de uma política. Não faz sentido para eles uma reflexão que não reverbere em uma ação, que não constitua uma práxis. Uma ética, assim, que não tenha alcance na vida pública e no bem comum. As falas dos participantes sempre colocam a ética e a política imbricadas em PC.
A própria disciplina de Psicologia Comunitária, como a gente aborda a questão política também aborda a questão ética. (P2, E02)
Acho que a ética da Psicologia Comunitária, ela vai ser um pouco mais abrangente, porque ela visa a uma transformação. É uma ética que também é política. (P3, E03)
Martín-Baró (1988) e a Psicologia da Libertação contribuíram muito com essa forma de ver a atuação do psicólogo comunitário. Sua reflexão e crítica à Psicologia como ciência pretensamente asséptica e politicamente neutra inspira a PC a assumir o seu papel político de transformação social. Os sentidos trazidos pelos docentes e discentes para a ética na Psicologia Comunitária estão em coerência com uma ética como processo e como reflexão-ação para a libertação, o que nos aproxima das considerações de Martín-Baró e Dussel. É uma "ética em convivência" (P4, E04); "é uma ética viva e em processo" (Rosa, CC1). Assim, ecoa tanto entre os teóricos quanto entre os discentes e docentes a perspectiva de um compromisso ético-político com a transformação social.
Considerações finais
As reflexões trazidas apontam a centralidade da ética situada em contextos tão desiguais como os latino-americanos, brasileiros e nordestinos. Portanto, a ética deveria ser transversal na formação em Psicologia, sendo papel dos/as professores/as trazerem a concretude desses dilemas na graduação. No entanto, observa-se no ciclo formativo das graduações uma ausência dessa centralidade. De forma específica, considera-se que o horizonte ético da Psicologia Comunitária é a libertação como processo individual e coletivo de superação da moral do sistema que mantém injustiças e opressões. No entanto, esses apontamentos concretos não se materializaram de forma objetiva nos programas das disciplinas, mas se mostram em alguma escala nas falas das pessoas entrevistadas. Assim, pode-se compreender que há possibilidades para a construção de uma atitude de Ética da Libertação, mas ainda é necessária sua consolidação na estrutura de ensino.
O ensino da ética em PC no Ceará é pautado em metodologias participativas e tem um relevo na prática, porém suas teorias precisam avançar nesse campo específico, dada a ausência de uma articulação direta do tema em quase todos os programas das disciplinas. Afirmar que a ética é transversal na disciplina não garante que suas questões específicas, seus dilemas e reflexões serão levados a cabo. A Ética da Libertação traz uma perspectiva concreta de relação com a população em situação de marginalização e pobreza, no entanto, não é central nas disciplinas e nas metodologias propostas. Como estratégia de posicionamento ainda mais crítico da Psicologia Comunitária e do seu espaço de formação, é imprescindível que essa perspectiva ética seja a base do ensino, formando profissionais críticos para atuações emancipatórias em prol da transformação social.
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Recebido em: 30/11/2018
Aprovado em: 1º/7/2019