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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.3 São João del-Rei jul./set. 2019
Psicólogas brancas e relações étnico-raciais: em busca de formação crítica sobre a branquitude
White psychologists and ethnic-racial relations: searching critical training on whiteness
Psicólogas blancas y relaciones étnico-raciales: en busca de formación crítica sobre la branquitud
Jacqueline MeirelesI; Mariana FeldmannII; Tamiris da Silva CantaresIII; Simone Gibran NogueiraIV; Raquel Souza Lobo GuzzoV
IDoutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Puc-Campinas. Graduada em Psicologia pela PUC-Campinas
IIDoutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Puc-Campinas. Graduada em Psicologia pela PUC-Campinas
IIIDoutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Puc-Campinas. Graduada em Psicologia pela PUC-Campinas
IVPós-Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Doutora em Psicologia Social pela PUC de São Paulo. Mestra em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Psicóloga pela Universidade Federal de São Carlos
VProfessora titular da Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Campinas. Pós-Doutorado na University of Texas/USA e na University of Rochester/USA. Doutora e Mestra em Psicologia pela USP. Psicóloga pela PUC-Campinas,
RESUMO
Este trabalho apresenta uma síntese de discussões realizadas em um grupo de estudos sobre relações étnico-raciais, composto por psicólogas brancas pós-graduandas, pelo período de três semestres. Os estudos foram motivados pela lacuna na formação em Psicologia no que diz respeito às relações étnico-raciais. São discutidos os efeitos da branquitude na formação subjetiva e profissional, a partir de três eixos: 1. Uma breve leitura histórica sobre a construção social da ideia de raças humanas e sua influência no pensamento psicológico brasileiro. 2. Histórico sobre como a Psicologia se dedicou ao estudo das relações étnico-raciais no Brasil.E 3. contribuições da Psicologia Crítica no estudo da branquitude. Esperamos que estas reflexões favoreçam a Construção de diálogos com profissionais, docentes e pesquisadores de Psicologia sobre a necessidade de formação a respeito das relações étnico-raciais e, principalmente, a necessidade de se desenvolver uma branquitude crítica para uma postura ética na atuação profissional.
Palavras-chave: Psicologia. Educação. Branquitude. Relações étnico-raciais
RESUMEN
Este trabajo presenta discusiones realizadas en un grupo de estudios sobre relaciones étnico-raciales, compuesto por psicólogas blancas postgraduadas, por el período de tres semestres. Los estudios fueron motivados por la brecha en la formación en Psicología sobre las relaciones étnico-raciales. Se discuten los efectos de la branquitud en la formación subjetiva y profesional, a partir de tres ejes: 1. Breve lectura histórica sobre la construcción social de la idea de razas humanas y su influencia en el pensamiento psicológico brasileño. 2. Histórico sobre cómo la Psicología estudió las relaciones étnico-raciales en Brasil.Y 3. Contribuciones de la Psicología Crítica en el estudio de la branquitud. Esperamos que estas reflexiones favorezcan la construcción de diálogos con profesionales, docentes e investigadores de Psicología sobre la necesidad de formación acerca de las relaciones étnico-raciales y, principalmente, la necesidad de desarrollar una branquitud crítica para una postura ética en la actuación profesional.
Palabras clave: Psicología. Educación. Branquitud. Relaciones étnico-raciales.
ABSTRACT
This work aims to share reflections carried out in a group of studies on ethnic-racial relations, carried out by white postgraduate psychologists for a period of three semesters. The studies were motivated by the gap we identified in Psychology training regarding ethnic and racial relations. The effects of whiteness on subjective and professional formation are discussed, from three parts: 1. A brief historical reading about the social construction of the idea of human races and its influence on Brazilian psychological thinking. 2. History about how Psychology was dedicated to the study of ethnic-racial relations in Brazil.A 3. Contributions of Critical Psychology in the study of whiteness. We hope that these reflections favor the construction of dialogues with professionals, teachers and researchers of Psychology on the need for training on ethnic-racial relations and, especially, the need to develop a critical whiteness to an ethical stance in professional practice.
Keywords: Psychology. Education. Whiteness. Ethnic-racial relations.
Introdução
Este artigo apresenta reflexões produzidas a partir de um grupo de estudos sobre relações étnico-raciais e o papel da branquitude na vida cotidiana, realizado por psicólogas autodeclaradas brancas do Grupo de Pesquisa Avaliação e Intervenção Psicossocial: Prevenção, Comunidade e Libertação. Os estudos foram motivados por inquietações derivadas de nossa atuação em um projeto de extensão universitária nas escolas públicas, o Projeto Espaço de Convivência, Ação e Reflexão - Projeto Ecoar (Guzzo et al., 2019). Esse projeto nasceu em 2014, após um convite da Secretaria de Educação de Campinas-SP para que o grupo de pesquisa organizasse ações para o enfrentamento à violência em escolas da Rede Municipal em uma região periférica da cidade. Por meio desse projeto, foram mapeadas as violências vivenciadas e produzidas por estudantes, professores, gestores, funcionários, familiares e comunidade (Feldmannn, 2017; Meireles, 2015; Pereira, 2016; Silva 2017).
A atuação nas escolas e a sistematização das informações nos trabalhos de Meireles (2015), Pereira (2016) e Feldmann (2017) revelaram o racismo como uma das violências mais recorrentes nas escolas da região. Semanalmente, deparamo-nos com as diversas formas de sofrimento causadas pelo racismo manifesto no contexto das escolas e das comunidades em que atuamos. No entanto, apesar da evidente demanda de combate ao racismo nas escolas, nossa formação em Psicologia não oferecia elementos para elaborarmos e organizarmos ações para o enfrentamento desse problema social.
Infelizmente, essa lacuna não é realidade singular para esse grupo de psicólogas ou para essa região do país. Em pesquisa referente ao perfil do profissional de Psicologia no Brasil, Lhullier (2013) enfatiza a predominância feminina na profissão: em 2012, dos 232 mil profissionais em exercício, 89% eram mulheres. O documento apresenta, também, uma pesquisa realizada com 1.331 psicólogas, em que uma das questões se referiu à raça, conforme os critérios do IBGE. Os resultados não surpreendem ao revelar que 67% das psicólogas se autodeclararam brancas, 25% pardas, e apenas 3% pretas, 3% amarelas e 1% indígenas. Além disso, quando questionadas sobre o referencial teórico utilizado em sua prática profissional, dentre as psicólogas que souberam responder (1,179), 28% declararam utilizar as construções de Sigmund Freud (alemão), 7% de Carl Gustav Jung (alemão), 6% de Carl Rogers (estadunidense), 5% de B. F. Skinner (estadunidense), 4% de Lacan (francês), 4% de Aaron Becker (estadunidense), e os demais foram citados por menos de 3% das psicólogas.
Esses dados revelam que a Psicologia é uma profissão predominantemente composta por mulheres brancas, orientadas por referenciais teóricos euro-americanos produzidos por homens. Para além da observação de que não há sequer uma mulher apontada dentre os autores mais estudados e utilizados no Brasil - apesar de ser uma profissão majoritariamente praticada por elas -, destacamos o problema dos referenciais teóricos utilizados. Dessa forma, de acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2017, p. 75),
Historicamente, a Psicologia brasileira posicionou-se como cúmplice do racismo, tendo produzido conhecimento que o legitimasse, validando cientificamente estereótipos infundados por meio de teorias eurocêntricas discriminatórias, inclusive por tomar por padrão uma realidade que não contempla a diversidade brasileira.
Ainda hoje os cursos de graduação perpetuam essa realidade, ao não abordar e não preparar psicólogas(os) para trabalhar com as relações étnico-raciais. Importam-se, de forma acrítica, referenciais do hemisfério Norte para analisar o contexto psicossocial no hemisfério Sul, historicamente explorado por aqueles (Lane & Codo, 1986; Martín-Baró, 2009). Referências oriundas de outros lugares e povos, como os ameríndios, africanos, asiáticos e aborígenes, por exemplo, são negligenciadas e categorizadas como atrasadas, primitivas, selvagens e não cientificamente válidas para as sociedades ocidentalizadas (Nogueira, 2013a).
Essa reflexão é bastante pertinente quando consideramos que o Brasil é um país onde a questão raça/cor tem sido um importante indicador nos últimos 10 anos na configuração da violência. De acordo com o Atlas da Violência (Cerqueira et al., 2018, p. 4), "a taxa de homicídios de indivíduos não negros diminuiu 6,8%, ao passo que a taxa de vitimização da população negra aumentou 23,1% [...] que 71,5% das pessoas que são assassinadas a cada ano no país são pretas ou pardas".
Atuando nesse contexto, o Projeto Ecoar é desenvolvido em escolas municipais de uma região periférica da cidade com expressiva presença de estudantes negros(as). Sendo assim, compreendemos a necessidade de estudar essa problemática para construir referenciais e instrumentos adequados para seu enfrentamento. Com a orientação de uma especialista em Educação e Psicologia das Relações Étnico-Raciais, entramos em contato com referências teórico-metodológicas para nos prepararmos para o enfrentamento à violência racial. Durante três semestres, o coletivo de estudos abordou os seguintes conteúdos: Introdução às Políticas de Ações Afirmativas e à Educação das Relações Étnico-Raciais; Colonização e Descolonização do Conhecimento, Racismo à Brasileira e Seus efeitos Psicossociais.
Essa preparação passou, e ainda passa, por um processo de autorreflexão crítica sobre nossa própria identidade racial, como mulheres brancas em uma sociedade racista e a necessidade de desnaturalizar o lugar do ser branco como um ser universalmente humano, um modelo a ser seguido. O estudo das relações étnico-raciais e do conceito de branquitude crítica envolveu aprendizados sobre lidar ética e politicamente com o lugar social de privilégios que ocupamos na sociedade e como combater a ideologia da supremacia racial branca em nossas pesquisas e práticas profissionais (Nogueira, 2013a e 2013b; Cardoso, 2010).
Organizamos o presente artigo com o objetivo de apresentar uma síntese das reflexões realizadas no grupo de estudos e fomentar um diálogo sobre a branquitude crítica com a nossa categoria profissional. Utilizando como metodologia a revisão bibliográfica, o texto foi organizado a partir de três eixos: No primeiro, realizamos uma breve leitura histórica sobre a construção social da ideia de raças humanas. Em seguida, apresentamos um histórico sobre como a Psicologia se dedicou ao estudo das relações étnico-raciais no Brasil. O terceiro eixo apresenta algumas contribuições da Psicologia Crítica no estudo da branquitude e, por fim, concluímos o trabalho com reflexões sobre a importância desse processo de estudo e autorreflexão em nossas formações e práticas como psicólogas, chamando a atenção sobre a urgência dessa discussão se fazer presente nos currículos de Psicologia.
Considerações sobre a construção da ideia de raça
Esta seção contém breve exposição sobre como a ideologia da supremacia racial branca foi historicamente forjada, com determinada intencionalidade, desdobrando-se no desenvolvimento de teorias racistas na Europa as quais foram importadas pelos intelectuais brasileiros, influenciando o pensamento social e psicológico, o que garantiu às elites brancas1 do país um lugar de poder institucionalizado e de primazia nas decisões sobre os rumos do país e sua população. Essa posição privilegiada das elites brancas foi construída por meio da desqualificação, desumanização, dominação e exploração de outros grupos sociais não brancos, especialmente os indígenas e africanos. Com base nessa perspectiva, a profunda desigualdade social no Brasil é sustentada pela ideologia da supremacia racial branca, que orienta a organização das classes sociais, entre outros fatores fundamentais (Souza, 2016).
Quijano (2005) faz uma importante contribuição ao explicitar como o processo de colonização das Américas inaugurou um novo padrão de poder com características globais, ao justificar o suposto direito à dominação e exploração de recursos naturais e humanos desses territórios, com base na construção da ideia de raças humanas e na suposta hierarquia natural entre elas. A busca por dar legitimidade a essa justificativa se deu no âmbito das ciências, principalmente fundamentadas em perspectivas biopsíquicas, que associavam características fenotípicas dos povos colonizados (como tipo de cabelo, tamanho de nariz, entre outros) a determinados comportamentos morais e intelectuais (Nogueira & Guzzo, 2017; Santos, 2002; Munanga, 1999; Patto, 1992). Dessa maneira, povos com histórias milenares foram enquadrados em classificações negativas e inferiorizantes em função dos matizes de cor: branca, amarela, vermelha e preta.
Quijano (2005) aponta que uma hierarquia racial foi estabelecida, ditando os papéis e posições na divisão social do trabalho a serem ocupadas pelo grupo racializado. Por uma suposta inferioridade biopsíquica, justificou-se a escravização de negros(as), e a servidão dos indígenas, enquanto o trabalho assalariado e os postos de comando foram atribuídos como privilégios de brancos. Para além da organização do trabalho, o processo de dominação se deu pelo viés da cultura, por meio da repressão das formas de produção de conhecimento e sentidos dos povos colonizados. O conhecimento possível era apenas o que fosse útil para a reprodução da dominação e exploração: colonial/moderna, capitalista e eurocêntrica.
Como produto desse processo de colonização, o racismo no Brasil tomou contornos próprios devido às nuanças de nossa história. Ele foi, e ainda é, regido pelo tripé ideológico: do mito da democracia racial, do preconceito de marca/cor, e política governamental de branqueamento da população pós-abolição (Munanga & Gomes, 2006).
O termo democracia racial foi cunhado por Gilberto Freyre (1933) e diz respeito à falsa ideia de que o Brasil escapou do racismo. O mito da democracia racial está ancorado na falácia de que neste país as relações entre senhores e escravizados foram mais harmônicas e menos violentas que em outros países escravocratas. Diante disso, não precisaríamos nos preocupar e nem debater sobre a problemática racial, pois a realidade do Brasil difere dos EUA e África do Sul, que eram regidos por regimes jurídicos de Apartheid. Essa inverdade sobre a realidade racial brasileira foi amplamente divulgada no país e internacionalmente, e ainda persiste no imaginário social de muitos brasileiros(as) e estrangeiros(as). Ela é facilmente desmitificada pelas estatísticas sociais brasileiras, que revelam a profunda desigualdade racial do país.
A ideologia da democracia racial foi, e continua sendo, muito criticada e debatida por pensadores(as) sociais brasileiros(as). Oracy Nogueira (2006) desmente a democracia racial ao discorrer sobre o tipo de preconceito característico do Brasil, que é o preconceito de marca. Sua contemporânea, Virgínia Bicudo, também defende a tese de que o preconceito de cor no Brasil minimiza o confronto direto e impede o desenvolvimento da consciência sobre a discriminação racial. O preconceito de marca/cor associa atributos físicos, como cor da pele, formato de nariz, etc., às qualidades morais e intelectuais. Assim, a cor da pele determinaria a capacidade moral e intelectual da pessoa e a que classe social ela "deveria" pertencer, de forma que as relações "deveriam" ser regidas pela aparência. Segundo os autores, esse tipo de preconceito estabelece uma "linha de cor", quanto mais escura a pele de uma pessoa mais discriminação sofrerá, e o inverso, quanto mais clara a pele de alguém mais aceita poderá ser na sociedade ocidentalizada e eurocêntrica.
A terceira perna do tripé do racismo à brasileira é a ideologia do branqueamento. Segundo Bento (2002) e Souza (1983), é uma projeção dos(as) brancos(as) sobre os(as) negros(as), a única saída plausível que a elite brasileira encontrou para a formação de uma nação neste país, conforme o modelo eurocêntrico e brancocêntrico que ela desejava. O branqueamento se materializou num projeto de governo bem definido que instituiu um genocídio silencioso para a população negra ao abandonar os(as) negros(as) libertos sem políticas públicas específicas após a abolição, ou mesmo enviar grandes contingentes de negros para as guerras, como forma de exterminar um problema indesejado. Somado a esse genocídio, o governo implementou uma política de incentivo à imigração, que favorecia a vinda de povos brancos e amarelos (europeus, árabes, asiáticos) como mão de obra assalariada. Estratégia que serviu ao declarado propósito de miscigenar a população brasileira, antes majoritariamente negra, com a finalidade de clarear e intelectualizar o povo à moda eurocêntrica (Munanga, 1999).
Essa panorama apresentou brevemente o problema do racismo e como a ideia de raças humanas atrelou-se diretamente ao pensamento que fundou a sociedade brasileira. Todavia, diante dessa construção histórica, os primeiros a identificarem tais problemáticas, criticar e apontar novas perspectivas na compreensão das relações étnico-raciais foram os intelectuais negros no âmbito das ciências sociais, abrindo caminhos para algumas revisões críticas da Psicologia. Os estudos da branquitude deslocaram o foco do problema racial como algo que diz respeito apenas aos "negros ou indígenas", reorientando-o para a origem, isto é, os colonizadores com propósitos de dominação.
Esse movimento intelectual iniciado nos Estados Unidos foi chamado de "estudos críticos sobre a branquitude ou branquitude crítica" e teve como principais teóricos: a) W. E. B. Du Bois (1868-1963), sociólogo norte-americano, filósofo e político. Em 1903 lançou o livro The Souls of the Black Folk (Du Bois, 1903/1994), no qual realizou uma análise das categorias de raça, classe e status da classe trabalhadora branca norte-americana do século XIX em relação à classe trabalhadora negra; b) Franz Fanon (1925-1961), psiquiatra e filósofo da Martinica. Analisou a identidade branca em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas (1952/2008), a partir de categorias fundamentais como a raça, o colonizador e o colonizado para a compreensão do processo de construção de subjetividades; c) Albert Memmi (nascido em 1920), escritor tunisiano que, em seu livro Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador (1957/2007), discute que a violência sofrida pelo colonizado é precedida de toda a construção teórica e prática do racismo elaborada e desenvolvida pelos colonizadores europeus brancos; d) Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), sociólogo brasileiro e político, foi pioneiro na discussão das consequências do racismo e da ideologia do branqueamento para brancos no país. Em um dos capítulos do livro Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (1954), o autor analisa a patologia social do "branco brasileiro". Vale ressaltar que, na área psi, Virgínia Bicudo (1945/2010) e Neusa Santos Souza (1983) foram pioneiras a refletir de forma crítica sobre a branquitude.
Esses foram e são alguns dos inúmeros intelectuais que, desde a segunda metade do século XIX, vêm denunciando criticamente a origem e as consequências psicossociais nefastas da ideologia da supremacia racial branca nas sociedades ocidentalizadas. Partimos neste momento para um enfoque sobre a relação da Psicologia com a problemática.
Psicologia e relações étnico-raciais no Brasil
Para explicitar como a Psicologia tem atuado no que se refere às relações étnico-raciais, recorremos, neste momento, de forma muito sintetizada, a três importantes artigos que ajudam a nos situar no tempo histórico e em relação ao que foi produzido até então (Santos, Schucman & Martins, 2012; Schucman, Nunes & Costa, 2015; Sacco, Couto & Koller, 2016; Conselho Federal de Psicologia, 2017).
Santos, Schucman e Martins (2012) fazem um levantamento histórico do pensamento psicológico brasileiro sobre as relações étnico-raciais, organizando-o em três diferentes momentos: o primeiro, no século XIX, consiste no período colonial em que, conforme já explicitamos, os autores da Psicologia estavam muito ligados ao modelo biopsíquico da Medicina e associavam doenças mentais e práticas criminosas às raças consideradas inferiores. De acordo com esses mesmos autores (2012), o segundo momento localiza-se no início da década de 1930, quando Raul Briquet, Arthur Ramos e Donald Pierson se tornaram os primeiros estudiosos do tema na Psicologia e ministraram os primeiros cursos de Psicologia Social. No entanto, vale destacar que, apesar dos avanços críticos, esses autores ainda reproduziam em suas reflexões teóricas fundamentos das teorias racistas eurocêntricas, conforme aponta Oliveira (2007) e Santos (2002).
O terceiro momento é localizado por Santos, Schucman e Martins (2012) com início em 1990, mas, já na década de 1980, as contribuições teóricas da psicóloga e psicanalista Neusa Santos Souza com seu livro Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social (Souza, 1983), inaugura a discussão contemporânea e analítica sobre o racismo, o sofrimento psíquico e a identidade negra. Em seguida, após a Constituição Federal de 1988, tendo em vista a pressão dos movimentos sociais com protagonismo de negras e negros, o Estado brasileiro passou a incorporar importantes Políticas Públicas transversais e Políticas de Afirmação, porém ainda poucos foram os estudos que buscavam instrumentalizar esses profissionais (Conselho Federal de Psicologia, 2017).
Ainda no terceiro momento, na década de 1990, estudos de Jurandir Freire Costa, Iray Carone, Maria Aparecida Bento e Edith Piza discutiram o branqueamento e branquitude no Brasil. Esses foram os primeiros estudos que trouxeram a perspectiva da Branquitude Crítica para a Psicologia brasileira. A branquitude é conceituada pela Psicologia Social como um modelo de comportamento social inserido numa estrutura de poder e posta como neutra, não refletida, mas mantenedora dos privilégios sociais da vida cotidiana do ser branco. Considerada como uma forma de viver o mundo, ela garante vantagens simbólicas ao grupo social branco, sustentando o silêncio e a omissão em relação a si mesmo, para manter a desigualdade racial (Bento, 2002).
Conforme explicitamos anteriormente, a concepção de Bento (2002) sobre o branqueamento passa pelo medo da elite branca em relação ao negro, que a ele impõe seus valores e padrões estéticos. Dessa forma, revela que o racismo é um problema que se origina no branco e, por conseguinte, o envolve nas relações raciais. Esse terceiro momento produz uma virada epistemológica, modifica o foco dos estudos no sentido de considerar os efeitos da branquitude na vida cotidiana e considerar o papel fundamental do branco nas relações étnico-raciais. A partir dessa referência, a Psicologia passa a olhar criticamente para o lugar que o branco ocupa na sociedade e seu processo de construção da identidade.
De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2017), entre a década de 1990 e 2000, importantes avanços foram conquistados por psicólogas(os) negras(os): 1. A criação do Centro de Estudos das Relações de Desigualdade e Trabalho (Ceert), em 1990, que produz conhecimentos e desenvolve projetos voltados à promoção de igualdade racial e de gênero em diversas instituições sociais. 2. A criação do Instituto AMMA Psique e Negritude, em 1995, uma organização que tem como objetivo enfrentar o racismo, discriminação e preconceito política e psiquicamente, por meio de formação e prática clínica, desconstruindo o racismo e seus efeitos psicossociais. 3. O lançamento de uma campanha do Conselho Federal de Psicologia (CFP) denominado Preconceito racial humilha, a humilhação social faz sofrer, em 2002. 4. A aprovação da Resolução CFP nº 18/2002, que estabeleceu normas de atuação para as(os) psicólogas(os) em relação ao preconceito e à discriminação racial.
Mais recentemente, Schucman, Nunes e Costa (2015) publicaram revisão em que são analisadas todas as produções do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da USP, desde 1970 até 2012. As autoras encontraram, nos 15 trabalhos investigados, três grandes categorias de análise: denúncia do racismo, modos de subjetivação do racismo e estratégias para superar o racismo. Categorias essas que foram encontradas a partir de quatro diferentes perspectivas: dimensão política; o negro no meio científico brasileiro; diferentes expressões do racismo como preconceito sutil e branquitude; e a dimensão identitária discutindo os efeitos psicossociais do racismo. Contudo, ainda é presente a dificuldade em encontrar produções que se dediquem às formas sistemáticas da desconstrução do racismo, incluindo a discussão sobre o branqueamento, assim como, também, metodologias e práticas profissionais da Psicologia que possam vir a contribuir com a luta antirracista em nossa sociedade.
Sacco, Couto e Koller (2016) revisaram sistematicamente os estudos brasileiros da Psicologia sobre o preconceito racial, utilizando as bases de dados do SciELO, LILACS, Index Psi, PePSIC e PsycINFO e os descritores racismo e/ou preconceito racial. As autoras encontraram 77 artigos publicados de 2001 a 2014. A maioria das pesquisas sobre o preconceito racial realizadas pela Psicologia apontou que os estudos são desenvolvidos com participantes adultos e, principalmente, com estudantes universitários (maioria branca). Compreendendo a importância social dos estudos sobre o preconceito racial no Brasil e as contribuições possíveis da Psicologia, a quantidade de artigos publicados ainda é reduzida, considerando que os resultados dessa revisão são recentes e que a área ainda está em desenvolvimento em nosso país. As autoras consideraram a necessidade do avanço das pesquisas buscando a compreensão do preconceito racial em crianças e adultos não universitários e pessoas de grupos discriminados.
A publicação mais recente que destacamos, aqui, trata-se das Referências Técnicas para Atuação nas Relações Raciais (Conselho Federal de Psicologia, 2017). O documento construído coletivamente teve por objetivo ampliar o debate da temática do racismo na categoria profissional e qualificar as(os) psicólogas(os) no combate a comportamentos discriminatórios e preconceituosos em razão da desigualdade de raça/etnia. O material está organizado em cinco eixos principais: 1. Dimensão histórica, conceitual, ideológico-política da temática racial. 2. Âmbitos do racismo: racismo institucional, interpessoal e pessoal. 3. Enfrentamento político ao racismo: o movimento negro. 4. Psicologia e a área em foco. 5. Atuação da(o) psicóloga(o) na desconstrução do racismo e promoção da igualdade.
A partir das produções analisadas nessas Referências Técnicas, foram apresentadas duas hipóteses para explicar a falta de pesquisas que pensem a branquitude. A primeira pode ser explicada pela grande maioria das pesquisadoras ser branca e socializada em um grupo que ainda acredita ser desracializado. Ou seja, um grupo que tende a olhar para si mesmo e para outros entendendo que a raça existe apenas nos outros, mantendo a branquitude como parâmetro normativo e inquestionável. Uma segunda hipótese seria que tomar consciência de sua branquitude é se rever e expor os privilégios simbólicos e materiais que existem nessa sociedade racista (Conselho Federal de Psicologia, 2017). É possível que pessoas brancas tenham resistência em se comprometer com mudanças psicossociais que envolvem perda de privilégios herdados historicamente de forma indébita.
Essas publicações demonstram que a Psicologia tem avançado na produção de conhecimentos sobre relações étnico-raciais, mesmo que, ainda, as pesquisas sejam poucas e fragmentadas. O foco dos estudos passou a não ser "um problema dos negros ou indígenas", mas sim como a branquitude impacta a vida de brancos e negros em uma sociedade racista.
Contribuições da Psicologia Crítica para Estudos da Branquitude
Diante dessa revisão de produções e temáticas raciais na Psicologia brasileira, pontuamos a necessidade de fazer avançar a discussão, a fim de que não seja um fragmento da Psicologia, mas uma construção que se consolida e se integra aos saberes e práticas da disciplina, de forma orgânica e não fragmentada. Em nosso Grupo de Pesquisa, entramos em contato com as obras do psicólogo alemão Klaus Holzkamp (1927-1995), que, com seus colegas de trabalho, iniciou o movimento conhecido como a Psicologia Crítica Alemã. Temos encontrado nesse movimento algumas possibilidades de diálogo internacional a respeito da branquitude, pois, ainda que seja europeu, Holzkamp posicionou-se contra o poder dominante e construiu importantes fundamentos para uma Psicologia compromissada com mudanças sociais a favor das maiorias populares.
Holzkamp (2016), ainda pouco conhecido no Brasil, analisou os problemas epistemológicos da Psicologia e suas afirmações construídas a partir de contextos artificiais e distantes da realidade de vida das pessoas (como os experimentos em laboratórios ou análises em clínicas). O autor chamava a atenção para o quanto esse tipo de ciência pode favorecer o poder dominante. Assim, traz contribuições significativas ao propor uma categoria capaz de analisar a relação indivíduo/sociedade, superando as visões deterministas vigentes: a condução da vida cotidiana.
Holzkamp (2016) enfatiza a ação dos sujeitos diante de possibilidades (nem sempre muito óbvias à primeira vista), que podem voltar-se tanto à manutenção das situações atuais, quanto ao rompimento das condições de opressão. Para Holzkamp, toda ação tem uma razão do ponto de vista do sujeito, ainda que para alguém de fora possa parecer que o sujeito agiu "irracionalmente". Assim, o autor sugere que devemos abandonar a lógica de causa/efeito e compreender a ação humana em termos de premissas e razões, e que essas razões devem ser ditas em primeira pessoa e não por um psicólogo com seu suposto conhecimento sobre o sujeito maior que o próprio sujeito.
O psicólogo Thomas Teo (2016) aponta que as contribuições de Holzkamp possibilitam a acomodação de concepções de dentro e de fora do mundo ocidental. Além disso, Teo sugere que na compreensão da condução de vida cotidiana é necessário ir para além do campo da razão e consciência, ainda que na concepção de Holzkamp (2016) a razão seja compreendida de forma inseparável aos afetos. Segundo Teo (2016), para compreender a ação humana, é necessário acrescentar à consciência noções que envolvem a corporalidade, tão importante às diversas culturas não europeias. Assim, o autor propõe a utilização de conceitos relacionados ao corpo, tais como hábito, performatividade e privilégio, tendo em vista que muitas de nossas ações são performances de classe, gênero e privilégio, que estamos habituados, e não necessariamente temos razões para agir assim. As razões só emergem quando, no processo intersubjetivo, somos confrontados com o outro - ou seja, quando por meio do diálogo e convivência atenta nos damos conta de que há pessoas vivendo de formas completamente diferentes. O autor exemplifica com o uso da água: nos países onde há água abundante, nos habituamos a utilizar uma certa quantidade por dia, e podemos nunca compreender isso como um privilégio, se não refletirmos de forma crítica e não conhecermos as realidades em que a vida cotidiana se desenrola em torno da escassez e da busca de acesso a esse recurso tão vital.
Essa discussão abre caminhos para compreendermos a branquitude como um privilégio encarnado na vida cotidiana. À medida que o ser branco se torna o sinônimo de "mais evoluído" e, consequentemente, mais humano, as performances cotidianas ganham uma característica própria, que necessita ser refletida e criticada. Harris (1993), autor norte-americano que discute a branquitude, aponta para o ser branco como uma propriedade útil, um privilégio encarnado a ser usado e gozado.
O branco conduz sua vida como se ela fosse "neutra", "normal" ou "natural", porque vê seu modo de vida como único modelo válido de humanidade e não reconhece que outros modelos podem ser tão humanos quanto o seu. Numa sociedade marcada pela ideologia da democracia racial, as manifestações da branquitude serão incisivas. No entanto, serão vivenciadas como norma, algo natural e universal para aqueles que não querem ver os seus beneficiários (Piza, 2003; Nogueira 2013a, 2013b; Nogueira & Guzzo, 2017). Em contrapartida, para não brancos, a percepção é inevitável, pois vivenciam cotidianamente seus efeitos nocivos. O racismo permeia o processo de construção da subjetividade entre brancos(as) e negros(as), gerando sentimentos de inferioridade, culpa, humilhação e angústia na população não branca. Esses sentimentos decorrem de atitudes de discriminação e preconceito, levando à sensação de não pertencimento e impondo limites às potencialidades dos(as) não brancos(as) ao não atingirem os ideais brancos de universalidade e superioridade. Essa expressão do racismo pode ser definida como racismo interpessoal, que atinge, inclusive, as relações entre profissionais e usuários(as) de serviços (Conselho Federal de Psicologia, 2017).
Fanon (1952/2008) discute, pelo exemplo da linguagem, a manifestação dessa supremacia racial branca apresentando situações em que os brancos se dirigiam aos negros com uma diferença de formalidade. Na França de sua época, era comum o tratamento formal a um desconhecido, mas, quando um branco se dirigia a um negro, perdia a formalidade em sua linguagem. O autor traz o exemplo de um médico que ao branco diz: "Sente-se, senhor, o que o traz aqui?", mas ao não branco diz: "Sente, meu velho, o que é que você tem? - Onde tá doendo?" (p. 45). Fanon discute que, por essa aparente sutileza, o branco está pressupondo que o negro não seria capaz de compreender a linguagem formal e, ao mesmo tempo, passando o recado: "permaneça em seu lugar".
Segundo Jensen (2005), psicólogo estadunidense, as pessoas brancas que aceitam seus privilégios e não fazem a crítica vivem em uma condição de supervalorização ilusória da sua aparência e das suas formas de ser no mundo. Esse lugar de supervalorização na sociedade impede o reconhecimento do outro/diferente como um ser humano, além de interditar o reconhecimento de que outras formas de ser e viver o mundo sejam humanas e válidas. Consequentemente, o ser branco se recusa a reconhecer a humanidade do outro/diferente, pois, se assim o fizer, terá que reconhecer que seus privilégios são indébitos e desumanizam o outro (no caso, não brancos). O processo de desumanização ou estado de colonização mental dos brancos em uma sociedade racista ocorre quando ele trata o outro/diferente como menos humano ou não humano, recusando-se a entender que os dois podem ter diferentes formas históricas e culturais de pertencimento à humanidade (Nogueira, 2013b).
Nogueira (2013b), psicóloga branca brasileira, sugere três dimensões para processos de humanização e descolonização mental em brancos. Primeiro, a pessoa tem que reconhecer que existem diferentes maneiras humanas de ser e viver no mundo. As que são diferentes de seu modelo de referência, no entanto, são tão humanas quanto a sua própria. Isso requer abertura sincera e amorosa para aprender com os outros, conforme nos orienta Freire (1968/2016). Nesse mesmo sentido, Jensen (2005) aponta que para romper com a supremacia branca as pessoas brancas têm que aprender mais sobre outras culturas e entender as contribuições únicas de cada uma delas. Mais ainda, compreender que as várias culturas podem compartilhar de qualidades e valores comuns.
Outra dimensão do processo de descolonização mental em brancos, de acordo com Nogueira (2013b), é aquela em que a pessoa começa a perceber e a lidar conscientemente com a degradação social produzida pela branquitude. É possível desenvolver a consciência coletiva de que sua forma de ser e viver no mundo, baseada na ideologia racista, é profundamente desumana e opressora a outros povos com os quais convivemos cotidianamente. A nossa forma de ser e viver no mundo precisa ser alvo de autorrevisão permanente. Isso implica reconhecer que nós temos coisas porque outros são interditados de ter, mas é emocionalmente difícil lidar com essa compreensão da desigualdade. Segundo Jensen (2005, p. XX, tradução livre nossa),
Em parte, porque ser completamente humano é buscar comunicação com outros, e não separação deles. Uma pessoa não pode estabelecer esta conexão sob condições em que o poder injusto traz privilégios não merecidos. Ser humano completo é rejeitar um sistema que condiciona seu prazer à dor de outra pessoa.
Essa mesma perspectiva é defendida por Cardoso (2010), quando ele sugere que uma tarefa para brancos poderia ser uma dedicação cotidiana e insistência na crítica social e autocrítica pessoal a respeito de privilégios não merecidos, herdados indebitamente pelo seu próprio grupo. Essa permanente autocrítica pode ser associada à última dimensão proposta por Nogueira (2013b), quando defende que quando a pessoa que reflete sobre sua própria condição se abre, entra em contato e aprende como respeitar outros modelos de humanidade, assim como se engaja e ajuda a construir relações sociais sinceras com pessoas de diferente origens, histórias e culturas.
Jensen (2005) vai além e aponta que para realmente mudarmos as estruturas sociais racistas, com vistas a descolonizar a sociedade, é necessário um comprometimento ético e político profundo. Não basta que as pessoas brancas policiem suas atitudes para não serem racistas em seu cotidiano. Isso não muda a sociedade. Ela ainda será estruturada com base na ideologia da supremacia branca e as pessoas brancas sempre se beneficiarão dela, de forma intencional ou não. As pessoas brancas têm uma responsabilidade ou débito a mais, a obrigação de se posicionarem ética e politicamente como antirracistas e se engajarem em lutas contra o racismo institucional, contra as estruturas de poder que mantém a supremacia racial branca. Somente a partir daí podemos vislumbrar uma sociedade verdadeiramente democrática e justa.
Considerações finais
Bater contra uma porta de vidro aparentemente inexistente é um impacto fortíssimo e, depois do susto e da dor, a surpresa de não ter percebido o contorno do vidro, a fechadura, os gonzos de metal que mantinham a porta de vidro. Isso resume, em parte, o descobrir-se racializado [...] diante da imensa racialidade atribuída ao outro. (Piza, 2003, p. 61)
O processo de estudos sistemáticos sobre as relações étnico-raciais, durante três semestres, fez-nos bater, inesperadamente, na porta de vidro. Como postula Piza (2003), o branco não se reconhece no processo das relações étnico-raciais e, muito menos, como agente do processo histórico de opressão e desigualdade baseada em raça. A experiência de formação possibilitou a racialização do nosso lugar de mulheres brancas, bem como repensar o que significa ser branca em uma sociedade desenvolvida sob a ideologia da democracia racial e da supremacia racial branca.
Antes dessas reflexões, compreendíamos que pouco ou quase nada poderíamos fazer para transformar a desigualdade estrutural, no que se refere às questões raciais. Mesmo com a magnitude do impacto da violência étnico-racial nos contextos em que atuamos, nossas lentes profissionais estavam desfocadas pela vida cotidiana e pela formação, rodeadas de privilégios, que não colaboraram para compreendermos o nosso lugar racializado. O processo de conscientização sobre a branquitude envolveu diferentes estágios como: o silenciamento, a negação e o reconhecimento do nosso lugar de privilégio na sociedade. As reflexões geradas no grupo de estudo redirecionaram nossa atuação, fazendo-nos buscar uma postura ético-política de enfrentamento ao racismo estrutural.
Se o profissional inserido em comunidades negras e periféricas não tiver uma formação crítica, reflexiva e consciente sobre a sua branquitude, ele mesmo pode ser o agente que reproduz a violência étnico-racial nos seus espaços de atuação. No caso da escola, por exemplo, há a Lei nº 10.639/2003 (Brasil, 2003), que torna obrigatório o ensino de História e cultura afro-brasileira na educação básica. É de extrema importância que as(os) psicólogas(os) que atuam nesse contexto não apenas conheçam, mas se posicionem como agentes que contribuam para sua efetivação no cotidiano escolar. Isso terá inúmeras implicações práticas: por exemplo, se uma criança negra apresenta sinais de baixa autoestima, deixaremos a postura de adaptá-la individualmente a um "tratamento" que ignora o racismo estrutural.
Para que isso seja possível, destacamos a importância de uma formação crítica sobre as relações étnico-raciais. Alguns caminhos para a construção dessa formação poderiam implicar na realização de momentos informais no contexto de formação de psicólogas(os), como rodas de conversa, mas também práticas institucionalizadas, como a inclusão de teorias e práticas não discriminatórias e que tenham protagonismo científico de saberes e sujeitos não brancos no currículo de Psicologia, a discussão da temática em diferentes disciplinas e o incentivo à realização de pesquisas na área, além da garantia de acesso e permanência de grupos não brancos na universidade.
Há, ainda, um caminho longo a ser percorrido, mas deixamos as palavras ditas pela facilitadora de nosso grupo de estudo, sempre que percebia nosso sofrimento diante das discussões: "aprender e nos conscientizar sobre o problema, isto é, como nós, brancos, construímos e nos beneficiamos das desigualdades raciais, é muito doloroso. Mas a solução é boa demais!", isto é, envolve conhecer e aprender culturas e possibilidades de ler o mundo com outras lentes, lentes de respeito e não violência, de aprendizagem e não a tentativa de suprimir o conhecimento do outro, de diversidade e não "mais do mesmo", de amor e não de medo.
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Recebido em: 30/11/2018
Aprovado em: 14/8/2019
1 O termo "elite branca brasileira" é utilizado por Bento (2002) para designar os grupos compostos por pessoas de ascendência europeia que detinham o poder desde o Brasil colonial pessoas de ascendência europeia que detinham o poder desde o Brasil colonial.