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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.4 São João del-Rei out./dez. 2019

 

Imagens arquetípicas na série de sonhos de um caso de bulimia nervosa

 

Archetypal images in the dream series of a nervous bulimia case

 

Imágenes arquetípicas en la serie de sueños de un caso de bulimia nerviosa

 

 

Maria do Desterro de FigueiredoI; Carlos Augusto SerbenaII; Jessica Caroline dos SantosIII; Rosana Bento RadominskiIV

IProfessora do Centro universitário FAE. Doutoranda pelo Hospital de clínicas/UFPR
IIDoutor. Professor da Universidade Federal do Paraná
IIIMestre. Professora do Centro universitário (Unibrasil)
IVMédica, UC/UFPR

 

 


RESUMO

Os transtornos alimentares, em específico a Bulimia, no viés simbólico, aponta cisões internas ao longo do desenvolvimento psicológico. O modelo de corpos perfeitos influencia no imaginário coletivo, em busca por um ideal estabelecido. O objetivo do estudo é analisar, a partir da Psicologia Analítica, uma série de sonhos, explicitando a dinâmica psíquica e os aspectos do complexo alimentar de uma paciente de 24 anos, com diagnóstico de bulimia nervosa. Os resultados apontaram para a fragmentação entre as funções do masculino e feminino, uma persona voltada a demandas sociais e fragilidade na constituição psíquica. A discussão buscou correlacionar as relações primais entre mãe e filha e os principais impactos no desenvolvimento da personalidade diante das adversidades da vida. Os sintomas e os sonhos da paciente expressaram-se como possibilidades de controle do processo psicológico, assim como o expulsar de conteúdos indigestos e necessitados de ressignificação.

Palavras-chave: Bulimia. Sonhos. Psicologia Analítica. Transtornos alimentares. Feminino.


ABSTRACT

The eating disorders, specifically Bulimia, in the symbolic bias points internal splits along the psychological development. The model of perfect bodies influences the collective imaginary, in search of an established ideal. The aim of the study is to analyze, from the Analytic Psychology, a series of dreams, explaining the psychic dynamics and the aspects of the food complex of a 24 year-old patient with diagnosis of nervous bulimia. The results pointed to the fragmentation between masculine and feminine functions, a person focused on social demands and fragility in the psychic constitution. The discussion sought to correlate the primary relations between mother and daughter and the main impacts on the development of the personality, facing the adversities of life. The patient's symptoms and dreams were expressed as possibilities of control of the psychological process, as well as the expulsion of indigestible contents and in need of resignification.

Keywords: Bulimia. Dreams. Analytical Psychology. Eating disorders. Feminine.


RESUMEN

Los trastornos alimentarios, en particular la Bulimia, en el sesgo simbólico apunta escisiones internas a lo largo del desarrollo psicológico. El modelo de cuerpos perfectos influencian en el imaginario colectivo, en busca de un ideal establecido. El objetivo del estudio es analizar, a partir de la Psicología Analítica, una serie de sueños, explicitando la dinámica psíquica y los aspectos del complejo alimentario de una paciente de 24 años, con diagnóstico de bulimia nervosa. Los resultados apuntaron a la fragmentación entre las funciones del masculino y femenino, una persona volcada a demandas sociales y fragilidad en la constitución psíquica. La discusión buscó correlacionar las relaciones prima entre madre e hija y los principales impactos en el desarrollo de la personalidad, frente a las adversidades de la vida. Los síntomas y los sueños de la paciente, se expresaron como posibilidades de control del proceso psicológico, así como el expulsar de contenidos indigestos y necesitados de resignificación.

Palabras clave: Bulimia. Sueños. Psicología Analítica. Trastornos alimenticios. Femeninos.


 

 

Introdução

A atualidade é permeada por uma estética que influencia a individualidade e a coletividade ao relacionar a beleza aos corpos magros, simétricos e isentos de subjetividade. O retrato da busca pela perfeição pode resultar nos indivíduos um conflito na íntima relação entre a experiência corporal e a alimentação. O simples ato de alimentar o corpo torna-se patológico diante das inúmeras exigências psicológicas, sociais e culturais.

No entanto, quando se trata da complexidade psicológica envolvida no desenvolvimento de um transtorno alimentar, não é fácil identificar uma causa e finalidade pela via consciente. O ato de comer retrata questões do desenvolvimento individual, incluindo os processos inconscientes envolvidos na experiência da pessoa ao desenvolver um transtorno alimentar.

Nesse sentido, os transtornos alimentares são caracterizados por um quadro sintomatológico relacionado às perturbações persistentes no comportamento alimentar que resulta na alteração do consumo e da absorção dos alimentos, com significativos prejuízos no funcionamento psicossocial e fisiológico do indivíduo. A bulimia nervosa, como um dos transtornos alimentares mais prevalentes nesse cenário corporal, implica por recorrentes episódios de compulsão alimentar periódica, seguidos de autoavaliação indevidamente influenciada pela forma e peso corporal e por estratégias compensatórias e inadequadas para evitar o ganho de peso, tais como vômitos autoinduzidos, uso de laxantes, diuréticos, jejuns e enemas que devem ocorrer, no mínimo, uma vez por semana durante três meses (American Psychiatric Association - APA, 2014).

Indivíduos bulímicos normalmente encontram-se com uma condição de peso normal e podem, com isso, ocultar por muito tempo seus sintomas. No entanto, costumam sentir-se envergonhados e com autoestima flutuante devido aos seus hábitos alimentares, com maior incidência em jovens estudantes do sexo feminino (Vilela, Lamounier, Dellaretti, Barros & Horta, 2004). Apresentam pensamento acerca da relação recíproca entre a melhora dos aspectos psicológicos e a boa forma corporal, o que ocasiona contínuas dietas restritivas em conjunto com desequilíbrios alimentares, episódios compulsivos, uso dos exercícios físicos e outros comportamentos purgatórios para emagrecer (Censi, Peres & Vasconcelos, 2009) e, consequentemente, baixa qualidade de vida (Oliveira-Cardoso, Coimbra & Santos, 2018).

Na esfera psicodinâmica sob a perspectiva da Psicologia Analítica, a bulimia nervosa se expressa como um sintoma psíquico, assim como a possibilidade de resolução deste. O comer em meio à ritualidade do purgar perpassa a complexidade simbólica de sua definição. Esse movimento que começa pelo que comemos tem a fome ligada ao instinto psiquificado, o qual está ligado à vontade e ao desejo humano, que estão além das necessidades fisiológicas (Jung, 2011b).

O que se come e também o que se purga passam pela ordem do como, onde e para quê; ou seja, considera-se a influência de espaços, das relações, das impossibilidades psíquicas para uma digestão alimentar e dos motivos que vão além de questões puramente nutricionais. De forma paradoxal, o ato ritualístico do bulímico pode expressar a recusa de algo ainda inconsciente e desconhecido que, ao se tratar de simbólico, tem-se "a melhor formulação possível, de algo relativamente desconhecido, não podendo, por isso mesmo, ser mais clara ou característica, é simbólica" (Jung, 2011c, p. 904).

Gadotti, Borges e Sampaio (2017) corroboram com a ideia da digestão psíquica ao defenderem que da mesma forma que o processo digestivo transforma o alimento em fonte nutricional, precisamos digerir a experiência psíquica para que esta se transforme em um alimento para a alma. Revelam que a problemática dos transtornos alimentares, em particular da bulimia nervosa, deve ser pensada a partir do processo de elaboração psíquica, assim como o que acontece no processo digestivo de cada um deles, tendo neste as experiências vividas, mas não transformadas, elaboradas e integradas à consciência. No episódio bulímico, não há simbolização, não há reconhecimento de si e, então, se estabelece a sensação de um eu vazio.

O resgate dessa interlocução simbólica pode ser realizado por meio do trabalho com sonhos como uma possibilidade de compreensão do funcionamento psíquico de mulheres com transtornos alimentares. Durante séculos os sonhos são associados aos processos de cura. Os povos primitivos acreditavam que durante o sono ou desmaio a "alma" parecia se separar do corpo e, com isso, iniciar uma viagem, justificando que muitos adoecimentos eram acometidos quando algum incidente surgia nesse percurso. Esse método foi difundido no tempo de Asclépios na Grécia antiga (Ellenberger, 1970).

Por meio da análise das imagens oníricas, é possível verificar o funcionamento psicológico do sonhador, muitas vezes conflituoso, com forte carga emocional em relação à consciente vígil, revelando assim os conteúdos dos complexos (Jung, 2011b). Tais complexos são dotados de uma coerência interior, um grau relativamente elevado de autonomia que, ao adentrar a consciência, permitem a flexibilização da unilateralidade que essa vivência proporcionou (Jung, 2011b).

A experiência metafórica da bulimia pode retratar o conflito entre os aspectos do cultural e do psicológico, portanto algumas perguntas podem nortear o imaginário desses indivíduos, como: o que é impossível digerir? Qual seria a função simbólica do expurgo? Nesse contexto, as imagens oníricas precisam ser analisadas, refletidas e não interpretadas em um sentido único. Para Berry (2014), existem inúmeras possibilidades de ver o mesmo fenômeno. Por outro lado, é possível buscar entender a função apresentada pela dinâmica dos sonhos. A função compensatória é apontada por Jung (2011b) como regra básica do sistema psíquico, que busca pelo equilíbrio, saindo de uma atitude unilateral da consciência e retificando a concepção do paciente.

Diante a relevância do trabalho com sonhos em pacientes com transtornos alimentares, o presente estudo pretende analisar simbolicamente, a partir da Psicologia Analítica, uma série de sonhos explicitando a dinâmica psíquica, as oposições e os aspectos do complexo alimentar de uma paciente com diagnóstico de bulimia nervosa.

 

Método

Trata-se de um estudo qualitativo e caracterizado como estudo de caso descritivo (Yin, 2001) por não haver controle dos eventos abordados e focar sobre as possíveis relações entre as imagens oníricas, afetos, estruturas psíquicas, os modos de relações e seu contexto. O objeto de análise é a dinâmica psíquica do quadro da bulimia que se manifesta de forma metafórica e simbólica nos sonhos. A análise dos sonhos e dos fenômenos psicológicos identificados no caso foi realizada pelo viés da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung.

Para a análise da série de sonhos de um caso de bulimia, foram utilizados como fonte de evidência o relato dos sonhos, o acompanhamento terapêutico e o diário alimentar durante o período de atendimento.

Apesar de não haver regras prontas para as interpretações de sonhos (Von Franz, 1996), há princípios gerais e norteadores. Os sonhos representam um símbolo para a psique e para a sua interpretação utiliza-se o método comparativo da amplificação. Em uma sequência de sonhos é possível identificar temas e sentidos, pois os sonhos tendem a compor uma trama e um contexto médio.

A amplificação se fundamenta nos princípios de associação e do pensamento analógico do símbolo. Ele "consiste na utilização de paralelismos históricos, míticos e culturais com o propósito de esclarecer o significado ou conteúdo metafórico do símbolo e fornecer um quadro mais completo para a sua interpretação" (Serbena, 1999, p. 49), possibilitando efetuar relações entre imagens universais e sonhos individuais. Desse modo, pode ocorrer "uma melhor compreensão e reorientação da psique por meio de uma imagem ampliada e o esclarecimento de processos coletivos que ocorrem na psique" (Serbena, 1999, p. 50).

A etapa inicial da interpretação da imagem é posicioná-las em seu contexto - nos sonhos, situá-los na história de vida e das condições atuais do sonhador. Ao abordar uma série de sonhos, pode-se reconhecer um "contexto médio", por meio da comparação e desenvolvimento dos temas e imagens da própria série e, ao amplificar esse tema, se fundamenta a interpretação do seu significado psicológico (Samuels, Shorter & Plaut, 1988).

Após situar o sonho num contexto médio onírico, são selecionados os temas e as imagens dos sonhos. Em seguida, procede-se à coleta de associações e afetos constelados pelas imagens oníricas com paralelos e possíveis relações destas com a história de vida do sonhador. Após essas etapas, são realizados os paralelos com imagens e os temas mitológicos e com conceitos psicológicos. A compreensão teórica dos sonhos é a última etapa, mas também pode ser o início de um novo ciclo de análise, sendo uma circum-ambulação (Samuels et al., 1988).

O caso supracitado refere-se a uma das participantes triadas em ensaio clínico realizado por equipe multidisciplinar para tratamento clínico da obesidade. Os atendimentos foram realizados no Serviço de Endocrinologia e Metabologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (SEMPR/HC-UFPR) entre dezembro de 2007 e março de 2009. No entanto, a paciente não preencheu os critérios de inclusão do estudo devido o Índice de Massa Corpórea (IMC) estar abaixo do esperado para a população alvo e pelo quadro de bulimia nervosa e foi encaminhada para atendimento psicoterápico.

A pesquisa foi submetida à apreciação do Comitê de Ética da UFPR e aprovada com o parecer nº 1522.187/2007-09. Todas as voluntárias foram informadas sobre os objetivos do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Neste artigo, para preservar a identidade da participante, seu nome foi substituído pelo pseudônimo de Hera.

 

Resultados

O contexto onírico

Uma série temporal de sonhos é a manifestação simbólica da dinâmica psíquica e do fluxo da libido entre as várias instâncias da psique e indica o processo de transformação ou fixação das questões psíquicas do sonhador com suas formas de elaboração simbólica, resolução e criação psíquica (Jung, 2011b, p. 531), que "diz respeito, realmente, tanto à saúde como à doença". Nesse caso, o sentido da série e seu contexto médio foi realizado por meio de uma breve descrição do desenvolvimento do quadro clínico da bulimia, da história de vida e do relato da série de sonhos conjuntamente com a compreensão do comportamento alimentar da paciente.

Hera permaneceu em acompanhamento psicológico por apenas três meses e justificou seu encerramento devido à alteração de horários no trabalho. Nesse período trouxe muitos sonhos que foram trabalhados nas sessões. Sempre demonstrou disponibilidade e interesse em relatá-los, fazendo questão que a terapeuta ficasse com suas anotações, dizendo se tratar de uma "tarefa cumprida". Essa atitude possibilita pensar em uma forma ritualística de vomitar e entregar ao terapeuta semanalmente seus conteúdos indigestos em um hospital, o qual, em sua imaginação, poderia ser o lugar da cura.

Histórico pessoal

Hera dizia-se religiosa, professora do ensino fundamental, pedagoga e casada desde os 16 anos. Na época estava com 24 anos, tinha dois filhos e não tinha boa relação com os familiares. Relatou que na infância passou por situações de negligências por parte dos pais. Desde cedo precisou cuidar dos irmãos, trabalhar com os afazeres domésticos e se queixava de não ter recebido afeto e atenção dos pais. Trouxe recordações traumáticas com um dos irmãos devido à agressividade e intolerância com seus pertences: "quando eu ganhei uma bicicleta, ele quebrou e não me deixou andar, fiquei revoltada e meus pais não fizeram nada". Apresentou uma imagem materna ruim, ausente e rígida, seguida de uma imagem paterna passiva e calma, porém ausente emocionalmente. Relatou não dormir bem e se definiu como introvertida, reservada socialmente, depressiva, insegura e sujeita a explosões emocionais. Hera demonstrou não conseguir se relacionar naturalmente com as pessoas próximas, principalmente com as figuras masculinas, muito menos com seus próprios sentimentos.

Histórico da doença

Na época dos atendimentos estava com 70 kg, altura de 154 cm e IMC 29,5 kg/m2. Relata que era magra antes da gestação, com 47 kg e 16 anos, mas "depois da gestação tudo mudou". Com a gestação teve um quadro de anemia profunda, uma não aceitação do aumento de peso, seguida de depressão pós-parto e sofrimento psicológico que ficou claro ao declarar "eu não me conformava ao me ver, me olhava e não me reconhecia [] revolta". Expôs histórico de obesidade familiar e depressão materna. Normalmente controlava-se na alimentação, mas tinha episódios de compulsão alimentar seguido de vômitos provocados e sentimentos de vergonha e culpa: "O que vão pensar de mim?"

Sobre os hábitos alimentares relatou estar mais saudável, sem comer carne vermelha, apenas peixe, frutas e legumes, e explicou que a melhora estava relacionada à religião. Na última semana de atendimento, Hera confirmou não poder comparecer às consultas devido às atividades no trabalho. Por fim, não ficou claro se realmente teria outra forma de conciliar esses compromissos externos com o compromisso de estar com ela mesma.

Série de sonhos

Os 14 sonhos relatados e trabalhados no processo psicoterápico com Hera passaram por leitura e análise simbólica, pois a expressão simbólica é "como a melhor formulação possível, de algo relativamente desconhecido, não podendo, por isso mesmo, ser mais clara ou característica" (Jung, 2011b, p. 904). Assim foi possível identificar temas arquetípicos em comum que serão discutidos ao longo do texto.

Os primeiros sonhos de Hera ainda não apresentavam uma clareza sobre o que estava acontecendo, mostrando grande preocupação com a aparência e com um ajustamento da persona no mundo de um corpo ideal e magro, indicado por Woodman (2002) em mulheres jovens.

O primeiro sonho, logo após o início do tratamento, mostrava a sua situação objetiva de uma vida ideal e ainda não alcançável, seguida do descontrole em uma refeição na qual procurava comer compulsivamente por doces e guloseimas. Relatou uma consciência do fato, de sua autoculpabilização e a noção de que não é atraente ou desejável aos outros, o que ficava evidente quando ela mesma se colocava como "uma gorda horrorosa".

No segundo sonho, Hera demonstrava estar numa situação de aprendizagem e precisaria ensinar o seu próprio filho, podendo este representar o contato consigo próprio na figura do filho como o masculino emergente, mas ela não gostou disso e acabou por se aproximar de uma aluna amorosa que a fez sentir-se melhor.

No terceiro sonho, encontrava-se pescando com seu esposo e o sogro, figuras essas masculinas. Pescaram um enorme peixe e foi surpreendida ao vê-lo se deteriorando, imagem que mostra claramente uma relação improdutiva com o masculino. Teve como reação ficar apavorada e começar a chorar.

O quarto sonho remetia a sua situação profissional, era professora em escola infantil e relatava aos pais de um aluno que algo grave aconteceu com ele. Novamente sentiu-se culpada, fugindo da situação e descreveu "vou sair correndo". Aqui pode ser observado uma persona profissional rígida e um ego frágil com dificuldade de assertividade e não enfrentamento de desafios.

No sonho seguinte, Hera estava no hospital com a mãe e a cunhada esperando pelo sobrinho que parecia estar adoentado. Note que são figuras femininas esperando por uma criança masculina. Nesse sonho, ela estava muito nervosa e não sabia o que estava acontecendo com o menino - observa-se novamente uma ansiedade e incerteza quanto ao novo. No sexto sonho, Hera relatou que coçava a cabeça e caíam muitos piolhos. Nesse sentido, pode-se inferir que a cabeça como sede do Ego e da razão está com muitos conteúdos primitivos - o piolho como um inseto. Ainda no sonho, havia pessoas estranhas que olhavam e sentiam nojo, representando um contexto de falta de continência e reprovação a partir do outro. Ao final desse sonho, ela estava angustiada, chorava muito e tinha uma forte dor no peito, o que remete ao coração, sede metafórica dos afetos e sentimentos (Jung, 2011b).

No sétimo sonho, pela primeira vez ela se apresentou como bonita e desejável: um rapaz a deseja, teve relações com ela e o marido aparecia depois, meio chateado. Entretanto, não conseguiu acolher isso de forma positiva, pois sentiu-se culpada porque transgrediu normas sociais ao não se conformar com a sua persona de boa esposa. O marido, nessa imagem onírica, representa a dificuldade de transformação pessoal dela, dependência da figura masculina para um direcionamento externo que reprime a própria pessoa.

No relato do oitavo sonho, Hera contou que seu irmão e seu esposo foram assassinados a facadas e ficaram desfigurados. Ela chorou, ficou chocada e estava muito triste. Entretanto, percebia que todos olhavam para ela como se fosse culpada. Mais uma vez uma imagem que representa a autoculpabilização e a figura do masculino bloqueada na sua psique. Considerando que os personagens do sonho representam aspectos do próprio sonhador, é possível pensar que essa imagem indique uma atitude do ego de Hera, bloqueando o desenvolvimento do masculino e, consequentemente, desfigurando-o e, na sequência, uma consciência inicial disso.

O próximo sonho foi relatado no nono encontro. Neste, sua irmã traía o esposo, então Hera ia aconselhá-la, mas foi desprezada com o riso da irmã e a sonhadora ficava com raiva dela. Na sequência, ela foge ao perceber que o cunhado traído vinha conversar e sofreu com isso. O sonho pode representar a ambivalência existente em Hera, sendo a vergonha e a raiva que sente de seus próprios desejos, seguidos da repressão e negação deles.

No décimo sonho, ela relatou que estava indo para a escola de ônibus carregando seu material, entretanto o esquece nele. Corre atrás do veículo, mas não consegue alcançá-lo e perde seu material. Novamente, uma situação de impotência, geradora de angústia e demonstração da dificuldade de realizar algo no mundo.

No décimo primeiro encontro, sonha que estava bonita em um casamento com pessoas alegres e estava participando da festa. O casamento indica possibilidade de integração de opostos em um processo de desenvolvimento da consciência. Os conteúdos inconscientes que integram a consciência normalmente estão relacionados à sombra. Na sequência do sonho, a festa continuava e, na hora de dançar a valsa, todos estavam acompanhados e dirigindo-se ao centro do salão. Ela foi até seu marido e convidou-o para dançar, mas ele a rejeitou. Então, ela saiu correndo, entrou numa rua escura e chorou. Aqui novamente mostra-se a cisão com a dificuldade de integração dos opostos e da recusa ou negação do masculino nesse processo.

No décimo segundo sonho, Hera estava em um lugar rodeado de pessoas, que riam e a ridicularizavam. Sentiu-se mal, saiu correndo e tentou se esconder. Novamente, a rejeição, mas como Hera demonstrava ser o centro dessa situação, pode indicar uma dinâmica inconsciente complicada, pois o centro (ela como ego) é rejeitado pelos outros complexos da psique.

A situação que se mostrou no décimo terceiro sonho foi a de que o mundo ia se acabar e as pessoas corriam desesperadas. Ela segurava o filho pela mão e tentava achar o marido, mas não conseguia. Nota-se que estava com o filho, mas seu marido estava ausente. Pode-se interpretar que se sente perdida em seu mundo, sem uma direção ou princípio organizador.

No último encontro, quando relatou o décimo quarto sonho, contou que encontrou um rapaz bonito e que admirava do seu passado, conversaram, sentiu-se muito bem e acabaram se beijando. Lembra-se de que estava casada e terminou com tudo, sentindo-se culpada e angustiada. Ao acordar, disse que talvez tenha rejeitado o rapaz porque ele a elogiava e por ser bonito. Além da possível infelicidade no casamento, o sonho mostra a oposição entre o impulso interno de integração - representado pela relação de encontro entre ela e o rapaz do passado - e sua posição fundamental no mundo de não merecimento, o que ocorre devido a uma relação primária negativa com a mãe e um desenvolvimento anímico perturbador.

De forma geral, Hera demonstrou uma dificuldade em deixar-se descobrir pelo que realmente está em si, não aceitava a vida e lidava com ela de uma forma frágil, sem entrar de fato com seus sentimentos e ficava presa aos olhares externos e à busca de uma aprovação social e alheia que lhe custava muita energia. Ao estar presa ao externo, buscava por uma persona rígida que não lhe sustentava, que sempre negava e depreciava seu corpo e sua alma. Essa persona seria a sua postura perante a demanda social por um corpo magro e ideal. Quanto mais dissociada do seu eu interior, mais estará se comportando como uma máscara, vestindo características que não são suas, identificando-se com uma persona social.

 

Discussão

A compreensão psicodinâmica dos transtornos alimentares

O entendimento da dinâmica psíquica nos transtornos alimentares está presente principalmente nas obras da psicóloga junguiana Marion Woodman, a autora trata sobre a obesidade, anorexia nervosa e o feminino reprimido. Os livros buscam compreender a relação entre distúrbios alimentares e desenvolvimento psíquico e, sobretudo, sobre o feminino e o masculino na psique como possibilidades criativas.

Para Woodman (2002), nos transtornos alimentares há uma cisão entre a mente e corpo, psique e soma ou entre Logos e Gaia que acarreta uma alienação do sujeito de si próprio, de suas necessidades psíquicas e, metaforicamente, do aspecto positivo da nutrição e do acolhimento próprio do Feminino e da Terra-mãe, representada pela Grande Deusa. Assim, não há diálogo construtivo entre os aspectos masculinos e femininos da psique, entre Logos e Gaia, com uma grande quantidade de libido e de afeto não reconhecidos e reprimidos que acarreta um determinado padrão psíquico que se desloca para a comida e para modo de alimentar-se.

Nessa dinâmica, a cisão indica que a integração dos opostos - Terra, na forma de todos os impulsos e afetos impulsivos e as sensações do próprio corpo, e Logos, como um princípio ordenador e integrador da psique - não ocorreu. O desenvolvimento da personalidade é limitado ou comprometido, com necessidades infantis não satisfeitas e uma grande sombra no inconsciente que provoca depressão e uma tentativa de controlar e eliminar os afetos egodistônicos dessa cisão, ou seja, elementos que são percebidos como distantes e inconscientes pelo ego. Em seu crescimento, não houve continência e reconhecimento dessa parte "instintiva e corporal" constelando a imagem da Grande Mãe Negativa no relacionamento com a mãe ou o cuidador, o que ocasiona fortes afetos egodistônicos. Para conter e controlar a cisão, há um movimento de controle de fora para dentro, imposto por meio da persona, dos tabus sociais e da internalização forçada de modelos culturais, com atuação do masculino em sua forma autoritária, repressora e culpabilizadora do animus negativo que normalmente vem pela mãe (Woodman, 2001; 2002).

Temos a formação de uma persona rígida, com uma sombra altamente carregada que é projetada em seu próprio corpo - matriz original de sua identidade e falha na formação do eixo Ego-Self (Whitmont, 2010). O movimento da libido perpassa pela extroversão por meio de explosões do afeto e da introversão para controlar esses afetos e impulsos, mas sem uma transformação que constrói o eixo ego-self - centroversão da libido (Neumann, 2000). Há uma personalidade frágil, rígida, com afetos e impulsos reprimidos e revestidos com a raiva, sexualidade e agressividade.

Para Woodman (2001), os extremos se ligam a esses polos e a obesidade ocorre quando o ego não consegue controlar os impulsos, cedendo à tentação da comida; assim como na anorexia há a tentativa de transcender e negar a esses mesmos impulsos, controlando seu próprio destino, mesmo que devorando a si mesmo. O feminino, o mundo e o corpo estão ligados ao feminino negativo, à imagem do Dragão terrível, com a cura implicando em contatar esse lado de modo a constelar posteriormente o lado continente e positivo do feminino.

Desse modo, na mulher obesa "a imagem do corpo [é] como uma jaula construída a partir das projeções alheias enquanto seu próprio vazio interior é preenchido com comida" (Woodman, 1995, p. 43). Na anorexia, a mulher "aprende a ganhar a atenção e admiração por meio da perda de peso. Com sua própria força moral à medida que sente a pele se apegar aos ossos e se sente mais aceitável pela cultura" (Woodman, 1995, p. 64), e assim "o corpo é visto como um obstáculo que não se pode superar e quando a criatividade espontânea é apartada da natureza, a psique é forçada a suportar um ônus inevitavelmente fatal" (Woodman, 1995, p. 66). De certo modo, a anorexia é a sombra da obesidade e vice-versa.

Na obesidade há um vazio interior que tende a ser preenchido pela comida. Como não há condição de controlar a sua alimentação obsessiva, gera-se culpa, diminuindo-se o seu respeito por si próprio e mascarando sentimentos de impotência, desesperança e grandes obstáculos em acessar seu próprio self. Em ambos os casos, há um grande sofrimento e dificuldade de tratamento devido à relação primária com a mãe estar prejudicada e com isso a criança se responsabilizar e culpar a si própria por isso. Desse modo, "o próprio self da menina se torna mãe terrível cuja rejeição nega ao filho [o] direito de viver" (Woodman, 1995, p. 109). O princípio ordenador ou masculino que lhe é passado pelo animus da mãe é experienciado como negativo e hostil e se desenvolve uma contradição com a individuação e o impulso criativo: "Ela passa a experimentar todo princípio ordenador superior como um ataque à sua psique. Esta reage com medo, mas esse é o medo do caos" (Woodman, 1995, p. 109).

Para a autora, a cisão interna paralisa o movimento de integração da psique e gera sofrimento devido ao temor da perda de controle e do caos psíquico. O princípio ordenador do animus positivo não foi constelado, mas por se tratar de uma necessidade psíquica manifesta-se projetado na figura externa de forma idealizada como um parceiro romântico ou um salvador. A mulher encontra-se fixada ao caráter elementar do feminino - a Grande Deusa - e devido a uma ausência ou negatividade do Logos não há estrutura egoica necessária para a transformação. Cada movimento, nessa direção, provoca medo e tem uma resposta defensiva, pois a jornada do desenvolvimento implica em se defrontar com o desconhecido e a insegurança. Assim, o caráter transformador e relacional do feminino, a anima, não emerge e a personalidade está presa na infantilidade (Neumann, 2000).

A cura poderia ocorrer constelando o feminino positivo, integrando e contatando a sombra, aceitando seus afetos, impulsos, seu próprio corpo e sua realidade. Para tanto, deve perceber sua posição e atitude em sua existência, assim como as relações com pessoas significativas modelaram e impactaram a sua relação como seu corpo. Uma das formas é por meio da imaginação ativa e do contato com o inconsciente pelos seus sonhos, para os quais o terapeuta deve estar aberto a suportar as demandas primitivas e contraditórias da psique, assim como de integração e da posição do Self, pois não há relacionamento interior e nem confiança em si próprio e no outro (Woodman, 1995). A realidade de sua não aceitação é muito dolorosa, ocasionando uma fuga desta e uma idealização da figura paterna.

Assim, a questão da alimentação converte-se em uma espécie de loucura, manifestando um desejo de transformação tal qual os mistérios de Dionísio. Esse processo se manifesta em afetos, comportamentos e imagens, particularmente nos sonhos, que constituem um acesso às imagens e transformações associadas aos transtornos alimentares.

A autora destaca que nas últimas décadas as mulheres têm vivido sob influência de um mundo unilateralmente masculino, com demandas competitivas e compulsivas, negando seu feminino e se utilizando da comida de forma concreta para nutrir o que lhe foi reprimido. A somatização, na mulher obesa, ousa em exclamar essa repressão, buscando formas de ser compreendida. Afirma que, na medida em que essas mulheres entram em contato com o feminino, uma deusa pode ser libertada e começar a falar do que necessita e da forma que deseja viver (Woodman, 2002).

Essa dinâmica psíquica no imaginário dos indivíduos pode ser expressa pelo Complexo Alimentar, como uma neurose que busca por uma compreensão e tem a sua finalidade. Deixa evidente que essa finalidade só será compreendida se essas mulheres olharem o tratamento não como apenas uma forma de emagrecer, e sim reconhecer e buscar compreender as causas subjacentes do seu excesso de peso e seus rituais alimentares, ajustando seus valores e atitudes de acordo com essa compreensão (Woodman, 2002).

As imagens oníricas de Hera evidenciam um ego fragilizado, preocupado com a opinião dos outros e em seguir perfeitamente com seu papel de professora, mãe e esposa. Essa vulnerabilidade psicológica pode representar um complexo de inferioridade. Oriundos dos seus traumas ao longo do desenvolvimento, esses conteúdos quando emergem na consciência são metaforizados nos sonhos. Os complexos são conteúdos carregados de energia que justificariam a carga de sentimentos negativos que vivencia na série de sonhos. A respeito da autonomia do complexo, no trabalho psicoterapêutico é possível observar que este "está constelado", demonstrando que a consciência do indivíduo foi invadida pelos conteúdos dos complexos. A constelação é um processo automático que ninguém pode deter por própria vontade (Jung, 2011b) e são representados nos sonhos.

Análise temática da série de sonhos

Após uma análise geral dos sonhos, foi possível elencar cinco temas ou figuras que aparecem de forma recorrente e que mostram a dinâmica do desenvolvimento psíquico da sonhadora. No entanto, os potenciais de significados das imagens oníricas são inúmeros e o intuito é buscar uma reflexão de acordo com a série de imagens e história de vida de Hera. Nesse sentido destacam-se as seguintes imagens arquetípicas: Criança; Masculino; Feminino; Comida; Eu onírico.

1. A criança: a imagem arquetípica da criança aparece em vários sonhos, sendo representado na forma de uma aluna, sobrinho ou filho, associado também à figura masculina. Nesse caso, o menino evidencia uma conotação de obrigação, destacados nos sonhos dois e cinco. Outras imagens mostravam um sobrinho doente no hospital (décimo quarto sonho), o filho que simplesmente acompanha a mãe e uma aluna amorosa no segundo sonho. Para Jung (2011a), a criança está associada ao Self potencial de algo novo na psique, é o conteúdo que representa a integração de opostos, mas em estado emergente - neste é o sentido progressivo da libido. Por outro lado, a criança também representa uma regressão a um estado anterior de desenvolvimento do Ego, no qual estão presentes a impotência e o próprio comportamento infantil em seus desejos e impulsos.

Nesses sonhos, a criança está no estado passivo, sempre acompanhando a mãe e carregando uma característica regressiva, como o sonho do sobrinho doente no hospital ou um aluno que sofreu uma tragédia. Nesses cenários oníricos, Hera sempre se sente culpada ou com obrigações de fazer algo. Podemos inferir que os aspectos de renovação ou progressão da psique não foram constelados. Além do mais, para Edinger (1992), quando a criança permanece no estágio de simbiose com a imagem da mãe não consegue desenvolver adequadamente o seu próprio eu, sendo influenciada pelas projeções da sombra dos seus pais.

2. Masculino: o processo de simbiose é apontado por Neumann (1995). Segundo o autor, a criança ao nascer encontra-se em fusão com o feminino, em estado urobórico e, nesse estado, o princípio masculino encontra-se ainda em potencial. Nesse sentido, poderia se dizer que na fase urobórica, representada pela grande mãe devoradora ou dragão primitivo, há carência de libido investida no princípio masculino e, consequentemente, não se constela, no ambiente, objetos e relacionamentos que possibilitam ao ego desafiar a grande mãe e desligar-se dela, a fim de desenvolver a sua individualidade. O masculino é representado pela função paterna, cultura, regras e, principalmente, pelo lidar com a frustração (Jung, 2011a).

3. Feminino: os sonhos indicam que Hera apresenta uma atitude passiva e, desse modo, não se constela a característica relacional do feminino, que corresponde à figura da anima com seu potencial transformador. Isso fica claro em alguns sonhos nos quais o marido rejeita a mulher ou está ausente. Um possível processo de transformação é observado no sonho décimo quarto, em que Hera se sente desejada por um rapaz, seguido pelo selamento de um beijo; no entanto, a resistência e a dificuldade desse contato é apontada quando o marido aparece e ela se sente culpada e impotente.

A constituição feminina de Hera demonstra uma cisão com sua mulher interior. Para Neumann (2000), o feminino como função é representada pela força criativa, pelo inconsciente e sentimentos, é um submundo enriquecido de significado e movimentos. Na série de imagens da paciente, a imagem de um feminino passivo é observada, por exemplo, nos sonhos com as amigas, nos quais ela apenas conversa. Por outro lado, quando o feminino aparece de forma ativa é rejeitado ou desprezado, como na sua irmã que trai o marido ou ela própria no relacionamento com um rapaz.

4. O comer: aparece ao associar a imagem de um feminino influenciado pelo complexo negativo de uma mãe rígida, conforme sua história de vida. É necessário retratar, conforme nas análises anteriores, uma falta de integração (ou lacuna) entre os princípios masculino e feminino devido à passividade do Ego onírico e uma espécie de conflito entre eles. Esse conflito acaba sendo condensado na relação com o alimento e com este adquirindo aspectos obsessivos, expressos no primeiro sonho. Neste, observa-se a importância da sonhadora diante dos impulsos e, desse modo, a comida que em alguns casos alimenta, simbolicamente, os deuses em forma de uma oferenda, tornando-se para ela uma possessão e um veneno.

5. Ego onírico: O ego onírico representa, no sonho, o próprio sujeito e a posição do ego no mundo. Na sequência de sonhos de Hera, mostra-se claramente a passividade do ego e uma paralisia da libido com sentimentos de impotência, angústia, culpa e vergonha de si mesma (Jung, 2011b). Isso se mostra especialmente no sonho em que sua cabeça está cheia de piolhos. A cabeça está relacionada com a razão, sentido e a consciência. No entanto, nessa imagem ela está cheia de insetos e piolhos que atrapalham e interferem na racionalidade, indicando que está contaminada por conteúdos do inconsciente em sua forma primitiva.

Contrapondo-se com a cabeça, em outro sonho ela relata que sente uma dor muito forte no peito e que quase explode. Em termos simbólicos, no peito está o coração, que é a sede dos afetos e sentimentos e, desse modo, a imagem mostra seus afetos e sentimentos extremamente ativados, o que provoca sofrimento e angústia. Para Jung (2011b), quanto mais unilateral for a atitude consciente do sonhador, maior será a possibilidade do aparecimento de sonhos com conteúdos que contrastam as atitudes do ego, evidenciando a possibilidade de homeostase psíquica.

Em alguns sonhos, Hera sente-se bonita e desejável. Isso revela um movimento inicial de progressão da libido e desenvolvimento psíquico. Nesse caso, o ego teria energia ou estrutura para se contrapor à mãe negativa e sair do estado passivo. Esse processo pode ser visto na sequência dos sonhos. No sonho dois, ela sente-se bonita, entretanto não agrada ao seu filho, que aparece como obrigação, indicando um bloqueio realizado pela imagem masculina. Ela procura uma aluna sua, uma menina, uma imagem feminina. No décimo segundo sonho, mostra-se desejável, vai a um casamento, procura seu esposo para dançar, mas ele a rejeita. Aparece novamente o masculino em sua forma negativa, bloqueando esse processo e ela novamente sente-se triste, impotente e depressiva.

A figura masculina se mostra ausente para ordenar e dar um sentido à desorganização da psique. Isso aparece no décimo quarto sonho, no qual o mundo está acabando, o que representa o caos. Interessante notar que toda organização psíquica, quando se transforma, deve ser dissolvida e esta muitas vezes é sentida exatamente como se fosse uma provocação à angústia. Ela está com o filho no meio do apocalipse, indicando a possibilidade de um masculino emergente; entretanto, o marido, que complementaria o aspecto maduro e responsável do masculino, está ausente. Ela não consegue encontrá-lo, está perdida e em desespero com o filho, sem uma nova orientação. O décimo quinto sonho mostra que não se considera merecedora. Neste, se percebe bonita e se relaciona com um rapaz bonito que admira, mas não persiste devido à presença do marido.

Para Neumann (1995), na relação primária entre a mãe e o bebê, o contato inicial com o masculino é por meio do animus da mãe. Um animus negativo na mãe acarreta bloqueio ou dificuldade na transformação psíquica, que é simbolizada pelo casamento e pela relação sexual. Em Hera, podemos observar a dificuldade na conjunção psíquica com a persona, isto é, com o ego contendo as tensões e angústias dos opostos por meio do desempenho e identificação com papéis familiares e/ou sociais.

Para Jung (2015), devido às considerações convencionais da persona, a pessoa identificada com ela não consegue contatar ou assumir os seus próprios desejos e impulsos internos, dessa forma, não desenvolve uma segurança interior ou apreciação positiva sobre si mesma. Essa característica aparece no sonho relatado, no qual o relacionamento foi interrompido porque o rapaz era muito bonito e ela não o merecia. Essa consideração inferir de si mostra claramente a ação de uma mãe negativa que não desenvolve autoestima ou segurança interna na criança, o que permitiria ao ego enfrentar os desafios do desenvolvimento.

É importante destacar que a criança culpa a si mesma e responsabiliza a si própria por não receber o amor, o afeto ou a consideração dos pais, menosprezando-se. Nesse sentido, Edinger (1992) descreve sobre o estado de alienação do Ego, em que a projeção da sombra recai sobre a criança, o que a torna mais depressiva, com baixa autoestima e sem conseguir buscar por si mesma o sentido da vida. Hera apresenta, assim, dificuldade para se desenvolver psiquicamente; para ela opostos não se integram e a atitude da sua consciência incrementa essa polarização, o que resulta em afetos reprimidos e negados que se aglomeram na figura do animus negativo, causando depressão, angústia e autodesvalorização. Há um refúgio na persona, uma repressão da sombra e, assim, a função transcendente de simbolização não atua, com manifestação dessa indigestão no quadro da bulimia.

O processo terapêutico possibilita que Hera entre em contato com sua essência, buscando se desvencilhar dos formatos que seus papéis a impõem, assim como o contato com seu corpo e o entendimento dos seus sintomas para além de um processo patológico. Independente da função do sonho, o trabalho de dissecação das imagens, como proposto por Hillman (2013), é relevante, pois as imagens têm possibilidades criativas que contribuem para um direcionamento da cura da alma (Sanford, 2007). Essa questão pode ser explorada ao correlacionarmos o trabalho onírico ao processo de individuação. A individuação trata-se de uma conscientização das mudanças necessárias e a inclinação para tornar-se único e diferenciado, alcançando uma singularidade profunda por meio do contato com o Self - centro da personalidade (Sanford, 2007).

Para Mattoon (2014), nas etapas do processo de individuação, é possível encontrar resistência por parte da atitude consciente do sonhador, gerando um conflito psíquico. No processo psicoterapêutico, o individuo é convidado a uma releitura da tensão proposta pelos conteúdos do inconsciente que buscam pelo equilíbrio. A flexibilização e ampliação da consciência começam a influenciar no desenvolvimento psicológico dos sonhadores.

A análise da série de sonhos de Hera possibilitou o entendimento dos principais temas arquetípicos evidenciados em seu inconsciente, necessitados de uma integração. Por meio dos sintomas, o corpo expressou algo a ser revelado. Santos e Serbena (2017) descrevem a importância dos sonhos para a saúde mental como uma possibilidade de contrapor a óptica racionalista e materialista na qual a sociedade se encaminha. Atentar-se para o mundo interior cuja linguagem é manifestada por imagens carregadas de símbolos pode parecer obscura num primeiro momento. Entretanto, a análise gradual dos seus conteúdos pode contribuir com reflexões e sentimentos até então não permitidos pelo próprio ego. Desse modo, é possível concluir que os sonhos de Hera demonstravam a tensão dos opostos que estava vivenciando na sua dinâmica psíquica, buscando uma reintegração e um equilíbrio psíquico.

 

Considerações finais

Por meio da compreensão simbólica da série dos sonhos de Hera, percebe-se uma psique em movimentos contrários, que se expressam no corpo pelos rituais purgativos e que retratam as dificuldades em resolver questões que perpassam um entendimento relacional, anímico e estrutural. O masculino autoritário e julgador (animus negativo) em Hera a impossibilita de chegar ao centro. Os sonhos décimo segundo e décimo quinto mostraram essa dificuldade ao expressarem imagens desse processo paradoxal entre desejos e culpas. Hera, apesar de estar linda, com uma persona aparentemente adaptável, vai a uma grande cerimônia arquetípica, na qual poderia, por meio do casamento, trazer a união e integração dos processos psicológicos faltantes. No entanto, neste não há a graça de ser levada pelo noivo (animus positivo) para dançar e se mover até o centro da psique.

Sofre as traições de seu animus, personificado pela figura de seu esposo, que a rejeita e a deixa no meio do salão sem poder dançar a grande valsa com as bênçãos do Self. Hera é impossibilitada de se mover e dançar, ali não há completude, muito menos encontro. O desencontro novamente é expresso nas imagens do último sonho, em que, mesmo tendo recursos que a possibilite essa ida, representado por um masculino que lhe é conhecido e gentil, este não foi suficiente, o beijo não sustentou a união e não possibilitou a retirada da culpa e da angústia, e preferiu retornar ao casamento que lhe aprisiona. Isso pode ser compreendido pela desistência e indisponibilidade de horários para dar continuidade a seu trabalho terapêutico, ficando à mercê da sorte de um destino desconhecido.

De forma geral é possível compreender que Hera não se desenvolveu psiquicamente, sendo que seus conteúdos opostos não se integraram e a atitude da consciência incrementou essa polarização. Percebe-se que seus afetos reprimidos e negados se aglomeraram na figura do animus negativo, o qual provocou depressão, angústia e baixa autoestima. Nessa dinâmica, observa-se um refúgio na persona, uma repressão da sombra, sem a atuação da função transcendente de simbolização e a expressão desses conflitos no quadro da bulimia.

Dessa forma, necessita-se de estudos que possam retratar compreensões e intervenções na busca do equilíbrio das funções do feminino e masculino, da flexibilização e adaptação da persona e da integração das necessidades da psique e do logos no estudo do comportamento alimentar.

 

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Recebido em: 6/8/2019
Aprovado em: 17/10/2019

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