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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.3 São João del-Rei jul./set. 2021

 

O homem feminino na atualidade pensado à luz da Psicanálise

 

The Feminine Man in the Current Thought of Psychoanalysis

 

El hombre femenino en las noticias pensadas a la luz del Psicoanálisis

 

 

Rogéria Araújo Guimarães GontijoI; Míria Raquel Rodrigues MoraisII

IDoutora em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Especialista em Psicopedagogia clínica e institucional e Educação Especial. Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), Unidade Divinópolis. E-mail: raggontijo@hotmail.com
IIGraduada em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), unidade Divinópolis. E-mail: miriamorais.morais7@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo é uma pesquisa teórica que visa a percorrer os estudos de Freud e Lacan acerca do feminino. Desde os primórdios da Psicanálise, Freud discutiu a questão do feminino na histeria. Para o autor, a falta do pênis - penisneid - na mulher tornou-se a marca da feminilidade ao abordar a anatomia como destino para falar de sexualidade, considerando a anatomia como corte imbuído de consequências na dinâmica psíquica do sujeito. Mais tarde, Lacan ampliou essa visão tratando a questão em termos de significante. Para explicar isso, ele criou a tábua da sexuação, privilegiando os diferentes modos de gozo para dizer também do que é ser homem ou ser mulher pelo olhar da Psicanálise. Por meio deste estudo, ratificamos que o feminino aponta para a falta, no sentido de que está associado à figura da mulher, mas a pergunta que perpassa esta investigação é: pode um homem ser feminino? A resposta à indagação relaciona-se com o declínio do viril na atualidade. A nova vestimenta que o homem utiliza diante do afrouxamento do modelo patriarcal é ser feminino ou feminilizar-se.

Palavras-chave: Feminino. Homem. Sexuação.


ABSTRACT

This article is a theoretical research that aims to go through Freud and Lacan's studies about the feminine. Since the beginning of Psychoanalysis, Freud discussed about the feminine in the hysteria, and the lack of penis became a mark of femininity, considering the anatomy as a destiny to talk about sexuality. Lacan expanded this vision by treating this question in terms of signifier.To explain that, he created the "sexuation board", approaching what it means to be man or woman by the Psychoanalysis's look. Through this study, we ratify that the female points to the lack, in the sense that it is associated with the woman's figure. But the main question that runs through this investigation is: can a man be feminine? The answer to this question relates to the virile decline nowadays. The new garment that man wears in the face of patriarchal loosening is to be feminine or to become yourself feminized.

Keywords: Female. Man. Sexualization.


RESUMEN

Este artículo es una investigación teórica que tiene como objetivo analizar los estudios de Freud y Lacan sobre lo femenino. Desde los albores del Psicoanálisis, Freud ha cuestionado el tema de lo femenino en la histeria, y la falta del pene se ha convertido en el sello distintivo de la feminidad, considerando la anatomía como el destino para hablar sobre la sexualidad. Lacan amplió este punto de vista al tratar la cuestión en términos de significante. Para explicar esto, creó la tabla de la sexuación, abordando lo que es ser hombre o ser mujer desde la perspectiva del Psicoanálisis. Pero la pregunta que atraviesa esta investigación es: ¿puede un hombre ser mujer? La respuesta a la pregunta se refiere al declive de los hombres hoy. La nueva prenda que usa el hombre ante el aflojamiento del modelo patriarcal es ser femenina o feminizarse.

Palabras clave: Mujer. Hombre. La sexuación


 

 

Introdução

No contexto da Psicanálise, o feminino sempre foi um tema importante e que rendeu vários estudos. Freud, desde o início de seu trabalho com as histéricas, viu-se instigado com a sexualidade feminina, desenvolvendo teorias no decorrer de toda a sua obra a respeito do desenvolvimento psicossexual da mulher e da diferença entre os sexos.

Mais tarde, Lacan, ao estruturar o inconsciente como linguagem, trouxe alguns avanços nos ensinos freudianos, no que diz respeito à questão do feminino, sentenciando que a mulher não existe e deparando-se com a falta de um significante que represente a mulher no campo da linguagem.

Pensando na subjetividade da nossa época, também nos vemos instigados com essa questão. Contudo, de uma forma bem precisa, referimo-nos às incidências do feminino no homem atual. O que podemos perceber é que os homens estão se apresentando cada vez mais feminizados. Conforme denomina Lesch (1983), a cultura do narcisismo caracteriza o cenário hodierno, no qual é observado maior interesse dos homens pela questão da estética, da imagem e do corpo; mas, no que a feminilidade está associada à mulher, pode um homem ser feminino?

As identificações do homem atual estão a vacilar, uma vez que o cenário da família patriarcal mudou, e as transformações decorridas dessa mudança delineiam a posição do homem e da mulher na atualidade. Psicanalistas, como Santiago (1998), Rosa (2008) e Bessa (2012), por exemplo, discutem a ideia do declínio do viril no mundo contemporâneo, que, por sua vez, diz respeito, antes, ao declínio do pai, que já fora retratado por Lacan em meados do século passado.

A partir das questões do estudo de Freud sobre a feminilidade, mudou-se o paradigma para pensar a questão sexual, e Lacan vem para enfatizar que não se trata apenas da referência ao órgão genital como diferença. Ao trabalhar pela via da linguagem, ele abre espaço para falar de todos os movimentos sociais contemporâneos, e pensar como é esse feminino hoje é pensar na subjetividade de nossa época. É como se pudéssemos dizer que o atributo do feminino também sofre influência da cultura, da sociedade. Nesse sentido, faz-se importante para a clínica psicanalítica pensar a atribuição do feminino no homem atual para entendermos essa nova configuração de homem.

Este trabalho se baseará, assim, no método qualitativo de pesquisa, sendo realizados estudo bibliográfico, revisão de artigos e consulta a obras de Freud e de Lacan para análise apenas interpretativa.

De início, será feito um percurso pelas obras de Freud que contemplam a questão da sexualidade feminina e da feminilidade para entendermos suas contribuições, que são primordiais ao estudo desse tema. O pai da Psicanálise toma como base o complexo de castração e o complexo de Édipo para pensar as consequências na vida psíquica do sujeito em relação à diferença anatômica entre os sexos.

Depois, focaremos Lacan, quando ele retorna à obra de Freud e reinterpreta o termo anatomia, passando a dar significância pela via da linguagem. A reconfiguração do feminino no autor perpassa pelo conceito de falo como significante estruturador da sexualidade e chega à tábua da sexuação, uma vez que ele atribui sentido à significação fálica como um modo de gozo, e, diante das fórmulas da sexuação, podemos localizar o homem feminino.

O feminino em Freud

As descobertas de Freud sobre a sexualidade feminina são tomadas como base em toda discussão acerca dessa temática, o que ressalta sua importância para a Psicanálise. Para o autor, a sexualidade feminina era denominada de "continente negro" (Freud, 1925-1926/1996, p. 242), e seus estudos giravam em torno da interrogação retomada por André (1987): "afinal, o que quer uma mulher?".

A princípio, a obscuridade o levou muitas vezes a achar que o desenvolvimento sexual das mulheres poderia ser tomado de maneira semelhante à dos homens. Contudo, esperava-se que fosse diferente, embora, naquele momento, "o ponto do desenvolvimento em que reside essa diferença não podia ser claramente determinado" (Freud, 1925/1976, p. 310).

É somente em 1925, em "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos", que Freud (1925/1976) vai descartar a tese da analogia, iniciando um estudo mais aprofundado sobre a sexualidade da mulher ao explorar a fase pré-edipiana. Ele faz uma reavaliação de suas teorias sobre o desenvolvimento psíquico nas mulheres e condensa, nesse artigo, todos os pormenores que vão dar sustento para seus trabalhos posteriores sobre esse assunto.

Freud (1925/1976) questiona-se sobre o Édipo nas meninas no que tange ao seu afastamento da mãe, entendendo que, ao compreender isso, descobrir-se-iam nuances do desenvolvimento sexual da mulher, pois se tinha muito claro os motivos pelos quais o menino tomava o pai como um rival, uma vez que a mãe permanece sendo o seu objeto de desejo, mas o que faz a menina abandonar a mãe e tomar o pai como objeto era até então um ponto de interrogação.

Nas meninas, o complexo de Édipo levanta um problema a mais que nos meninos. Em ambos os casos, a mãe é o objeto original, e não constitui causa de surpresa que os meninos retenham esse objeto no complexo de Édipo. Como ocorre, então, que as meninas o abandonem e, ao invés, tomem o pai como objeto? Perseguindo essa questão, pude chegar a algumas conclusões capazes de lançar luz exatamente sobre a pré-história da relação edipiana nas meninas. (Freud, 1925/1976, p. 312).

Portanto, a partir dessa indagação, Freud faz alguns apontamentos sobre a pré-história do complexo de Édipo feminino, falando de sua importância para a situação edipiana da mulher e para a sua vida sexual.

Sabe-se que a descoberta pelas crianças de sua zona genital se daria em algum momento do seu desenvolvimento que Freud (1925/1976) questiona se não estaria ligado à perda do seio materno. Posto assim, as meninas estariam destinadas a perceber o seu clitóris, mas também o pênis, seja do irmão, seja de algum amiguinho, devido as suas grandes proporções, e que, assim sendo, logo o identificariam como "o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível" (Freud, 1925/1976, p. 313), e, daí em diante, seriam tomadas pela inveja do órgão masculino - penisneid. É esse o ponto crucial, de acordo com Freud (1925/1976), no que diz respeito ao desenvolvimento psicológico feminino.

Quando vê o pênis, a menina percebe logo que não o tem e é tomada pelo desejo de tê-lo, mas disso surgem algumas consequências. Ao ver-se castrada, cresce em si um sentimento de inferioridade que pode fazê-la vir a desprezar a si própria. Nesse sentido, ela passa a demonstrar ciúmes e, a partir disso, a afrouxar sua relação de afeto com a mãe, ao acreditar que esta ama mais os que têm o pênis. Mas, a consequência mais importante de todas e que, por sua vez, irá abrir espaço para o desenvolvimento de sua feminilidade, conforme Freud (1925/1976) aponta, é o abandono da masturbação. A menina, uma vez decepcionada com seu clitóris, não se vê capaz de competir com os meninos e prefere afastar-se da ideia de competição.

Dessa forma, Freud (1925/1976, p. 318) conclui que o "reconhecimento da distinção anatômica entre os sexos força-a a afastar-se da masculinidade e da masturbação masculina, para novas linhas que conduzem ao desenvolvimento da feminilidade". É necessário que ela supere o quanto antes seu complexo de masculinidade para desenvolver-se na feminilidade sem muitas dificuldades.

Logo, vem surgir, em lugar do desejo pelo pênis, o desejo de ter um filho, mais precisamente um filho do pai, e é aí que ela se volta para ele, tomando-o como seu objeto de amor, e a mãe como o de seu ciúme. Dá-se aqui a entrada em seu Édipo: a menina virou mulher. Vê-se, então, que o complexo de castração vai inibir a masculinidade e incentivar a feminilidade.

Assim sendo, ele entende que o desenvolvimento sexual do homem e da mulher são diferentes, e o são em decorrência das consequências psíquicas da diferença anatômica existente entre eles. A partir disso, há de se considerar, então, a importância do complexo de Édipo, os efeitos que dele surgem, no que concerne ao modo em que nele se é introduzido e como ele é abandonado. O complexo de castração vai introduzir a menina na situação edipiana, enquanto irá fazer sucumbir a do menino, que é completamente destruída, resultando em seu superego. No entanto, um motivo para a destruição do complexo de Édipo feminino fica em falta, pois a castração o antecedeu e já produziu o seu efeito.

Contudo, em 1931, Freud apresenta um novo estudo, intitulado "Sexualidade feminina", em que traz novas observações que o fazem adotar um ponto de vista específico sobre a sexualidade feminina, atribuindo uma importância ainda maior à fase pré-edipiana nas mulheres. Freud (1931/1974) passa a considerar, com efeito, a intensidade e a longa duração da ligação da menina com a mãe na fase que antecede o Édipo feminino.

Assim, Freud (1931/1974) começa a definir, mais nitidamente, pontos do desenvolvimento feminino no que eles diferem do masculino. O autor salienta, antes de tudo, a questão da bissexualidade quanto à necessidade de não se ter dúvida de que ela se dispõe mais claramente na mulher, uma vez que esta possui duas zonas sexuais - o clitóris e a vagina - e que, em razão disso, sua vida sexual é dividida em duas partes - a primeira, com caráter masculino, marcada pela masturbação do clitóris, e a segunda, especificamente feminina -, havendo, portanto, um processo de transição de uma fase para outra no desenvolvimento feminino, o que não acontece com o homem, que possui apenas uma zona sexual principal - o pênis.

Outra grande diferença, que está em paralelo a essa, relaciona-se com o encontro do objeto. A mãe é, tanto para o menino quanto para a menina, o primeiro objeto amoroso, em decorrência dos cuidados recebidos por esta, porém, ao fim do desenvolvimento feminino, o pai, como homem, deve tornar-se o novo objeto da menina, mas a maneira como a mudança acontece, como ela é efetuada e as possibilidades que se apresentam a esse processo de desenvolvimento, é o que está em investigação.

Quanto ao complexo de Édipo, Freud, rejeitando agora completamente a analogia entre os dois sexos, descreve a situação do menino, em que a ameaça de castração advinda da visão do órgão feminino vai destruir seu Édipo, dando lugar à criação de seu superego e ao desinvestimento da mãe, remanescendo, disso tudo, a depreciação da mulher como ser castrado. No caso da menina, conforme descobrira, o complexo de Édipo é apenas uma formação secundária, que advém do reconhecimento de sua castração e inferioridade diante da visão do órgão masculino, que, por sua vez, a leva a rebelar-se contra esse estado, e disso, conforme o autor coloca, vão surgir três saídas, a saber: repulsa geral à sexualidade; permanência na esperança de um dia ter o pênis, reivindicando sua masculinidade; e aceitação da feminilidade, tomando o pai como objeto.

Partindo dessas considerações, Freud (1931/1974) volta-se para os motivos pelos quais a menina vai, então, se afastar da mãe, trazendo à luz uma gama de fenômenos. A princípio, ele traz a questão do ciúme, principalmente com a chegada de um novo irmãozinho. A criança, em sua demanda de amor ilimitado, exige exclusividade e não se satisfaz de forma completa com o amor recebido da mãe, pela qual alimenta sentimentos hostis. Outro motivo, agora bastante específico, vem do efeito do complexo de castração sobre a menina, que, ao sentir-se inferiorizada, culpa a mãe por não ter lhe dado o pênis e por trazer-lhe ao mundo como mulher. A proibição da masturbação também é motivo de rebelar-se contra a mãe, por ser a pessoa que a iniciou nessa atividade com seus cuidados e também a que proíbe. Outro motivo colocado por Freud (1931/1974) é o sentimento da criança de não ter sido amamentada o suficiente. Entretanto, para ele, nesse momento, o fato real que justifica a hostilidade final da menina para com a mãe tem relação mais precisamente por ela ter sido a primeira e a mais intensa ligação, dando lugar para a ambivalência, em que se considera que o amor dela sempre está acompanhado pelo ódio, devido a sua magnitude.

Encontrados os motivos que levam ao afastamento da menina da mãe, surge, para Freud (1931/1974, p. 145), a seguinte questão: "O que é que a menina exige da mãe? Qual é a natureza de seus objetivos sexuais durante a época da ligação exclusiva à mãe?" Desta, ele vai apontar, então, a relação da atividade com a passividade, que se faz interessante para compreender a questão da feminilidade. Os objetivos da menina são tanto ativos como passivos, dependendo das fases libidinais de seu desenvolvimento, e será, portanto, o comportamento da criança a esse respeito que falará da sua masculinidade e feminilidade em sua sexualidade.

Na menina, suas primeiras vivências em relação à mãe são passivas, enquanto uma parte se manifestará de modo ativo, como no brincar de bonecas, por exemplo. Quando iniciada em sua fase fálica pela mãe ou cuidadora, mediante os cuidados de higienização, também será tomada por impulsos passivos - recebendo os cuidados - e ativos - masturbação clitoridiana e desejo de dar um filho para a mãe. O que acontece em específico nas meninas é que o afastamento da mãe culmina no declínio dos impulsos sexuais ativos que acabaram por gerar frustrações, revelando-se irrealizáveis, e no aumento dos impulsos passivos, muito importante no curso de seu desenvolvimento, pois "a transição para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe. O caminho para o desenvolvimento da feminilidade está agora aberto à menina" (Freud, 1931/1974, p. 215).

Retomando tais escritos anteriores, Freud (1932-1933/1976) ainda apresenta, em seu artigo "Conferência XXXIII: feminilidade", um pouco mais de observações sobre o enigma da natureza da feminilidade, afirmando que a Psicologia é incapaz de solucioná-lo. O enigma está para ele às voltas com a questão da bissexualidade feminina, em sentido à mudança de zona erógena que é acompanhada da mudança de objeto que a menina tem de fazer em seu desenvolvimento.

Portanto, Freud (1932-1933/1976) vai detalhar ainda mais as duas tarefas que, segundo ele, sobrecarregam o desenvolvimento da menina e reforçar o papel do complexo de castração. No entanto, o autor, primeiramente, levanta o problema da bissexualidade, defendendo a ideia de que, em termos anatômicos, "aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida" (Freud, 1932-1933/1976, p. 141), sugerindo que homem e mulher não são posições estabelecidas pela anatomia, pois a única coisa que o homem e a mulher têm de específico são seus produtos sexuais: o espermatozoide e o óvulo. Fora isso, ambos têm em si partes do aparelho sexual do outro, mesmo que atrofiado, e, assim sendo, masculino e feminino se misturam no indivíduo. Em termos psicológicos, chama a atenção para que não se confunda feminilidade com passividade e masculinidade com atividade, pois, psicologicamente, homens e mulheres também são seres bissexuais, uma vez que ambos podem ter comportamentos ativos e passivos, não estando especificamente relacionados ao feminino ou ao masculino. No entanto, ele considera como característica psicológica da feminilidade a preferência por fins passivos.

A partir disso, Freud (1932-1933/1976) atribui outra característica essencialmente feminina, o masoquismo, que, no caso, advém da supressão da agressividade nas mulheres, em decorrência de imposições constitucionais e sociais. Ele considera, também, a presença do masoquismo nos homens, falando de traços femininos neles. Isso nos faz pensar que, assim como na postulação da bissexualidade constitucional, Freud já nos permite adentrar na discussão sobre o feminino no homem.

Assim, Freud empenha-se novamente com as peculiaridades da mulher, sobre como ela se desenvolve "desde a criança dotada de disposição bissexual" (Freud, 1932-1933/1976, p. 144), detalhando a sua transição do clitóris para a vagina - primeira tarefa que realiza em sentido à feminilidade - e os motivos que põem fim à poderosa ligação da menina com a mãe e que resultam na mudança objetal, sua segunda tarefa desenvolvimental.

Para Freud, a descoberta da castração apresenta-se como determinante na menina, pois faz nascer a inveja do pênis, que deixará "marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de seu caráter, não sendo superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um extremo dispêndio de energia psíquica" (Freud, 1932-1933/1976, p 154).

Na concepção freudiana, compreende-se a feminilidade, então, como um desenvolvimento longo e difícil, pelo qual a menina está destinada em função de sua condição sexual, mas engloba vários aspectos de ordem psicológica oriundos de sua experiência sexual infantil, que, por sua vez, está entrelaçada na ligação intensa com a mãe, característica desse período. Seu caminho se faz quando, por determinadas circunstâncias, das quais se considera o reconhecimento da falta do pênis a mais importante, a menina culpa a mãe pelo ocorrido e dirige a esta sentimentos hostis, afrouxando seu relacionamento com ela. Como uma saída disso, volta-se para o pai na esperança e no desejo de ter o pênis, que logo é substituído pelo desejo de ter um filho do pai ou, mais precisamente, de apenas ter um filho, no que este assume o lugar do órgão desejado e confere-lhe toda uma condição especial.

Com muita frequência, em seu quadro combinado de "um bebê de seu pai", a ênfase é colocada no bebê, e o pai fica em segundo plano. Assim, o antigo desejo masculino de posse de um pênis ainda está ligeiramente visível na feminilidade alcançada desse modo. Talvez devêssemos identificar esse desejo do pênis como sendo, par excellence, um desejo feminino. (Freud, 1932-1933/1976, p. 158, grifos do autor).

Partindo dessas considerações, Freud (1932-1933/1976) faz alusão a peculiaridades psíquicas que acredita ser atributos da feminilidade, como o narcisismo, a vaidade física e a vergonha. O narcisismo refere-se à maior necessidade da mulher de ser amada do que de amar. A vaidade física é vista como uma compensação por sua inferioridade sexual. A mulher ressalta seus encantos para compensar a falta original do pênis. Por fim, a vergonha é "considerada uma característica feminina par excellence, contudo, mais do que se poderia supor, sendo uma questão de convenção, tem, assim acreditamos, como finalidade a ocultação da deficiência genital" (Freud, 1932-1933/1976, p. 162, grifos do autor).

Nesse momento, tais apontamentos de Freud sobre o feminino nos levam às contribuições de Lacan, que, embora também não faça esgotar o estudo acerca da temática que continua no lugar de enigma, traz alguns avanços.

O falo: do órgão ao significante

Freud, em suas construções teóricas sobre a sexualidade, enaltece, até certo ponto, em seus estudos, a primazia genital, no que concerne ao desenvolvimento da sexualidade infantil, ou seja, pensa essa questão considerando as consequências psíquicas da percepção das diferenças dos órgãos genitais do homem e da mulher. No entanto, em seu artigo "A organização genital infantil", de 1923, ele vai reiterar que o que está presente, na verdade, é uma primazia do falo, função que não deve ser confundida com o pênis, enaltecendo apenas o órgão. O autor alega que, para ambos os sexos, apenas um órgão é considerado, simbolizado, ou seja, trata-se do órgão masculino, pois é o único que desempenha um papel. Nesse sentido, o que está em jogo é a presença ou a ausência do pênis, que fica investido como valor, ou seja, fica investido de valor fálico na constituição do masculino e do feminino.

Assim sendo, a significância do falo, para Freud, se referia ao órgão genital masculino como significação fálica, como uma função simbólica que se possibilita a equivalência fálica entre termos: bebês, fezes, dinheiro, por exemplo. Ele usava o termo "pênis" para se referir ao falo, e, embora não se deva confundi-los, não se pode ignorar a articulação entre esses termos como decorrência das consequências psíquicas. De acordo com Bonfim e Costa (2014), relaciona-se o falo à sexualidade devido a sua supervalorização pelos antigos como símbolo da fecundidade. O objeto fálico - pênis ereto - era visto como um objeto poderoso, perpetuador da vida, sendo comum utilizar a sua imagem em joias, muros, tigelas, sinos, etc. Freud, por sua vez, não desconsiderou tal valor atribuído a ele no mundo antigo, "muito possivelmente porque em sua clínica tenha encontrado eco de sua importância" (Bonfim & Costa, 2014, p. 231). Entretanto, conforme as mesmas autoras nos trazem, "de modo mais apurado, o que é sustentado como elemento organizador da sexualidade não é o órgão genital masculino, mas a representação psíquica imaginária e simbólica construída a partir desta região corporal do homem" (Bonfim & Costa, 2014, p. 231).

Lacan vem, então, nos dar respaldo a essa questão, pois, partindo das considerações de Ferdinand Saussure sobre a linguagem, e ao fazer um retorno à obra de Freud, e deste falar que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", vai introduzir no campo psicanalítico, entre outros, os termos significante e significado, signos linguísticos que vão tratar de um conceito psíquico - significado - que se liga a uma imagem acústica - impressão psíquica, representação, significante.

Assim, Lacan (1958/1998) vai ampliar a ideia de Freud sobre o falo, tirando toda a centralidade da anatomia e passando a dar significância pela via da linguagem.

O falo é aqui esclarecido por sua função. Na doutrina freudiana, o falo não é uma fantasia, caso se deva entender por isso um efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um objeto (parcial, interno, bom, mau etc.), na medida em que esse termo tende a prezar a realidade implicada numa relação. E é menos ainda o órgão, pênis ou clitóris, que ele simboliza. E não foi sem razão que Freud extraiu-lhe a referência do simulacro que ele era para os antigos. Pois o falo é um significante, um significante cuja função, na economia intersubjetiva da análise, levanta, quem sabe, o véu daquela que ele mantinha envolta em mistérios. Pois ele é o significante destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, na medida em que o significante os condiciona por sua presença de significante. (Lacan, 1958/1998, pp. 696-697).

Portanto, para Lacan, o falo é um significante. A importância de colocá-lo nesse lugar diz respeito justamente ao fato de que muitas confusões significativas na teoria analítica quanto ao papel do objeto fálico, inclusive no que concerne à questão da mulher, eram frequentes antes. Cabe ressaltar que, embora houvesse prevalência do falo na obra de Freud, ele não o representou como um atributo significante, como Lacan o fez em sua extensão do termo.

Desse modo, faz-se necessário considerar a relação entre o falo e a castração, pois o falo vai operar junto com o conceito de castração, sendo tomado como o significante do desejo e de sua lei, e não porque o pai supostamente porta o falo. Para se pensar nisso, podemos ampliar a ideia dos escritos freudianos, no que diz respeito à mítica de Freud em relação ao Édipo, e introduzir ao que Lacan (1957-1958/1999) coloca dos três tempos do Édipo, tempos lógicos.

Essa passagem é importante porque Lacan (1957-1958/1999) introduz o significante Nome-do-Pai como o operador da trajetória edipiana, abordando a função paterna como simbólica e, por isso, operando metaforicamente. Não se trata, necessariamente, da presença paterna, mas de um significante que substituirá outro significante - o Nome-do-Pai substituirá o Desejo da Mãe, desejo sem lei, caprichoso -, e essa operação possibilitará a significação fálica para o sujeito: "Em outras palavras, o pai como aquele que é culturalmente portador da lei, o pai como investido pelo significante do pai, intervém no complexo de Édipo de maneira mais concreta, mais escalonada, por assim dizer" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 194).

No primeiro tempo do Édipo, a criança encontra-se assujeitada à mãe, ou seja, seu desejo é o desejo da mãe. A criança identifica-se com o objeto que supõe ser o objeto de desejo da mãe, aquele que lhe falta, que é exatamente o falo: "Se o desejo da mãe é o falo, a criança quer ser o falo para satisfazê-lo" (Lacan, 1958/1998, p. 700).

O pai entra como mediador dessa relação no segundo tempo do Édipo, ditando a lei para a mãe - a proibição do incesto. Ele intervém no desejo da mãe, privando-a de seu objeto - a criança identificada com o falo. Se for ele quem supostamente o tem, esse é o seu lugar de direito e, assim, ao apresentar-se como tendo direito à mãe, frustra a criança de ter a mãe como seu objeto, ou seja, ela agora tem um rival e impede a mãe de reabsorver o objeto. Cabe à mãe, nesse momento, reconhecer a palavra do pai como lei para ela e, dessa forma, direcionar seu desejo a ele para que assim a criança se confronte também com a lei e a simbolize, cabendo a ela aceitar ou não essa privação feita à mãe pelo pai.

Nesse ponto, a criança depara-se, então, com a questão do ser ou não ser, "to be or not to be o objeto do desejo da mãe" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 197, grifos do autor). O sujeito precisa escolher. Quando a mãe volta o seu desejo, o seu olhar para o pai, a criança é destituída do lugar de ser o falo, pois, ao voltar o olhar para o pai, ela mostra para a criança que ela não é mais o centro das atenções da mãe; a criança tem a mãe, mas a mãe não é só dela. Seu desejo está voltado para um outro lugar, que é o pai que supostamente tem o que ela deseja. Nesse sentido, a criança percebe que o pai tem algo que ela não tem e que faz a mãe ir em sua direção, constatando que algo também falta à mãe e que ela - a criança - não é suficiente para completá-la.

Dessa forma, a criança é, portanto, desalojada do lugar de ser o falo para a mãe, e é ao ser desalojada dessa posição que o terceiro momento se estabelece, cuja problemática será ter ou não ter o falo, possibilitando à criança o acesso à significação fálica que a situa na partilha dos sexos. Isso porque, no terceiro tempo, o pai intervém como aquele que realmente tem. Ele tem de dar provas disso e "é por intervir como aquele que tem o falo que o pai é internalizado no sujeito como Ideal do eu" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 201). O pai, acedido ao lugar de detentor do falo, leva a criança a confrontar-se com a questão da castração, que será atravessada à medida que a identificação com o pai é feita, e é aí que o complexo de Édipo declina.

Há no Édipo a assunção do próprio sexo pelo sujeito, isto é, para darmos os nomes às coisas, aquilo que faz com que o homem assuma o tipo viril e com que a mulher assuma um certo tipo feminino, se reconheça como mulher, identifique-se com suas funções de mulher. A virilidade e a feminização são os dois termos que traduzem o que é, essencialmente, a função do Édipo. (Lacan, 1957-1958/1999, p. 171).

O que Lacan (1957-1958/1999) nos mostra é que o falo possibilita o sujeito se posicionar perante seu desejo, e essa posição vai depender de como ele lida com a castração, de como ele a subjetiva. Nesse sentido, o falo é, para o autor, o significante estruturador da sexualidade, pois introduz o sujeito em sua posição sexual, unindo sexualidade e linguagem. "Dito de outra forma: sexuar-se é inscrever-se no plano simbólico a partir da castração, que indica ao sujeito a pertinência a um, e só um sexo. Homem ou mulher" (Kehl, 2008, p. 260). Nessa lógica, o menino se identificaria com o pai como possuidor do pênis, guardando um título de direito à virilidade, e a menina reconheceria o homem como aquele que o possui e, sabendo onde ele está, sabe onde deve ir buscá-lo, mesmo não sendo o homem necessariamente o portador do falo, o pai atua como representante do atributo fálico (Lacan, 1957-1958/1999).

Como já vimos em Freud, o desfecho do complexo de Édipo na mulher traz alguns impasses, demonstrando-se insuficiente para dar conta da sexualidade feminina. Em Lacan, ocorre o mesmo. A saída da menina do Édipo a estrutura como sujeito desejante. Contudo, sua questão identificatória fica por resolver. Isso porque ambos desenvolveram a situação edípica de acordo com a lógica fálica, ou seja, concernente à operação simbólica da castração, que possibilita a saída pelo viés da estrutura neurótica, colocando em questão a falta de um significante que represente a mulher no campo da linguagem, assim como o falo representa os homens. Nesse sentido, "se há somente um significante da sexuação e este produz o homem, podemos dizer que ao nível inconsciente o Outro sexuado não existe" (Bonfim & Costa, 2014, p. 242). Isso leva Lacan a dizer que "a mulher não existe", um de seus aforismos. Dessa forma, a significação causada pela metáfora paterna, portanto, não confere à mulher o seu lugar de mulher, ficando-lhe um resto que não passa pela função fálica.

Assim sendo, no decorrer de sua obra, Lacan vai desenvolvendo proposições explicativas quanto à divisão do sujeito na sexualidade e, em consequência disso, vai tentando elucidar a questão da feminilidade, e será no Seminário 20: mais, ainda que o autor irá nos apresentar a tábua da sexuação, na qual ele busca delimitar dois modos de gozo, para além das identificações edípicas. Como exemplo, os místicos, mesmo que sejam "homens", estão situados do lado mulher. Assim, ele vai articular a diferença sexual por meio da lógica do todo fálico e do não-todo, não consistindo em uma divisão entre dois sexos, mas entre dois modos de gozos - o fálico e o suplementar -, que vão depender de como o sujeito irá se situar diante da função fálica, pois, de acordo com Bessa (2012, p. 80), "há uma função de gozo ligada à castração e ela determina um modo de gozar particular para cada sujeito".

 

 

Dessa forma, temos na representação da figura as fórmulas propostas por Lacan (1972-1973/1985) para expressar diferentes modos de gozo, o todo e o não-todo, de acordo com sua inscrição na função fálica, cabendo ressaltar, mais uma vez, que não é a questão anatômica que vai falar da posição sexual de um sujeito, mas, sim, a forma como ele irá lidar com a castração, com o falo, uma vez que fora inserido na linguagem. Portanto, trata-se de posições subjetivas que cada ser falante poderá ocupar em face da sexualidade. Temos, assim, do lado esquerdo o lado Homem e, do lado oposto, o lado Mulher.

O que se escreve do lado esquerdo é que todos os sujeitos posicionados desse lado estão inscritos na função fálica, ou seja, submetidos à lei, à castração, com exceção de um. Há um que escapa à lei e que não cumpre a função fálica: o Pai da horda primitiva, aquele que gozava de todas as mulheres e foi descrito por Freud (1913-1914/1976) em "Totem e tabu". Pela lógica, é necessária uma exceção para que uma regra seja válida. Assim, o Pai da horda é o que fundamenta a castração de todos os outros elementos desse conjunto. Estar totalmente submetido à função fálica implica que seu gozo é fálico e está ligado ao objeto a, assumindo a forma de fetiche e sendo acessado por meio da fantasia.

Do lado direito, por sua vez, escreve-se que não há nenhuma mulher que não seja castrada, ou seja, não há a exceção, e escreve-se, também, que nem tudo em uma mulher está assujeitado à função fálica. Nesse sentido, ela é não-toda castrada. Se não há a exceção, não se permite nenhuma universalidade. Cada uma, à sua maneira, está referida ao falo, mas não-toda. Há algo na mulher que não passa pela castração, e isso implica-lhe um mistério, um algo a mais, que Lacan vai definir como gozo suplementar: "É justamente pelo fato de que, por ser não-toda, ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 99).

Bessa (2012) nos diz que o gozo feminino traz em si uma demanda de amor. É um gozo direcionado ao Outro, ao amor do Outro, e que não se experimenta apenas no ato sexual, não se tratando de um gozo localizável em um órgão ou objeto, pois não toca o objeto a, como no lado masculino. É um gozo que exige que o parceiro fale e que fale palavras de amor, "porque a mulher goza por amor" (Bessa, 2012, p. 97). É um gozo do qual nada sabe falar; ela apenas o experimenta.

Nesse sentido, quem se posiciona do lado esquerdo do gráfico está todo submetido à função fálica e seu gozo é fálico, e quem se posiciona do lado direito está não-todo inserido na função fálica e seu gozo é não-todo fálico - para além do gozo fálico, tem-se o gozo suplementar.

Segundo Santana (2014, p. 2), "cada ser falante pode assumir uma posição ou outra das fórmulas, dependendo do momento ou das circunstâncias da vida, podendo bascular nessas posições de forma inconsciente ou mesmo fazendo semblante". Assim, uma mulher pode se posicionar do lado Homem na tábua, da mesma forma que um homem pode se posicionar do lado Mulher. Mas, de acordo com Lacan (1972-1973/1985, p. 98), "quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica", mesmo quando provido dos atributos da masculinidade.

O homem feminino

Em contrapartida, para falar do homem feminino que se configura na atualidade, não estamos tomando-o, necessariamente, posicionado do lado Mulher. Não se trata, porventura, do homem que se assume não-todo e que, por isso, teria acesso a um gozo suplementar ou feminino. Estamos, contudo, falando do homem que, embora posicionado do lado Homem, configura-se em uma identificação feminina, cuja questão, a problemática que se tem e que o configura assim, diz respeito ao apagamento da exceção paterna, do pai potente que garante ao filho a sua virilidade. Fala-se, portanto, do declínio do viril tão pertinente na atualidade, declínio do masculino construído pelo modelo patriarcal. Nesse sentido, o feminino seria uma das identificações possíveis ao homem diante da vacilação da potência do pai que embaraça a transmissão simbólica do falo. O sujeito envereda-se, então, ao ideal materno; ele quer ser o falo, configurando-se, assim, a feminização como uma identificação com a mãe.

São homens ao modelo do pequeno Hans, conforme Lacan fizera menção em sua releitura do caso em 1957. Homens que, em decorrência da inoperância paterna marcada pelo declínio do viril, não integram uma posição sexual masculina, assumindo, assim, uma posição considerada passiva, mesmo que, em Hans, a inoperância paterna se dê porque a mãe não ratifica o lugar atribuído ao pai.

Na medida em que Hans não completa o percurso significante da castração, devido a uma inoperância paterna, ele não chega a integrar a sua masculinidade. Por essa razão, a sua vida amorosa fica marcada pela identificação feminina; isso se manifesta em uma posição passiva, em certo estilo masculino que é o da geração de 1945, ou seja, o daqueles encantadores rapazes que esperam que as iniciativas venham das damas. (Lacan, 1956-1957/1995, citado por Rosa, 2008, p. 439).

Santiago (1998), a respeito de Hans, enfatiza que, embora o menino se interesse por meninas - o que legaliza sua heterossexualidade -, não parece "ocupar uma posição que, aos olhos do analista, possa ser caracterizada como viril. Ao contrário, tal posição é explicitamente qualificada como passiva, ou mesmo como uma evidência clínica do declínio do viril" (Santiago, 1998, p. 131).

Partindo por outra via, podemos pensar também o homem feminilizado como outro sufixo que diz respeito à configuração do feminino no homem, mas como expressão, no que consideramos a feminilidade uma expressão do feminino.

Guimarães (2005), ao levantar uma discussão acerca da máscara da feminilidade contemporânea, referindo-se às mulheres que estão cada vez mais deixando de lado a questão do amor - que, como vimos, fala de seu gozo -, em detrimento das conquistas alcançadas nos mais variados campos, como o jurídico e o econômico, aponta, como consequência disso, a feminilização do homem - uma súplica ao amor das mulheres. A autora diz que ele

formula esta súplica pela via do semblante, utilizando tão sabiamente estratégias próprias à histeria. Vestindo uma nova roupagem do homem pós-moderno faz surgir o homem "metrossexual", que tenta se feminilizar com os adereços estéticos propostos pelas histéricas contemporâneas, que fazem desse homem o seu novo brinquedo. E, se deixando assim se fazer de feminilizado, sustenta um apelo ao romantismo. Súplica muda desse homem tão fragilmente dependente do amor de uma mulher. (Guimarães, 2005, p. 70).

Dessa forma, ela defende que essa tem sido a estratégia que alguns homens da atualidade vêm utilizando para conseguir fazer laço de parceria com as histéricas: "Ele já se apresenta como castrado, destituído de qualquer potência fálica que lembre de perto alguma sombra daquilo que as histéricas feministas definem como machismo. Cultivam, assim, o declínio do viril como modo de fazer apelo ao amor" (Guimarães, 2005, p. 72).

Por esse ângulo, podemos dizer que o homem, para dar conta da mulher atual, que se constitui fálica, feminiliza-se, pois ela o destitui do seu poder fálico. Ele usa do feminino como uma forma de lidar com essa questão. Usa da expressão do feminino para ser homem, e faz isso para suturar, esconder a castração, ao mesmo tempo em que a escancara.

Assim, temos, quanto às incidências do feminino no homem atual, um homem sexuado masculino, mas que se posiciona de maneira feminina diante da fragilização da identificação com um pai inoperante, e um homem que faz semblante do feminino perante as mulheres fálicas da atualidade. Com o declínio do viril, o homem teve de usar uma nova roupagem para se apresentar para as mulheres, para estar diante das mulheres, tornando-se feminino ou feminilizado.

Portanto, a contribuição lacaniana de pensar os modos de gozo pela tábua da sexuação, destitui o binarismo de gêneros e permite transitar pela lógica do todo e não-todo fálico, no qual ratifica a ideia de que o homem, mesmo portando um órgão, não necessariamente se inscreve na posição masculina. A masculinidade e a feminilidade são atribuições do modo de gozo do sujeito.

Já em Freud (1937-1939/1975), foi observado que homens e mulheres têm em comum a "recusa da feminilidade", ou seja, esse continente negro como um enigma perante a castração torna-se um impasse na vida psíquica dos seres humanos no que diz respeito à resposta ao atributo fálico. Hodiernamente, com a queda do falocentrismo, o homem busca novas ferramentas fálicas para resolver esse impasse. Daí, a sua posição passiva identificada ao feminino.

 

Considerações finais

Este estudo procurou compreender as vicissitudes do feminino na Psicanálise para pensarmos a configuração do homem atual, que se supõe cada vez mais feminizado, apontando de que forma isso pode se apresentar. Assim, buscou-se traçar um caminho que, apropriando-se das contribuições de Freud e Lacan sobre o feminino, tornou possível considerar que uma pessoa, quanto a sua sexualidade, se posiciona não enquanto à anatomia, mas enquanto a sua forma de lidar com a castração, ou seja, com o falo.

Dessa forma, podemos considerar que, em relação a isso, no que tange à dinâmica do contemporâneo, marcada pelo declínio do viril em consonância com o afrouxamento do modelo patriarcal, o homem atual sofre consequências na integração da posição sexual masculina, podendo apropriar-se do feminino como uma saída para ser homem hoje, em nossa cultura.

De maneira inversa, ao apropriar-se do feminino, o homem está colocando em jogo as coordenadas do que está acontecendo na atualidade e que precisam, com efeito, ser interpretadas na clínica, pois cabe ressaltar que tudo isso não é vivido por ele sem angústia e sem demais desdobramentos. Assim, é necessário que as demais singularidades do homem hoje, seus sintomas contemporâneos, sejam contemplados em estudos posteriores.

Nesse sentido, poderíamos pensar, mais além ainda, a partir deste estudo, os relacionamentos atuais e como essas transformações afetam os relacionamentos amorosos, pois são mudanças que atingem ambos os lados.

Este trabalho contribui, portanto, para pensarmos as atuais configurações dos modelos de homem e mulher que vão chegar ao consultório e suas implicações na vida psíquica dos sujeitos. Saber atribuir sentido ao feminino, à significação fálica, é importante nos atendimentos clínicos, pois pode interferir no diagnóstico, uma vez que a apropriação da significação fálica pelo sujeito está relacionada à questão diagnóstica, ao modo como ele opera e ao seu modo de gozo.

 

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Recebido em: 28/8/2019
Aceito em: 16/8/2021

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