SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 número4Pensando sistemicamente sobre as redes de proteção social destinadas às famílias de crianças e adolescentes em acolhimento institucionalAlta e cuidado no Caps I: o que mostram os prontuários? índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.4 São João del-Rei out./dez. 2021

 

Clima familiar na relação mãe-criança após exposição à violência por parceiro íntimo

 

Family Climate in Mother-Child Relationships after Intimate Partner Violence Exposition

 

Clima familiar en la relación madre-niño después de exposición a la violencia de pareja

 

 

Amanda Hoffmeister HassmannI; Clarissa De AntoniII

IPsicóloga pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Residente em Saúde da Família e Comunidade pelo Grupo Hospitalar Conceição (GHC). E-mail hassmann.amanda@gmail.com
IIProfessora-doutora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). E-mail clarissad@ufcspa.edu.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi compreender o construto clima familiar na relação mãe-filho, anteriormente expostos à violência por parceiro íntimo contra a mulher. Utilizou-se a inserção ecológica e o estudo de três casos múltiplos. Participaram três díades mãe-filho. Os instrumentos utilizados foram questionário sociodemográfico, entrevistas semiestruturadas e observações naturalísticas, registradas em diário de campo. Os resultados apontam tensionamento e distanciamento afetivo no clima familiar, alta hierarquia, dificuldades de expressão de sentimentos, poucos momentos de lazer entre mãe e filho, uso de práticas parentais punitivas, que denota pouca efetividade na resolução de conflitos. Assim, a violência por parceiro íntimo vivenciada no passado ainda reverbera, seja pela violência estrutural, seja no clima familiar presente.

Palavras-chave: Clima familiar. Violência por parceiro íntimo. Relação mãe-filho.


ABSTRACT

This study aimed to comprehend the family climate in mother-child relationships where the mother was previously exposed to intimate partner violence. The method consisted of the ecological engagement and the study of three cases. The participants were three mother-child dyads. The instruments were a sociodemographic questionnaire, semi-structured interviews and naturalistic observations, registered in field notes. Findings show tensioning and emotional distance in family climate, which is related to difficulties in expressing feelings, lack of leisure time between mother and child, use of punitive parenting practices and structural violence. Thus intimate partner violence can still reverberate in the present, such as seen in structural violence and in family climate.

Keywords: Family climate. Intimate partner violence. Mother-child relationship.


RESUMEN

El objetivo de este estudio fue comprender el constructo del clima familiar en la relación madre-hijo, previamente expuestos a la violencia de pareja contra la mujer. Fue utilizada la Inserción Ecológica y el estudio de tres casos múltiples. Participaron tres díadas madre-hijo. Los instrumentos utilizados fueron un cuestionario sociodemográfico, entrevistas semiestructuradas y observaciones naturalistas, registradas en un diario de campo. Los resultados apuntan a tensionamiento y distanciamiento afectivo en el clima familiar, alta jerarquía, dificultades para expresar sentimientos, pocos momentos placenteros entre madre e hijo, uso de prácticas parentales punitivas, que muestran poca efectividad en la resolución de conflictos. Por lo tanto, la violencia de pareja experimentada en el pasado aún resuena, ya sea por medio de la violencia estructural o en el clima familiar actual.

Palabras clave: Clima familiar. Violencia de pareja. Relación madre-hijo.


 

 

Introdução

A violência contra a mulher é um fenômeno complexo e com maior visibilidade na atualidade, em função da legislação vigente e da rede de proteção instituída. O ambiente familiar, ao invés de um espaço de segurança, muitas vezes tem se destacado como palco dessa violência. Em 2017, a pesquisa do DataSenado divulgou dados alarmantes das famílias brasileiras, em que 29% das mulheres entrevistadas sofreram violência familiar provocada por um homem, aumento significativo em relação ao dado de 15% em 2015. O perfil do agressor, em 41% dos casos, era o atual marido, companheiro ou namorado, enquanto 33% eram ex-maridos, ex-companheiros ou ex-namorados (Senado Federal, 2017). A Organização Mundial da Saúde (OMS) adota o termo violência por parceiro íntimo (VPI), que caracteriza o ato em uma relação íntima que causa danos físico, emocional, patrimonial ou sexual ao outro na relação conjugal (García-Moreno et al., 2015).

Crianças e adolescentes expostos à violência entre os pais têm maior risco de sofrerem impactos negativos em seu desenvolvimento, com consequências físicas, psicológicas e sociais, além de dificuldades no desenvolvimento cognitivo e desempenho escolar (Howell, Barnes, Miller, & Graham-Bermann, 2016). Lares onde há atos de violência contra as mulheres também são potenciais palcos da violência parental (De Antoni, Barone, & Koller, 2007). Assim, essas violências se interseccionam e se retroalimentam.

A relação mãe-criança tende a sofrer alterações em decorrência da VPI contra a mulher. As pesquisas atuais, todavia, apontam resultados diversos. Na revisão sistemática realizada por Chiesa et al. (2018), foi descrita a correlação positiva entre a VPI e a agressão física e negligência para com os filhos, além da presença do estilo parental autoritário. Todavia, esses desfechos podem variar conforme outros fatores que medeiam a relação entre VPI e parentalidade. Por outro lado, outro estudo identificou melhora na comunicação mãe-criança após a separação do perpetrador da violência (Lapierre et al., 2017).

A relação de afeto e de reciprocidade que uma criança estabelece com um cuidador é essencial para seu desenvolvimento. A partir da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH), preconizada por Urie Bronfenbrenner (2011), essa relação pode ser analisada em um microssistema, em que a criança interage diretamente e intensivamente com a mãe, o pai ou outra pessoa com papel de cuidador, formando uma díade. As interações recíprocas e estáveis no microssistema - como na amamentação e na leitura - caracterizam os processos proximais, entendidos como trocas crescentes de complexidade que são essenciais para o desenvolvimento humano. Outros sistemas integram no desenvolvimento do indivíduo, como o mesossistema, o exossistema e o macrossistema. O mesossistema é formado pelo conjunto de microssistemas, como o contato da díade com a escola da criança ou um local de acolhimento institucional. No exossistema, atuam fatores como o trabalho da mãe/cuidador e outras relações com as quais a criança não tem contato direto, como as instâncias governamentais - Polícia Civil, Conselho Tutelar -, as leis e sua fiscalização. No macrossistema, estão os valores culturais, subcultura e ideologias que influenciam essas relações humanas.

O desenvolvimento infantil também é afetado pelo estilo educativo parental - classificado em autoritário, autoritativo, indulgente ou negligente -, que varia em níveis de responsividade e de controle. Esse estilo molda indiretamente a efetividade de práticas parentais - que podem ser indutivas ou coercitivas - e influencia o clima emocional da família (Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003). O clima familiar permeia e colore as relações familiares, construto que apresenta diferentes nomenclaturas na literatura: clima emocional na família, ambiente familiar ou clima relacional da família. Labella, Narayan e Masten (2016) propõem que o clima emocional seja visto como um fenômeno diádico, cuja avaliação não pode ocorrer com base em apenas um informante.

Entretanto, não se encontra ainda um consenso na literatura sobre os fatores componentes do construto clima familiar. A partir de estudos sobre clima familiar e dos pressupostos da TBDH, o presente estudo elencou quatro dimensões para análise do clima familiar: coesão, hierarquia, expressividade emocional e resolução de conflito.

A primeira dimensão, a coesão, é definida como a "proximidade afetiva, que envolve relações de amizade, união e de pertencimento ao grupo" (De Antoni, Teodoro, & Koller, 2009; p. 401). A segunda, a hierarquia, é vista na relação de poder entre os membros de uma família, por meio das fronteiras dos subsistemas. As fronteiras indicam a proximidade dos indivíduos, a comunicação e a autonomia de cada membro. A maior autoridade de um membro em relação a outro é essencial para a estrutura familiar. É necessário que os pais tenham mais hierarquia em relação aos filhos, porém de modo flexível e adaptável às necessidades destes (Minuchin, 1990). Nessa hierarquia, os papéis para cada pessoa são influenciados pelas expectativas sociais, correspondentes ao macrossistema; desse modo, certo grau de poder é atribuído a cada papel (Bronfenbrenner, 2011).

A terceira dimensão, a expressividade emocional, abarca o modo como os indivíduos expressam seus sentimentos, de forma verbal e não verbal, na convivência familiar, além do modo como a família influencia na expressão emocional de cada um (Camras & Halberstadt, 2017). Por último, o modo como ocorre a resolução de conflitos na família revela a participação de cada membro nas escolhas. A resolução de conflitos é classificada em: acordo (envolvidos negociam um acordo que satisfaça a ambos), perde-ganha (um lado aceita uma submissão ao que o outro deseja) e evitação (quando o conflito não é resolvido, pois os envolvidos o ignoram ou escolhem não se engajar) (Persram, Howe, Porta, & Ross, 2017).

Assim, este estudo objetivou compreender o construto clima familiar (em suas dimensões coesão, hierarquia, expressividade emocional e resolução de conflitos) na relação da díade mãe-filho(a), anteriormente expostos a situações de VPI contra a mulher e que, em função dessa violência vivenciada, estão residindo temporariamente na Casa de Referência da Mulher - Mulheres Mirabal, localizada em Porto Alegre. Esse espaço se insere no contexto de resistência política feminista e propõe uma gestão compartilhada, com participação do movimento social e do Estado. Desde novembro de 2016, a casa acolhe mulheres - em sua maioria mães - e seus filhos em situação de violência intrafamiliar e realiza atendimento jurídico, assistencial e psicológico (Mustafa & Tommasi, 2018).

 

Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, transversal e exploratório-descritiva, baseada no método de estudo de casos múltiplos com três díades mãe-filho (Yin, 2005). Também foi utilizada a inserção ecológica (Koller, Morais, & Paludo, 2016), com aproximação da pesquisadora em relação à ocupação urbana em eventos realizados no local - como rodas de conversa, eventos culturais e reuniões abertas - em cinco ocasiões em 2018, e depois oito visitas durante o primeiro semestre de 2019, incluindo coleta de dados.

Utilizou-se para a coleta de dados os seguintes instrumentos: questionário sociodemográfico, entrevista semiestruturada e observações naturalísticas. As entrevistas foram realizadas com as participantes adultas, a partir de roteiro elaborado pelas autoras, abordando a percepção da mãe sobre a criança, a relação mãe-criança, a situação pós-violência e a participação da ocupação nesse período. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. As observações naturalísticas ocorreram na casa nos horários de refeição - almoço ou jantar -, por ser a atividade em comum entre os membros das díades. Dados da inserção ecológica, obtidos em observações, visitas à ocupação e conversas informais no local (com acolhidas e acolhidos, militantes, apoiadores e coordenadoras) foram registrados em diário de campo. Após o término da pesquisa, e com o objetivo de efetuar a devolução dos dados, foram propostos grupos de aconselhamento com todas as mães que residiam naquele momento na Casa sobre práticas educativas e manejos adequados dos comportamentos dos filhos. Em algumas situações, identificadas como mais graves, foram realizadas intervenções individuais. Essas ações foram previstas no projeto de pesquisa e também aprovadas como ação de extensão universitária.

A pesquisa obteve aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (CEP-UFCSPA), Parecer n. 3.043.910. Os nomes são fictícios, a fim de manter o anonimato dos entrevistados.

 

Resultados

Em relação ao perfil dos participantes, o estudo foi constituído por três mulheres, de 28 a 39 anos de idade, e três crianças, de 3 a 7 anos, constituindo três díades de análise. As mães relataram não estar mais em um relacionamento com o agressor.

Nessas famílias, fatores de risco estiveram presentes e todas as participantes adultas relataram uso de drogas pelos ex-companheiros. Em dois casos, o ex-companheiro estava ou já havia sido preso. No cuidado com os filhos, os pais, em dois casos, eram figuras ausentes por alguns períodos do desenvolvimento da criança; em outro caso, era violento fisicamente com o filho.

As mulheres entrevistadas estavam com dificuldades financeiras e em situação de desemprego - em dois casos, não recebiam auxílio financeiro do ex-companheiro; enfrentam longas listas de espera para conseguir uma vaga de creche ou de escola para os filhos; assim, com os filhos para cuidar durante o dia, a busca por emprego também é dificultada.

Na Casa de Referência da Mulher, a alimentação advém de doações, o que uma das participantes reconhece como essencial para a alimentação de suas filhas. De um modo geral, consideram um bom lugar para se morar, apesar de enfrentarem dificuldades devido à mudança de residência e rompimento de relacionamentos. Todavia, há uma inconstância na situação de moradia, pois o governo municipal ameaça a reintegração de posse do local. Nessas condições, a ocupação enfrenta desafios diversos, como insegurança em relação à entrada e à saída de visitantes e curiosos e à constante falta de luz, pelo não pagamento da conta pelo Estado.

Os resultados dos três casos são descritos a partir de dados gerais sobre a díade, história familiar, clima familiar e situação na ocupação. Em referência ao clima familiar, serão descritos os fatores coesão, hierarquia, expressividade emocional e resolução de conflitos.

Estudo de Caso 1: Dandara e William

Dandara, 28 anos, negra, tem ensino fundamental completo. É mãe de William, menino de 7 anos, negro, que está no 2º ano do ensino fundamental. Ele tem dois irmãos, Lara (2 anos) e Lucca (menos de 1 ano). Os quatro estavam há um mês na ocupação, onde foram acolhidos em decorrência da violência perpetuada pelo ex-companheiro, pai de William e Lara. Na história da família, aparecem relatos de violência contra a mulher, de ordem física e psicológica; além de situações de violência física do pai contra as crianças.

Na entrevista, Dandara descreve sua vida independente à do filho. Há uma possível tentativa de desvinculação desse filho mais velho, que já estaria na "hora de crescer" e não necessitar de tanta ajuda da mãe: "Tipo, eu tenho a minha casa, eu tenho as minhas coisas, eu tenho a minha vida. O William tem a vida dele [...], o William tem colégio [...]" (Dandara).

A mãe percebe que está mais distante do filho atualmente, o que associa ao fato de ter que dar mais atenção para os filhos menores. Conta que tem poucos momentos junto ao filho, exceto na hora das refeições ou quando vão dormir. Na relação hierárquica entre Dandara e William, acentua-se a autoridade da mãe, presente implicitamente em comportamentos em que exibe a sua força física:

A mãe lembra William: "William, escovar os dentes". Ele parece não ouvir direito e pergunta: "O quê?" Ela não responde, ele pergunta novamente: "O quê, mãe?" Ela demora para responder, ele está próximo dela. Ela faz um gesto com a mão fechada, como um soco na frente do rosto de William. A mãe fala: "Eu falei que vou te dar um soco". Ele olha para ela, não fala nada. Depois, ela abaixa a mão e diz: "Mentira, eu falei escovar os dentes". (Trecho do diário de campo).

Além da força física, é notória a expressão da autoridade por meio do uso de formas de controle que sinalizam tentativas de disciplinar e garantir que o filho aja como esperado, com o uso de práticas educativas coercitivas e punitivas. Nos relatos de observação de cerca de 2h, a mãe fez aproximadamente sete pedidos ao filho, que incluíam buscar copos de água para ela, buscar pano, encher um balão para o irmão e tirar os pés do sofá, dentre outros.

A mãe incentiva que William seja responsável, autossuficiente e independente, desempenhando tarefas de autocuidado e de cuidador dos irmãos. Por causa dessa hierarquia, a resolução de conflitos entre mãe e filho é do tipo perde-ganha, em que ao final a palavra da mãe é obedecida por William. Para ensiná-lo, quando o filho desrespeita uma regra, a mãe retira algo de que o filho gosta (por exemplo, assistir ao desenho na TV).

William demonstra esforços para cumprir esse papel, pois obedece aos mandos da mãe, é respeitoso com ela e com todos na casa, atencioso com os irmãos e cooperativo nas brincadeiras com outras crianças. A expectativa por comportamentos corretos e adultos do filho aparece nas observações em que Dandara parece estimular mais as brincadeiras dos outros filhos, porém, quando William brinca, ela se mantém mais distante.

Na expressão de sentimentos, a mãe evita falar sobre os negativos, como a tristeza. Assim, quando não está bem, não nomeia o que sente e pede que o filho a "deixe quieta". Por outro lado, a expressão de afetos e sentimentos positivos entre ambos está presente e é caracterizada por gestos "brutos", o que parece ser a forma como Dandara demonstra o carinho que sente pelo filho, contribuindo para a superficialidade da expressividade emocional. A exemplo dessa questão, em uma das observações, a mãe abraça o filho com um golpe que lembra o de judô, o "mata leão". Esse abraço é visto como uma brincadeira pelo menino, que pede para a mãe continuar com a brincadeira. Em certo momento, a mãe para repentinamente, o que demonstra a brevidade das trocas de afeto. Parece haver dificuldade de permanecerem fisicamente próximos, e a mãe afasta-se ou solicita que o filho se afaste dela.

A análise do caso revela que a relação hierárquica na díade é acentuadamente assimétrica, sendo evidente o controle da mãe em relação ao filho. O papel demandado a William é de grande responsabilidade, sendo exigido mais competências do que suporta sua etapa desenvolvimental. Nesse clima emocional, constrói-se uma rigidez da mãe e uma pseudoautonomia para com seu filho, já que ele tem de dar conta do papel atribuído e ela exige que ele a obedeça. Assim, esses papéis hierárquicos denotam uma fronteira rígida no microssistema mãe-filho, em que o controle é um dos pilares da relação.

As interações observadas demonstram um distanciamento afetivo entre mãe e filho, o que pode definir uma coesão baixa e uma troca de sentimentos superficial, uma vez que apenas William fala sobre seus sentimentos. A dificuldade para expressar sentimentos também corrobora a comunicação deficitária típica entre familiares com fronteiras rígidas na relação (Minuchin, 1990).

O uso de práticas educativas indutivas (supervisão do filho, uso de regras claras, incentivo à organização da rotina e ao respeito com os irmãos) e coercitivas (reafirmação do poder da mãe com gestos ameaçadores) pode compor um estilo parental autoritário. A mistura de trocas de afeto e de controle constituem um clima emocional ambivalente. As mensagens paradoxais que a mãe comunica ao filho, como na situação em que o chama para escovar os dentes e o ameaça com um punho em riste, podem constituir um padrão de duplo-vínculo (Watzlawick, Beavin, & Jackson, 1995). O duplo vínculo é recorrente nas interações em que há violência conjugal (Guimarães, Diniz, & Angelim, 2017) e poderia estar presente na relação da participante com seu companheiro, vindo a se manifestar como padrão relacional na interação com o filho.

Alguns aspectos da relação mãe-filho, como o papel de responsável que William é incentivado a ter na dinâmica familiar, mantêm-se como uma característica anterior à mudança de residência, porém, a vinda para a ocupação parece ter alterado a frequência da interação mãe-filho, uma vez que o menino passa mais tempo com outras pessoas agora, como as crianças, o que pode ser entendido pela mãe como uma diminuição de seu controle sobre o filho. Além disso, as pessoas que compõem a rede de apoio da família, como o avô que ajudava a cuidar das crianças, estão distantes da ocupação. Esse fato pode interferir para a sobrecarga de Dandara e de sua tentativa de maior controle da situação atual, por intermédio da disciplina rígida com o filho. Sendo assim, os achados aqui encontrados durante a estada na ocupação podem não refletir totalmente o funcionamento familiar habitual.

Faz-se necessário contextualizar em seu macrossistema o papel familiar atribuído a William, como irmão mais velho e menino "crescido", uma vez que essa família enfrenta o impacto do racismo em sua vida. O marcador social da raça pode influenciar as maneiras como os papéis sociais na família se articulam, na medida em que as expectativas sociais em relação à performance das masculinidades negras também são socializadas com as crianças (Caetano, Junior & Goulart, 2017). Estudos com famílias afro-americanas estadunidenses apontam que nesse contexto pode se desenvolver uma disciplina mais rígida com filhos homens, por se preocuparem com seu bem-estar (Boyd-Franklin & Karger, 2016). Famílias afro-americanas também têm fatores como comunicação e afeto associados ao estilo autoritário (McMurtry, 2013). Todavia, esses dados ainda necessitam ser mais desenvolvidos em pesquisas sobre famílias negras brasileiras. A superproteção e a rigidez presentes na dinâmica familiar, como resultado do racismo, podem ser entendidas como uma forma de a família sobreviver a essas violências estruturais. Essas exigências podem levar a um maior senso de responsabilidade e maturidade, mas também influenciam em um desenvolvimento antecipado da criança, de forma a tornar-se emocionalmente adulto.

Fatores protetivos nessas expectativas da mãe com o filho podem ser observados, como o incentivo de Dandara pela continuação de William nos estudos, com o retorno à escola. A família parece ter boas relações com sua comunidade, que doaram material escolar. Assim, essa conexão é importante para que a família tenha uma rede de apoio com incentivo ao fortalecimento dos membros e à reconstrução de um novo futuro depois do rompimento da relação de violência por parceiro íntimo.

Estudo de Caso 2: Fernanda e Felipe

Fernanda, 33 anos, branca, tem ensino médio completo. É mãe de Felipe, 5 anos, branco, que aguarda vaga para entrar na escola. Eles estão há cerca de 45 dias na casa. Fernanda sofria violências psicológicas, além de cárcere privado e possível violência sexual. Essas situações motivaram sua busca por ajuda e rompimento da situação de violência.

Fernanda relata que a relação com Felipe sempre foi difícil. Na primeira infância, ela trabalhava e Felipe ficava aos cuidados da avó. Por volta dos três anos, a mãe começou a passar mais tempo com o filho. Há uma visão negativa em sua fala, por vezes marcada por extremismo: "Mas ele sempre teve uma afronta comigo [...] Então, comigo sempre foi briga. [...] Ele é uma criança que... ele não gosta de carinho" (Fernanda).

A mãe mostra comportamentos mais impulsivos e parece irritar-se com facilidade com o filho. Felipe é um menino agitado, mostra-se impaciente nas brincadeiras e opositor às regras. Frequentemente está envolvido em brigas com outras crianças. Por vezes, não tem cuidado com brinquedos e os joga longe.

A mãe, em muitos momentos, rejeita o contato físico do filho: "A mãe grita: 'Sai!' e empurra o filho do encosto do sofá, incomodada com a presença dele. Felipe sai do sofá, sem falar nada" (Trecho do diário de campo). Essa rejeição é também exercida por Felipe, que em alguns momentos faz comentários negativos sobre os esforços da mãe, como quando ela prepara um suco e o menino diz: "Vamos ficar com dor de barriga e a culpa vai ser toda tua, mãe" (Trecho do diário de campo).

A mãe utiliza punição física - como chineladas - para reafirmar seu poder em relação ao filho, além de ameaças de castigos por meio de gestos corporais. Durante a pesquisa, confirmou-se essas práticas pelo relato da mãe e nas observações naturalísticas.

Diante de conflitos, em que o filho desobedece a mãe, é perceptível que as regras educativas não são claras, de modo que Fernanda não explica por que algumas atitudes não são corretas. O menino, por outro lado, confronta a autoridade da mãe, pois não obedece ou respeita suas decisões. Na entrevista, relatou sentir impotência diante do fato de Felipe não a obedecer.

Apesar de mostrar uma autoridade superior ao filho, Fernanda não vê o filho como uma criança. Ela descreve-o como a um adulto, exigindo-lhe uma maturidade além do que sua idade permite. A mãe culpa o filho por seus comportamentos indesejados: "(O Felipe é) uma pessoa muito difícil de lidar. Isso aí não tem... Porque ele é muito difícil. Muito bravo."

Nas constantes brigas observadas, mãe e filho expressam sentimentos de raiva por meio de gritos. Algumas vezes, o menino demonstra medo das ameaças e das violências físicas. Nos momentos em que não há uma briga, há crescimento de tensão para um futuro conflito. A mãe mostra-se reativa aos movimentos de Felipe, esperando que ele inicie um conflito. A comunicação mãe-filho tem caráter agressivo. Segundo Fernanda, ela não expressa para o filho seus sentimentos negativos, quando está triste. Nas observações, as demonstrações de afeto amoroso também não estiveram presentes.

Fernanda constantemente mostra-se irritada com Felipe. Por vezes, tem dificuldade de falar sobre o que está sentindo e parece descrever seus sentimentos por meio do filho: "Fernanda olha Felipe brincando no pátio e comenta, com uma pausa: 'Ele tá bem revoltado... comigo', aumentando o tom de voz na última palavra, apontando com o dedo para si mesma" (Trecho do diário de campo).

As dificuldades comunicacionais reaparecem na resolução de problemas da díade, em que há poucas tentativas de negociar uma solução conjunta. Às vezes, resolvem a partir do perde-ganha, em que as escolhas da mãe são priorizadas e o menino as aceita após muitas discussões. Em outros momentos, há evitação: "Daí eu disse, 'ah, nem vou falar [...] nem vou chamar ele para conversar de novo, por causa que ele [...] ele não vai querer. Ele vai querer brincar'" (Fernanda).

Na ocupação, a maioria dos brinquedos de Felipe está guardada, o que também pode contribuir para suas dificuldades em adaptar-se a essas mudanças de moradia. Felipe sente saudades de casa e briga com a mãe, acusando-a de mentirosa e de tê-lo afastado do pai. Fernanda se mostra fragilizada com essas falas do filho e reage de forma agressiva com o menino, o que dificulta que esse conflito tenha uma resolução.

Ao analisar o clima familiar, destaca-se a baixa coesão, nas diversas formas de rejeição do filho pela mãe. O clima familiar entre Fernanda e Felipe é permeado por tensão, devido às brigas. Quando não estão discutindo, os dois se mostram atentos ao comportamento um do outro, prontos para um conflito iminente. Essas características do relacionamento conturbado parecem já estar presentes anteriormente à VPI, conforme relato da mãe.

A expressão de sentimentos de cada um aparece deveras conectada à expressão do outro, de forma que há pouco espaço para a constituição de individualidades. Utilizam de comunicação agressiva, em que a raiva está presente em ambos, e evitam expor vulnerabilidades. Desse modo, a fronteira entre Fernanda e Felipe mostra-se rígida.

A hierarquia é marcada pelo poder exercido pela mãe por intermédio de castigos, mas também na rigidez e tentativa de controle excessivo. Uma vez que Felipe a desobedece em diversas ocasiões, a resolução de conflitos pela evitação é a forma encontrada para não ser contrariada. Assim, aparece uma ineficácia das práticas educativas que pode contribuir para a desvalorização da mãe na sua função de cuidado. Ela parece não reconhecer em si uma função "protetora" [sic] para Felipe, o que sentia quando ele era pequeno.

As práticas coercitivas e punitivas observadas constituem um estilo educativo autoritário da mãe. Destacam-se as dificuldades no exercício da autoridade materna e exercício da disciplina com o menino. As práticas punitivas, que envolvem castigos físicos, já ocorriam antes da vinda à ocupação e enfraquecem a reciprocidade e o afeto na díade, com consequências negativas para o desenvolvimento de Felipe, como dificuldades escolares, baixa autoestima e problemas de comportamento (Cecconello et al., 2003).

Essa relação de conflito mãe-filho pode trazer prejuízos para o desenvolvimento de ambos, pois, nesse ciclo de brigas e discussões, mãe e filho se mostram desgastados emocionalmente, não encontrando possibilidades para se divertir ou ter momentos bons juntos. Assim, os processos proximais na díade podem resultar em disfunções para o desenvolvimento dos dois. Segundo Bronfenbrenner (2011), a disfunção é vista como a manifestação de dificuldades em manter controle e integração do próprio comportamento em diversas situações. Os comportamentos impulsivos e explosivos de Felipe evidenciam processos de descontinuidade em seu desenvolvimento, que parecem ter relação com o ambiente violento em que estava exposto em casa e as dificuldades da relação da díade no microssistema.

As mudanças no mesossistema da díade também parecem colaborar para um aumento de conflito entre mãe-filho. O rompimento entre os pais é difícil para Felipe, que sente saudades do pai e, desse modo, culpa a mãe por essa separação. Nessa nova vida, a mudança de moradia também gerou alterações na rotina, em que há mais pessoas para partilhar as coisas, e mais crianças para Felipe conviver. Nesse ambiente, as brigas de Felipe com outras crianças também geram atritos com sua mãe, que tenta evitar que ele se torne violento com os outros.

Depois do término da pesquisa, foram realizados dois momentos de aconselhamento sobre práticas educativas com Fernanda, a fim de amenizar ou cessar as ações punitivas físicas aplicadas, que foram consideradas muito graves.

Estudo de Caso 3: Jéssica e Lauren

Jéssica, 39 anos, negra, ensino fundamental completo, é mãe de Lauren, 3 anos, parda. Lauren tem uma irmã, Kethelin, de 1 ano. A família está há quatro meses na casa. Antes residiam com o ex-marido de Jéssica. O início do casamento é percebido por Jéssica como tranquilo, porém, nos últimos anos, intensificaram-se as agressões psicológicas e houve situações de violência física.

Durante a entrevista, ela ressaltou suas dificuldades financeiras, por estar desempregada. A espera por vaga na creche para as duas filhas também dificulta a busca de emprego.

Jéssica demonstra forte conexão emocional com a filha ao descrevê-la: "(A Lauren é) tudo pra mim. É a minha vida. As duas. Sou louca pelas minhas filhas". Jéssica buscou por anos ter filhos, e a concretização desse desejo com o nascimento de Lauren é positiva. Ao ser questionada como se sente perto da filha, diz: "Me sinto mãe".

Sobre o tempo conjunto entre mãe-filha, Jéssica fala que este é pouco, ocorrendo apenas nas refeições e na hora de dormir. Relata que gostaria de fazer outras coisas, porém a filha passa mais tempo brincando com as outras crianças da casa.

Nas observações naturalísticas, a autoridade da mãe está presente nas decisões maternas sobre a hora de comer, tomar banho etc. Não se observaram falas violentas ou negligentes com a filha. Jéssica usa tom de voz baixo e calmo quando faz pedidos para a filha e procura ser carinhosa com Lauren. As práticas educativas adotadas variam conforme as situações. Durante as observações, utilizou em muitos momentos a conversa (prática indutiva) como uma prática disciplinar. Porém, em outros momentos em que a filha não a obedece, a mãe mostra seu chinelo para Lauren, em um gesto de ameaça (prática coercitiva). Jéssica conta que precisa fazer essa ameaça porque a menina não a respeita como gostaria. A mãe fala sobre suas dificuldades com práticas educativas punitivas: "Eu não gosto de estar batendo. Então, eu acho que isso é uma coisa que eu gostaria que não acontecesse mais" (Jéssica).

Jéssica aparenta ter paciência com a filha e usar da negociação como uma estratégia de resolução de conflito. Todavia, a mãe por vezes usa a punição física, quando a filha não a escuta. Durante o período de férias, a menina passou semanas na casa de uma amiga de Jéssica, sem a mãe. Ao fim desse período, houve tensionamento em que Jéssica queria buscar a filha, porém aceitou o pedido da amiga para deixar a menina com ela mais tempo. Assim, o exercício da maternidade é afrontado com esse acontecimento.

Jéssica percebe que a menina está mais desobediente: "Ela ficou bastante teimosa depois que ela veio pra cá". Todavia, a "teimosia" de Lauren possivelmente deve-se a uma junção de fatores. A idade de 3 anos da menina é um possível influenciador nesse comportamento, pois é comum que os pais de crianças nessa idade se deparem com a complexidade do desenvolvimento cognitivo dos filhos e a necessidade de disciplinar. A mudança de ambiente e a inserção em uma casa onde novos adultos cuidam e ensinam a menina também pode trazer novos desafios para educar a filha. Por fim, a VPI, testemunhada pela menina, também pode ter gerado impactos para seu desenvolvimento emocional e comportamental (Howell et al., 2016).

A expressividade emocional não é muito desenvolvida na díade. Jéssica percebe que a filha expressa com gestos seus sentimentos. Porém, a expressão emocional da Jéssica é mais restrita, pois reconhece quando diz que também não "se abre" [sic] com a própria mãe. Assim, essa dificuldade perpassa diferentes gerações da família, como avó-mãe-filha: "Tem muita coisa que eu tento esconder, assim. Como os dias que eu estou triste. Às vezes, quando eu estou com vontade de chorar, eu não choro na frente dela" (Jéssica).

As expressões de afeto positivo estão frequentemente presentes na díade. Nas observações naturalísticas, a menina busca contato físico com a mãe, segura sua mão ou a abraça: "Enquanto estamos no pátio, por cerca de 10 minutos, Lauren aproxima-se de Jéssica cerca de cinco vezes, pegando sua mão e buscando contato físico" (Trecho do diário de campo).

Apesar do rompimento com o ex-companheiro, ele ainda está presente em suas vidas, por meio de contatos telefônicos em que persegue Jéssica. Essa situação tem causado preocupação e medo na participante. As perguntas constantes da filha sobre o pai são emocionalmente difíceis para a mãe, que tem buscado manter silêncio e evitar falar sobre o pai. Jéssica conta que não sabe como conversar com a filha sobre a relação que tinha com o ex-marido: "[...] eu queria muito poder sentar e explicar pra ela o que está acontecendo" (Jéssica).

A análise desse caso permite pensar que no clima emocional da díade destaca-se uma alta coesão, com elevado sentimento de pertença da mãe à família, e o mesmo acontece com a filha, Lauren. As expressões de afeto parecem fortalecer essa coesão. A hierarquia, apesar de conferir maior autoridade materna, é um fator desafiador para Jéssica, que demonstra dificuldades em manter essa autoridade, até mesmo na relação com outras pessoas, como descrito na situação em que Lauren fica aos cuidados da amiga de Jéssica. O uso de diferentes práticas educativas, indutivas e coercitivas (incluindo a punição física) serve como uma tentativa de estabelecer regras. O clima familiar apresenta-se positivo, pela relação ser permeada por segurança e afeto, porém, nas situações de briga, observa-se medo na menina diante da possibilidade da punição física.

Nos momentos em que usam da negociação como estratégia para resolver um conflito, a mãe acolhe as necessidades da filha e concilia as opiniões para resolverem um problema. Desse modo, observam-se fronteiras nítidas na díade.

As constantes perguntas de Lauren sobre a situação atual de seu pai geram angústia na mãe. Jéssica não sabe como reagir a elas e prefere mudar ou evitar o assunto. Assim, a comunicação sobre fatos importantes, como a relação paterna, é evitada.

A expressão de sentimentos na díade é parcial. A troca de afeto positivo é evidente, em que um clima amoroso é perceptível, todavia, a expressão de sentimento negativos é escassa. A dificuldade que Jéssica descreve para externalizar o que sente - que também era uma característica de sua mãe - pode vir a ser aprendida por Lauren como um padrão familiar.

Na ocupação, Jéssica parece discordar das práticas parentais de outras mães. Quando ocorrem situações de punição física, Jéssica mostra descontentamento e procura retirar suas filhas do mesmo ambiente. Assim, Jéssica parece pensar diferente de outras mulheres acolhidas, discordando quanto aos modos de disciplinar as crianças.

A seguir, na Tabela 1, é apresentada a síntese dos casos. Na sequência, a discussão aprofundada e conclusiva, de acordo com a perspectiva sistêmica e a TBDH.

 


Tabela 1 - Click to enlarge

 

Discussão integrativa dos casos

Os microssistemas familiares formados pela díade mãe-filho têm dinâmicas próprias, variando em cada caso, todavia, há aspectos comuns. Todas as participantes relataram realizar poucas atividades com seus filhos, predominando o tempo de refeições e descanso. Esse dado está consoante com resultados de estudo em um abrigo na Espanha, no qual se constatou que a maioria das mães passava pouco tempo com os filhos ou não brincava com eles (Limiñana, Martínez, & Pérez, 2020). Esses momentos conjuntos são essenciais para a evolução de processos proximais, no entanto, é importante que a relação tenha interações recíprocas para que esses processos proximais sejam funcionais, a fim de proporcionar crescimento dos indivíduos e desenvolvimento de suas competências (Bronfenbrenner, 2011).

Em dois casos, o clima familiar aparece tensionado ou marcado por distanciamento afetivo. Evidencia-se que a interrupção e o afastamento da situação de violência por parceiro íntimo, por si só, não resultaram em clima familiar positivo para as díades mãe-filho(a). Assim, há necessidades de suportes maiores às famílias, para além do rompimento da violência. Identificou-se um excessivo controle das mães em relação aos filhos, além do uso de violência para lidar com problemas. É possível que a tensão vivenciada anteriormente nos relacionamentos amorosos, ao não ter espaço para gerar novo processo proximal, seja agora transferida para a relação maternal. Essa relação pode colaborar para a construção progressiva de um padrão de controle, aprendido pela criança como um modo correto de "resolução" de conflito e, assim, esse padrão pode vir a se manifestar nos seus relacionamentos na vida adulta (Fulu et al., 2017).

Em relação ao clima familiar, a análise das resoluções de conflito e expressividade emocional demonstrou processos comunicacionais pouco eficazes, em que as mães evitam falar o que estão sentindo e, em muitas ocasiões, não escutam os filhos. Essas estratégias ineficazes de comunicação podem contribuir para que futuramente ocorra afastamento entre ambos. Em relação à VPI vivenciada, duas participantes relataram dificuldades em conversar com o(a) filho(a) sobre o tema, o que vai ao encontro dos achados de Moulding, Buchanan e Wendt (2015).

Sobre as características individuais das participantes adultas, todas revelaram dificuldades para "se abrir" e conversar com outras pessoas sobre seus sentimentos. Supõe-se que essa restrição para identificar e expressar sentimentos colabora para um estilo de baixa expressividade emocional com os filhos, além de respostas emocionais impulsivas. A dificuldade de regulação emocional, também observada em estudo brasileiro com mulheres com histórico de violência conjugal (Zancan & Habigzang, 2018), pode explicar o panorama encontrado na dimensão coesão familiar. Respostas mais impulsivas podem gerar uma inconstância no estilo parental, em que os filhos não sabem como a mãe irá reagir.

No exercício da autoridade, as práticas educativas parentais estiveram em questão. Em dois casos, as mães encontram dificuldades para disciplinar os filhos. Houve uso de práticas punitivas corporais com as crianças em duas díades. Assim, a violência perpassa diferentes relações em uma família, em que os membros não apenas vivem a VPI, mas também a violência parental, em uma dinâmica de violência intrafamiliar. Essa ocorrência de diferentes violências na família é apresentada na literatura. Em um estudo longitudinal, evidenciou-se associação significativa entre violência contra a mulher e a ocorrência de abuso físico e negligência contra a criança no mesmo lar, que pode ser perpetrada por ambos os pais (Ahmadabadi et al., 2018). Outros estudos, analisados em revisão sistemática sobre as práticas parentais de mães vítimas de violência (Chiesa et al., 2018), demonstram correlação positiva entre violência por parceiro íntimo contra a mulher e agressão física materna contra os filhos. Na revisão, a VPI foi associada ao menor nível de comunicação e maior nível de estilo parental autoritário da mãe. A ocorrência de VPI é entendida por Chiesa et al. (2018) como um fator de risco para práticas parentais negativas, porém não atua de modo isolado a outros fatores, pois seu efeito pode variar. Contudo, existem poucos dados sobre práticas parentais após a separação do abusador.

As formas de resolução de conflitos mãe-filho, com predominância de uso de poder e força física, ensinam as crianças a resolverem problemas utilizando violência. Assim, além dos efeitos danosos da exposição à violência por parceiro íntimo, a relação abusiva entre mãe e filho pode colaborar para a reprodução de atos violentos como um padrão de conduta na vida adulta (Fulu et al., 2017). Desse modo, as participantes parecem ter poucas informações sobre o desenvolvimento infantil, em especial sobre mudanças cognitivas e emocionais esperadas. Muitas vezes, antecipam etapas e exigem maior maturidade dos filhos, o que torna necessário orientações sobre práticas parentais e desenvolvimento infantil para esse público.

Os valores e crenças que compõem o macrossistema são evidenciados nas formas de interação da díade mãe-filho no microssistema familiar. Todas as participantes trouxeram elementos de banalização da violência em suas falas, com variações em sua intensidade. A banalização esteve presente tanto de maneira a minorar a violência sofrida por elas próprias quanto aquela perpetuada por si por meio dos castigos corporais aplicados aos filhos, sendo um fator que pode afetar o clima familiar.

A convivência com outras famílias evidencia as diferentes formas de educar os filhos e, por vezes, esse tópico é alvo de discussão, ocorrendo divergências e conflitos entre as mulheres na casa. Há também processos proximais no desenvolvimento dessas mulheres, principalmente por estarem em contato com uma organização que incentiva o empoderamento feminino diante de temas como o machismo. As crianças também conhecem novas pessoas, como outras crianças com quem interagem - em brincadeiras, conversas, brigas - e adultos, que tendem a também os educarem e servirem como exemplos. Essas novas relações podem formar uma rede de apoio social efetiva (Rocha, Rodegheri, & De Antoni, 2019).

O rompimento da situação de violência também gera mudanças na estrutura familiar. As participantes adultas buscaram interromper o contato com os ex-companheiros, sendo um dos casos mediado pela justiça. Deparam-se, assim, com uma configuração familiar monoparental. Nesse período de reorganização, há uma quantidade maior de tarefas a serem realizadas, como a manutenção financeira da família, as tarefas domésticas e o cuidado afetivo com os filhos, o que pode gerar sobrecarga para as mães (Barreto, Balani, Braz, & Prina, 2016).

Essas dificuldades de acesso a direitos básicos - como a educação e moradia - constituem violências estruturais, que compõem o exossistema das famílias. A sobrecarga da mulher pode levá-la a priorizar certos cuidados básicos, como alimentação e higiene - que são entendidos como os cuidados primários que deve prover a seus filhos -, o que pode dificultar com que cuidados mais sutis, como proximidade afetiva, tenham espaço nas famílias. Desse modo, as violências estruturais impactam o microssistema, como entraves para que o clima familiar seja mais positivo e afetivo. Ademais, soma-se a essa situação a violência institucional por meio das ameaças de reintegração de posse da ocupação, que geram insegurança às moradoras.

 

Considerações finais

Esta pesquisa possibilitou conhecer a dinâmica dessas relações familiares. A compreensão ecológica desses fenômenos ressalta também a necessidade de ações após o rompimento da VPI, já que as relações da díade mãe-filho ainda estão fragilizadas por essa vivência. Assim, a promoção de vínculos positivos entre mães e filhos é uma prevenção necessária nesse contexto. Além disso, a ocupação urbana constitui-se como espaço de resistência à violência, de modo a conscientizar a sociedade e o Estado sobre essa pauta. Esse ambiente, construído de maneira coletiva, incentiva a autonomia das mulheres para a construção do seu futuro. Por se tratar de um contexto novo de convivência familiar, sugere-se a realização de mais estudos sobre essas questões e interações.

 

Referências

Ahmadabadi, Z., Najman, J. M., Williams, G. M., Clavarino, A. M., d'Abbs, P., & Abajobir, A. A. (2018). Maternal Intimate Partner Violence Victimization and Child Maltreatment. Child Abuse & Neglect, 82, 23-33.         [ Links ]

Barreto, D. J., Balani, C. L., Braz, P. S., & Prina, R. O. (2016). Problematizações entre a dinâmica familiar preconizada pela Assistência Social brasileira e a família monoparental feminina. Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), 295-309.         [ Links ]

Boyd-Franklin, N., & Karger, M. (2016). Intersecções de raça, classe e pobreza. In F. Walsh, Processos normativos da família: diversidade e complexidade (pp. 273-293). Porto Alegre: Artmed Editora.         [ Links ]

Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed Editora.         [ Links ]

Caetano, M., Junior, P. M. S., & Goulart, T. E. S. (2017). Quando os arranjos familiares e as masculinidades entram em questão na escola. In A. P. Alós (Org.). Poéticas da masculinidade em ruínas, o amor em tempos de aids. Santa Maria: UFSM, PPGL.         [ Links ]

Camras, L. A., & Halberstadt, A. G. (2017). Emotional Development through The Lens of Affective Social Competence. Current opinion in psychology, 17, 113-117.         [ Links ]

Cecconello, A. M., De Antoni, C., & Koller, S. H. (2003). Práticas educativas, estilos parentais e abuso físico no contexto familiar. Psicologia em Estudo, 8, 45-54.         [ Links ]

Chiesa, A. E., Kallechey, L., Harlaar, N., Ford, C. R., Garrido, E. F., Betts, W. R., & Maguire, S. (2018). Intimate Partner Violence Victimization and Parenting: A Systematic Review. Child Abuse & Neglect, 80, 285-300.         [ Links ]

De Antoni, C., Barone, L. R, & Koller, S. H. (2007). Indicadores de risco e de proteção em famílias fisicamente abusivas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23, 125-132.         [ Links ]

De Antoni, C., Teodoro, M. L., & Koller, S. (2009). Coesão e hierarquia em famílias fisicamente abusivas. Universitas Psychologica, 8(2), 399-411.         [ Links ]

Fulu, E., Miedema, S., Roselli, T., McCook, S., Chan, K. L., Haardörfer, R., & Jewkes, R., (2017). Pathways between Childhood Trauma, Intimate Partner Violence, and Harsh Parenting: Findings from the UN Multi-Country Study on Men and Violence in Asia and the Pacific. The Lancet Global Health, 5(5), e512-e522.         [ Links ]

García-Moreno, C., Zimmerman, C., Morris-Gehring, A., Heise, L., Amin, A., Abrahams, N., Montoua, O., Bhate-Deosthali, P., Kilonzo, N., & Watts, C. (2015). Addressing Violence against Women: A Call to Action. The Lancet, 385(9978), 1685-1695.         [ Links ]

Guimarães, F. L., Diniz, G. R. S., & Angelim, F. P. (2017). "Mas ele diz que me ama...": duplo-vínculo e nomeação da violência conjugal. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 33(1), 1-10.         [ Links ]

Howell, K. H., Barnes, S. E., Miller, L. E., & Graham-Bermann, S. A. (2016). Developmental Variations in the Impact of Intimate Partner Violence Exposure During Childhood. Journal of Injury and Violence Research, 8, 43-57.         [ Links ]

Koller, S. H., Morais, N. A., & Paludo, S. S. (2016). Inserção ecológica: um método de estudo em desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Labella, M. H., Narayan, A. J., & Masten, A. S. (2016). Emotional Climate in Families Experiencing Homelessness: Associations with Child Affect and Socioemotional Adjustment in School. Social Development, 25(2), 304-321.         [ Links ]

Lapierre, S., Côté, I., Lambert, A., Buetti, D., Lavergne, C., Damant, D., & Couturier, V. (2017). Difficult but Close Relationships: Children's Perspectives on Relationships with their Mothers in the Context of Domestic Violence. Violence Against Women, 24(9), 1023-1038.         [ Links ]

Limiñana, A. R., Martínez, R. S., & Pérez, M. Á. M. (2020). Children Exposed to Intimate Partner Violence: Association among Battered Mothers' Parenting Competences and Children's Behavior. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(4), 1134.         [ Links ]

McMurtry, S. L. (2013). Parenting Style Differences in Black American and White American Young Adults. Tese de doutorado, The University of Southern, Hattiesburg, Mississippi, Estados Unidos.         [ Links ]

Minuchin, S. (1990). Famílias: funcionamento e tratamento. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Moulding, N. T., Buchanan, F., & Wendt, S. (2015). Untangling SelfBlame and MotherBlame in Women's and Children's Perspectives on Maternal Protectiveness in Domestic Violence: Implications for Practice. Child Abuse Review, 24(4), 249-260.         [ Links ]

Mustafa, I., & Tommasi, L. (2018). Mulheres e a luta por casa de referência. ÎANDÉ: Ciências e Humanidades, 2(1), 27-41.         [ Links ]

Persram, R. J., Howe, N., Della Porta, S., & Ross, H. S. (2017). Family Members' Helping Behavior: Alliance Formations During Naturalistic Polyadic Conflicts. Infant and Child Development, 26(4), e2007.         [ Links ]

Rocha, R. Z., Rodegheri, P. G., & De Antoni, C. (2019). Rede de apoio social e afetiva de mulheres que vivenciaram violência conjugal. Contextos Clínicos, 12(1), 124-152.         [ Links ]

Senado Federal (2017). Violência doméstica e familiar contra a mulher. Secretaria de Transparência. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa DataSenado.         [ Links ]

Watzlawick, P., Beavin, J. H., & Jackson, D. D. (1995). Pragmática da comunicação humana. São Paulo: Cutrix.         [ Links ]

Yin, R. (2005). Estudo de Caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman.         [ Links ]

Zancan, N., & Habigzang, L. F. (2018). Regulação emocional, sintomas de ansiedade e depressão em mulheres com histórico de violência conjugal. Psico-USF, 23(2), 253-265.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 26/3/2020
Aceito em: 22/11/2021

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons