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Psicologia para América Latina
versão On-line ISSN 1870-350X
Psicol. Am. Lat. n.9 México abr. 2007
ARTE, CREATIVIDAD Y RECREACIÓN
As vicissitudes do amor: narcisismo e sublimação
Regina Barbosa Fernandes Simões*
Sociedade Pestalozzi do Rio de Janeiro Brasil
RESUMO
Estamos habituados a pensar o termo sublimação no seu sentido nobre, derivado das belas-artes (sublime) para designar uma elevação do senso estético. Freud adotou o termo para dar conta do fenômeno da criação humana e em seus textos, assim como nas várias teorias psicanalíticas o conceito de sublimação encontra um grande número de significados. Definida esta questão, esta pesquisa concentra-se na demonstração da sublimação como um dos caminhos da pulsão, que percorre o lugar vazio do sujeito da enunciação, substituindo objeto e objetivos sexuais por objeto e objetivos não sexuais, fazendo laço social e funcionando como suplência para o não avassalamento do sujeito no combate com sua pulsão de morte dominante. Discutimos também a noção de narcisismo, fenômeno libidinal, um conceito teórico e clínico que ocupa um lugar essencial na teoria do desenvolvimento sexual do ser humano e que nos ajuda a descrever o mecanismo da sublimação.
Palavras-chave: Criação, Libido, Pulsão, Sublimação.
ABSTRACT
We have a habit of thinking that the word sublimation has a noble significance, in order to elevate its aesthetic sense in the field of the fine arts. Freud adopted the term to explain the phenomenon of the human being creation and in his works, as well as in some psychoanalytic theories, the concept of sublimation consists of a great number of meanings. Moreover, this research focuses on revealing sublimation as one of the ways to instinct, which explores the empty place of the subject of enunciation, substituting sexual object and objectives for non-sexual ones, socially bonding and functioning as supplement to not diminish the subject in the combat against the instinct to a dominant death. We also discuss the concept of narcissism, the libido phenomenon, a theoretical and clinical idea that occupies an essential place in the theory of the sexual development of human being, and aids in the description of the sublimation mechanism.
Keywords: Creation, Libido, Instinct, Sublimation.
RESUMEN
Estamos habituados a pensar el término sublimación en su sentido noble, derivando de las bellas artes (sublime) para designar una elevación del censo estético. Freud adopta ese término para dar cuenta del fenómeno de creación humana y en sus textos, así como en varias teorías psicoanalíticas, el concepto de sublimación, se encuentra un grande número de significados. Definida esta cuestión, esta investigación se centra en la demostración de la sublimación como uno de los caminos de la pulsión, que cubre el lugar vacío del sujeto en enunciación, substituyendo objeto e objetivos sexuales por objetos y objetivos no sexuales, haciendo lazos sociales y funcionando como suplencia para el no avasallamiento del sujeto en el combate con su pulsión de muerte dominante. Discutimos también la noción de narcisismo, fenómeno libidinal, un concepto teórico y clínico que ocupa un lugar esencial en la teoría del desenvolvimiento sexual del ser humano y que nos ayuda a describir el mecanismo de sublimación.
Palabras clave: Creación, Libido, Pulsión, Sublimación.
A doença foi, sem dúvida, a causa final de todo anseio de criação. Criando, pude recuperar-me; criando tornei-me saudável.
Heine
Uma concepção de psiquismo que surtiu efeitos importantes na cultura ocidental do século XIX foi o resultado do empenho de Sigmund Freud. Sua visão da condição humana, contrariamente às opiniões prevalecentes de sua época1 oferece um modo complexo e atraente de perceber o desenvolvimento normal e anormal do homem. A partir de seus estudos foram descobertas novas abordagens para o tratamento das doenças psíquicas, seu trabalho contestou tabus culturais, religiosos, sociais e científicos, sua personalidade e determinação em ampliar os horizontes da compreensão do homem fizeram dele o centro de um círculo de amigos e críticos em constante mudança. Nas suas investigações sobre os processos psíquicos a sublimação encontra-se entre os vários conceitos elaborados para dar conta da constituição da subjetividade e da produção artística e cultural.
Mas, infelizmente Freud não deixou um estudo sistematizado sobre a teoria da sublimação e sempre se referiu em seus textos a esse conceito dando-lhe diferentes significados, porém em todos eles percebemos sempre uma associação ao que é da ordem simbólica, pois aponta o sujeito para o mundo externo e remete a uma modalidade de satisfação sexual não genital. Ele recorre, portanto à noção de sublimação, para tentar dar conta de um ponto de vista econômico e dinâmico a certos tipos de atividades alimentadas por um desejo que não visa um objetivo sexual, como por exemplo a criação artística, e em geral a todas as atividades a que uma determinada sociedade lhes concede certa valoração. é uma transformação das pulsões sexuais que se coloca à disposição do trabalho cultural, graças a essa característica das pulsões de poderem deslocar a sua meta sem perder a sua intensidade. é, portanto uma capacidade de trocar de meta sexual originária por outra meta, que já não é sexual.
A primeira aparição deste termo em Freud pode ser encontrada no relato do caso Dora (1900), mas desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) ele define a sublimação como a substituição de objeto e objetivo sexuais da pulsão por objeto e objetivo não sexuais. Já para Lacan, sublimação é como "elevar o objeto à dignidade da Coisa", ou seja, elevar o que é da ordem do objeto não apenas aos chamados objetos de arte, mas tudo que é inventado pelos sujeitos e que se inscreve no registro do simbólico/ imaginário - à ordem de das Ding, à ordem do real. Desta forma, sublimar é repetir ou reproduzir certa falta ou ausência parte-se dela e a ela se retorna, como a modelagem de um vaso, cujo vazio interior é a um só tempo seu efeito e sua causa.
Por sublimação podemos então inferir a capacidade do sujeito de investir em atividades denominadas por Freud de "sublimes", uma vez que desta forma laços sociais são estabelecidos e fortalecidos, empregando energias que, do contrário, inviabilizariam a vida em sociedade. é uma expressão socializada da pulsão, ou um meio de defesa contra o extravasamento da vida pulsional e para que este processo se realize é necessário que haja o abandono do objeto original da pulsão. Abandonando as relações estreitas que a pulsão tinha com a sexualidade, ela escolhe uma nova finalidade por um processo complexo, sob o comando do principio da realidade, as exigências do Supereu com as do Isso.
O conceito de sublimação pode ser visto segundo dois pontos de vista complementares: ou é a expressão positiva mais elaborada e socializada da pulsão, ou é um meio de defesa capaz de temperar os excesso e extravasamentos da vida pulsional. Sublimação quer dizer, acima de tudo, plasticidade, maleabilidade da força pulsional. O destino da pulsão a que chamamos sublimação é estritamente falando a própria operação de troca, o fato mesmo da substituição e a denominação de não-sexual corresponde ao fato da pulsão já não correr para a descarga e, também no sentido de que o eu, apesar de ainda funcionar com a pulsão, tem a seu cargo os interesses socialmente valorizados.
Um outro viés da letra freudiana é a afirmação de que "nem tudo pode ser sublimado2". O fato de nos referirmos à capacidade plástica da pulsão, ou seja, a possibilidade de uma pulsão substituir uma satisfação outrora negada pela realidade, não significa que toda sublimação seja possível. Enquanto processo individua,l encontramos no próprio indivíduo limites à sublimação, uma vez que a economia do campo sexual é sustentada pela ilusão, sendo a mesma mantida por uma dose mínima de satisfação com o objetivo de evitar maiores danos ao psiquismo. O que sustenta então a sublimação não é sua capacidade de sobrepor toda e qualquer atividade outra, mas sua valorização social. A tese freudiana repousa no pressuposto de que a maioria dos indivíduos consegue orientar porções significativas de suas forças pulsionais sexuais para atividades socialmente valorizadas. Tomando como exemplo o caso de Leonardo da Vinci, considerado paradigma de uma pulsão sexual sublimada, encontramos na suposição de Freud que essa pulsão teve sua origem na primeira infância e que no decorrer de seu desenvolvimento tenha usado de parte de sua energia sexual como reforço. O impulso investigador tem então sua origem ao que ele denominou como pulsão de saber caracterizado no apetite insaciável em que a criança pergunta a respeito de tudo, disfarçando sua curiosidade a respeito da origem dos bebês. Uma vez o período de investigação sofrendo ao seu término uma repressão severa, forte, podemos a partir de então trocar caminhos ou até mesmo, destinos possíveis, decorrentes de seu primeiro enlace com interesses sexuais. Desta forma, temos a inibição neurótica (período em que a investigação intelectual se faz limitada podendo se estender a toda a vida do indivíduo), a compulsão neurótica (resultado da resistência à repressão sexual, substituindo, portanto a atividade sexual) e a sublimação, onde a libido subtrai-se ao recalque, sublimando-se em desejo de saber, reforçando a pulsão de investigação. Portanto, em relação às pulsões de caráter dito parcial, deduzimos que no início está a pulsão, e juntamente com ela a sublimação.
Se pela via da sublimação ou da pulsão temos um recurso do sujeito para desmentir o recalque, o mesmo não pode ser dito em relação ao objeto. A sublimação demanda para tal uma modificação referente ao objeto, caracterizando-o, portanto na capacidade de substituir um objeto sexual. é o que falamos quando nos referimos à capacidade plástica da pulsão. O que viabiliza essa substituição é o fato do objeto ser socialmente valorizado. Porém, como já dissemos, isso não é suficiente, necessitando então que o objeto esteja ligado às elaborações imaginárias do sujeito.
Esse aspecto de sublimação é introduzido por Freud a partir de seu texto Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), onde faz uma distinção entre a libido do eu e a libido do objeto, distinção relacionada à diferenciação entre o eu ideal e o ideal do eu. Caracteriza-se, portanto num desvio da pulsão em relação ao sexual, o que implica numa dessexualização do objeto. O que muda é o objeto e não a pulsão propriamente dita, uma vez que, a sublimação não exclui sua origem sexual. A dessexualização do objeto se dá pelo deslocamento do investimento libidinal que originalmente incidia sobre o objeto sexual, passando agora a incidir sobre um objeto não sexual. Freud evoca o conceito de narcisismo para tornar viável a possibilidade da satisfação da pulsão sobre um objeto não sexual, ou seja, que não tem ligação direta com tal. O sucesso da sublimação fica então relativizando a intervenção do eu narcísico na retirada da libido do objeto sexual. Logo, podemos afirmar que esse seria um primeiro momento do processo sublimatório. Num segundo momento a libido outrora objetal e agora narcísica é dirigida a um objeto não sexual. O eu narcísico constitui-se como ponto intermediário ao deslocamento da libido do objeto sexual rumo ao não sexual. Esse objeto deve corresponder a certas idéias simbólicas a valores sociais vigentes numa determinada sociedade, passando esse processo obrigatoriamente pelo ideal do eu. O ideal do eu é um incitador da sublimação, mas não seu executor. Não devemos confundir aqui sublimação e idealização. O fato é que um indivíduo substituir seu narcisismo por um ideal em forma de dedicação ao mesmo não quer dizer que ele tenha alcançado a sublimação. Tomamos aqui o ideal do eu como algo "externo" ao sujeito no sentido do plano simbólico, em contrapartida ao imaginário que caracteriza o eu ideal. Freud afirma3 que o desenvolvimento do eu implica num distanciamento em relação ao narcisismo primário pelo deslocamento para um ideal do eu importado desde fora. Esse "fora" do imaginário tomado enquanto lugar de exigência da lei, lugar, portanto do simbólico, é o lugar da palavra, enquanto valorada, estruturadora do imaginário. Tomamos dessa forma, o ideal do eu como guia externo do imaginário. Esse guia funcionará como desencadeador do processo, fornecendo ideais simbólicos ao sujeito.
A busca e o acesso à beleza são satisfações das mais eficazes, mesmo que ilusória e substituta, frente à realidade decepcionante de viver. Todos nós temos a capacidade de fantasiar e brincar, porém nem todos chegam ao prazer intenso como o artista, porém todos temos acesso ao mundo da criação e da beleza. O artista, que processa a sublimação, se vê dentro de uma dessexualização neste processo e o objeto é revestido de um valor social, tornando-se um objeto cultural, relativamente desligado do seu centro. é assim que o artista se expõe e transmite o seu desejo e através dos efeitos que podem ser causados no espectador, pela sua obra imaginária da sublimação, ele gera a cultura. é a própria linguagem do inconsciente transformada em cultura. Os traços da obra produzida por sublimação não têm nenhuma finalidade prática ou utilitária, mas correspondem a ideais sociais elevados, subjetivamente internalizados no ideal do eu do artista criador. Essas obras, mais do que coisas materiais são imagens e formas significantes novamente criadas, trata-se de imagens e formas traçadas à semelhança de nosso eu inconsciente narcísico. Essas obras imaginárias da sublimação são capazes de produzir dois efeitos fundamentais no espectador: elas deslumbram por seu fascínio e suscitam nele o mesmo estado de paixão e de desejo suspenso que levou o artista a engendrar sua obra.
O conceito de sublimação responde fundamentalmente à necessidade, para a teoria psicanalítica, de dar conta da origem sexual do impulso criador do homem. é o meio de transformar e elevar a energia das forças sexuais, convertendo-as numa força positiva e criadora, assim como também é o meio de temperar e atenuar a intensidade excessiva dessas forças. é neste sentido que a sublimação deve ser considerada como uma das defesas do eu contra a irrupção violenta do sexual, ou como uma modalidade de defesa oposta à descarga direta e total da pulsão. Sublimar é encontrar satisfação para a pulsão em outro lugar que não o do sintoma, que não o do retorno do recalcado, que não o da contínua substituição significante. é um certo tipo de realização movida por um desejo que não visa manifestamente a uma satisfação sexual, tais como a criação artística, a investigação intelectual, atividades humanitárias e culturais que são muito valorizadas pela sociedade. Um impulso tem seu objetivo substituído por outro desprovido de caráter sexual, tornado-o mais "digno". Privilegia, atua, eletivamente sobre os impulsos parciais, elementos "pervertidos" da sexualidade que não conseguem integrar-se na forma definitiva da genitalidade. A atividade sexual sublimada requer, num primeiro momento, o deslocamento da libido de seu objeto e sua concentração no ego e, só então, ela vai se orientar para um novo objeto externo. Por isso mesmo, a sublimação está estreitamente ligada à dimensão narcisista do eu. O narcisismo que ressurge se desloca para o ego ideal, cheio de perfeição e valor, como o ego infantil. O ego ideal nesse momento é o alvo do amor de si mesmo.
A sublimação exige a presença de alguma operação do recalque, nela algo da verdade do objeto é revelada e o impacto da beleza que essa obra de arte produz vem dessa revelação. Por isso é que é preciso reconhecimento social, fazer laço social. Mas, não é o reconhecimento social que faz a sublimação, sabemos que isto não basta. O ato de criação pode ser um ato sublimatório ou não. Os trabalhos de artistas como Van Gogh, o Bispo do Rosário, Virginia Wolf, Fernando Pessoa, Clarisse Lispector, e muitos outros, fizeram laço social, mas não sublimaram. Fizeram laço social porque é belo, mas não é sublimação. Para eles a arte era um recurso de significação para reconstrução de seu mundo; a arte é nesses casos um modo do sujeito dar sentido e se relacionar com o Outro. Há um franqueamento do limite, algo que não pode aparecer e aparece. A obra de arte revela algo que está encoberto pelo recalque e é isso que dá o impacto da beleza, ela põe em cena algo de horror "a beleza é o último véu antes do horror", nos diz Lacan. Não podendo se realizar, o aparelho aproveita a energia da pulsão sexual e aplica numa outra finalidade. O artista pinta numa busca de algo que existe na lembrança. Possibilita ao autor da obra, qualquer que seja, tomar uma certa distância de algo que não mais investe o seu corpo por estar perdido. Mas é preciso reencontrar alguma coisa que ainda existe na lembrança. é preciso, então, criar para não correr o risco de se perder. A criação é necessária à existência, todos somos obrigados a sublimar para viver. Enquanto o recalque da pulsão cria tensão, a sublimação oferece uma saída ao indivíduo, permitindo não somente evitar tensões desagradáveis como também possibilitando a aplicação de suas energias em caminhos não neuróticos. Na busca de uma descarga total devido a excitações muito intensas de várias fontes sexuais, a sublimação é uma satisfação parcial que será obtida graças a outros objetos. é uma satisfação irremediavelmente parcial porque não será completa a descarga de sua tensão, essas excitações vão encontrar escoamento em caminhos construtivos. As obras criadas por sublimação são objetos desprovidos de qualquer finalidade prática e que correspondem a ideais sociais elevados, subjetivamente internalizados sob a forma do ideal do eu criador. Essas obras são imagens e formas significantes traçadas à semelhança da imagem inconsciente de nosso corpo, de nosso eu inconsciente narcísico. Elas são capazes de produzir dois efeitos no espectador: deslumbramento por seu fascínio e, o mesmo estado de paixão e de desejo em suspenso que levou o artista a criar sua obra. Daí então, podemos inferir com Lacan que elevar o objeto narcísico à dignidade da Coisa quer dizer que a marca do eu do criador, objetivada na obra de arte, abre no outro a dimensão intolerável de um desejo de desejo, de um desejo em suspensão, sem nenhum objeto designado. Assim como Leonardo da Vinci, outros tem conseguido dar ao mundo aquilo que lhes foi negado. é através da arte ou de atividades humanitárias que a sexualidade sublimada encontra seu ideal. "A poesia de Shakespeare, a música de Tchaickowski e a obra de Proust podem ser interpretadas como expressão de uma homossexualidade sublimada".
Concluindo nosso trabalho, conscientes de nossas limitações para responder a todas as questões, lembramos que a Psicanálise, por não constituir um saber fechado, nos sugere que a pesquisa continue...
Referências Bibliográficas
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*reginafernandes@predialnet.com.br
1Freud explorou áreas do psiquismo que eram discretamente obscurecidas pela moral e filosofia vitorianas.
2Freud. 1910, vol. XI.
3opus cit.