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Epistemo-somática
versão impressa ISSN 1980-2005
Epistemo-somática v.4 n.2 Belo Horizonte dez. 2007
ARTIGOS
Biopolítica e contemporaneidade: ato médico e ato analítico
Biopolitics and contemporaneity: medical act and psychoanalytical act
Biopolítica y contemporaneidad: acto médico y acto analítico
Biopolitique et contemporaneité: l´acte médicale et l´acte psychanalitique
Guilherme Massara Rocha *
Universidade federal de Minas Gerais
RESUMO
Neste trabalho, recupera-se a noção foucaultiana de biopolítica com vista à demarcação de sua atualidade e de suas particularidades no contexto da instituição médica contemporânea. O conceito freudiano de "desamparo inicial" é recuperado como motivo pelo qual a incidência do discurso médico pode ser apreendida. Em contrapartida, a noção de ato analítico é mobilizada no sentido de circunscrever a especificidade e os vetores com base nos quais o trabalho do psicanalista pode aí ser compreendido em seus determinantes.
Palavras-chave: Biopolítica, Psicanálise, Medicina, Tratamento.
ABSTRACT
This article takes M. Foucault´s concept of biopolitics on review, in order to specify it´s actuality and particularities on contemporary discussion of medical and psychological treatment. S. Freud´s concept of "original helplessness" is also taken on discussion, mostly because of it´s connections with the problem of medical treatment and subjectivity. In order to show that the work of the psychoanalyst has it´s own determinations on this context, the concept of analytical act is also taken on discussion.
Keywords: Biopolitics, Psychoanalysis, Medicine, Cure.
RESUMEN
Este trabajo recupera la noción foucaultiana de biopolítica, con el intento de señalar su actualidad y sus particularidades en el contexto de la institución médica contemporánea. El concepto freudiano de "desamparo inicial" es recuperado como motivo a partir del cual la incidencia del discurso médico puede ser asimilada. Como contrapartida, la noción de acto analítico es movida en el sentido de circunscribir la especificidad y los vectores del trabajo del psicoanalista, para que pueda ser comprendido en sus determinantes.
Palavras clave: Biopolítica, Psicoanálisis, Medicina, Tratamiento.
RÉSUMÉ
Ce travail prendre la notion foucaultienne de biopolitique pour en spécifier l´actualité et les particularités, dans le contexte de l´instituition médicale contemporaine. Le concepte freudienne de "détresse originaire" c´est reprisé, ainsi comme leur rélation avec l´incidence du discours médicale sûr le sujet. D´autre part, la notion d´acte analytique c´est aussi reprisé, surtout dans la mésure q´on va rechercher l´especificité et les directions pour lesquels le travail du psychanalyste y pouvez être compris, dans ses déterminations.
Mots clés: Biopolitique, Psychanalyse, Médicine, Cure.
Elementos da gestão biopolítica
A era inaugurada na segunda metade do século XVIII é marcada por aquilo que M. Foucault (1997, p. 131) vai designar uma "anátomo-política do corpo humano", o que se traduz, nas palavras do filósofo, por um centramento
no corpo-espécie, no corpo trespassado pela mecânica do ser-vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar, tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população (Foucault, 1997, p. 131, grifo nosso).
O que resulta dessa transformação é que "a velha potência da morte em que simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida". Para tanto, os órgãos gestores da biopolítica -dentre cujos herdeiros contemporâneos se destaca a medicina protocolar -se servem "de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos" (Foucault, 1997, p. 131).
A biopolítica é um operador conceitual por meio do qual se pode distinguir a soberania que a modernidade transfere do poder central, estatal, aos poderes periféricos: inaugura-se a lógica da "gestão", que na contemporaneidade alcança seu apogeu. A medicina protocolar se refere uma figura da "gestão biopolítica dos corpos".
Um trabalhador de saúde mental, por sua vez, como lembra Teixeira (2006, p. 128), é aquele profissional designado para "determinar os modos de gozo que definem os laços sociais, na contemporaneidade e que conferem à vida dos indivíduos uma representação qualificada politicamente".
Há, então, uma demanda aos trabalhadores de saúde mental para que eles legitimem, perante o indivíduo adoecido, modos de subjetivação do gozo que sejam compatíveis com uma normatividade convencionalmente estabelecida. Esses deveriam, portanto, responder em consonância com a regra universal da gestão alienante, que preside sua função biopolítica.
O filósofo Giorgio Agambem (2004, p. 146) chama atenção para o caráter anômico da gestão biopolítica que, ao constituir-se como agência reguladora das vicissitudes dos corpos e da vida, carece, paradoxalmente, de uma instância superior que a possa regular. O poder biopolítico pretende-se tão soberano que pode até interferir na soberania "do homem vivente sobre a sua vida". A gestão biopolítica torna-se capaz, então, de estabelecer, por exemplo, o conceito de "vida sem valor", o que coincide com a fixação de "um limiar, além do qual a vida cessa de ter valor jurídico" (Agambem, 2004, p. 146). O debate contemporâneo sobre a eutanásia, marcado por certa prepotência do discurso médico relativa à verdade sobre as fronteiras da vida, exemplifica, aos olhos de Agambem (2004, p. 150), a natureza da
integração entre medicina e política, que é uma das características essenciais da biopolítica moderna, [e que] começa a assumir a sua forma consumada. Isto implica que a decisão soberana sobre a vida se desloque, de motivações e âmbitos estreitamente políticos, para um terreno mais ambíguo, no qual o médico e o soberano parecem trocar seus papéis.
O que resulta do exercício protocolar da biopolítica no discurso médico implica, dentre outras coisas, a pretensão soberana do exercício da medicina, que a figura do "ato médico" expressa emblematicamente: toda conduta médica é incondicionalmente soberana e, portanto, não sujeita ao exame crítico de quaisquer outras disciplinas; a soberania reivindicada pelo ato médico também incide sobre a posição do paciente, cujos apelos são objetivados na razão dos protocolos. O compromisso com o corpo-máquina e seu bom funcionamento é o que se deve ter em mira. A tecnologização dos procedimentos, aliada ao apagamento progressivo da figura do clínico, se torna hegemônica.
O resto dessa operação denuncia, contudo, a impossibilidade de que o programa se cumpra integralmente. A esse resto, pode-se chamar Sujeito. Com essa categoria, na qual se produzem arranjos de gozo irredutíveis aos propósitos da gestão biopolítica, opera o psicanalista na instituição hospitalar. O tratamento dessas vicissitudes consigna, então, e de um só golpe, a singularidade das operações analíticas e os limites das intervenções da ciência médica. Com Lacan, pode-se aferir sob que condições a divisão subjetiva pode ser experimentada como uma "divisão entre o saber e a verdade" (Lacan, 1998, p. 870). Cumpre, então, examinar algumas figuras típicas do gozo que decorrem do par adoecimento/tratamento médico, de forma a discernir aí as linhas de força do trabalho psicanalítico.
"Desamparo inicial" e adoecimento
A doença em si já representa um fenômeno drástico de castração. No sujeito, é reavivada a dimensão algo originária do desamparo. O indivíduo doente, muitas vezes impossibilitado de realizar por si mesmo ações elementares de cuidado de si, se vê na condição de ter de recorrer a Outro para realizar-lhe, como salienta Freud, a ação específica. Desde seu Projeto de uma psicologia, de 1895, Freud ressalta que "uma alteração no mundo externo" (Freud, 1995, p. 32) é a forma principal pela qual se define a ação específica. Ali, a situação que ele examina é aquela do bebê às voltas com o circuito alucinatório de satisfação das pulsões, reavivado pela urgência do desejo. A ação específica resume a "ajuda alheia" (Freud, 1995, p. 32), a qualidade da intervenção do Outro, que cuida, então, da criança e que proporciona a experiência de satisfação com um objeto real, interrompendo, nesse mesmo golpe, o circuito alucinatório de satisfação libidinal.
Dessa circunstância, Freud deixa entrever dois elementos da mais destacada relevância para a discussão que se empreende aqui. O primeiro deles refere-se ao fato de que o desamparo originário tem lugar ali num momento em que o aparelho psíquico ainda funciona sob a égide do circuito alucinatório, antes mesmo das intervenções do Eu e da fantasia. Como se poderá observar mais adiante, a reativação do desamparo em momentos ulteriores de configuração subjetiva será sujeita a outras peculiaridades. O segundo elemento, por sua vez, refere-se à desconcertante afirmação de Freud de que a satisfação obtida com base no circuito desamparo/apelo ao Outro/ação específica constituirá "a fonte originária de todos os motivos morais" (Freud, 1995, p. 32). Os modos de posicionamento do sujeito diante do Outro, os "motivos morais" que serão inscritos nas mais arcaicas constelações de seu inconsciente, esses tenderão a reaparecer aprés-coup, devendo, com isso, ser exemplarmente considerados nos momentos ulteriores de reanimação da condição do desamparo.
Um momento privilegiado, então, de reanimação da Hilflosigkeit originária é aquele do adoecimento. À perda da referência normativa, no sentido emprestado por Canguilhem (1990) a esse termo, acrescentam-se as diversas formas e intensidades de limitações às quais o sujeito deve se conformar sob o caráter inexorável de sua condição. Mas deve-se salientar que esse desamparo, reaberto pelo adoecimento, diferentemente de seu surgimento originário no âmbito das vivências alucinatórias pré-edipianas, é agora por ele experimentado num contexto fantasmático, marcado pelo recobrimento significante. Nesse sentido, o desamparo em jogo na experiência de um indivíduo internado numa instituição hospitalar não se reduz à dimensão instrumental de um circuito de satisfação promovido a partir de ajuda alheia. O reaparecimento do desamparo é agora atravessado pela dimensão do fantasma, dos arranjos imaginários sobre os quais se arvora a posição do sujeito diante do Outro. Esse é o elemento fundamental que ora se interpõe entre o apelo pulsional e o "caminho da alteração interna" (Freud, 1995, p. 32), como afirma Freud, referindo-se aos circuitos de satisfação. A partir daí, abre-se uma via para o surgimento dos sintomas, que denunciam o resíduo da presença do sujeito no fantasma. Sendo assim, pode-se aventar que a analogia que se estabelece entre esse contexto e aquele, desenvolvido por Freud, relativo ao desamparo inicial, assumirá a seguinte configuração: desamparo (adoecimento)/ apelo ao Outro (figuras e procedimentos da instituição hospitalar)/ sintoma (figuras do gozo e da repetição no contexto do apelo ao Outro)/ ação específica (modos de tratamento: ato médico; ato analítico).
Cabe, enfim, não perder de vista o fato de que essa condição do desamparo é a marca elementar da posição subjetiva na instituição hospitalar. Ela pode admitir várias roupagens, cujo espectro vai dos modos mais submissos aos mais reativos, passando pela indiferença, pelo horror, pelo fascínio. Não se pode desconsiderar, entretanto, essa abertura ao imaginário, desencadeada pelo horror da castração que a doença representa. Examinar algumas das vicissitudes dessa circunstância é o que dará estofo à seqüência do argumento aqui esboçado.
Figuras do sintoma e ato médico
O adoecimento em si não representa ruptura do laço social, mas sua transformação. Dos efeitos aí promovidos podem-se destacar aqueles relativos às distorções da realidade clínica. Por serem, até certo ponto, típicas, algumas dessas situações podem ser, então, delineadas. Preponderantemente, essa que se configura a partir das atitudes de sobrevalorização ou subvalorização da doença: tais vicissitudes se expressam pela perda da "referência normativa", como lembrara Canguilhem (1990, p. 146) -o anormal biológico vs. a condição de sujeito; o envelope formal do sintoma exprime um assujeitamento à alteridade representada pela doença. Entrevê-se aí, não menos, uma solução egóica, calcada do princípio do prazer, e no curto-circuito da dimensão desejante. O adoecer promove, como contrapartida psíquica, uma espécie de des-centramento subjetivo. Parafraseando Freud, "o eu não é mais senhor de seu próprio corpo". Alguns efeitos típicos daí decorrem e podem ser debatidos, com a ressalva de que o elemento singular que se apresenta em cada situação imprime-lhe uma configuração irredutível e não pode ser desconsiderado.
1. a histericização diante a autoridade médica: a ciência médica, baseada em evidências, fornece significantes, mas não fornece significados. O sujeito se identifica aos números, às taxas indicadas nos exames, às entidades diagnósticas em sua ânsia de significar o vazio de sua condição normativa; mas não há propriamente sentido aí. Os números, as estatísticas, as tabelas e as entidades diagnósticas não coincidem com quaisquer elementos discursivos, dos quais se poderiam esperar efeitos de produção de sentido. Há um vazio insuportável no cerne da verdade com que lida a ciência médica. Sejam os boletins diagnósticos, ou os papers mais atuais acerca das descobertas sobre determinada patologia, ou mesmo as credenciais do especialista, nada disso fornece o Sentido para a condição de sofrimento representada pelo adoecimento. Há no cerne do desamparo e da finitude anunciada pela vivência de castração uma hiância, um inominável que indica a irrupção mesma do real. Resiste aí, pois, e de modo trágico, o não-sentido. E é com esse material que o psicanalista vai se deparar.
2. A expectativa de cura fundamenta-se na crença numa verdade dos protocolos médicos. Ou seja, na esperança -insiste-se, algo trágica -de que a contingência dos resultados já obtidos se converta na necessidade de sua permanente obtenção. Dito de outra forma, o sujeito se vê capturado pela esperança de que sua condição particular possa ser subsumida no universo estatístico das condições mais favoráveis, sejam aquelas de tratamento e, no limite, sobretudo, as de cura. Nesse percurso, muitas vezes ele é acometido pela ameaça da angústia, essa que decorre da percepção da contingência. Do saber sobre o qual não se quer saber, qual seja, aquele relativo ao fato de que nada pode garantir a reprodutibilidade incondicional e necessária de curas anteriormente obtidas, mesmo que as condições em questão se assemelhem. Conforme assinalado, desse des-centramento o sujeito se defende como pode:
-não querendo saber (não fala, não demanda, desqualifica a atenção profissional) ou;
-obcecando-se pelo saber do necessário (insiste em saber de tudo, dos detalhes científicos de exames, evoluções, procedimentos e diagnósticos) ou;
-permanecendo doente e operando o agravamento de sua condição, buscando assim o alento que lhe advém da reafirmação da "necessidade" de seu sofrimento, uma vez que reconhecer a contingência do mesmo -expressa pela falta de sentido último para a finitude do corpo, do gozo -é-lhe, em alguma medida, insuportável.
3. A medicina, por seu turno, é exercida por meio de um apelo à Norma e exige do sujeito em tratamento que ele se aliene de suas escolhas. É-lhe exigido sacrificar aquilo que deseja, em benefício daquilo que lhe é devido fazer, em benefício de sua "recuperação". Entrevê-se aí uma figura que remete ao princípio de realidade, uma condição externa à qual o sujeito deve se conformar. Cabe lembrar, entretanto, que Freud (1987, p. 283) não considera que o princípio de realidade consista numa "deposição" do princípio do prazer. Desse modo, só há como adiar a satisfação pulsional conforme as exigências da realidade. Não havendo, no aparelho psíquico, recursos para neutralizá-la, deve-se admitir que em algum tempo ela virá -sob a forma exemplar do sintoma.
O médico é uma figura que, no discurso, freqüentemente torna opaca a heterogeneidade entre o significante e o significado: sua palavra pretende dizer aquilo que é. Por menos sentido que ela veicule, não pode ser contestada, não pode ser distorcida, não é susceptível de interpelação. Nesse sentido, é que ela elide, não menos, os contornos dessa outra fronteira que separa, como mostrou Lacan, os universos da ciência e da verdade. O ato médico coincidiria, então, com essa ambição de um discurso sobre o Todo, solidário da ideologia que veicula a indissociabilidade entre ciência e verdade, a soldagem entre o discurso e a Coisa. Seu caráter messiânico fora já intuído por Lacan (2005, p. 92) que, a esse propósito, lembra as palavras de Deus a Moisés: "Quando tu fores até eles, vos dirás que eu me chamo aquele que é; eu sou aquilo que sou". Não é outra senão essa a forma sob a qual costumeiramente se apresenta, na instituição hospitalar, o discurso médico. Na contemporaneidade, as políticas de ratificação da primazia a ser conferida ao discurso médico no âmbito das instituições de saúde só fazem confirmar -sob a figura emblemática do ato médico -os esforços de restaurar a consistência totalitária desse discurso. Mesmo que essa estratégia denuncie, no cerne mesmo de sua resistência, a emergência e o impacto de outros discursos -como aquele sustentado pelo psicanalista -e que interpelam a imaginarização da verdade do sofrimento e da cura que resultam do totalitarismo do discurso médico.
Intervenção e ato analítico
A base do tratamento médico repousa, como aqui se procurou demonstrar, sobre a elisão da cisão entre significante e significado, o que se traduz nas formas já indicadas. Quando essa elisão vacila, e ela o faz sempre que o sujeito do inconsciente faz sua aparição, o tratamento pode ficar em causa. O psicanalista se faz aí convocado, pela ordem médica preponderantemente, para mediar a relação do sujeito com as diretrizes de seu tratamento e com as vicissitudes que seu gozo e seu sintoma impõem ao decurso "normal" de suas relações, seja com o hospital, seja com a família, seja consigo próprio. Longe de apostar numa exposição que dê conta de toda a complexidade em jogo nas operações do analista, o argumento que se segue visa tão-somente indicar alguns elementos em jogo no contexto em que tais operações se produzem. Pode-se partir, para tanto, das táticas das quais o analista pode se servir para intervir.
A principal delas, e que aqui deve ser salientada, é aquela de produzir o corte, sustentar a emergência do vazio, do intervalo entre os significantes, que faça aparecer a contingência: o resultado imediato pode ser o da produção da angústia, uma vez que o sujeito passa a ficar permeável ao real de sua patologia. Cria-se, contudo, a via para romper seu imobilismo, sua repetição. Ele pode, então, desidentificar-se do caráter maciço de sua posição fantasmática. Alguns sujeitos começam realmente a se tratar, marcados, então, pela falta que antes repudiavam. Comprometem-se com seu tratamento, discernindo melhor o dever e o desejo. Tornam-se capazes de satisfazer às restrições que a doença e o tratamento impõem, sem se verem obrigados a perder sua condição desejante.
Mas, para alguns sujeitos, o real de sua condição é atormentador e mortífero e, com esses, é preciso saber levar-lhes a suportar saber menos. Expostos ao núcleo traumático e sem sentido de sua doença, tais sujeitos ficam à mercê da melancolia, do silêncio, das passagens ao ato e atuações. Tais sujeitos carecem de um remédio que só a farmácia manipuladora do discurso oferece. Ali o psicanalista deve insistir em fazer operar a função da causa. Ele pode, uma vez desencadeada a transferência, colocar a serviço do sujeito toda as possibilidades da palavra, do patrimônio da cultura, dos benefícios da arte. O analista não pode -e nem deve, como o faz muitas vezes o médico -negar a realidade trágica de uma doença grave oferecendo ao sujeito elementos para o tamponamento de seu mal-estar. Não se trata de consolar, já dizia Freud em O futuro de uma ilusão. Trata-se, contudo, de suportar ouvir o mal-estar e de restabelecer o valor e a dignidade da vida, naquilo em que lhe seja caro e particular. Trata-se de transmitir ao sujeito uma disponibilidade incondicional em escutar-lhe o desejo, independentemente das palavras e dos afetos com os quais lhe seja possível formulá-lo.
Lembremos que o consolo humanístico e solidário da palavra do médico, dos familiares e dos amigos, não esgota os apelos do sujeito pelo sentido. Ao contrário, tais discursos são veículos de uma palavra que carrega mais o afeto do que o sentido. Elas abastecem a libido do eu -e aí reside sua importância, mas também seus riscos -, mas nada podem diante do vazio que marca a relação do sujeito com o objeto. O analista, ao contrário, não age sob os imperativos do afeto. E essa regra deve ser sempre observada. Mesmo na instituição hospitalar e diante do apelo de solidariedade representado pela condição de desamparo dos sujeitos que ali chegam, ao analista não cabe perder de vista a função em virtude da qual opera. Justamente por não oferecer ao paciente a solução de compromisso representada pelo imaginário afetivo, é que o analista pode restaurar as condições de produção de significação. Mediante o contato com o analista, um sujeito adoecido pode alcançar algo diferente do mero reconhecimento de sua condição desamparada e ser causado a responsabilizar-se ali mesmo em que essa hora trágica de seu destino o convida a desaparecer enquanto sujeito. A intervenção do analista pode produzir no sujeito, ainda, um obstáculo à condição objetalizada, que lhe impõe a ordem médica, e criar as condições para a tomada de decisões, individuais e coletivas; para a reconfiguração dos laços afetivos e sociais; para a adesão e conclusão de tratamentos; e, no limite, para uma ulterior demanda de análise. De fato, a percepção traumática da castração, representada pela necessidade de intervenção hospitalar, pode vir a se converter numa demanda de tratamento dos sintomas psíquicos que vêm na esteira do adoecimento orgânico.
Referências
Agambem, G. (2004). Homo sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG. [ Links ]
Canguilhem, G. (1990). O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária. [ Links ]
Foucault, M. (1977). História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. [ Links ]
Freud, S. (1995). Projeto de uma psicologia. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Freud, S. (1987). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud (2ª ed., vol. XII). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Freud, S. (1927). O futuro de uma ilusão. In edição standart brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud (2ª ed. vol XXI). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: JZE. [ Links ]
Lacan, J. (2005). Des noms-du-pére. Paris: Seuil. [ Links ]
Teixeira, A. M. R. (2006). A soberania do inútil. São Paulo: Anna Blume. [ Links ]
Recebido em: 19/11/2007
Aprovado em: 01/12/2007
Sobre o autor:
* Psicanalista, Professor do Departamento de Psicologia da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil. Endereço eletrônico: gmassara@uai.com.br.