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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. v.1 n.2 Juiz de Fora dez. 2007

 

RELATOS DE PESQUISA

 

Sexualidade e perversão na literatura romântica

 

 

Antenor Salzer Rodrigues *

Instituto de Medicina Social/UERJ

 

 


RESUMO

O século XIX testemunhou o advento de uma nova maneira de entender e explorar a subjetividade, que teve a sua gênese na crítica literária coeva e influenciou tanto a filosofia da época quanto o surgimento do que se convencionou chamar de “ciências humanas”. Conhecido como Romantismo, esse movimento literário trouxe a lume desejos e emoções que os dois séculos anteriores tentaram esconder do espaço social. Do ponto de vista da psicologia, chama a atenção o fato de esses afetos e anelos explorados pela sensibilidade romântica serem os mesmo descritos por Sigmund Freud como “perversões”. A forma como as figuras femininas, e as masculinas também, foram tratadas pelas artes da época denunciam uma forma mórbida do homem romântico entender e vivenciar a sua sexualidade.

Palavras-chave: Mulheres, Romantismo, Perversões, Psicanálise.


ABSTRACT

The XIX the century registered the advent f a new way of understanding and exploring subjectivity, that had its genesis in contemporary literary critic and influenced both philosophy of that time and the beginning of what is conventionally called"social sciences". Known as Romanticism, this literary movement brought to light desires and emotions that the previous two centuries tried to hide of the social space. By the point of view of psychology, it calls attention to the fact that this affects and hankerings explored by the romantic sensibility are the same described by Sigmund Freud as"pervetion". The way the feminine form, as well as the male form, were treated by the arts at that time denounce a morbid way in which the romantic men lived and understood their sexuality.

Keywords: Women, Romantism, Perversion, Psychoanalysis.


 

 

A passagem do século XVIII para o XIX registrou uma mudança radical na maneira de o homem entender e descrever o seu mundo interior. Essa nova forma de compreender a subjetividade impregnou tanto a filosofia quanto a literatura, e também abriu caminho para novas formas de saber. Para Ariès (1991), em seu livro A história da vida privada 3, do ponto de vista sociológico, a modificação das mentalidades, que culminou com uma nova sociedade no alvorecer do século XIX, foi resultante de um processo histórico que se desenvolveu entre os séculos XVII e XVIII.

Esse processo, que teve início no século XVII, inaugurou e estabeleceu a idéia inédita de privacidade ao longo dos dois séculos seguintes. Para Ariès (1991), três fatores principais seriam os responsáveis por esse acontecimento: em primeiro lugar, o novo papel do Estado, que sofrera alterações desde o século XV; em segundo, o desenvolvimento da alfabetização e a difusão da leitura; e, por último, as novas formas de religião que desenvolveram o sentimento de devoção e o exame das consciências. Todos esses fatores forçaram, paulatinamente, tanto a exploração pelo cidadão do espaço privado da vida familiar, um fato inédito na história, posto que a vida comunitária sempre fora o lugar de convivência social, quanto o hábito da reflexão e do recolhimento em sua própria subjetividade.

Na nova sociedade que se desenvolveu a partir dos séculos XV e XVI, surgiu o Estado de Justiça, isto é, novas leis que interferiam no cotidiano humano. Essa nova organização social, na qual o poder do rei era ilimitado, dividiu a sociedade européia em três classes distintas. Durante a Idade Média, essa segmentação era desconhecida, vivendo todos os cidadãos sob as mesmas condições sociais.

A primeira dessas classes sociais era a camada da nobreza, a classe cortesã, a qual, partícipe da ação política e do poder estatal, encontrava-se naquele espaço próprio do privilégio e da ostentação. Era a classe modelo e a inspiração para a burguesia ascendente, que não apenas se mirava nela como aspirava à sua reputação e às suas prerrogativas.

Em segundo lugar, definiu-se de maneira radical uma classe popular, a burguesia, instalada nas cidades e nos campos, mantida pelo trabalho próprio e na qual a ânsia por prestígio social funcionava como o motor da ambição e a justificativa da vaidade. Essa sociedade sem tradição, que cultivava uma sociabilidade ampla e mutável, encontrava nas ruas, praças e igrejas o seu espaço de convivência.

A terceira classe era formada por aquela massa popular mais simples, em sua maioria de miseráveis, desprovida de recursos materiais e de aspirações sociais e que vivia no limbo urbano ou rural, constantemente ignorada pelas outras duas.

Essas diferentes camadas sociais, a partir de um determinado momento, começaram a sofrer influências que levaram à novas regras de comportamento público: “O Estado do tipo novo, desenvolvido na Europa entre o final da Idade Média e o século XVII, instituiu um modelo inédito de ser em sociedade, caracterizado pelo controle mais severo das emoções, pelo senso mais elevado do pudor” (Ariés, 1991, p. 22).

Essas mudanças, que sustentavam os novos hábitos, estavam restritas, inicialmente, aos cortesãos e apenas paulatinamente passaram a atingir as demais classes sociais, levando, progressivamente, ao estabelecimento e à solidificação daqueles comportamentos que acabarão por definir toda a esfera do privado.

Além dessas alterações políticas que só foram possíveis pelo fortalecimento do poder do Estado e da figura do soberano absolutista, a Igreja também contribuiu para a emergência do novo habitus social ao instituir a confissão, o exame de consciência e ao dar ênfase à tarefa de todo cristão para a salvação pessoal. A fé e a prática religiosa abriam, assim, as portas do mundo interior e obrigavam o cidadão a confrontar sua subjetividade com as leis da Igreja, estabelecendo uma dicotomia entre elas.

As práticas da escrita e da leitura também participaram da emergência dessa nova modalidade de convivência. Até então a leitura e a escrita eram atos exclusivamente públicos, feitas em grupo, mas, aos poucos, passaram a ser feitas no recolhimento, dando lugar a uma reflexão cada vez mais íntima, nos ambientes reservados, verdadeiros refúgios do convívio social. Atesta esta alteração a presença do livro, que após a descoberta da imprensa se tornou mais comum como propriedade pessoal a partir do século XVI.

Todos os segmentos da vida comunitária e todos os aspectos da vida familiar e pessoal dos cidadãos testemunharam um processo de privatização progressiva durante os séculos XVII e XVIII: novas práticas sociais, novas noções de higiene e civilidade, novos hábitos. As pessoas começam a desenvolver o costume da escrita pessoal, como os diários e as cartas, o estudo e a meditação solitária. Até mesmo novos espaços arquitetônicos, como o gabinete, passaram a ser construídos.

As sociedades da época moderna atestaram, então, uma nova dicotomia social: de um lado, um fortalecimento da civilidade e, de outro, uma exacerbação da intimidade. Novas prescrições passaram a regulamentar as condutas sociais visando ao controle público das paixões e da repressão dos corpos no espaço coletivo, fosse na corte, nos salões ou na sociedade em geral. O exercício da solidão, do recolhimento e do silêncio ficou reservado aos espaços isolados cada vez mais presentes na arquitetura da época.

Assim, na esfera pública, as regras da civilidade submetiam as emoções, refreavam os afetos e dissimulavam os amores e as paixões. Nesse sentido, criou-se uma arte da representação de si mesmo para os outros. O que havia de mais genuíno e de mais íntimo precisava ser encoberto por um véu de hipocrisia e fingimento. O desejo precisava, a todo custo, ser banido da esfera do coletivo. Desde o século XVI até o início do XIX, esse processo desenvolveu-se e instalou-se nas sociedades européias.

As novas condições econômicas também contribuíram para a transformação progressiva na ordem social. Novas regras de convivência e etiqueta foram estabelecidas criando comportamentos cada vez mais artificiais e regidos por regras cada vez mais rigorosas (Ussel, 1980).

Se do ponto de vista social a burguesia se constituiu, ainda que lentamente, como uma classe detentora de uma moral própria e de um processo de desenvolvimento cultural característico entre os séculos XVII e XVIII, do ponto de vista jurídico e político ela só se firmou, de fato, no final do século XVIII e início do século XIX. Esse período que conheceu as lutas para o estabelecimento político da burguesia é denominado de “período romântico”.

Segundo Furet (1999), o título de “homem romântico” pode ser creditado ao indivíduo que nasceu na Europa Ocidental entre 1814 e 1840, isto é, logo após a solidificação de algumas repercussões políticas sociais da Revolução Francesa e o início da década que conheceria os movimentos liberais. Para esse autor, nesse momento, a burguesia começa a se estabelecer como classe relevante politicamente:

Podemos compreendê-lo a partir daquilo que confere à civilização européia da época uma característica particular: o desenvolvimento de um tipo de sociedade em que a classe média assume um papel cada vez mais importante, emancipando-se das hierarquias tradicionais do mundo aristocrático (Furet, 1999, p. 7).

Isso não quer dizer, entretanto, que os ideais e prerrogativas aristocráticos tivessem desaparecido. Assim sendo, o “homem romântico” participou de uma realidade social que não era aristocrática nem burguesa, o que explica o levante liberal de 1848. Entretanto, a nova classe social acabou definindo os destinos da Europa no limiar do século XVIII para o XIX. Heiz Gerhard Haupt (Furet, 1999) chama a atenção justamente para o fato de terem sido os burgueses que forjaram a imagem das cidades européias entre 1780 e 1840. Segundo ele:

[...] Embora ao longo do desenvolvimento do capitalismo industrial os empresários e os industriais tenham adquirido uma importância crescente, até mesmo nos países fortemente industrializados como a Inglaterra, não eram os capitães da indústria e os especuladores da bolsa que, na primeira metade do século XIX, caracterizavam a imagem da burguesia. Eram a burguesia municipal e a burguesia cultivada, funcionários e comerciantes, advogados e médicos que representavam o coração da vida urbana; já na Idade Média se tinham podido constituir nas cidades formas de economia e modalidades de existência que viriam a confluir mais tarde na fisionomia burguesa (Furet, 1999, p. 27).

Esse autor lembra ainda que era muito pequeno o número de cidades que possuíam em torno de um milhão de habitantes na Europa da primeira metade do século XIX. A maior parte da burguesia habitava pequenas cidades e povoados rurais e que apenas 23% dos ingleses, 12% dos franceses e 9% dos alemães viviam em cidades contendo mais de cinco mil habitantes. Esse fato produziu uma classe social de hábitos e crenças muito próximos e comungavam dos mesmos princípios morais:

[...] Às dimensões da cidade corresponde também o reduzido número de pessoas de opinião idêntica e idêntico estatuto no interior do qual era dado a burgueses e burguesas conviverem. Uma vida social restrita, um círculo limitado no interior do qual se casava e o peso das convenções sociais eram alguns dos elementos que caracterizavam as cidades pequenas (Furet, 1999, p. 27).

Nessa seqüência de fatos, uma nova e mais rígida moralidade se desenvolveu. Em primeiro lugar, o Iluminismo defendeu uma moral muito parecida com a cristã. Em seguida, na França, Napoleão Bonaparte impôs um espírito patriarcal, no qual a honra familiar passava pela autoridade soberana do pai. Assim sendo, durante o século XIX a família passou a ser, então, o exemplo das virtudes burguesas e a principal cooperadora nos interesses econômicos, uma vez que era a base para os negócios e detentora de uma política de casamentos como estratégia comercial. Com o passar do tempo, esse modelo de sociedade se expandiu para além do grupo social burguês, atingindo também os empregados e outros subalternos cujas vidas giravam em torno da família patriarcal burguesa.

Nessa linha de acontecimentos históricos, a sensibilidade e a sexualidade passaram por um processo de educação tão severo que foram banidas do espaço público e confinadas na intimidade das casas e no interior das almas. Noções de higiene começaram, então, a aprisionar o corpo de boas-maneiras e a censurar os sentidos. Os hábitos alimentares, que eram praticados em grupos, ou seja, comia-se e bebia-se em vasilhames comuns, passaram a ser individualizados. Arrotar, defecar, urinar, cuspir no chão, por exemplo, foram sendo confinados em espaços cada vez mais restritos. O sexo passou a ser, também, uma questão cada vez mais íntima e, em seguida, proibido fora das leis do casamento. Criavam-se normas e exigências que jamais poderiam ser cumpridas, forçando-se, então, o aparecimento de uma realidade paralela.

Quanto mais, porém, as regras sociais baniam o sexo, os afetos e as paixões do espaço público, mais força esses sentimentos ganhavam no espaço privado, legal ou não. Dentro das casas, abençoada pela Igreja e legalizado pelo Estado ou sob o manto da imoralidade nas ruas e nos bordéis, uma sexualidade lúbrica impunha a sua presença. Durante os três séculos da Idade Moderna, criou-se e viveu-se sob o signo da dissimulação e da aparência até que as paixões rebeladas clamaram novamente pelo seu lugar no espaço social.

As artes, como não poderiam deixar de ser, atestaram essa transformação, ou melhor, a rebeldia das paixões ao patrulhamento socioeconômico do período. No final do século XVIII, então, promoveram uma rebelião renovadora e apresentaram ao cidadão comum aquilo que havia sido proscrito do espaço público e da convivência social. O que havia sido relegado aos porões da alma humana retornava com toda a força, impondo-se novamente às consciências resignadas e entorpecidas. Esse movimento artístico renovador ficou conhecido como Romantismo.

 

Uma nova subjetividade

Abrams (1971), ao analisar a crítica literária romântica em seu livro The mirror and the lamp, reconstrói todo o conjunto de idéias estéticas e filosóficas que serviram de sustentação ao surgimento de uma “ideologia romântica”. A análise comparativa com os períodos anteriores revela o surgimento não apenas de uma nova teoria literária ou de uma orientação filosófica mas também o surgimento de uma nova visão de homem no limiar do século XIX.

Enquanto instrumento de análise e de descrição da realidade, a filosofia do período tinha como tarefa precípua o desvelamento de um novo homem e a literatura, enquanto ficção dessa mesma realidade, não se furtou em registrar esse momento inédito na história. O trabalho da crítica cumpria seu papel, expondo os meandros da novidade.

Cronologicamente, desde o início do século XVII, manifestou-se o que se poderia considerar uma revolução na história da filosofia. Revolução esta representada por René Descartes, no continente, e John Locke, na Inglaterra. Nos mil e quinhentos anos anteriores, o discurso filosófico havia se caracterizado como uma Ontologia. Interessava aos filósofos, antes de mais nada, o ser originário a partir do qual todos os outros ganhavam a sua definição e o seu sentido. Fossem as idéias de Platão o motor divino de Aristóteles ou Deus na filosofia cristã medieval, o homem também era definido em relação a esse referencial ontológico.

O século XVI testemunhou, então, uma guinada no interesse do discurso filosófico. Não se preocupavam mais com o discurso ontológico os filósofos do período. Esses estavam interessados em descobrir como a mente adquiria conhecimento da realidade. A essa ênfase no conhecimento do mundo convencionou-se chamar Epistemologia, isto é, o interesse pelas bases e formas do conhecimento do real. Embora sustentassem opiniões antagônicas, uma vez que os racionalistas, na esteira de Descartes, defendiam a tese de que a mente possuía idéias inatas, enquanto os empiristas, no rastro de Locke, sustentavam que todo conhecimento provinha exclusivamente da experiência sensorial, ambos os grupos dedicavam-se ao estudo da consciência humana e de suas funções.

Esse debate filosófico que versava sobre a subjetividade humana privilegiava apenas os aspectos racionais da experiência. Embora alguns filósofos se referissem às emoções, o espírito do tempo não se interessou por elas. Estavam certos também de que o conhecimento adquirido da realidade era um conhecimento objetivo que revelava precisamente o que seria o mundo exterior. Haveria, pois, uma relação de certeza entre o dado da consciência e o fenômeno real, o que queria dizer que a experiência sensorial estava ligada aos estímulos, isto é, que ela tinha uma base material também.

 

O espelho e a luz

No Prefácio de seu The mirror and the lamp, Abrams, ao apresentar a crítica literária romântica, revela uma profunda mudança na maneira de se compreender a relação homem-mundo mediante a nova concepção da obra de arte-mundo-artista. Segundo ele:

O título deste livro identifica duas metáforas antitéticas e usuais sobre a mente: uma, o refletor de objetos externos, a outra, um projetor radiante que faz contribuições ao objeto que percebe. A primeira delas era característica do pensamento desde Platão até o século XVIII; a segunda tipifica a concepção romântica prevalente da mente poética (Abrams, 1971, p. 11).

Segundo esse autor, Platão teria cunhado a metáfora do espelho, segundo a qual a mente refletiria a realidade ideal, isto é, aquela realidade antevista no “mundo das idéias”. Aristóteles também adotou a concepção de mente como espelho, como refletor da realidade. Ao contrário de Platão que considerava uma realidade ideal, ele considerava a realidade atual. Para ambos, a mente refletia o mundo por imitação: para um, imitação da realidade ideal, para o outro, da realidade material. O debate foi mantido ao longo dos dois milênios seguintes. Sobre isso, Abrams comenta:

‘Imitação’ continuou a ser um item predominante no vocabulário da crítica por um longo tempo depois de Aristóteles de fato, durante todo o século XVIII. A importância sistemática dada ao termo variava enormemente de crítico para crítico. Aqueles objetos do Universo que a arte imita, ou deveria imitar, foram considerados de várias formas: ou atuais ou ideais, de alguma maneira[...] Mas, particularmente após a recuperação da Poética e o grande surto da teoria estética na Itália do século XVI, sempre que um crítico se interessasse pelos fundamentos e expressasse uma definição compreensiva da arte, os atributos sempre incluíam a palavra ‘imitação’ e ainda, alguns termos paralelos, os quais, qualquer que fossem as diferenças implícitas neles, apontavam para a mesma direção: ‘reflexão’, ‘representação’, ‘falsificação’, ‘cópia’ ou ‘imagem’ (Abrams, 1971, p. 11).

A partir da Idade Moderna, com a nova concepção do homem-máquina e o interesse na compreensão da mente, com as novas condições econômicas, com a divisão da sociedade em três classes distintas, é bem possível que o interesse pela individualidade começasse a se exacerbar.

Três séculos mais tarde, essa visão evoluiu e promoveu uma alteração radical no discurso da crítica literária. Se, até então, a ênfase estava colocada na ‘imitação’ da realidade pelo artista, ela agora pousa na construção da realidade a partir do interior do poeta. A criação da obra é, então, entendida como fruto do estado mental do artista. A palavra de ordem é ‘expressão’, expressão das emoções, do eu interior do artista. Abrams escreve:

As definições da década de 1830 concordam que a poesia expressa emoção, mas no início do século, havia inúmeras opiniões sobre quais elementos mentais seriam externalizados num poema. A definição comum das Belas Artes, escreveu Coleridge em Poesy or art (1818) é que todas elas ‘como a poesia exprimem sentidos intelectuais, que têm sua origem na mente humana’[...] ‘A poesia é a música da linguagem’, Hazlitt escreveu no ano anterior, ‘expressão da música da mente’. Shelley declarou que ‘a poesia, num sentido geral, pode ser definida como ‘expressão da imaginação’; e naquele mesmo ano (1821), Byron queixava-se a Tom Moore, ‘eu não consigo fazer as pessoas entenderem que a poesia é a expressão das paixões revoltas (Abrams, 1971, pp. 48-49).

Essa reflexão sobre a emergência de uma subjetividade complexa, que extrapola os limites da razão e invade aquelas áreas mentais próprias dos desejos, das paixões, dos sentimentos e da imaginação que vemos surgir no século XIX como filha de sua época, parece ser a portadora de uma estranha verdade. Algo aconteceu no processo histórico que, pela primeira vez, essas manifestações humanas foram acolhidas e consideradas. A partir da segunda metade do século XVIII, uma nova poética começava a se delinear, a qual passou a ignorar as regras estabelecidas e partiu para desvendar o então obscuro mundo interior daqueles sentimentos e paixões supostamente inexistentes que haviam sido calados à força pelas convenções.

O Romantismo

Denomina-se Romantismo o movimento literário e artístico que se originou na Europa no final do século XVIII e estendeu-se até a primeira metade do século XIX, embora as suas fronteiras temporais não possam ser distinguidas tão precisamente. A definição do termo também não admite nenhum rigor, pois o movimento foi se estabelecendo lentamente e, dentre os comentaristas, há quem chegue a afirmar que: “Na verdade, chegar a uma noção operacionalisável de Romantismo é uma árdua tarefa, pois, como veremos, trata-se de uma discussão em que a discórdia é quase a única constante” (Loureiro, 2002, p. 77).

Existem outras abordagens tentando entender como e por que o Romantismo se originou. Do ponto de vista da história da arte, considera-se como uma de suas características mais gerais o fato de o movimento ter se estabelecido como uma reação ao Iluminismo e ao Neoclassicismo, que enfatizavam a razão, a ordem, o equilíbrio e o intelecto. Um outro traço característico do período seria o destaque dado à individualidade, à subjetividade e à exaltação do irracional, do emocional e do visionário.

Assim, também na “Introdução” de A pintura da era romântica, editado por Ingo F. Walther, pode-se ler:

Nem mesmo as disciplinas eruditas relacionadas com o Romantismo conseguiram mais do que chegar a uma definição aproximada, porque o conteúdo e a substância do movimento, pela sua própria natureza, convidam a interpretações e especulações controversas. O único ponto sobre o qual todos parecem estar de acordo é o Romantismo ter sido uma transição intelectual e artística que ocorreu no virar do século dezoito para o dezenove. No entanto, os problemas começam a surgir mal tentamos datar o seu início e o seu final. Enquanto que no campo da música, a maior parte dos compositores desde Beethoven a Richard Strauss são considerados românticos, a história literária concentra-se em duas ou três décadas à volta do ano de 1800. A história da arte ou se restringe ao período entre 1790 e 1840, ou, por outro lado, alarga enormemente o campo de pesquisa, descobrindo a atitude romântica na pintura desde o século XVIII (Walther, 1999, p. 11).

O editor da obra citada acima considera também que nas artes em geral os ideais românticos se desenvolveram, até certo ponto, por oposição ao Neoclassicismo e à sua inspiração principal nas tradições da Antigüidade greco-romana. O Romantismo teria, então, buscado parte de sua inspiração na Idade Média e no Renascimento, em temas da tradição judaico-cristã, que imprimiram ao movimento um caráter subjetivo e individualista, avesso a qualquer estilo normativo rígido, utilizando, especialmente na pintura, uma vasta gama de temas.

Historicamente, segundo Löwy e Sayre (1995), em Revolta e melancolia, tentou-se explicar o movimento como uma desilusão com a falência dos ideais da Revolução Francesa, que obrigou os cidadãos a um recolhimento interior. Análises marxistas destacaram a importância dos aspectos econômicos do período e esses autores propõem estudar essa corrente artística do ponto de vista de uma Weltanschuung, ou visão de mundo, isto é, de uma estrutura mental coletiva.

Em relação à literatura do período, Nathaniel Branden comenta:

Antes do surgimento do movimento romântico, a literatura da civilização ocidental era dominada pelo tema “destino”. Homens e mulheres eram apresentados como brinquedos _ às vezes rebeldes desafiadores, às vezes tristemente resignados, mas quase sempre brinquedos derrotados _ de um destino inexorável fora de seu controle, que determinava o curso de suas vidas, a despeito de suas escolhas, desejos e ações. De uma forma ou de outra, as peças teatrais, poemas épicos, sagas e crônicas, que precederam o nascimento da literatura romântica, transmitiam a mesma mensagem: os homens e mulheres eram reféns do destino, presos em um universo essencialmente antagônico aos seus interesses e, se fossem bem-sucedidos, o sucesso não se deveria a seus próprios esforços, mas a circunstâncias exteriores fortuitas. Esse foi um ponto de vista contra o qual o Romantismo se rebelou (Branden, 1982, pp .43-44).

Com relação à temática explorada pela literatura, isto é, os sentimentos e aspirações, assim como os fatos, recolhidos e trabalhados pela imaginação artística do período, esses não traziam nenhuma novidade do ponto de vista da natureza humana, mas eram portadores de uma nova forma de descerrar uma subjetividade recém-inaugurada. Estavam apenas confinados ao espaço mais íntimo da subjetividade e proibidos de aparecer no espaço comunitário. Assim sendo, a pergunta a ser feita é por que, naquele momento histórico, os subterrâneos da alma humana ganharam a luz e o interesse?

Do ponto de vista social, pode-se presumir que a conquista progressiva do espaço comunitário e a relevância política que a burguesia ia adquirindo, aos poucos, trouxeram de volta para a cena pública parte daquilo que havia sido banido até então e uma individualidade rebelde e inconformada, massacrada pelo processo histórico, se manifestou com toda a sua força. Assim, pela primeira vez, os sentimentos individuais passaram a desfrutar de uma valorização até então desconhecida. Pela primeira vez, o submundo da personalidade ganhou a luz e fez eco entre os contemporâneos que encontravam tanto na leitura quanto na pintura e na música a expressão de sentimentos que haviam sido sufocados. A miséria humana e a grandeza do espírito do cidadão comum ganharam as ruas e podiam ser discutidas por qualquer um.

Segundo Mario Praz, o adjetivo “romântico” e seus derivados passaram, com o tempo, a significar a subjetivação da experiência diante da natureza para a inspiração para a escrita dos romances da época. O termo se referia à nova literatura, na qual tinham lugar de destaque a inspiração e a sugestão. Estavam abertas, então, as portas para o obscuro mundo interior que até então não surgira à luz do dia. Sobre isso, Mário Praz comenta em seu livro Romantic agony: “A palavra ‘romântico’, assim, passa a ser associada a um outro grupo de idéias, tais como, ‘mágico’, ‘sugestivo’, ‘nostálgico’ e, acima de tudo, a palavras que expressam estados mentais que não podem ser descritos, como a alem㠑sehensucht’[saudade] e a inglesa ‘wistful’[saudoso, ávido, anelante]” (Praz, 1979, 14).

Assim, o adjetivo “romântico” e seus derivados passaram, com o tempo, a significar a subjetivação da experiência diante da natureza que serviam como fonte de inspiração para a escrita dos romances da época. Mário Praz propõe-se, então, a estudar a literatura romântica no que, segundo ele, é um dos seus aspectos mais característicos: a “sensibilidade erótica”. Para esse autor, em nenhum outro período literário, o sexo representou tanto a inspiração central para os trabalhos da imaginação e um dos aspectos mais particulares dessa literatura seria a educação da sensibilidade erótica. O mesmo acontecia com o tema da morte, tão caro aos escritores românticos, que se revestia de uma característica peculiar: longe de se tratar de uma discussão sobre a finitude humana, tratava-se da erotização da morte e um gosto acentuado pelo macabro. Esse apego à morbidez foi ilustrado, dentre outros, por Alexandre Dumas e Gustav Flaubert.

Em A dama das camélias, Dumas (1996) descreve a ânsia de Armand Duval, amante da falecida Marguerite Gautier, de revê-la depois de morta. Para isso, era necessário exumar o corpo, a pretexto de transferência de sepultura. Segundo o narrador da trama, após a abertura da cova de Marguerite:

Uma grande mortalha branca cobria o cadáver e deixava aparecer algumas sinuosidades. A mortalha estava quase completamente carcomida numa das pontas, e deixava sair um pé da morta.

Eu estava a ponto de passar mal, e no momento em que escrevo estas linhas a lembrança de tal cena me surge na sua imponente realidade.

-Vamos parar - disse o comissário.

Então, um dos homens estendeu a mão, pôs-se a descosturar a mortalha e, pegando-a pela ponta, descobriu, bruscamente, o rosto de Marguerite.

Era horrível de ver, era horrível de contar.

Os olhos não eram mais do que dois buracos, os lábios haviam desaparecido e os brancos dentes estavam fincados uns nos outros. Os longos cabelos negros e secos estavam grudados nas têmporas e cobriam um pouco as cavidades verdes das bochechas; e, no entanto, reconhecia naquele rosto o rosto branco, róseo e alegre que tanto vi (Dumas, 1996, p.49).

Flaubert também descreve a morte lenta e dolorosa de Ema Bovary, após a heroína ter se envenenado, propositadamente, com arsênico:

Depois Ema começou a gemer, a primeiro muito fracamente. Sacudiam-lhe os ombros grandes arrepios e tornou-se mais branca que o lençol em que cravava as unhas. O pulso irregular era agora quase insensível.

Tinha orvalhado de gotas de suor o rosto azulado, que parecia como que coalhado pela exalação de um vapor metálico. Batia os dentes, os olhos dilatados relanceavam-se vagamente em torno e só respondia a todas as perguntas com acenos de cabeça; chegou mesmo a sorrir por duas ou três vezes. Pouco a pouco, seus gemidos foram-se tornando mais fortes. Soltou um uivo surdo; dizia que estava melhor e daí a pouco se levantaria. Mas as convulsões recomeçaram; e exclamou:

- Ah! É horrível, meu Deus! (Flaubert, 1979, p. 235).

A agonia de Ema foi longa. Ao final, seus últimos instantes são descritos meticulosamente, transformando o leitor em testemunha da ruína física daquela mulher que vivera em pecado:

No mesmo instante, começou-lhe o peito a ofegar rapidamente. A língua saiu-lhe toda para fora da boca; os olhos, num movimento contínuo, amorteciam-se como dois globos de lâmpadas que se apagam; até a julgariam já morta, se não fosse a medonha aceleração do arfar das costelas sacudidas por uma respiração furiosa, como se a alma estivesse aos pulos para se desprender.

[...] Seguiu-se uma convulsão, que a fez de novo deitar. Todos se aproximaram. Ema não existia mais (Flaubert, 1979, pp. 242-242).

Com relação à educação da sensibilidade erótica a que Praz se refere, tudo indica, entretanto, que essa estaria longe daquela sensibilidade erótica própria dos encontros amorosos entre um homem e uma mulher. Ela não diz respeito apenas ao desejo erótico que une dois seres de sexos opostos e aos sentimentos afetuosos daí decorrentes. A sensibilidade erótica aqui diz respeito àqueles aspectos mais sombrios do sexo, àqueles sentimentos soturnos que as regras sociais reconhecem e, hipocritamente, recomendam a cautela e o exílio. Esses aspectos sombrios do sexo são aqueles que Freud denominou “perversões” em seu livro Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905. Ali, ele descreve a sexualidade infantil como auto-erótica, isto é, voltada para o próprio corpo da criança e esta, como um “perverso polimorfo”. Esta denominação justifica-se, e não carrega nenhuma carga de valor moral, com o deslocamento da energia sexual, a libido, pelas diferentes “zonas erógenas” do corpo e o tipo de comportamento erótico que estas acrescentam à sexualidade infantil. Assim, na fase anal, encontramos os pares sadismo-masoquismo e na fase fálica, o exibicionismo-voyerismo. Nessa época da vida, masculino e feminino caracterizam-se por uma atitude ou ativa, para o masculino, ou passiva, para o feminino. Na vida adulta, a fase genital, a sexualidade seria composta também desses elementos infantis, que Freud denomina “impulsos componentes”. Mas estes estariam sob o comando da genitalidade, seriam impulsos parciais e participariam como coadjuvantes do ato sexual.

A perversão no adulto seria o domínio da vida sexual por um desses impulsos parciais que não teria se submetido ao recalque após o complexo de Édipo. Em todo ato sexual adulto estão presentes, em doses maiores ou menores, componentes sádicos e/ou masoquistas, exibicionistas e/ou voyeristas. Na perversão, um desses componentes passaria a ser o objetivo principal do ato sexual. Assim, o prazer de infligir sofrimento ao parceiro caracterizaria o “sadismo’; o prazer no auto-sofrimento, o masoquismo. O prazer sexual em exibir os órgãos genitais caracterizaria o “exibicionismo” e o de observar ato sexual alheio, o “voyerismo”.

Seriam, então, estes aspectos da sexualidade humana, juntamente com outros comportamentos desviantes, tais como a prostituição, a infidelidade conjugal e a promiscuidade erótica, dentre outros, que estariam no cerne da inspiração romântica. Para os escritores do período, os pares de opostos seriam amor e dor, sofrimento e terror, prazer e agonia. A literatura romântica teria trazido à luz do dia as trevas da subjetividade, aquelas características do espírito até então confinadas nos subterrâneos obscuros da alma humana.

Vitor Emanuel de Aguiar e Silva, em seu livro Teoria da literatura, comenta:

[...] o século XIX constitui inegavelmente o período mais esplendoroso da história do romance. Depois das fecundas experiências dos românticos, sucederam-se durante toda a segunda metade do século XIX, as criações dos grandes mestres do romance europeu. Forma de arte já sazonada, dispondo de uma vasta audiência e desfrutando de um prestígio crescente, o romance domina a cena literária. Com Flaubert, Maupassant e Henry James, a composição do romance adquire uma mestria e um rigor desconhecidos até então; com Tostoj e Dostoiewskj, o universo romanesco alarga-se e enriquece-se com experiências humanas perturbantes pelo seu caráter abismal, estranho e demoníaco; com os realistas e naturalistas, em geral, a obra romanesca aspira à exatidão da monografia, de estudo científico dos temperamentos e dos meios sociais. Em vez dos heróis altivos e dominadores, relevantes quer no bem, quer no mal, tanto na alegria como na dor, característicos das narrativas românticas, aparecem nos romances realistas as personagens e os acontecimentos triviais e anódinos extraídos da baça e chata rotina da vida.

Essas aberrações românticas eram envolvidas em auras de tal inspiração estética que adquiriam elevação. Nessa literatura destacam-se ideais masculinos e femininos de composição essencialmente mórbida que embalam o imaginário popular da época e fazem da literatura a porta-voz de desejos onipresentes mas censurados pelos padrões sociais que estimulavam, até então, um comportamento social voltado para a dissimulação, numa sociedade de frágil aparência.

 

O ideal feminino

O papel da mulher durante os séculos XVIII e XIX, no âmbito social, estava longe de ser o de uma figura alienada ou impotente frente aos fatos econômicos e políticos. Stéphane Michaud destaca a força e o engajamento das mulheres nos processos sociais, nos quais muitas delas empenharam a própria vida:

[...] O estado de opressão que pesa sobre as mulheres não as impede de agir. As mais conservadoras, longe de observarem exclusivamente os preceitos masculinos, moldam um novo rosto da filantropia, da religião ou da caridade. Outras intervêm na cena política através de seus escritos (imprensa, panfletos, etc.), ou participam nos acontecimentos (manifestando-se nas ruas ou fundando clubes durante os períodos revolucionários). O preço a pagar pode ser exorbitante: a privação da liberdade, a intervenção policial, ou o patíbulo. Graças aos progressos da instrução e da tipografia, as mulheres entram em número maior do que nunca na literatura, inventando segundo os diferentes casos, no registro das formas, uma expressão própria (Furet, 1999, p. 93).

Desde, então, o final do século XVIII, algumas mulheres tentaram impor o debate sobre os seus direitos de cidadania, tornando-se, algumas delas, presenças inconvenientes no mundo burguês masculino. Charles Dickens, em seu romance A casa soturna, publicado como folhetim entre março de 1852 e setembro de 1853, imortalizou a figura dessa mulher engajada politicamente em uma de suas personagens. Esta era a Sra. Jellyby, de nobilíssima força de caráter e inteiramente devotada às causas públicas, e que naquele momento se dedicava à causa africana. Ela era uma mulher desatenta dos afazeres domésticos e alheia à qualquer vaidade feminina. Assim a descreve uma de suas visitas:

[...] A Sra. Jellyby tinha uns cabelos bem bonitos, mas vivia muito ocupada com suas obrigações africanas para ter tempo de penteá-los. O xale, no qual estivera negligentemente enrolada, caíra na cadeira, quando ela se adiantou ao nosso encontro. E voltando a sentar-se não pudemos deixar de notar que seu vestido quase não se juntava nas costas e o espaço deixado aberto era resguardado por uma espécie de grade de cordões de espartilho, lembrando o gradil de uma casa de verão (Dickens, 1986, pp. 41-42).

Diante de seus hóspedes, a Sra. Jellyby esclarece as suas atividades de mulher ativa politicamente:

[...] encontram-me, meus caros amigos, como de costume, bastante atarefada. Mas hão de desculpar-me. O projeto africano ocupa presentemente todo o meu tempo. Obriga-me a manter correspondência com instituições públicas e com particulares ansiosos pelo bem-estar de seus semelhantes por todo o país. Sinto-me feliz por poder dizer que a coisa está progredindo. Esperamos ter, por este tempo, no ano vindouro, de cento e cinqüenta a duzentas famílias sadias, cultivando café e educando os naturais de Borriobuls-Gha, na margem esquerda do Níger (Dickens, 1986, p. 42).

Pode-se, pois, presumir que o universo feminino que poderia inspirar a imaginação dos escritores do período, fosse bastante complexo, o que torna mais ainda intrigante a escolha feita pela literatura romântica e decadente de seu ideal de mulher. Sobre isso, Stéphane Michaud comenta:

Abstracta ou imaginária, imóvel na singularidade da norma ou do mito, a Mulher gira, fantasmática e esplêndida, em torno do limiar de uma vida de que se encontra para sempre exilada. Espelho ingênuo dos temores do seu tempo, o romance popular, tal como floresce por volta de 1840, reconhece-lhe apenas pois papéis: o da mulher honesta, vítima de perseguições, e o da perversa, causa de todos os males e todos os escândalos. As subtilezas próprias da poesia são ainda mais perigosas. Estará a poesia consciente das “perversões” a que conduz ao utilizar a mulher como princípio espiritual? (Furet, 1999, p. 91).

Num jogo de extremos, o ideal feminino romântico misturava a beleza ao horror dos sofrimentos intermináveis. Um belo rosto de mulher escondia uma alma sombria, sinistra, à mercê de um ciclo ininterrupto de fatalidades. As personagens encarnavam damas definhando de amargura, mulheres tuberculosas em minueto macabro com a morte. O horror e a desdita eram fontes de prazer estético para esses autores. Segundo Praz:

Por outro lado, a idéia da dor como uma parte integrante do desejo é um problema diferente e apresenta-se como uma certa novidade[...] Não é apenas Novalis o único escritor a observar a íntima conexão entre crueldade e desejo, entre prazer e dor. Shelley concluiu, desconsoladamente, que a dor é inseparável do prazer humano (Praz, 1979, 28).

Esse ideal feminino dos escritores românticos revelava-se na mulher bela e sofredora, marcada pela melancolia e o desespero, vítima das paixões avassaladoras: um rosto angelical à beira do abismo. Uma imagem magnética que capturava o coração do autor e dirigia-lhe a mão que empunhava a pena. É Praz quem escreve:

Lindas empregadas ou mendigas, feiticeiras sedutoras, negras fascinantes, prostitutas degradadas _ todos esses temas que os escritores do século XVIII trataram com leve ânimo e com ‘jeux d’esprit’, serão encontrados novamente, mas impregnados com um gosto amargo da realidade nos autores românticos e especialmente, no poeta em quem a musa romântica destilava seu veneno mais sutil _ Baudelaire (PRAZ, 1979, 40).

Essa malfadada donzela, às vezes pura e constantemente perseguida, sempre inspirou a imaginação artística, mas durante o século XVIII ela retorna à cena e se desloca para o centro da ação durante o século XIX. Seduzida e vítima da libertinagem alheia é presa da ruína e da perdição. Inúmeros autores trataram do tema ainda no século XVIII. Richardson reedita a jovem que, sofredora neste mundo, triunfará no céu. Diderot, dentre outros, também abordou o tema em seu livro A religiosa (1760). Sobre ele, Praz escreve:

[...] uma novela que, embora baseada em um escândalo que aconteceu realmente, adota o esquema das novelas de Richardson e oferece um panorama detalhado das torturas morais e físicas, ostensivamente com o objetivo de propaganda anti-clerical, mas revelando, da parte do autor, uma certa complacência a qual logo em seguida tomaria seu nome de outro escritor francês, o Marquês de Sade. Diderot proclama, incessantemente, a virtude de sua heroína e dá a impressão de fazê-lo apenas para adicionar mais um condimento picante à crueldade de sua perseguição. É uma antecipação de Justine. (Praz, 1979, 99).

Muitos críticos consideraram o livro de Diderot apenas literatura licenciosa e obscena. Ele, entretanto, parecia ter outros objetivos ao relatar a história, baseada em fatos reais, de uma jovem religiosa que tentara, em vão, se livrar dos votos religiosos que fora obrigada a proferir.

Henri Bénac, na introdução que faz para a edição da obra da Abril Cultural, assim comenta:

[...] A crítica à vida monástica tornara-se, em 1760, um dos temas mais familiares aos filósofos, e as regras dos conventos chocavam particularmente o naturalismo de Diderot. Eram, com efeito, a própria negação mesma da sensibilidade universal cujas exigências a natureza humana reflete por seus por seus legítimos instintos. Embora o problema da religião não seja diretamente situado no romance, a irreligião de Diderot podia comprazer-se em mostrar que, longe de aprimorar o homem, a regra religiosa arrisca-se a desenvolver nele as piores depravações (Diderot, 1979: 31).

Ao ideal da jovem perseguida, outros virão mais tarde. A partir da segunda metade do século XIX, o romance atinge o seu apogeu. Começa, então, o período que os críticos denominam “Decadente”. Outros tipos de mulher ganham a cena. São mulheres arrebatadoras, lindas, envolventes e fatais. Prostitutas, adúlteras, de caráter infame. Gustav Flaubert brilha nesse universo perverso com suas heroínas devastadoras. Sobre ele, Mario Praz escreve: “O trabalho de Flaubert fala muito claramente, seus manuscritos da juventude e os volumes de cartas ainda mais claramente; sem dúvida, as provas documentais são muito abundantes[...] (Praz, 1979: 155). E mais adiante acrescenta: “O ideal feminino de Flaubert é, naturalmente, uma mulher de caráter infame, uma prostituta, uma adúltera.” (Ibid, 157).

 

O ideal masculino

Se a mulher se apresenta, então, como um ideal de beleza imerso em fatalidade, as personagens masculinas também são bafejadas pelo mal. Inspirados por um ideal satânico: o olhar revela tristeza e morte. Este herói decaído tem o encanto do rebelde indômito e a aparência empalidecida denotando aparente fragilidade. Segundo Praz:

Certas qualidades podem ser observadas aqui que estavam destinadas a aparecer de maneira recorrente no homem fatal dos românticos: origem misteriosa (mas, presumivelmente para ser exaltado), traços de paixões incandescentes, suspeitos de culpa horrível, hábitos melancólicos, face pálida, olhos inesquecíveis. Decididamente, há algo do Satã de Milton nesse monge, em quem ‘o ar e os atributos exibem a energia selvagem de alguma coisa que não pertence a este mundo’ (Praz, 1979: 61).

Mas essa figura masculina, que será revestida com a máscara de Satã, é muito antiga, desenvolve-se, segundo Praz, a partir de Tasso e seu Jerusalém liberata, no qual esta personagem conserva ainda a terrível máscara medieval. O tema retorna com Milton, em O paraíso perdido, e se estabelece, aos poucos, na literatura ocidental. Schiller também o recria em seu ladrão de 1781, Karl Moore. Numa linhagem que vai se arrastando pelo século, Byron dá uma grande contribuição para o estabelecimento do ideal masculino satânico, especialmente em seu The giaour. Antes dele, Mrs. Radcliffe já tinha recriado esta personagem em Schedoni e, assim, influenciou Byron. Praz comenta: “A face pálida sulcada por um pesar antigo, o raro sorriso satânico, os traços de obscura nobreza[...] merece uma melhor sorte - Byron, pode-se dizer, inspirou esses seus personagens em uma quase escravizada inspiração em Mrs. Radcliffe” (Praz, 1979, 68).

Stendhal, autor de O vermelho e o negro (1830), cujo romance Balzac considerava a primeira obra romântica na França, caracterizou o seu herói, Julien Sorel, como um homem envolvente, sedutor e condenado à morte de maneira violenta. Assim o jovem se apresenta:

A Sra. De Rênal, por sua vez, estava contemplando enganada com a beleza da pele, com os grandes olhos negros de Julien e com os seus lindos cabelos, que estavam mais crespos do que de ordinário, pois, que ele acabava de mergulhar a cabeça no chafariz público. Com grande alegria sua, achava um ar tímido de donzela naquele fatal preceptor, cuja dureza e cujo ar rebarbativo tanto temera para os filhos. Para a alma tão sossegada da Sra. De Renal, o contraste dos seus temores e do que acabava de ver foi um grande acontecimento. Finalmente, refez-se da surpresa. Ficou espantada de achar-se assim, à porta da casa, com aquele moço em mangas de camisa e tão perto dela (Stendhal, 1979: 34).

Tentativa de uma abordagem psicanalítica do problema

Foram citadas, inúmeras possibilidades de explicação para o surgimento de um estilo literário tão intrigante quanto o foi o Romantismo. Se as questões sociopolíticas e econômicas foram apontadas e entendidas como o reconhecimento da burguesia pela urgência de suas paixões confinadas num cenário de exaltação da individualidade pelo progresso econômico, resta ainda uma tentativa de explicar o interesse dos autores e/ou leitores por esse tipo de mulher, que se poderia chamar de mulher-coisa, a qual é usada, abusada, seviciada e vilipendiada ao bel prazer masculino.

Segundo o pensamento de Sigmund Freud, o interesse dos homens por essas mulheres dominadas meros joguetes, ou pelas adúlteras, prostitutas e depravadas, é decorrente da necessidade da sexualidade masculina de depreciar o objeto de seu desejo. Um fato deveras estranho quando o ideal social mais divulgado, historicamente comprovado e paradoxalmente mais aceito pelos homens, é o da mulher pura e casta, ao modelo das mães. Parece que reside aí, justamente, a causa do problema.

A necessidade de depreciar o objeto sexual é decorrente do que Freud denominou de “impotência psíquica”. Esta é encontrada mesmo entre aqueles homens de forte natureza libidinal. A impotência se estabelece não em relação às mulheres, mas sim em relação a alguém em especial, a esposa, a namorada ou mesmo a amante quando a relação afetiva se sobrepõe à erótica.

Segundo Freud, essa impotência psíquica é fruto de um conflito que se estabelece na mente dos homens em decorrência de fantasias incestuosas que se mantêm ativas no inconsciente. Nessa linha de pensamento, seu trabalho clínico levou-o a descobrir que, durante a infância, surge uma complexa situação afetiva que deixará suas marcas por toda a vida.

Assim, durante a infância, duas correntes estariam agindo no psiquismo do menino. Uma delas, a corrente afetiva propriamente dita, “forma-se na base dos interesses dos instintos de auto-preservação e se dirige aos membros da família e aos que cuidam da criança” (Freud, 1970, p. 164). Essa corrente afetiva arrasta para si os componentes eróticos da corrente sexual que já estão presentes e atuantes nesse período da vida. “Aprendemos, assim, que os instintos sexuais encontram seus primeiros objetos ao se apegarem às apreciações feitas pelos instintos do ego, precisamente no momento em que as primeiras satisfações sexuais são experimentadas em ligação com as funções necessárias à preservação da vida” (Freud, 1970, p. 164).

Essas fixações afetivas da criança persistem por toda a infância e levam consigo o erotismo infantil que apresenta características próprias e fundamentais para a sexualidade adulta. Durante a puberdade, a corrente erótica torna-se poderosa e obriga o jovem a procurar objetos, pessoas para a sua satisfação sexual. Embora ele o faça segundo o modelo de sua escolha infantil, a barreira do incesto obriga-o a buscar esses objetos na realidade. Com o tempo, esses objetos eróticos atrairão para si também aquela corrente afetiva que se ligava aos objetos infantis: “O máximo de intensidade de paixão sensual trará consigo a mais alta valorização do objeto sexual por parte do homem” (Freud, 1970, p. 165).

Porém, ao se unirem novamente, essas duas correntes reeditam aquela vivência infantil que Freud denominou de complexo de Édipo, e, no caso do homem, sua vida afetiva será influenciada pelos efeitos inconscientes desse complexo. Assim, a mulher amada será uma reedição de sua relação com a mãe, que ele a todo custo procurará evitar.

Conforme Freud sagazmente comenta, essa situação é a mais comum na sexualidade masculina. Tornou-se, já, um conhecimento empírico de toda a sociedade, que os maridos dedicam às suas esposas os sentimentos mais elevados e às amantes os desejos mais tórridos. A desunião dessas duas correntes leva o homem a recuperar a sua potência sexual, mesmo tendo que ter um objeto de amor duplo: uma esposa para amar e uma mulher depreciada para desejar.

Segundo Sigmund Freud, uma das ocorrências mais comuns em sua clínica psicanalítica, e daqueles de seu círculo, era a impotência psíquica. Esta atingia inclusive homens de natureza intensamente libidinosa, e se caracterizava por ser um impedimento do ato sexual com determinadas pessoas apenas, voltando a potência masculina ao seu estado normal com outras mulheres.

Isto quer dizer que há um conflito de ordem puramente psíquica atuando nesses casos, e, claro, esse conflito é inconsciente.

Seriam, então, estes aspectos da sexualidade humana, juntamente com outros comportamentos desviantes, tais como a prostituição, a infidelidade conjugal e a promiscuidade erótica, dentre outros, que estariam no cerne da inspiração romântica? Para os escritores do período, os pares de opostos seriam amor e dor, sofrimento e terror, prazer e agonia. A literatura romântica teria trazido à luz do dia as trevas da subjetividade, aquelas características do espírito até então confinadas nos subterrâneos obscuros da alma humana.

O Romantismo no Brasil

No Brasil, dentre os vários autores do período, Álvares de Azevedo, em sua prosa, conserva a tendência romântica de tratar a mulher como uma “coisa”, um mero joguete, à mercê da violência e da sensualidade masculinas. Em suas poesias, entretanto, a mulher surge como a virgem santa, pura e inatingível. Ela encarna o ideal da elevação moral.

Em Noite na taverna, ele relata a história de vários homens que estão reunidos numa taverna em algum lugar não especificado da Europa. As personagens provêm de várias regiões e diferentes destinos, reunidos pelo gosto ao álcool e às paixões sensuais: Johann (materialista incrédulo), Arnold (loiro), Bertram (dinamarquês), Solfieri (o mais velho), Gennaro (pintor), Claudius Hermann e Archinbold.

Logo nas primeiras linhas, percebe-se o desprezo e a desconsideração que as personagens demonstram pelas mulheres. Ao solicitar mais vinho, diz Bertram: “Ola taverneira, não vês que as garrafas estão esgotadas? Não sabes, desgraçada, que os lábios da garrafa são como os da mulher, só valem beijos enquanto o fogo do vinho ou o fogo do amor os borifa de lava?” (Álvares de Azevedo, 1997, p. 8).

Em seguida, o autor apresenta um debate breve sobre o materialismo, o espiritualismo e a metempsicose. De fato, a posição materialista é defendida pelos presentes que contam as suas histórias macabras, cheias de sexo, violência e morte. Na verdade, apontam para a condição dissoluta e à ruína moral a que viram reduzidas as suas vidas.

Na primeira narrativa, feita por Solfieri, destaca-se o ideal da virgem perseguida que, em sua desdita, encontra a morte. A história se passa em Roma, que parece aguçar ainda mais a imaginação poética, e é assim definida: “...Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia, no leito da vendida se pendura o crucifixo lívido. É um requintar de blasfemo, que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença!” (Álvares de Azevedo, 1997, p. 13).

Andando certa noite pela cidade, embriagado após horas de orgia, Solfieri vê uma mulher pálida à janela: uma sombra branca e sofredora, a quem ele acompanha até o cemitério, onde a perde de vista. Um ano mais tarde, na mesma cidade, embriagado, como de hábito, o rapaz, quando dá por si, encontrava-se no interior de uma igreja, diante de um caixão onde repousava o corpo da figura pálida e sofredora que vira tempos atrás.

Dominado pelo desejo, fechou as portas da igreja, retirou a moça do caixão e possuiu-a ali mesmo. Ela, então, despertou subitamente de seu sono cataléptico, enlouquecida. Solfieri rapta-a e, em seu quarto, dois dias mais tarde, ela faleceu.

O rapaz chamou um estatuário e encomendou-lhe uma estátua dela. Após a feitura do molde em cera, ele enterrou no chão de seu quarto o cadáver, sob a cama onde dormia. Após um ano, o estatuário trouxe-lhe a estátua, que passou a dividir com ele o leito. Como lembrança da defunta, ele ainda guardava aquela grinalda que ela usava no caixão: “Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas. Vede-la? Murcha e seca como o crânio dela!” (Álvares de Azevedo, 1997, p. 19).

O próximo a contar a sua história é o dinamarquês Bertram. Seu relato versava sobre seus amores perversos e malfadados. Encontrara vários tipos de mulher. Em Cadiz, conheceu Ângela, uma adúltera e aventureira que, quando se vê descoberta pelo marido, mata-o, assim como ao filho pequeno, para fugir com o amante.

Os dois passaram a levar uma vida insana. Ângela vestira-se de rapaz e ambos viviam entre bares, viagens e noites de amor e volúpia, até que um dia ela partiu.

Em seu peito, Bertram levava o germe dos vícios que ela ali lançara. Tornou-se, então, um jogador desonesto, um aficionado em orgias e um espadachim impiedoso. Após um acidente, foi acolhido por um velho fidalgo viúvo, em seu palácio, quando, então, conheceu a filha de seu benfeitor, a quem ele seduziu, possuiu, raptou e, por fim, vendeu a piratas. Em desespero, a moça se matou.

Certo dia, na Itália, saciado de vinho e sexo, quis suicidar-se e atirou-se de um rochedo ao mar. Quis o acaso que ele fosse socorrido por um marinheiro, que pagou com a própria vida o seu gesto de solidariedade. Bertram foi, então, recolhido pelo capitão de uma corveta que deixava a costa rumo ao alto-mar. Ele ficou a bordo, protegido do capitão. Este, entretanto, não viajava só. Sua mulher, que o acompanhava, foi a conquista seguinte do rapaz. Bertram apaixonou-se perdidamente pela mulher do comandante, esquecendo-se de que àquele homem, a quem cobiçava a mulher, devia a sua existência. Após algumas reviravoltas, acidentes, naufrágios e mortes, somente Bertram se salva, continuando a se arrastar por uma vida devassa e dissoluta.

Embora invocasse o amor, sua história repete o ideal perverso de diferentes tipos de mulher: a adúltera, assassina e aventureira; a virgem incauta que se entrega por amor e só se depara com as adversidades de uma vida de paixão e tortura, encontrando na morte a única saída honrosa para um destino deletério; e uma outra adúltera que se acumplicia do traidor do marido, que, em vez da gratidão por ter-lhe salvado a vida, retribui-lhe o ato apossando-se do que ele tinha de mais valioso.

Na história seguinte, Gennaro, aos dezoito anos de idade, foi trabalhar com Godofredo Walsh, o pintor. Homem já mais velho, casado em segundas núpcias com uma mulher bem mais jovem, tinha, do primeiro casamento, uma filha, Laura. A mulher de Godofredo, Nauza, tinha vinte anos, Gennaro, 18, e Laura, 15. A filha do pintor se entregou a ele. Tornaram-se amantes e a jovem engravidou. Ao praticar um aborto, ela faleceu em decorrência de complicações.

Em seguida, ele conquistou a mulher do pintor e ambos passaram a ter um caso. O pintor descobriu toda a verdade e tentou matá-lo. Ele se salvou se atirando de um penhasco, quando foi amparado por uma frondosa árvore. Tempos depois, já recuperado, descobre que o pintor envenenara a si e à esposa e descreve, então, a cena macabra que testemunhara quando invadiu a casa de Godofredo Walsh:

O raio de luz bateu em uma mesa. Junto estava uma forma de mulher com a face na mesa e os cabelos caídos: atirado numa poltrona um vulto coberto com um capote. Entre eles, um copo onde se depositara um resíduo polvilhado. Ao pé estava um frasco vazio. Depois eu soube - a velha da cabana era uma mulher que vendia veneno e fora ela decerto que o vendera, porque o pó branco do copo parecia sê-lo.

Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça... Era Nauza, mas Nauza cadáver. Já desbotada peça podridão. Não era aquela estátua alvíssima de outrora, as faces macias e o colo de neve... Era um corpo amarelo... Levantei a ponta da capa do outro: o corpo caído de bruços com a cabeça para baixo; ressoou no pavimento e estalo do crânio... Era o velho!... morto também, roxo e apodrecido!... Eu o vi: da boca lhe corria uma escuma esverdeada (Álvares de Azevedo, 1997, p. 53-54)

O elenco de mulheres sofredoras, prontas para o desfrute masculino, é interminável. A virgem que morre em decorrência de seus prazeres pecaminosos e a mulher adúltera que encontra a morte pelas mãos vingativas do próprio marido apenas confirmam para que servem, aos homens, as mulheres. São meros brinquedos eróticos, portadoras de amores e dores intermináveis.

Na seqüência da narrativa, os presentes insistem e Claudius começa a contar a sua história. Ele fora um jogador viciado. Em Londres, perdeu toda a sua fortuna em orgias e no turfe. Antes da ruína, certo dia, nas corridas, ele conheceu uma mulher casada, a duquesa Eleonora, por quem se apaixonou perdidamente. A atração mórbida que sentia pela mulher fê-lo, com a ajuda de um dos empregados da casa do duque, dopá-la, possuí-la enquanto dormia e raptá-la. Sua ação trouxe a ruína moral e psíquica ao casal. Antes de concluir, Claudius interrompeu a história. Parecia não suportar o seu desfecho. Os demais insistiam para que ele continuasse, mas ele se recusava. Arnold-o-loiro tomou a palavra e revelou o triste fim:

Escutai vós todos, disse: um dia Claudius entrou em casa. Encontrou o leito ensopado de sangue e num recanto escuro da alcova um doido abraçado com um cadáver. O cadáver era o de Eleonora, o doido nem o poderíeis conhecer tanto a agonia o desfigurara! Era uma cabeça hirta e desgrenhada, uma tez esverdeada, uns olhos fundos e baços onde o lime da insânia cintilava a furto, como a emanação luminosa dos pauis entre as ervas.

Mas ele o conheceu... - era o duque Maffio... (Álvares de Azevedo, 1997, p. 79).

Claudius soltou uma gargalhada sombria como a insânia. Estava ébrio. Deitou sobre a sua capa e dormiu.

Johann, por sua vez, relatou também a sua história, que se passava em Paris, na qual, sem o saber, cometeu incesto com a sua própria irmã, que o confundira com o namorado, numa noite escura.

Percebe-se, assim, pois, que essa obra de Álvares de Azevedo se parece com um manual do ideal feminino do período romântico, conforme destacado por Mário Praz. As personagens femininas são mulheres vis e perdidas, prontas ao sexo, portadoras de infortúnios e de uma sorte deletéria, ou são virgens puras que se entregam por amor, ou são tomadas à força, e cujo destino não é outro senão a ruína moral e física, restando-lhes apenas a morte após períodos de perdição e desdita. Uma relação incestuosa, ainda que involuntária, um mero capricho do destino, também está presente na história. Novamente, a sentença nesse caso é a morte trágica das personagens envolvidas. Mulher e sexo, amor e dor são as únicas rimas possíveis nesse universo de luxúria e sofreguidão, no qual as leis morais são ignoradas ou desconhecidas, reduzindo as personagens a títeres de paixões avassaladoras e deletérias. Prazeres efêmeros e sofrimentos perenes fazem parte do destino daqueles que se entregam à ânsia da vida e do amor carnal.

Em sua poesia, entretanto, Álvares de Azevedo parece cultivar um outro tipo de mulher, que encarna um ideal moral elevado: a jovem virgem, pura e intocável. Em seu poema, “Lembrança de morrer”, surge essa personagem etérea e inalcansável, de quem o poeta moribundo se despede lamentoso de jamais conhecer:

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei... que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta destas flores...
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar dos teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo ...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Tem-se, pois, a oportunidade de encontrar em um mesmo autor do período, aquela dicotomia em relação à mulher que Sigmund Freud destacou em seu texto citado acima. A jovem virgem e pura, filha do céu e imagem da mãe é a idealização do amor impossível, repleto de afetos elevados e sonhos irrealizáveis. Aquelas mulheres que servem ao desfrute, ao sexo e à aventura são virgens perseguidas a quem se usam e abusam sem pudores nem reservas. São seres sem alma, próprias para a posse e o prazer. Nessa categoria encontram-se também as adúlteras, as mulheres casadas e raptadas, as assassinas e aventureiras. Mulheres que romperam as barreiras morais, voluntária ou involuntariamente, e viram-se reduzidas a meros prazeres libidinais. São portadoras ou vítimas da ruína e mensageiras da morte, própria e de outrem, como que numa mensagem fatídica: não há salvação para os prazeres da carne neste mundo.

 

 

Referências

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* Psicólogo, psicanalista, Mestre em Psicanálise e Mestre em Letras pelo CES-JF e Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ. Contato: asalzer@oi.com.br

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