SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 número1Neuropsicologia cognitiva e psicologia cognitiva: o que o estudo da cognição deficitária pode nos dizer sobre o funcionamento cognitivo normal?Comportamento pró-social através da técnica da carta perdida: Há vagas para altruísmo em estacionamentos universitários? índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. v.3 n.1 Juiz de Fora jun. 2009

 

RELATOS DE PESQUISA

 

Redes sociais no contexto de uso de drogas entre crianças e adolescentes em situação de rua

 

Social networks: the context of drug use among children and adolescents at street circumstance

 

 

Yone Goncalves de Moura* ; Eroy Aparecida da Silva** ; Ana Regina Noto***

Universidade Federal de São Paulo

 

 


RESUMO

O presente artigo relata que estudos demonstram que o ser humano tende a adoecer quando percebe que sua rede social foi reduzida ou rompida. Neste estudo foram utilizadas duas técnicas qualitativas: observação participante e entrevistas em profundidade, de referencial etnográfico. Dezessete adolescentes foram entrevistados. Os sistemas observados foram compostos por diferentes segmentos sociais que variaram entre a família, escola, serviços de saúde, instituições específicas para pessoas em situação de rua, polícia, comércio, tráfico e, até mesmo, os ambulantes, transeuntes, motoristas (especialmente nos faróis) e os próprios “irmãos” da rua. Para esses adolescentes as situações de vulnerabilidade no ambiente familiar, parecem contribuir para o uso precoce de drogas. A cola apareceu como a droga mais usada pelos adolescentes. Diante disso, é fundamental ressaltar a responsabilidade que as redes sociais têm de auxiliar famílias, crianças e adolescentes para a diminuição da desfiliação social e redução das desigualdades sociais no Brasil.

Palavras-chave: Redes sociais, Adolescentes em situação de rua, Abuso de drogas, Etnografia, Pesquisa qualitativa.


ABSTRACT

This article reports that studies show that humans tend to fall sick when they realize that their social network has been narrowed or broken. In this study two qualitative techniques were used: participant observation and in-depth interviews, ethnographic of reference. Seventeen adolescents were interviewed. The systems observed were composed of different social segments that ranged from family, school, health services, specific institutions for people in streets circumstances, police, trading sector, trafficking and even the itinerant, passersby, drivers (especially the headlights) and the"brothers" of the street. For these adolescents the situation of vulnerability in the family environment appears to contribute to the early use of drugs. Glue has emerged as the substance mostly used by adolescents in street circumstances. Thus, it is essential to emphasize the responsibility of social networks to help families, children and adolescents decreasing the social detachment and reducing social inequalities in Brazil.

Keywords: Social networks, Adolescents at street circumstance, Drug abuse; Ethnography, Qualitative research.


 

 

INTRODUÇÃO:

A palavra rede origina-se do latim rete que significa “entrelaçamento de fios, cordas, cordéis, arames, com aberturas regulares fixadas por malhas, formando uma espécie de tecido, teia” (Barbosa et al., 2000). O conceito de redes sociais inclui todas as experiências vivenciadas pelo indivíduo: família, trabalho, escola, amigos, comunidade e toda sua ação no meio onde vive. A rede social é composta pelas pessoas individualmente e pelos grupos (família, trabalho, escola, religião, etc) que vão se formando no dia-a-dia, a partir da colaboração entre seus membros ao longo do tempo. O termo sugere ainda a idéia de articulação, conexão, vínculos, ações complementares, relações horizontais, interdependência de serviços para garantir a integralidade da atenção aos segmentos sociais vulnerabilizados ou em situação de risco social e pessoal, uma construção coletiva que se define à medida que é realizada (Duarte, 2004).

Para Sluzki (1997), existem três aspectos importantes para fundamentar o conceito de rede: “apoio social”, “integração social” e “experiência psicossocial reabilitante”. O “apoio social” é um suporte que favorece o desenvolvimento e a consolidação de uma rede estável de relações informais e a aprendizagem ou reaprendizagem das habilidades são necessárias para estabelecer, nutrir e manter relações sociais ativas. A “integração social” consiste em reduzir e prevenir situações de risco pessoal e social, envolvendo intervenções compartilhadas nas soluções de problemas concretos que afetam cotidianamente as pessoas, grupos ou comunidades, visando às práticas inclusivas e maior qualidade de vida, objetivo de vários programas de prevenção. A noção de “experiência psicossocial reabilitante” fundamenta as filosofias terapêuticas de programas mais recentes para adolescentes com problemas de adaptação e comportamento. Dessa forma, o apoio mútuo entre pessoas e grupos representa o melhor caminho para se construir alternativas pessoais e sociais, que possam trazer bem-estar para todos os atores envolvidos.

Alguns estudos têm demonstrado que o ser humano tende a adoecer quando percebe que sua rede social foi reduzida ou rompida (Tracy & Martins, 2007; Feinberg et al., 2005). Mas, se encontrar suporte solidário em outros espaços da sua rede de relações, tende a enfrentar problemas e sofrimentos com maior habilidade e segurança. Dependendo de sua história pessoal e social, porém, alguns indivíduos encontram recursos internos e externos para se reorganizar e recompor, enquanto outros não (Barbosa et a., 2005). Por outro lado, esse cenário pode coexistir com redes que envolvem riscos, como as associadas à corrupção, ao tráfico e à prostituição infantil (Schenker & Minayo, 2005). O convívio com essas vulnerabilidades é mais acentuado na rotina de crianças e adolescentes que vivem em situação de rua. Esses adolescentes migram de um ponto a outro pelas instituições da cidade, circulam pelo espaço urbano e estabelecem uma rede de relações em que é reconhecido pelos seus pares (Magnani, 2002). Muitas dessas relações oscilam entre a proteção e o risco. Desse modo, para trabalhar com essa população, é necessária a articulação de redes de acolhimento e atendimento, como sistemas abertos que incluam os diversos serviços existentes.

Vale lembrar que a situação de rua de crianças e adolescentes ocorre nos diferentes continentes (Auerswald & Eyre, 2002; Le Roux & Smith, 1998), mas com maior intensidade em países da América Latina e África (Aderinto, 2000; Belfer & Rohde, 2005; Montauk, 2006; Olley, 2006). Estudos relatam que o uso de drogas por adolescentes é um comportamento presente nas diferentes culturas (Carvalho et al., 2006; Auerswald, & Eyre, 2002). No Brasil, um levantamento, realizado em 2003 nas 27 capitais, verificou que, entre os adolescentes que moravam com suas famílias, 19,7% apresentaram uso diário de drogas contra 72,6% dos que não moravam com suas famílias. As principais drogas relatadas foram o tabaco, bebidas alcoólicas, os solventes (cola, thiner, cheirinho da loló ou seja lança-perfume caseiro), maconha e os derivados da coca, cocaína e crack (Noto et al., 2003).

São vários os fatores que favorecem o uso de drogas entre esse segmento da população, como a má distribuição de renda, a extrema pobreza de uma parcela da população, a necessidade do trabalho infantil para sobrevivência e a vulnerabilidade da estrutura familiar (Raffaelli et al., 2007; Carvalho, et al., 2006). Diante da complexidade desses fatores, os serviços isolados, ainda que específicos para atendimento de adolescentes em situação de rua e uso de drogas, têm-se mostrado inadequados (Moura, 2006; Sudbrack, 2004; Silva, 2004).

Nesse sentido, são necessários estudos que busquem compreender a interrelação entre os diferentes elementos que compõem a rede social em situação de rua. Pesquisas nesse sentido podem ampliar as possibilidades de intervenção junto a essa população. Dentro desta perspectiva, este estudo teve por objetivo investigar como os adolescentes compreendem as redes sociais na situação de rua, no contexto de uso de drogas com enfoque na família, escola, instituições de assistência e comunidade.

 

METODOLOGIA

Foi utilizada metodologia qualitativa com referencial etnográfico. A etnografia visa estudar um contexto cultural específico e pouco explorado. Para tal, utiliza-se observações participantes junto à cultura estudada, a fim de coletar informações vivenciais que permitam a descrição do fenômeno da maneira pela qual as pessoas de determinada cultura a compreendem (Morse, 1994; Atinkson et al., 2001). Foram utilizadas duas técnicas qualitativas: observação participante (OP) e entrevistas em profundidade. (Who, 1994).

Estudos observacionais

Realizaram-se vários estudos observacionais em dois contextos distintos: na rua e em instituições destinadas a essa população específica. Na rua, a OP ocorreu em 11 pontos de circulação e permanência dos adolescentes em situação de rua na cidade de São Paulo. Destaca-se o fato de que essa população perambula diariamente pela cidade, de um local para outro, podendo estar pela manhã em um dos pontos e à noite em outro. O período total de observação foi de vinte e um meses, entre outubro de 2003 a julho de 2005. Cada local observado foi visitado de duas a três vezes por cerca de seis horas cada vez.

A segunda fonte de OPs foram 10 instituições de atendimento aos adolescentes em situação de rua na cidade de São Paulo. Nessas ocasiões foram conhecidos os ambientes de convivência e as atividades de rotina de cada uma delas. Essas instituições se constituem as principais referências para a maioria.

Nas ruas, foram observados os pontos de maior circulação dos adolescentes com o propósito de compreender seus hábitos, aproximar-se gradativamente e, finalmente, passar a frequentar e participar da rotina do grupo, com aceitação dos membros e, posteriormente, convidar para participar da entrevista. Nas instituições, o primeiro contato era realizado com os educadores que serviram como informantes-chave (Who, 1994), pessoas que, por possuírem conhecimento amplo da população estudada, auxiliaram na aproximação do pesquisador ao universo estudado, esclarecendo sobre as atividades da instituição e a realidade da rua. Após estabelecido contato e desenvolvida a confiança, os educadores convidavam o pesquisador a participar das atividades com os adolescentes, facilitando a aproximação dos futuros entrevistados.

As situações observadas nas instituições e nas ruas foram anotadas em um diário de campo para análise posterior. Foram observadas e registradas todas as manifestações (verbais, comportamentos, ações e atitudes) dos adolescentes, bem como as formas de interação dos grupos (rotina, valores, normas e estratégias de sobrevivência) e o contexto social (local, pessoas, dinâmica da rua, recursos das instituições, etc). Além disso, também foram analisados na dinâmica das instituições, o relacionamento do profissional ao lidar com os adolescentes intoxicados com algum tipo de droga, a rotina das atividades, as dificuldades de encaminhamento para serviços de saúde, a rotatividade do profissional em várias instituições, além do relato por esses profissionais da falta constante de capacitação para lidar com a situação das drogas. Essas anotações também foram registradas no diário de campo imediatamente após a saída do local. Os registros da vivência em campo foram posteriormente submetidos à análise de conteúdo (Bardin, 2004) conjuntamente com o material obtido nas entrevistas semiestruturadas, permitindo triangulação (Patton, 2002) de diversos tópicos e aprofundamento na compreensão do fenômeno estudado.

Entrevistas em profundidade

Foram entrevistados em profundidade (Who, 1994) dezessete adolescentes em situação de rua, ou seja, que passavam a maior parte do dia ou sua totalidade nas ruas da cidade, sem supervisão de um adulto responsável, na busca de lazer ou sustento. Foi utilizada amostragem intencional e por critérios (Patton, 1990; Taylor & Bogdan, 1998). Os critérios de inclusão na amostra foram: idade entre 12 e 17 anos, estar em situação de rua há pelo menos um ano e ter feito uso de drogas nesse período. Foram excluídos adolescentes que apresentassem dificuldades de compreensão ou que estivessem intoxicados no momento da entrevista. Foram realizadas primeiramente quatro entrevistas-piloto que permitiram a adaptação do roteiro de entrevista semiestruturada, adequando a linguagem à compreensão desta população.

A amostra foi composta por três vias: 1) indicação por informantes-chave das instituições, 2) contatos diretos nas ruas e 3) por bola de neve (Biernarcki & Waldorf, 1981), em que os primeiros entrevistados indicaram outros adolescentes (ou grupos), que por sua vez indicaram outros. O método de bola de neve também foi utilizado para acessar as instituições que lidam com essa população. Assim cada instituição indicava outras que realizavam trabalhos semelhantes até o momento em que foi atingida a redundância das instituições listadas.

Das 11 regiões observadas nas ruas, os entrevistados foram localizados em 5 regiões de permanência (dois faróis de áreas comerciais movimentadas, uma praça central de grande movimento, um local da região central conhecida como ”crackolândia” e uma praça com grande movimento num bairro do entorno da cidade) e 9 instituições das 10 visitadas (três instituições governamentais, uma pertencente à Universidade Federal de São Paulo-UNIFESP, três particulares e duas Organizações Não Governamentais-ONGs.).

Ao longo do processo, as entrevistas e as OP foram sendo discutidas pelos pesquisadores a fim de avaliar a necessidade de inclusão de novas entrevistas e/ou busca de perfis diferentes, até que nenhuma informação nova estava sendo acrescentada, chegando à redundância (Who, 1994) ou “ponto de saturação teórica” (Patton, 1990).

As entrevistas semiestruturadas foram individuais, anônimas e realizadas em locais isolados, estando presentes apenas o entrevistado e o entrevistador. O roteiro da entrevista incluiu perguntas sobre a situação de rua, o uso de drogas, crenças, atitudes, comportamento de risco e sobre a rede social do seu entorno como: família, escola, instituições de assistência, comunidade, polícia, atividade sexual e o cotidiano.

Após um período de convivência com o grupo durante o qual era fortalecido o vínculo entre o grupo e a pesquisadora, esta convidava os adolescentes a participarem do estudo. Quando aceitava, o adolescente era afastado do grupo para um lugar fora do campo de visão dos colegas de rua para a realização da entrevista. O termo de consentimento foi assinado pela instituição, mas os procedimentos e objetivos do estudo eram novamente informados aos entrevistados e solicitado consentimento verbal (Olley, 2006). O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo sob, o número 0134/04.

As entrevistas foram gravadas integralmente, cujo conteúdo foi literalmente transcrito, a partir do qual seguiram os procedimentos de análise com base na técnica de “análise de conteúdo”. Foram realizadas leituras flutuantes, que permitiram a determinação das principais categorias de interesse. A partir de então, a entrevista foi codificada, ou seja, transformou-se a informação literal em um formato codificado (Bardin, 2004). Paralelamente, cada entrevista foi lida tantas vezes quanto necessário, a fim de que as respostas às perguntas feitas ao entrevistado fossem compreendidas da forma mais completa possível (Fontanella et al.; 2008; Minayo, 1993).

Para preservar o anonimato dos entrevistados, as entrevistas foram identificadas com um código alfanumérico (ex: J14MR) significando, pela ordem: inicial do nome do entrevistado, sua idade, inicial do sexo do entrevistado (F para feminino ou M para masculino), e R para o adolescente entrevistado que se encontrava na rua, no momento da pesquisa ou I para o entrevistado encontrado em alguma das instituições no momento da entrevista.

 

RESULTADOS:

As regiões observadas na rua contavam com a presença constante de adolescentes em situação de rua, assim como da população de rua em geral. No entanto, foram observados diferentes contextos nos quais os adolescentes se inseriam. No centro da cidade, alguns adolescentes se organizavam em grupos, perambulavam pelas ruas, dormiam em locais abandonados, debaixo de viadutos, migravam de um local para outro continuamente. Entre eles, o uso de drogas, em especial a cola, foi observado em diferentes momentos do dia. Por outro lado, em regiões menos centrais, os adolescentes utilizavam o espaço da rua para trabalhar e parte do dia era quase que exclusivamente dedicado ao trabalho como malabares, venda de doces e limpeza de carro para ajudar no sustento da família. O uso de drogas nesse segundo contexto nem sempre foi observado e, quando isso ocorreu, foram em momentos muito específicos do dia, por exemplo, quando havia menos movimento nos faróis ou quando paravam para descansar e/ou comer.

As observações realizadas nas instituições mostram que esses serviços são procurados pelos adolescentes para higiene, alimentação, recreação, convivência, segurança e referência para busca de ajuda. Foram diversas as dificuldades relatadas nas instituições, como questões financeiras, políticas e, em relação ao uso, destacou-se a dificuldade de encaminhamento para tratamento. As dificuldades observadas nas instituições foram as mais diversas, embora tivessem um considerável histórico de experiências acumuladas no trabalho com essa população. Assim, como para os adolescentes, os eventos e as políticas públicas em vigor na cidade, de forma geral, influenciam no funcionamento e manutenção delas, conforme descrito por um dos profissionais entrevistados:

“... foi inaugurada (a instituição) na época em que houve o assassinato dos moradores de rua no centro da cidade e que os meninos estavam muito assustados, com muito medo, pedindo muita ajuda.... e chegavam muitos meninos lá, às vezes superlotava, não tinha nem mais vaga e os meninos desesperados pra sair da rua. Nessa época aconteceu muita coisa ali na casa, você nem faz idéia das coisas que aconteceram, foi uma época muito difícil, muito difícil mesmo. (DC de 28/02/2005, observação no período diurno)

Esse registro reforça a realidade de que a maior parte das instituições relata sobre as mudanças, ocorridas arbitrariamente, a partir de propostas políticas elaboradas, sem que os diretamente envolvidos e com experiência na área sejam ouvidos (Noto et al., 2003). Este outro relato exemplifica a questão:

“ Veja, mudou toda a estrutura, mudou a política agora, entrou um secretário que a gente não sabe quem é, acho que ele também não sabe nem o que ele está fazendo lá. Já estamos sabendo que ele vai mudar as coisas, a forma de funcionar, nem essa de agora tá funcionando. Alguns educadores por si mesmo já foram embora porque não têm segurança nenhuma, nós estamos sem receber salário desde de dezembro... A supervisora da casa tá constantemente em reunião pra perguntar como é que fica tudo isso, porque se um menino passa mal e a gente tem que levar num posto... Se vai de ônibus tem que ir do nosso próprio bolso... porque a gente não tem verba nem pra salário nem pra manutenção, então tá muito difícil.” (DC de 28/02/2005, observação no período diurno)

Em geral, foi observado que as instituições apresentaram dificuldades para encaminhar o adolescente, principalmente, para tratamento. Em períodos de crise, como acima relatado, morte dos moradores de rua, o adolescente fica mais acessível e chega algumas vezes a pedir ajuda na instituição, pede para ser internado, numa tentativa de parar de usar a droga. Nesse momento, os profissionais iniciam o que chamam de “peregrinação” entre os diversos serviços de saúde, como o relato que segue:

“...então é assim, é um trabalho muito difícil, muito desgastante, por mais que a gente goste. Às vezes precisa encaminhar o menino e não tem para onde, por exemplo, “você conhece alguma clínica de desintoxicação pra adolescente? ...Ah, não tem. A gente não consegue, a gente não sabe se tem, a gente só tem contato com o CRATOD e com o Quixote... Tem também a Casa da Praça a gente está sabendo, porque o psicólogo de lá mandou uma criança pra cá...” (DC de 28/02/2005, observação no período diurno)

Os relatos acima demonstram um consenso, entre os diversos serviços de atendimento à população de rua, sobre a fragilidade dessa rede de assistência. Nesse sentido, a desarticulação dos serviços pode ser um fator importante que contribui para a manutenção do consumo de drogas na situação de rua.

Após os estudos observacionais, foram realizadas as entrevistas. Dez adolescentes foram entrevistados em instituição e sete na rua. Apenas três voltavam todos os dias para suas casas. Para os demais, o afastamento de suas famílias foi justificado por discussões/brigas constantes em casa, maus-tratos físicos e a busca de liberdade. Em relação ao tempo, a maioria dos adolescentes relatou estar na rua há mais de dois anos. Os depoimentos de entrevista, enriquecidos com os estudos observacionais, revelaram associações entre os padrões de consumo de drogas, histórico e estilo de vida dos adolescentes.

Entre os dezessete adolescentes entrevistados, apenas três moravam com suas famílias, voltando todos os dias para casa e trabalhando no farol durante parte do dia. Foram entrevistados doze adolescentes do sexo masculino e cinco do sexo feminino. As idades variaram entre 12-17 anos. Quanto à escolaridade, dezesseis haviam parado de estudar, a maioria entre a 4a. e a 5a. série do ensino fundamental e uma estava estudando. Os discursos, a seguir, caracterizam os motivos apresentados pelos adolescentes para a inserção na situação de rua:

“ Ah, eu gosto de ficar na rua porque tem mais liberdade… Saio à noite, tudo quanto é lugar que tem festa eu vou…é isso… só. Ah, é porque tem mais liberdade… Ah, é muito legal na rua… Você pode fazer muitas coisas na rua que você não pode fazer em casa, ir para festas, fumar cigarro…” (G12FI)

“ Eu comecei a fugir de casa com 10 anos. Porque a rua também é bom e em casa, mais ou menos. Em casa muitas coisas é ruim, minha mãe é brava.” (G12MR)

Os relatos abaixo, de adolescentes entrevistados, exemplificam a influência de situações de uso de drogas pelos pais, quando ainda estavam morando com suas famílias, como um dos motivos de saída para a rua:

“... minha mãe antigamente ela se queixava, tomava pinga, ai nós tinha que buscar ela, eu e minhas irmãs tinha que buscar ela no bar porque ela tomava, ai ficava bêbada, ai ela deitava sabe como que é, ai nós tinha que buscar ela... ela bebia todo dia” (A12MR)

“...quando minha mãe chegava em casa, chegava drogada também, ela batia em mim e nos meus irmãos...” (J17MI)

Para os adolescentes em situação de rua, a família é percebida como importante rede de pertencimento e, embora as relações familiares sejam mais conflituosas, parece existir o vínculo, porém, diferente do comum. Diante do exposto, são apresentados alguns relatos de adolescentes sobre o início de uso de drogas:

“... a primeira droga que eu usei foi maconha, eu tinha uns 11anos, por ai... eu já estava na rua... Foi na porta da escola, com as meninas da escola. Eu tinha onze anos...” (N16FI)

“... O álcool, eu comecei usar o álcool eu tinha o que? Uns doze anos foi que minha avó tinha garrafas pros guias dela, ai eu peguei e tomei...” (J17MI)

“...Não, não precisa não tenho que ajudar em casa meu pai que sustenta a minha família...” (F13MR)

Além do uso de drogas, foram relatados vários outros comportamentos de risco, alguns dos quais vinculados à busca da droga como, por exemplo, em situação de “fissura” para usá-la. Outros comportamentos relatados estavam mais relacionados ao estado de intoxicação, como a redução da crítica (perceber como problema os perigos aos quais se expõem); da capacidade de tomar decisões; os reflexos (pelo rebaixamento do estado de consciência). Também foi relatada a dificuldade de lembrar o que aconteceu de fato durante o estado de intoxicação, como com o que segue:

“... já transei para usar droga, só quando eu me prostituí a primeira vez... e é melhor sem droga, por que você está mais consciente, com a droga depois você fala “será que foi só isso?” (Ke13FI)

“... já, uma vez eu fiquei grávida... eu perdi naturalmente, mas uma vez eu tomei uns remédios... eu tinha onze anos... o primeiro eu perdi, eu estava na rua com uma amiga minha, a gente roubava carro, e começou me dar hemorragia aí ela me levou pro médico...” (Ka13FI)

“ ... quando a gente usa fica sem medo de roubar...” (F13MR)

Os sistemas observados foram compostos por diferentes segmentos sociais que variaram entre a família, escola, serviços de saúde, instituições específicas para pessoas em situação de rua, polícia, comércio, tráfico e também ambulantes, transeuntes, motoristas (especialmente nos faróis) e os próprios “irmãos” da rua. Esses sistemas apresentaram composições que variavam em função de cada situação de rua em particular. Por exemplo, para os adolescentes que se mantinham mais próximos da família e trabalham nos faróis, os parentes, os vizinhos, a escola e trânsito tenderam a ter mais relevância do que as instituições. Por outro lado, para aqueles mais inseridos na rua, as instituições tenderam a ser mais importantes.

Em entrevistas, os adolescentes relataram buscar instituições para alimentação, lazer, higiene e cuidados em geral. Apesar da relevância dessas atividades, observou-se que as instituições eram instáveis, havendo constantes mudanças de propostas de trabalho, rotatividade de educadores, dificultando o estabelecimento de vínculos. Além disso, muitas delas estabeleciam regras percebidas pelos adolescentes como arbitrárias e inadequadas. Dessa forma, as instituições foram descritas pelos adolescentes de forma ambivalente, ora como local de proteção, ora como local de intimidação.

“...eles são pessoas muito decentes eles ajudam de verdade mesmo e eu gosto muito da pessoa deles... quer que eu ti fale, aqui é o cantinho do coração de Deus, que eles ajudam e ajudam mesmo...” (P17MI)

“...sempre sentia medo, porque tinha educadores que eram bravos, ...” (J17MI)

Nas ruas, foi observada e relatada a presença de policiais, permeada pelo desconforto e agressividade para com os adolescentes, e os próprios adolescentes percebiam tal agressividade como parte da função dos policiais. Por outro lado, os policiais, em alguns contextos, foram descritos como elementos de segurança e apoio. Os relatos a seguir de uma mesma adolescente demonstram essa ambigüidade:

“... hoje eu tenho muita amizade com os coxinhas... com os policiais, é que nóis chama eles de coxinha... porque ele tem mó nariz de coxinha...” (G16FR)

“... ah, dos policial, voltei da casa com a coluna toda quebrada... eles me pegaram na porta do bar passando droga... voltei com as costelas inchadas... foi uma pá de coisa, bicuda, butinada ...” (G16FR)

Em relação aos serviços de saúde, o atendimento é visto como precário, além de se exigir condições incompatíveis com a situação de rua (presença dos responsáveis, higiene e apresentação de documentos). As dificuldades associadas ao uso de drogas se potencializam diante da complexidade da situação de rua. No entanto, os profissionais se sentem pouco preparados e com poucos recursos para lidar com a situação, o que reflete na percepção do adolescente, como mostra o relato abaixo:

“...Minha saúde não tem como eu cuidar, porque muitas pessoas não podem me ajudar... por que uma pessoa sem documento não é nada , né...” (P17MI)

“... As vezes eu passo no hospital... quando eu estou doente, sou sempre bem atendido...”(F13MR)

O envolvimento com o tráfico foi relatado por um grupo de meninas que denominavam-se como “mulher de traficante”, o que era para elas um fator de status, reconhecimento, proteção e a possibilidade de ter a droga para uso quando quisessem. O uso de crack nesse grupo foi relatado por todas as adolescentes, além do de mesclado, como padrão em substituição ao crack, prática que desencadeou também uma inserção precoce no tráfico, como mostram os relatos abaixo:

“... aí encontramos uns caras lá, um deles traficava e eu ficava traficando com ele... eu apanhei dos policiais e quando eu acordei eu já estava dentro do barraco do patrão...” (Ke13FI)

“... eu tinha meu crédito na boca, se eu falasse “Eu quero isso, isso e isso” eu pegava pra mim, ...então eu tenho amizade, se eu quiser não preciso comprar, é só eu pegar...” (Ka 13FI)

“... eu me meti com um cara que não era amigo ... ele pediu para mim, certa vez, vender droga para ele..., peguei e vendi a droga ... nunca mais vi ele, fui ver ele esse ano, aí ele me pegou …só vi na hora que me apagaram na frente da minha casa… colocaram uma venda nos meus olhos e me colocaram dentro de um carro, ...aí me levaram até a linha de trem, ...ele começou a me esfaquear,... no total, foi 20 facadas no meu corpo... jogou eu dentro de um buraco…eu fingi que estava morta… e começou a jogar pedra em cima, ... aí, eu consegui sair depois de uma hora daquele buraco…” (G12FI)

No entanto, mesmo diante de tantas situações de vulnerabilidade, o adolescente apresenta expectativas de vida, ainda que, muitas vezes, pareça estar mais no plano da fantasia do que do concreto. Estudos mais recentes (Raffaelli & Koller, 2007) têm demonstrado a importância de considerar as expectativas do adolescente e possibilitar condições para fortalecer sua visão de futuro em função de sua presente condição adversa como mostra o relato que segue:

“...eu tenho vontade de ir pra um abrigo militar, morar no exército que é meu sonho de quando eu morava com a minha avó era ir pro exercito, ... militar eu sempre gostei, tenho roupa de militar ai... gosto muito de tudo que se relaciona ao exercito eu gosto...” (J17MI)

“Penso em ser médica, professora, estudar, não sei. Eu quero ser médica de defunto, esqueci o nome como se fala. Que você fica fazendo autópsia...” (Ke13FI)

“... eu espero que se eu terminar o supletivo, eu conseguir fazer uma faculdade...” (G16FR)

 

DISCUSSÃO

Este estudo procurou, de maneira geral, refletir sobre a complexa rede da existência de crianças e adolescentes que fazem das ruas seu espaço de (sobre)vivência construindo suas redes de pertencimento possíveis. É necessária, porém, uma visão mais ampla das redes contextuais como um todo, que incluem as diferentes formas da existência social que faz com que as pessoas criem suas “culturas alternativas” para lidar com situações diversas e adversas. Nesse sentido, as crianças e adolescentes na rua fazem parte de uma história de um fenômeno chamado por alguns autores de invisibilidade familiar e social, que não pode ser compreendida de maneira estática. Castel (1994, 2004, 2005), em seus estudos com grupos de pessoas marginalizadas, aponta que elas passam por um fenômeno de desfiliação. Este é marcado pela dissociação, desqualificação e a invalidação social através da maneira como a sociedade foi determinando o “lugar” que cada um ocupa. O autor sugere um processo de reconstrução das histórias que geram situações limites, dentre elas a situação de crianças e adolescentes vivendo na rua.

Foram diversos os motivos atribuídos pelos adolescentes para a saída para a rua neste estudo. Há os fatores de natureza econômica como o desemprego, gerando desconforto e rompimento de vínculos familiares. Outro fator é o social, como a rápida urbanização e a falta de rede social, principalmente, nas periferias, além do fator de natureza política, como a ausência de políticas públicas específicas para a situação de rua (Le Roux e Smith, 1998). Mas esse processo traz alguns desafios, que necessitam ser considerados, para que possa trazer resultados relevantes. Em primeiro lugar, torna-se necessário avaliar a rede social pessoal. Deve-se fortalecer os vínculos significativos nos seus diferentes campos: amizade, família, relações de trabalho e participação comunitária. Num trabalho em rede, não existem propostas acabadas, prontas, únicas, perfeitas ou completas.

Tanto na observação de rua quanto nas instituições, os adolescentes relatam que a família é a rede social primária. Nesse aspecto, o ambiente familiar deve ser ressaltado. Outros estudos também têm demonstrado a importância da família como um fator associado à proteção (Raffaelli & Koller, 2007; De Micheli & Formigoni, 2004). Por outro lado, a família também pode estar associada aos chamados fatores associados ao risco. Estes são descritos na literatura como um ambiente familiar vulnerável, com pais que abusam de drogas; falta de envolvimento afetivo entre pais e filhos; falta de autoridade dos pais, entre outras dificuldades de natureza macrossociais. São esses os fatores preditores para o uso de drogas entre os adolescentes em geral (Boyle et al., 2001; Shenker & Minayo, 2003; Figlie et al., 2004; Chalder et al., 2006).

Os achados deste estudo demonstraram, também que, para o adolescente em situação de rua, as situações de vulnerabilidade, no ambiente familiar, parecem contribuir para o uso precoce de drogas, além de associar o uso de drogas à violência doméstica, situação descrita nos relatos pelos adolescentes entrevistados como um dos motivos para a situação de rua. Além disso, a família também tem sido descrita como um fator importante para influenciar o uso precoce, de drogas podendo funcionar como fator de proteção ou fator de risco. Esse fato foi observado nos relatos dos adolescentes com o primeiro uso delas a partir de seis, sete anos de idade. Alguns estudos apontam que os adolescentes tendem a repetir o modelo de uso de drogas pelos seus pais, além de apresentarem maior índice de problemas de comportamento (Boyle et al., 2001; Figlie et al., 2004; Chalder et al., 2006). Nesse aspecto, alguns adolescentes deste estudo parecem seguir um padrão de comportamento, inclusive em relação ao tráfico, comportamento adotado pelas meninas entrevistadas para não trabalhar em farol. A trajetória das crianças e adolescentes entre a casa e a rua é marcada por ambivalências: inicialmente, a rua é percebida como um espaço transicional entre autonomia e liberdade seguida de privações principalmente em ocasiões em que se faz necessário cuidado com a saúde ou mesmo a busca de alimento e proteção que leva os jovens, em várias situações, à busca pelas instituições.

Vale ressaltar, portanto, que são inúmeros os motivos pelos quais esta população procura a rua para viver. Mas na maioria das vezes isso não ocorre por escolha ou opção, mas por impossibilidade de ser manter junto a família, cujas tarefas e papéis históricos na sociedade ocidental é cuidar. Ainda citando Castel (2005) em relação as suas reflexões sobre a existência social de crianças vivendo na rua, ele chama atenção para a situação de pobreza e exclusão social, a que estão submetidas milhares de famílias, a qual faz com que estas sejam inscritas na zona de “vulnerabilidade”. Isso muitas vezes afasta as famílias de seu papel de cuidado e proteção, principalmente pelo enfraquecimento do eixo da rede que se refere ao trabalho. Isso tem uma relação direta com uma possível mudança nas estruturas afetivas e psicológicas da família, pois ocorre um empobrecimento no seu papel básico de inserção relacional dos filhos. Neste contexto, “a precariedade se torna destino”, sendo a sobrevivência batalhada cotidianamente através de trabalhos informais caracterizados por subempregos. A situação de privação pode levar as pessoas a desacreditar de si mesmas, tornando-as frágeis e com baixa autoestima, criando no próprio ambiente familiar sentimentos de vazio, solidão e instabilidade. Tudo isso contribui para que muitas crianças e adolescentes saiam para as ruas rumo à desfiliação.

Um segundo aspecto que merece reflexão e que caminha junto à trajetória da criança e adolescentes a caminho da desfiliação pode ser mediado pela zona de acolhimento, assistência e inclusão social. Ela pode funcionar como um suporte para a existência social em que é possível um estado ainda que intermediário de cuidados e segurança. Aqui tem início a importância das redes sociais suportativas compostas também pelas instituições sociais substitutas, ainda incipientes no Brasil conforme pode ser observada nas falas das profissionais das instituições. Nesse sentido as construções e ampliações das redes sociais são desafios importantes nesta década no país. Como observado nas instituições de atendimento deste estudo, os participantes tais percebem tais serviços como uma importante rede de apoio social, e, em alguns casos, até mesmo parecem funcionar como substitutas ao próprio ambiente familiar, de acordo com os relatos apresentados pelos entrevistados.

A rede social permite que as informações sobre todos os recursos existentes circulem no espaço da comunidade, permitindo que toda a população seja beneficiada. Assim, para trabalhar usuários e dependentes de drogas, é necessário movimentar uma rede de atendimento a essa população, como um sistema aberto entre os diversos serviços existentes não só da área da saúde, mas também de outras áreas como: educação, cultura, lazer, esportes, segurança, religião, etc. Diante disso, os serviços isolados, sem a participação dessas outras áreas, ainda que específicos para atendimento ao uso e dependência de drogas, têm-se mostrado insuficientes. O movimento dos vários serviços interagindo um com o outro, conhecido como articulação da rede, possibilitará à comunidade local um melhor encaminhamento e atendimento à população (Sudbrack, 2004). Para que o trabalho em rede funcione adequadamente, as atividades de todas as pessoas envolvidas devem ser compreendidas por todos.

Considerando que a família é a rede social primária de aprendizado e socialização do homem com o mundo à sua volta, ter ou não uma rede social que atenda às necessidades da população e que esteja ao alcance de todos vem sendo demonstrado que pode afetar positiva ou negativamente a saúde das pessoas. Isso mostra que a pobreza nas relações sociais, ou seja, a falta de interação, participação e contato entre as pessoas nas suas comunidades pode se tornar um problema para a saúde do indivíduo, tornando-o mais fragilizado e sujeito às doenças tanto físicas como emocionais, fato esse conhecido como fator de risco (Duarte, 2004). Assim, numa comunidade onde estão presentes a pobreza, a exclusão social, o desemprego, violência doméstica e as mais variadas dificuldades, ter ainda presente o uso e dependência de drogas, como importante problema de saúde pública, traz grandes dificuldades que refletem em toda a população, propiciando o caminho para a desfiliação social.

Para o adolescente em situação de rua, o uso parece associado à disponibilidade ou facilidade de acesso, propiciado por um contexto sem limites ou regras estabelecidas pelo meio no qual vivem os adolescentes. Ou seja, a trajetória de uso (“escalada”) tem mais relação com o contexto social/disponibilidade do que os supostos efeitos das drogas (Ginzler et al., 2003; D’Amico & McCarthy, 2006). Nesse estudo, a idade precoce de início de uso é diferente do observado em outros estudos, realizado com a população adolescente de segmentos sociais brasileiros (Sanchez & Nappo, 2002). O resultado dessa amostra se caracteriza por poliusuários, com início precoce de uso, sendo que quatro iniciaram entre 6/7 anos. A situação de rua parece predispor o adolescente a uma maior vulnerabilidade ao abuso de drogas, considerando que estão mais sujeitos à facilidade de acesso ou disponibilidade da droga na rua, onde os limites são estabelecidos de acordo com a necessidade de uso da droga. Além disso, as vulnerabilidades inerentes à situação de rua, como a fome, frio, violência, enfrentamento das adversidades em geral, são fatores que predispõe ao uso na rua.

Como apontado nos resultados, os policiais constituem outro segmento da rede social desses adolescentes, também apontados e percebidos por eles como fator de cuidado e proteção, que têm igualmente a função de protegê-los. (Kippe et al., 1997).

Noto et al., (2003) evidenciaram a fragilidade dos serviços de atenção à criança e ao adolescente em todas as capitais brasileiras. No entanto, a enorme distância entre os serviços de saúde e a situação de rua não é peculiaridade brasileira, já que tem sido observada também em outros países. Várias barreiras parecem estar em questão, como a própria descrença dos jovens em relação aos profissionais de saúde, o desconhecimento desses serviços, bem como os preconceitos dos profissionais em relação à situação de rua (Geber, 1997; Klein et al., 2000).

Esse conjunto de resultados sobre os diversos segmentos de redes sociais mostra as dificuldades de atendimento a essa população, em todas as áreas, demonstrando a fragilidade da rede de atendimento ao adolescente em situação de rua. Os dados observados neste estudo demonstram a relatividade entre risco e proteção da rede social. O contexto social, no qual esta população está inserida, parece propiciar a manutenção de sua permanência na rua por meio de um serviço desarticulado, percebido pelos próprios adolescentes, que muitas vezes se utilizam desse fato como meio de sobrevivência nos inúmeros serviços específicos para a situação de rua, ou seja, a vulnerabilidade dos diferentes sistemas sociais (família, escola, instituição, serviços de saúde, polícia) parece oscilar entre o cuidado e o risco, favorecendo a manutenção do adolescente na situação de rua e algumas vezes por anseio de pertencer (ainda que à margem!) é coptado pela rede de tráfico.

Neste sentido é urgente a rediscussão e ações concretas sobre um expectro continuum cujos extremos são, de um lado, a vulnerabilidade familiar e, do outro, a resiliência familiar. Onde a resiliência é encarada como um processo de adaptação aos estressores tanto intra quanto interfamiliares que ultrapassam o ajustamento a normas e regras sociais, construindo um processo que inclui as redes, recursos internos e da comunidade como um todo. É fundamental ressaltar a responsabilidade que as redes sociais têm de auxiliar famílias, crianças e adolescentes para que caminhem favoravelmente ao movimento contrário da desfiliação social e redução das redes de desigualdades sociais no Brasil.

 

REFERÊNCIAS:

Aderinto, A.A. (2000). Social Correlates and Coping Measures of Street-Children: A comparative study of Street and Non-Street Children in South-Western Nigeria. Child Abuse & Neglect, 24 (9),1199-1213.         [ Links ]

Atkinson, P.; Coffey, A.; Delamont, S.; Lofland, J. & Lofland, L. (2001). Handbook of Ethnography, Sage Publications, London        [ Links ]

Auerswald, CL.& Eyre, SL. (2002). Youth homelessness in San Francisco: A life cycle approach. Social Science and Medicine, 54, 1497-1512.         [ Links ]

Barbosa, M.T.S.; Byington, M.R.L. & Struchiner, C.J. (2000). Modelos Dinâmicos e redes sociais: Revisão e Reflexões a Respeito de sua Contribuição Para o Entendimento da Epidemia do HIV. Caderno de Saúde Pública, 16 (1), 37-51.         [ Links ]

Bardin, L. (2004). Análise de Conteúdo. Portugal, Lisboa: Edições 70, LDA. 223 p., 3ª. Edição.         [ Links ]

Belfer, M.L.& Rohde, L.A. (2005) Child and adolescent mental health in Latin America and the Caribbean: problems, progress, and policy research. Rev. Panam Salud Publica/PanAm J. Public Health, 18 (4/5),359-365.         [ Links ]

Bernarcki, P. & Waldorf, D.(1981). Snowball sampling-problems and techniques of chain referral sampling. Sociological Methods and Research, 10, 141-163.         [ Links ]

Boyle, M.H,; Sanford, M.; Szatmari, P.; Merikangas, K. & Offord, D.R.. (2001). Familial Influences on Substance use by Adolescents and Young Adults. Revue Canadienne de Santé Publique, 92 (3), 206-209.         [ Links ]

Carvalho, F.T., Neiva-Silva, L., Ramos, M.C., Evans, J.; Koller, S.H. & Piccinini, C.A.; Page-Shafer, K. (2006) Sexual and Drug Risk Behaviors among Children and Youth inStreet Circumstances in Porto Alegre, Brazil. AIDS Behavior,10, 57-S66.

Castel R. (1994). Da indigência à exclusão, a desfiliação. Precariedade do trabalho e vulnerabilidade relacional. In A., Lancetti Saúde e Loucura (p.21-48). São Paulo:Hucitec.         [ Links ]

Castel,R. (2004). As armadilhas da exclusão social. In R. Castel, L.E.W., Wanderley, & M.W. Belfiore Desigualdade e a questão social (p.17-50). São Paulo,Educ.         [ Links ]

Castel,R. (2005). As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Chalder, M.; Elgar, F.J. & Bennett, P. (2006). Drinking and Motivations to Drink among Adolescent Children of Parents with alcohol problems. Alcohoh & Alcoholism, 41 (1), 107-113.         [ Links ]

Dabas, E. (1995). Redes. El lenguaje de los vínculos. Buenos Aires,Argentina: Paidós.         [ Links ]

D´Amico, EJ & McCarthy, DM. (2006). Escalation and Initiation of Younger Adolescents Substance Use: The Impact of Perceived Peer Use. Journal of Adolescence Health, 39 (4), 481-487.         [ Links ]

De Micheli, D. & Formigoni, M.L.O.S. (2002). Are reasons for the first use of drugs and family circumstances predictors of future use patterns? Addictive Behaviors, 27, 87-100.         [ Links ]

Duarte, P.V. (2004). Redes Sociais. In: Atualização de Conhecimentos sobre Redução da Demanda de Drogas. Curso à Distância. Unidade 15. SENAD- Secretaria Nacional Antidrogas e Universidade Federal de Santa Catarina.         [ Links ]

Feinberg, M.E.; Riggs, N.R. & Greenberg, M.T. (2205). Social networks and community prevention coalitions. The Journal of Primary Prevention, 26 (4), 279-298.         [ Links ]

Figlie, N.; Fontes, A.; Moraes, E. & Payá, R. (2004). Filhos de dependentes químicos com fatores de risco bio-piscossociais: necessitam de um olhar especial? Revista de Psiquiatria Clínica, 31 (2), 53-62.         [ Links ]

Fontanella, B.J. Ricas, J. & Turato, E.R. (2008). Saturation sampling in qualitative health research: theoretical contributions. Caderno de Saúde Pública, 24 (1), 17-27.         [ Links ]

Geber, G.M. (1997). Barriers to health Care for Street Youth. Journal of Adolescence Health, 21 (5), 287-290.         [ Links ]

Ginzler, J.A.; Cochran, B.N.; Domenech-Rodríguez, M.; Cauce, A.M. & Whitbeck, L.B. (2003). Sequencial progression of substance use among homeless youth: An empirical investigation of the Gateway Theory. Substance Use & Misuse, 38, 725-758.         [ Links ]

Kippe, M.D.; Simon, T.R.; Montgomery, S.B.; Unger, J.B. & Iversen, E.F. (1997). Homeless Youth and their exposure to and involvement in violence while on the streets. Journal of Adolescent Health, 20 (5),360-367.         [ Links ]

Klein, J.D.; Woods, A.H. & Wilon, K.M.; Prospero, M.; Greene, J. & Ringwalt, C. (2000). Homeless and Runaway Youths’Access to Health Care. Journal of Adolescent Health, 27 (5), 331-339.

Le Roux, J. & Smith, C.S. (1998). Causes and Characteristics of the Street Child Phenomenon: A Global Perspective. Adolescence, 33 (131), 683-688.         [ Links ]

Magnani, J.G.C. (2002). De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 17 (49),11-29.         [ Links ]

Minayo. M.C.S. O. (1993). Desafio do Conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde. 2ª ed. Hucitec-Abrasco.         [ Links ]

Montauk, S.L. (2006). The Homeless in America: Adapting Your Practice. American Family Physician, 74 (7), 1132-1138.         [ Links ]

Morse, J.M. (1994). Emerging from the data: the cognitive processes of analysis in Qualitative inquiry. In: Issues in qualitative research methods London, Sage Publications Editor..         [ Links ]

Moura, Y.G. (2006). Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no município de São Paulo: uma contribuição etnográfica. Dissertação de Mestrado, São Paulo, UNIFESP.         [ Links ]

Noto, A.R.; Galduróz, J.C.F.; Nappo, S.A.; Fonseca, A.M.; Carlini, C.M.A. & Carlini, E.A.C. (2003). Levantamento Nacional sobre o uso de drogas entre crianças e adolescentes em situação de rua nas 27 capitais brasileiras, 1. ed. São Paulo: CEBRID.         [ Links ]

Olley, B.O. (2006). Social and health behaviors in youth of the streets of Ibadan, Nigéria. Child Abuse & Neglect, 30, 271-282.         [ Links ]

Patton, MQ. (1990). Qualitative Evaluation and Research Methods, London: Sage Publications.         [ Links ]

Raffaelli, M.; Koller, S.H. & Morais, N.A de. (2007) Assessing the development of Brazilian street youth. Vulnerable Children and Youth Studies, 2 (2), 154-164.         [ Links ]

Sanchez, Z.M. & Nappo, S.A. (2002). Seqüência de drogas consumidas por usuários de crack e fatores interferentes. Revista de Saúde Pública 36 (4), 420-430.         [ Links ]

Schenker, M. & Minayo, M.C.S. (2005). Fatores de risco e de proteção para o uso de drogas na adolescência. Ciência & Saúde Coletiva, 10 (3),707-717.         [ Links ]

Silva, E.R.A. (2004). O direito à convivência familiar e comunitária:os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. In: Ipea/Conanda, Brasília.         [ Links ]

Sluzki, C.E. (1997). A rede social na prática sistêmica. Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Sudbrack, M.F.O. (2004). Abordagem comunitária e redes sociais: um novo paradigma na prevenção da drogadição. In: D.B.B., Carvalho, M.F.O., Sudbrack & M.T. Silva, (Orgs.) Crianças e Adolescentes em Situação de Rua e Consumo de Drogas, Brasília: Ed. Plano..         [ Links ]

Taylor, S.J. & Bodgan, R. (1998). Introduction to Qualitative Research Methods. New York: John Wiley e Sons, Inc.         [ Links ]

Tracy, E.M. & Martin, T.C. (2007). Children’s roles in the social networks of women in substance abuse treatment. Journal of Substance Abuse Treatment, 32 (1), 81-88.         [ Links ]

World Health Organization. (1994). Qualitative research for health programmes. Geneva: Division of Mental Health, p.1-102.         [ Links ]

 

 

Recebido em: Maio 2009
Aceito em: julho de 2009

 

 

* Pesquisadora do CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Psicobiologia Contato: Yone G.Moura ygmoura@hotmail.com / yone@psicobio.epm.br
** Pesquisadora e Doutoranda da UDED (Unidade de Dependência de Drogas), Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Psicobiologia Contato: eroy@psicobio.epm.br
*** Pesquisadora do CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) e Professor Assistente da Universidade Federal de São Paulo Contato: ananoto@psicobio.epm.br

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons