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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.10 no.2 Juiz de Fora dez. 2016
https://doi.org/10.24879/201600100020057
ARTIGO ORIGINAL
10.24879/201600100020057
Parentalidade em casais homossexuais: Uma revisão sistemática
A systematic review of same-sex parenthood
Marina Ortolan AraldiI; Fernanda Barcellos SerraltaI
IInstituto de Psicologia, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul
RESUMO
A pesquisa visa compreender como a parentalidade em casais homossexuais é investigada na literatura científica através de uma revisão sistemática. Para tanto, foram selecionados 17 artigos publicados entre 2004 e 2014, nas bases de dados SciELO, PePSIC e Academic Search Premier, em inglês, espanhol, português e francês, com os descritores homosexual parent OR same-sex parent OR homoparental. Resultados indicam que as pesquisas tentam responder como é a parentalidade em casais que diferem da norma a partir do viés heteronormativo. Sendo assim, a edificação da homossexualidade como patologia em décadas anteriores e a permanência desta visão dificultam a revisão de tais conceitos a nível social. Por isto a importância de estudos que gerem uma nova compreensão sob esta população.
Palavras chave: revisão sistemática, parentalidade, homossexualidade, heterossexualidade, filhos.
ABSTRACT
This paper aims to understand how parenting in same-sex couples is being investigated in scientific literature through a systematic review. Therefore, we selected 17 articles published between 2004 and 2014 in SciELO, Academic Search Premier PePSIC databases in English, Spanish, Portuguese and French, using homosexual parent OR same-sex parent OR homoparental as descriptors. Results indicate that the researches tries to answer how is parenting for same-sex couples from the heteronormative bias. Thus, the construction of homosexuality as pathology in previous decades and the permanence of this view hinder the review of such concepts at social level. Therefore the importance of studies that generate a new understanding of this population.
Keywords: Systematic review, parenting, homosexuality, heterosexuality, children.
Há pouco mais de duas décadas, casais de gays e lésbicas que tinham a intenção de ter filhos buscavam meios alternativos para vivenciar esta experiência, se utilizando de métodos como a inseminação caseira e adoção como solteiro(a) (Golding, 2006; Kelly, 2010; Patterson, 1992). Porém, com a chegada do século 21 e o crescente reconhecimento legal da união entre homossexuais em diversos países (Fernández & Lutter, 2013), a tendência é de que cada vez mais os casais busquem a parentalidade de maneira conjunta, declarando seus relacionamentos afetivos.
A parentalidade é um fenômeno complexo, que se inicia antes mesmo do nascimento de um filho, nas fantasias que pais e mães tecem a respeito desta experiência, e que extrapola o fator biológico se estendendo à capacidade de imaginar seu filho e, desta forma, converter-se em pai ou mãe. Sendo assim, a parentalidade em casais homossexuais pode ser obtida de cinco maneiras: a) na recomposição familiar, quando pai ou mãe tem um filho de uma relação heterossexual anterior e vive atualmente uma relação homossexual, b) na adoção conjunta ou individual, c) na gestação por substituição, popularmente conhecida como âbarriga de aluguelâ, d) em técnicas de reprodução medicamente assistida, e e) através de acordos coparentais entre um casal homossexual e outra pessoa/casal do sexo oposto com a finalidade da procriação (Power et al., 2012). Em qualquer uma dessas situações, para realizar o desejo da parentalidade, os casais homossexuais necessitam de uma busca ativa que depende de uma terceira pessoa para sua concretização (Grossi, Uziel, & Mello, 2007; Passos, 2005; Tarnovski, 2013).
Uma vez que, até a década de 80 a homossexualidade era considerada um transtorno presente inclusive nos manuais de psiquiatria (American Psychiatric Association, 1952; American Psychiatric Association, 1980), diversos estudos sobre parentalidade em casais homossexuais visavam avaliar o bem-estar dos filhos destes casais. Do ponto de vista do que é historicamente reproduzido na sociedade, ainda persiste a dúvida se a sexualidade dos pais poderá interferir no desenvolvimento emocional, psíquico, sexual e social dos filhos, a partir disso, o estigma e a discriminação seguem sendo tema de pesquisas científicas na literatura internacional. (Costa et al., 2013; Crouch, Waters, McNair, Power, & Davis, 2014).
Na periferia de São Paulo, lésbicas relatam a dificuldade de assumir sua orientação sexual por medo de reações agressivas da população (Medeiros, 2006). Em Portugal, a população acredita que filhos adotados por casais homossexuais estão mais propensos a desenvolver problemas emocionais e sofrer preconceitos que filhos adotados por casais heterossexuais (Costa et al., 2013). Nos Estados Unidos uma pesquisa destaca o sentimento de discriminação percebido por lésbicas durante o processo de adoção (Shelley-Sireci & Ciano-Boyce, 2002). Casais que buscam adoção, especialmente em cidades de menor porte, encontram mais dificuldades e obtêm menor suporte dos profissionais envolvidos neste processo (Kinkler & Goldberg, 2011). Apesar destes resultados, que indicam uma expectativa negativa da população sobre a parentalidade de casais homossexuais, diversas pesquisas mostram que não há diferença entre o nível de bem-estar e desenvolvimento emocional de filhos de casais homossexuais e heterossexuais (Fond, Franc, & Purper-Ouakil, 2012; Goldberg, Smith, & Kashy, 2010; Golombok et al., 2013; Rivers, Poteat, & Noret, 2008).
Diversas terminologias têm sido utilizadas para conceituar paternidade, maternidade, filiação e relação conjugal homossexual, porém estes termos se originam e fazem sentido apenas em relações heterossexuais (Goldberg & Smith, 2011; Grossi et al., 2007). Desta forma, a Associação de Pais e Futuros Pais de Gays e Lésbicas da França, criou em 1997 o termo âhomoparentalidadeâ que compete a parentalidade em casais homossexuais (Robinson, 2012). Embora fique explícita a finalidade à que propõe, o termo é questionado por pesquisadores, pois sugere que a sexualidade dos pais está relacionada a parentalidade e influencia diretamente no modo como esta será exercida (Vilhena, Souza, Uziel, Zamora, & Novaes, 2011). Compreendendo que diversas pesquisas já desmistificaram esta afirmativa (Golombok et al., 2013; Manning, Fettro, & Lamidi, 2014; Patterson, 1992; Patterson, 1994; Potter, 2012) este artigo utilizará a expressão âparentalidade em casais do mesmo sexoâ, âparentalidade homossexualâ ou âparentalidade em casais homossexuaisâ.
Com o objetivo de contribuir para um avanço no conhecimento da parentalidade em casais homossexuais e instrumentalizar os profissionais que trabalham diretamente com esta população, este estudo pretende fazer uma revisão na literatura e apresentar os achados científicos sobre a temática. Esta revisão busca compreender como se expressa o desejo e a constituição da parentalidade, as relações parentais e filiais e o desenvolvimento dos filhos de gays e lésbicas através de uma análise crítica dos achados.
Método
Trata-se de uma revisão sistemática de estudos sobre parentalidade de casais homossexuais publicados nas bases de dados SciELO (Scientific Electronic Library Online), PePSIC (Periódicos eletrônicos em Psicologia) e Academic Search Premier. As bases foram selecionadas por reunirem grande volume de pesquisas desenvolvidas em psicologia.
Os termos utilizados foram âhomosexual parentâ, âsame-sex parentâ e âhomoparentalâ. Para a inclusão dos artigos foram empregados os seguintes critérios: estudos empíricos, revisados por pares, publicados entre maio de 2004 e maio de 2014, em inglês, português, francês ou espanhol, que investigavam a parentalidade em casais homossexuais.
Foram identificados 252 artigos dos quais 34 eram duplicatas. Após a exclusão destes, os 218 resumos foram examinados com base nos critérios de inclusão. Quando a leitura dos resumos não era suficiente para determinar a inclusão ou exclusão do artigo, o texto completo foi examinado. Após estes procedimentos, foram considerados elegíveis 17 artigos que compõem esta revisão. A análise dos resultados incluiu a descrição dos artigos em termos de autoria, ano de publicação, países onde os dados foram coletados, participantes, delineamento, objetivos e principais resultados. A figura 1 apresenta o fluxograma da revisão incluindo todas as etapas realizadas para a seleção dos artigos.
Resultados e discussão
Foram encontrados um total de 17 artigos produzidos a partir de estudos empíricos que preencheram os critérios de inclusão adotados. A Tabela 1 apresenta autoria, ano, país onde os dados foram coletados e os participantes das pesquisas.
Analisando os descritores, observa-se que os termos mais utilizados para referir a parentalidade em casais homossexuais são âsame-sex parentâ em inglês e âhomoparentalidade/homoparentalitéâ em português e francês. Treze pesquisas foram publicadas entre 2009 e 2014, sendo 2009 o ano que concentrou o maior número de artigos, totalizando quatro publicações. Verificou-se o predomínio de estudos norte-americanos com 10 artigos publicados, seguido do Brasil, com três artigos, e Austrália, com dois artigos, sendo que um destes foi realizado em parceria com a Nova Zelândia. Espanha e Holanda apresentaram apenas um estudo.
Predominaram pesquisas desenvolvidas com casais e famílias (cinco de cada), seguidas de pesquisas com filhos (três), pais (dois) e mães (dois). Em sete ocasiões os estudos foram comparativos e em 10, não. Três pesquisas desenvolveram estudos quantitativos e qualitativos, sete apresentaram apenas dados qualitativos e sete apresentaram dados quantitativos.
Os objetivos de pesquisa foram diversos, mas dois focos foram os mais pesquisados: a) a parentalidade e, b) as diferenças entre filhos de casais homossexuais e heterossexuais. Analisando a totalidade dos objetivos de pesquisa e os participantes, percebe-se o intuito de compreender de que forma a sexualidade dos pais age na vida dos filhos.
Respondendo a estes questionamentos, os estudos concluem que a sexualidade dos pais e das mães não é fator determinante no bem-estar e ajustamento psicológico dos seus filhos (Bos, 2010; Erich, Kanenberg, Case, Allen, & Bogdanos, 2009; Gartrell & Bos, 2010; Oliva, Arranz, Parra, & Olabarrieta, 2014; Perlesz & McNair, 2004; Wainright, Russell, & Patterson, 2004). Nestes casais, há flexibilidade no desempenho de funções parentais (Perlesz & McNair, 2004; Rodriguez & Paiva, 2009), a relação parental tende a ser próxima, privilegiando o respeito e a aceitação das diferenças (Gartrell, Bos, Peyser, Deck & Rodas, 2011; Goldberg & Allen, 2013). Entende-se que estas pesquisas seguem sendo desenvolvidas com a finalidade de dar uma resposta à normativa social que persiste na compreensão retrógrada de manter a homossexualidade como um transtorno e, assim, questiona a capacidade destes sujeitos de serem pais e mães. Os objetivos e principais resultados dos estudos estão expostos na Tabela 2.
Considerando as bases de dados pesquisadas e os descritores utilizados, o resultado desta revisão sistemática indica que estudos sobre parentalidade em casais homossexuais ainda são escassos na literatura científica nacional e internacional. Percebe-se que há um distanciamento quanto ao número de participantes selecionados e o tipo de estudo quando se comparam pesquisas brasileiras com pesquisas internacionais. Os pesquisadores brasileiros (Martinez & Barbieri, 2011; Medeiros, 2006; Rodriguez & Paiva, 2009) desenvolveram estudos qualitativos com um ou dois sujeitos, enquanto os estudos internacionais foram prioritariamente quantitativos com ampla população investigada. Esta diferença no modo de produzir a pesquisa revela que o Brasil encontra-se em um estágio inicial nas pesquisas sobre parentalidade homossexual, pois produz resultados difíceis de serem generalizados para a população e comparados a outros países.
A maioria das pesquisas foram desenvolvidas com o objetivo de analisar particularidades do desenvolvimento dos filhos de casais homossexuais verificando a influência da sexualidade dos pais no ajustamento psicológico, na relação familiar, no comportamento, na sexualidade, no bem-estar, no rendimento escolar e nas relações sociais dos filhos. A parentalidade geralmente foi motivada pelo desejo de dar um bom lar para a criança e o momento ideal de tornar-se pai está relacionado à idade, situação financeira e a fase do relacionamento do casal (Goldberg, Downing, et al., 2012). Um dos aspectos importantes foi optar, quando possível, por ter um filho com característica física semelhante a um dos cônjuges para minimizar a diferença (Ryan & Berkowitz, 2009).
Na relação parental, um estudo de caso que analisou a função materna em um casal de lésbicas com filho biológico destacou que a maternagem era, na maior parte do tempo, desempenhada pela mãe não biológica (Martinez & Barbieri, 2011). Pesquisas revelaram ainda que pais gays se sentem menos competentes para criar uma criança que pais heterossexuais (Bos, 2010) e que a maioria das mães lésbicas deseja algum nível de envolvimento de um homem para servir como modelo para os filhos (Goldberg & Allen, 2007).
Foram encontradas diversas formas de alcançar e vivenciar a parentalidade e apesar das diferentes configurações familiares, estas não influenciaram a frequência com que os pais mantiveram contato com seus filhos (Power et al., 2012). Estudos que avaliaram a relação entre mães e filhos quando os casais se separaram concluíram que houve um esforço dos pares para manter um relacionamento amigável, com guarda compartilhada (Gartrell et al., 2011) e buscando o contato igualitário com o filho (Goldberg & Allen, 2013). Quando a guarda não foi compartilhada, a preferência foi dada à mãe biológica e o distanciamento da residência das duas mães resultou no prejuízo da relação entre a outra mãe e o filho (Goldberg & Allen, 2013). Nos casos de adoção, os filhos mantiveram bom relacionamento com as mães, especialmente quando a adoção foi realizada pelas duas (Gartrell et al., 2011). De modo geral os filhos se mostraram bem adaptados às novas configurações familiares após a separação (Goldberg & Allen, 2013).
Pesquisas apontam que o comportamento (Averett, Nalavany, & Ryan, 2009), o rendimento escolar e a atração sexual dos filhos não estão associados à sexualidade dos pais (Wainright et al., 2004). Quando rendimento escolar e comportamento foram comparados entre filhos de heterossexuais e de lésbicas, o segundo grupo apresentou melhores resultados (Gartrell & Bos, 2010), sendo a relação próxima entre pais e filhos um dos fatores relacionado ao bom desempenho escolar (Wainright et al., 2004). Levando em consideração o objetivo geral das pesquisas e o modo como estas foram discutidas e concluídas, fica claro que o pano de fundo de todas elas é responder se casais homossexuais têm plenas condições de criar bem um filho e se de alguma forma sua expressão sexual pode interferir negativamente na constituição deste sujeito.
Um estudo que correlaciona gênero e estereótipo de filhos de homossexuais e heterossexuais indica que filhos de homossexuais apresentam comportamento menos identificado com seu gênero-estereótipo que de heterossexuais, destacando que meninos filhos de lésbicas têm comportamento âmenos masculinoâ que filhos de gays e heterossexuais (Goldberg, Kashy, & Smith, 2012). Percebe-se que a pesquisa se desenvolve no sentido de responder a uma construção social que define o que se espera de homens e mulheres quanto ao seu comportamento e o que é aceito como masculino e feminino.
Nas relações sociais, famílias formadas por pares homossexuais relataram medo de sofrer preconceito social e da família de origem (Medeiros, 2006; Rodriguez & Paiva, 2009; Ryan & Berkowitz, 2009). Em um dos casos, a assunção da homossexualidade da mãe biológica resultou no afastamento do pai biológico das filhas (Medeiros, 2006) enquanto em outros a parentalidade resultou na aproximação da família de origem (Power et al., 2012).
Considerações finais
Percebe-se que as pesquisas visam responder uma demanda da sociedade que tenta entender como se dará a parentalidade em casais que fogem da norma. Porém a edificação da homossexualidade como patologia em décadas anteriores, reiterada por diversas áreas do conhecimento - incluindo a psicologia -, dificulta a evolução e (re)visão de tais conceitos, mas este não é o único fator que mantém este foco nas pesquisas.
A tentativa de compreender estes casais e famílias segue sob o viés da heteronormatividade. Isto pode ser percebido no modo como estes casais são nomeados, nos objetivos de pesquisa, questionamentos das entrevistas e conclusões comparativas, que demonstram o quanto é recente - logo, difícil - estabelecer definições sobre o que ainda é pouco conhecido.
Considerando as bases de dados pesquisadas e os descritores utilizados, percebe-se que pesquisas relacionadas à parentalidade de casais homossexuais ainda são escassas. Esta pequena quantidade de publicações pode estar associada ao recente reconhecimento legal da união entre homossexuais na esfera mundial que, por consequência, facilita o alcance destes casais à parentalidade. Apesar da legitimação destas uniões serem incipientes, é crescente o número de países que concordam e se posicionam favoráveis às famílias formadas por pares homossexuais, sugerindo que cada vez mais serão necessárias pesquisas científicas com o intuito de compreender esta realidade tal qual é vivida.
Como limitações desta revisão salientam-se os descritores utilizados e as bases de dados pesquisadas. Também não foram feitas análises complementares, como por exemplo, nas referências dos artigos encontrados, o que poderia ampliar o escopo da revisão. Sugere-se que novas pesquisas sejam desenvolvidas com a utilização de outros descritores para verificar se há outra definição que explique melhor a parentalidade homossexual, bem como a inclusão de outras bases de dados.
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Recebido em 07/01/2016
Aceito em 29/06/2016