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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.13 no.3 Juiz de Fora set./dez. 2019
https://doi.org/10.34019/1982-1247.2019.v13.26498
ARTIGOS
Da diferença natural à diferença moral entre os sexos: uma perspectiva freudiana
From natural difference to moral difference between the sexes: a Freudian perspective
De la diferencia natural a la diferencia moral entre los sexos: una perspectiva Freudiana
Elizabeth Fátima TeodoroI; Wilson Camilo ChavesII
IUniversidade Federal de São João Del-Rei. Email: elektraliz@yahoo.com.br
IIUniversidade Federal de São João Del-Rei. Email: camilo@ufsj.edu.br
RESUMO
Objetiva-se demonstrar que o discurso natural da diferença entre os sexos que figurava no século XIX, na verdade, aponta para um discurso moral dessa diferença. Trata-se, portanto, de uma investigação teórica de cunho psicanalítico com enfoque em Sigmund Freud e em alguns autores que realizam uma análise de questões concernentes à diferença entre os sexos. Em decorrência dessa reflexão, percebe-se que os pressupostos que possibilitaram o nascimento da psicanálise não escapam às tentativas cientificistas de estabelecer a natureza das sexualidades masculina e feminina. Entretanto, ao deslocar o foco da sexualidade do biológico para o psíquico, Freud opera uma leitura original que evidencia as marcas psíquicas de um discurso moral que mostra sua ressonância, em grande medida, na clínica contemporânea.
Palavras-chave: Freud; Psicanálise e Cultura; Sexualidade
ABSTRACT
This work aims to demonstrate that the natural discourse of the difference between the sexes that figured in the nineteenth century, in fact, points to a moral discourse of this difference. It consists, therefore, in a psychoanalytical theoretical investigation focusing on Sigmund Freud and some authors who analyze issues concerning the difference between the sexes. As a result of this reflection, it is clear that the assumptions that enabled the birth of psychoanalysis do not escape the scientific attempts to establish the nature of male and female sexualities. However, by shifting the focus of sexuality from the biological to the psychic, Freud operates an original reading that highlights the psychic marks of a moral discourse that shows its resonance to a large extent in contemporary clinical practice.
Keywords: Freud; Psychoanalysis and Culture; Sexuality.
RESUMEN
El objetivo es demostrar que el discurso natural de la diferencia entre los sexos presente durante el siglo XIX apunta, de hecho, a un discurso moral de esta diferencia. Se trata, por lo tanto, de una investigación teórica psicoanalítica centrada en Sigmund Freud y algunos autores que analizan cuestiones relacionadas con la diferencia entre los sexos. Como resultado de esta reflexión, está claro que los supuestos que permitieron el nacimiento del psicoanálisis, no escapan a los intentos científicos de establecer la naturaleza de las sexualidades masculinas y femeninas. Sin embargo, al cambiar el enfoque de la sexualidad de lo biológico a lo psíquico, Freud realiza una lectura original que resalta las marcas psíquicas de un discurso moral que muestra su resonancia en gran medida en la práctica clínica contemporánea.
Palabras clave: Freud; Psicoanálisis y Cultura; Sexualidad.
A primeira coisa que atrai o observador descuidado é que as mulheres são diferentes dos homens. São o "sexo oposto" (embora eu não saiba por que "oposto"; qual é o "sexo semelhante"?) Porém, o fundamental é que as mulheres se parecem mais com os homens que qualquer outra coisa no mundo (Sayers apud Laqueur, 2001, p. 13).
É fato que a diferença percebida entre os sexos não é um tema recente na biografia da humanidade, uma vez que, desde a Antiguidade, os pensadores se ocupam em tentar explicar as dessemelhanças que tipificam modelos entre homens e mulheres. Assim, vemos, ao longo da história, tomar consistência um conjunto de ideias, no tocante à sexualidade, que, ao menos aparentemente, modifica-se em determinadas épocas para dar corpo ao modo por meio do qual cada sociedade pensa a si mesma e propõe suas formas de organização social. Não sem razão, Héritier (1996) afirma que "é a observação da diferença dos sexos que está no fundamento de todo pensamento, tanto tradicional, quanto científico" (p. 19). Na visão de Homem e Calligaris (2019), essa distinção concerne em uma imposição cultural que, por meio de um dispositivo de oposição masculino/feminino, funda a cultura ocidental "não apenas no domínio sobre as mulheres, mas no ódio pelas mulheres [isso porque] a figura feminina é uma projeção dos desejos que o homem não conseguiria controlar" (p. 15-17). Razão pela qual Assoun (1993) assevera que a mulher é o sintoma por excelência do homem.
Fato é que o tema da distinção sexual que, na atualidade parece corriqueiro, devido a movimentos feministas, gays, LGBT+, dentre outros, ainda se mostra de difícil trato, posto que o discurso contemporâneo, segundo Poli (2008), parte da esperança de que alguém possa dizer a verdade sobre o assunto, de modo a dirimir "as dúvidas e angústias que ele cotidianamente evoca" (p. 355). A indagação - "o que isso quer dizer, ser homem/ser mulher?" (p. 356) - imbuída de semelhante expectativa também pode ser observada nas clínicas psicológicas e, inadvertidamente, "indica a impossibilidade de encontrar-se um referente que possa assegurar a veracidade de tal certeza antecipada sobre o lugar do sujeito na partilha dos sexos" (p. 356). Situação que torna mais fundamental uma reflexão sobre essa temática. Assim, tendo, como baliza teórica, a psicanálise freudiana e, consequentemente, a importância que ela ofertou à sexualidade para a formação psíquica do indivíduo, pergunta-se: Qual o impacto do processo civilizatório sobre a subjetividade e, mais especificamente sobre a sexualidade? Quais as características mais marcantes da subjetividade criada pelos chamados tempos modernos? Esses questionamentos operam como pano de fundo para a presente investigação que objetiva demonstrar que o discurso natural da diferença entre os sexos, que figurava no século XIX, na verdade, aponta para um discurso moral dessa diferença. Nesse ínterim, o método de escolha foi o de uma investigação teórica de cunho psicanalítico pautado nos textos de Sigmund Freud, em especial, "A moral sexual civilizada", de 1908, e de autores como Michel Foucault, Thomas Laqueur, Joel Birman, Elisabeth Roudinesco, Maria Rita Kehl e outros que realizam uma análise de questões concernentes à diferença entre os sexos.
A diferença natural entre os sexos: um produto da ciência
A anatomia é [...] convocada como "fragmento de verdade", isto é, um elemento mínimo, e indubitável, que possa sustentar uma verdade ali onde o saber depõe suas armas (Poli, 2008, p. 362, grifos da autora). Essas palavras trazem à tona como os avanços dos conhecimentos anatômicos passam a sustentar, em determinado momento, um modelo de distinção sexual. Situação que Laqueur (2001) evidencia bem quando pondera o caráter recente do modelo determinista natural da diferença entre os sexos na história da humanidade, situando seu aparecimento no século XVIII em decorrência de interesses políticos que descobriram, no discurso biológico, as bases necessárias para a manutenção do poder na organização social de homens e mulheres. Ainda que tal menção nos faça correr o risco de deslizar numa redução culturalista do problema, não podemos ignorá-la, uma vez que a trajetória percorrida por Freud permite a leitura do "inconsciente estruturado como Cultura" (Assoun, 2012, p. 12), como veremos ao longo desse texto.
Assim, retomando a historiografia da distinção sexual, Laqueur (2001) esclarece que, anterior à diferença natural, predominava o modelo do sexo único que consistia em se pensar que gênero e sexo estariam conectados a um círculo de significados que não perpassavam, necessariamente, pelo biológico, mas sim por uma posição social e um papel cultural. Situação essa que, invariavelmente, retratava a supremacia masculina. Portanto, ainda que o nome "sexo único" faça menção à existência de uma indistinção sexual, é válido ressaltar que esse modelo, que vigorou no Ocidente desde a Antiguidade até o período pré-iluminista, não correspondia a uma indistinção entre os sexos, mas ao uso do sexo masculino como parâmetro de diferenciação hierárquica, na qual o homem era o exemplar perfeito do modelo e a mulher, por sua vez, consistia em uma cópia imperfeita do mesmo (Laqueur, 2001).
Ainda que Laqueur (2001) afirme que a mola propulsora que permitiu a mudança de paradigma do sexo único para a diferença entre os sexos tenha sido a igualdade dos direitos dos cidadãos que passou a ser propagada e sustentada após a Revolução Francesa, é importante destacar que esse discurso jurídico da igualdade não promoveu uma revolução nas representações das ciências e da medicina sobre a natureza humana, ao contrário, reforçou a diferença sexual já existente ao se pautar na anatomia e fisiologia como marcadores biológicos naturais e determinantes na definição dos papéis sociais entre os sexos.
Dessa forma, é possível afirmar que o que nasce na passagem do século XVIII para o XIX é, sem dúvidas, um discurso da diferença natural que, por sua vez, originou o desenvolvimento de uma tecnologia do sexo que passou a ser organizada pela instituição científica (Foucault, 1988) por meio da sexologia e que legitimava o discurso da medicina da época. Nessa linha de pensamento, Rohden (2009) cita uma série de obras desse período que retrata essa trajetória de fidelidade ao determinismo biológico, tais como: Encyclopédie, de Diderot e d'Alembert (1751-1772); Dictionnaire des Sciences Médicales (1812-1822), editado por Panckoucke; Système Physique et Moral de la Femme de Roussel, publicado primeiramente em 1775 e reeditado inúmeras vezes até o século XX; Rapports du Physique et du Moral de l'Homme (1803), de Cabanis e o doutor Lachaise, que publicou a Histoire Physiologique de la Femme em 1825.
O que se verifica, nessas obras, é uma distinção completa entre homens e mulheres, a qual, quase sempre, descreve o corpo masculino dotado de características superiores em relação ao feminino. Ainda, para corroborar com essa ideia, as obras evidenciam "que as características femininas refletiriam a missão passiva que a natureza reservara à mulher, além de uma predestinação à maternidade" (Rohden, 2009, p. 29). Por esse viés, tanto a saúde, quanto a beleza da mulher se confundiam "com a representação da boa esposa e mãe produtora de muitas crianças [a ponto de o modelo materno ser utilizado] para pensar o equilíbrio físico, mental e moral da mulher" (p. 30).
Pontua-se ainda que, junto às descrições sexuais de homens e mulheres, as classificações sexuais passaram a ser consideradas patológicas por desviarem do que a ciência e a medicina estabeleceram como natural/normal. Com efeito, percebe-se que a scientia sexualis ao se contrapor ao conhecimento religioso, dominante até então, desloca o "domínio das perversões morais para o das disfunções sexuais" (Alarcão, Machado & Giami, 2016, p. 630) e, ainda que Freud venha a questionar esse discurso patológico, ele se mostrou um importante avanço no conhecimento da sexualidade da época.
A ascensão de um discurso dicotômico natural/normal versus anormal/patológico precipitou, da medicina geral do corpo, a medicina do sexo, que "isolou um 'instinto' sexual, suscetível, mesmo sem alteração orgânica, de apresentar anomalias constitutivas, desvios adquiridos, enfermidades ou processos patológicos" (Foucault, 1988, p. 110, grifo do autor), abrindo, dessa forma, caminho para que o sexo e as questões correlatas, como doenças venéreas, alianças matrimoniais e distúrbios sexuais, fossem colocados "em posição de 'responsabilidade biológica' com relação à espécie" (Foucault, 1988, p. 110-111, grifos do autor).
Percebe-se, então, que, para que esse discurso biológico vigorasse, um conjunto considerável de mudanças perpassaram o desenvolvimento científico, em especial, a medicina no século XIX, a fim de que essa produção se conformasse à nova tarefa de delimitar as diferenças entre os sexos. Assim, além das modificações descritas acima, Rohden (2009) destaca o uso da ciência experimental para explorar e classificar as doenças, a construção do método anatomoclínico e a introdução da morte na reflexão médica que leva às elaborações da distinção entre normal e patológico.
Porém, Foucault (1988) e Laqueur (2001) deixam claro que essas descobertas científicas sozinhas não seriam suficientes para operar as mudanças que permitiram a ascensão do paradigma da diferença natural entre os sexos. Isso porque foi necessário um contexto social e, consequentemente, político prenhe de demandas que apontavam nessa direção. Desse modo, Rohden (2009) afirma que "o modelo, para o qual os médicos [e cientistas] davam consistência, servia como signo de uma ordem social marcada pelas diferenças de gênero" (p. 31). Essa afirmação nos remete à velha ancoragem do modelo do sexo único, no ponto em que se nota uma ampla gama de elementos que ultrapassam o biológico para sustentar o novo modelo. Para Laqueur (2001), portanto, trata-se de evidenciar que novas metáforas entram em cena para falar de velhas distinções.
É nesse contexto que o autor supracitado trabalha com a noção de "pluricausalidade" para pensar esse modelo que se tornou corrente no século XIX. Tal teorização é interessante na medida em que nos possibilita verificar que não se trata somente de um projeto médico ou científico de controle, mas de um projeto político de controle, no qual se acentua uma gestão estatal dos corpos em suas mais variadas relações, de modo que o sexo, dentre outros, torna-se um fator a ser administrado (Foucault, 1988). Gestão essa que Roudinesco (2008) nomeia de biocracia e que evidencia o que Elias (1990) descreveu como "processo civilizador", no qual se verifica a instituição de um novo código de civilidade que rompe com o anterior a fim de manter claros os limites sociais das diferenças entre os sexos. A inversão, contudo, está no fato de que agora a fundamentação da distinção sexual não parte mais da sociedade, mas da natureza biológica dos seres humanos.
As aporias científicas freudianas da diferença entre os sexos
As categorias "homem" e "mulher" só conseguem existir no âmbito das palavras, do simbólico, e não na realidade vasta e complexa da natureza e muito menos na realidade mais vasta e mais complexa das relações humanas concretas (Homem & Calligaris, 2019, p. 11, grifos dos autores). É bem verdade que para chegar à constatação posta nas palavras acima, o fundador da psicanálise percorreu um árduo caminho que o levou a se defrontar com as ciências conhecidas em sua época e os métodos por elas utilizados para a construção do conhecimento.
Assim, Freud (1915/1996), como grande neurocientista, não escapou à influência do discurso médico e científico positivista de seu tempo, a ponto inclusive de afirmar que a psicanálise se localizava no interior do campo epistemológico cernida pelas determinações das ciências naturais. Cumpre destacar que esse posicionamento freudiano não deixa de fazer referência ao argumento que endossava uma nítida divisão entre as ciências do espírito (Geisteswissenschaften), que seriam mais interpretativas e compreensivas em face à constituição subjetiva de seus objetos, e as ciências da natureza (Naturwissenschaften), atualmente chamadas de ciências exatas, que seriam mais descritivas ou explicativas em relação à objetividade de seus respectivos objetos (Assoun, 1983; Assoun, 2012).
Não obstante, o fato de que a hipótese do inconsciente implicava considerável lastro subjetivo, ainda assim, a metodologia clínica, decisivamente empirista, articulada a uma abordagem indutiva dos fatos teóricos levou Freud a se reconhecer como propositor de uma racionalidade científica, marcada pelo que se entendia, na época, como sendo natural (Assoun, 2012). Por esse viés, o mestre vienense descreveu o método científico da psicanálise que, certamente, consistia em elaborar resultados, por meio de observações clínicas, e, a partir desses, extrair hipóteses e conceitos sem, contudo, desvalorizar a capacidade imaginativa do cientista (Iannini, 2017).
É nesse contexto que, na abertura do "Projeto para uma psicologia científica", Freud (1895[1950]/1996, p. 102) assevera: "A finalidade desse projeto é estruturar uma psicologia que seja uma ciência natural, o que, nada mais é do que representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, dando, desse modo, a esse processo, um caráter concreto e inequívoco". E, posteriormente, na conferência introdutória sobre psicanálise "O estado neurótico comum", Freud (1917[1916-17] /1996) apresentou a psicanálise como uma ciência empírica da vida humana em prol da técnica que utiliza. Em suas palavras:
O que caracteriza a Psicanálise como ciência não é o material de que trata, mas sim a técnica com a qual trabalha. Pode ser aplicada à história da civilização, à ciência da religião e da mitologia não em menor medida do que à teoria das neuroses, sem forçar sua natureza essencial. Aquilo a que ela visa, aquilo que realiza, não é senão descobrir o que é inconsciente na vida mental (p. 453).
Contudo, apesar de sua crença na cientificidade da psicanálise, Freud (1913/1996), no texto "Interesse científico da Psicanálise", reconheceu que sua obra inaugural, "Interpretação dos sonhos", desferiu o primeiro conflito com a ciência oficial ao legitimar um método científico para interpretar sonhos:
Fui levado a compreender que temos aqui, mais uma vez, um daqueles casos nada incomuns em que uma antiga crença popular, ciosamente guardada, parece estar mais próxima da verdade que o julgamento da ciência vigente em nossos dias. Devo afirmar que os sonhos realmente têm um sentido e que é possível ter um método científico para interpretá-los (Freud, 1900/1996, p. 107).
Essas palavras parecem denotar que sua visão de ciência ultrapassava os limites científicos das proposições hegemônicas de sua época. No entanto, essa questão não o demoveu da tarefa de apresentar a psicanálise enquanto uma ciência da natureza. Mezan (2007) nos chama a atenção para o fato de que o modelo de ciência natural que Freud considerou corresponde ao da física, como pode ser constado pelo emprego de termos e "metáforas mecânicas, hidráulicas e elétricas que pontilham suas descrições do 'acontecer psíquico'" (p. 340, grifo do autor). Isso, de fato, constitui grande parte de seu arcabouço teórico. Entretanto, não se deve deixar de mencionar que a distinção essencial entre o mundo do inanimado e o dos seres vivos lançou a biologia como uma disciplina autônoma, da qual emerge Charles Darwin, naturalista inglês. Tal acontecimento, como era de se esperar, despertou grande admiração em Freud a ponto de levá-lo a fazer uso da teoria darwiniana em diversas ocasiões.
Dentre as várias influências darwinistas, Ferretti e Loffredo (2013) mencionam os postulados sobre "As expressões das emoções no homem e nos animais", tratado anatômico e fisiológico da época sobre a origem dos padrões comportamentais das espécies e suas mudanças ao longo da história, como marco fundamental de muitas reflexões freudianas acerca dos limiares entre o normal e o patológico nas manifestações histéricas. Contudo, para além do conteúdo teórico darwiniano, Freud se interessa pelo método especulativo do naturalista. É nesse contexto que o médico vienense "vê, nas impressionantes manifestações da patologia histérica, uma via para esse exercício especulativo, de modo a conceber que a histérica, tal qual um fóssil, seria o testemunho de uma forma arcaica de expressão" (p. 117).
Nessa esteira de pensamentos e diante de uma influência metodológica, poderíamos, então, pensar o método comparativo utilizado por Darwin para refletir sobre as diferenças e semelhanças das espécies, como método utilizado por Freud para teorizar sobre a sexualidade humana em suas dessemelhanças. Face a isso, inicialmente, evidenciamos a tentativa freudiana de apresentar um modelo de mulher por comparação ao modelo masculino que, até então, era seu referente de sexualidade humana. De certa forma, esse discurso por mais psíquico que fosse, ainda aparecia balizado pela diferença anatômica entre os corpos, o que levou o médico vienense inclusive a afirmar que "a anatomia é destino" (Freud, 1924/1996, p. 199). Nesse contexto, a dificuldade de Freud residia em sustentar, ao lado da certeza anatômica, uma perspectiva psicológica, ou seja, "a de encontrar correspondência entre a certeza da anatomia e uma posição no inconsciente" (Poli, 2008, p. 356). Não sem razão, Pommier (1987, p. 16, grifo do autor) salienta que, na teoria freudiana, "uma menina não será considerada como um indivíduo de um sexo 'diferente', mas como castrada".
Notamos, portanto, nas primeiras formulações freudianas, um pensamento binário e determinista, fruto da tentativa de tomar as ciências naturais como critério de investigação e de cientificidade. Essa tentativa nos remete ao que Capra (2006) denominou de "psicologia newtoniana", ou seja, uma psicologia moldada pelo paradigma cartesiano em que se adota a divisão estrita entre a re cogitans e a res extensa, o que termina por dificultar a compreensão de como a mente e o corpo interagem mutuamente. Na percepção do autor supracitado, apesar da grande inovação freudiana de trabalhar a partir de um método clínico de associação livre, seus conceitos básicos eram de natureza newtoniana. O que significa dizer que muitas teorizações de Freud são datadas. Em outras palavras, elas não resistem face a sua extemporaneidade, posto que não sobrevivem a sua condição de historicidade.
Desse modo, vemos, na cultural atual, que "a partilha dos sexos já não se limita ao debate concernente à dissimetria (de valor e poder) entre homens e mulheres" (Poli, 2008, p. 358), o que tem levado autores da sociologia e da crítica cultural a dirigir questionamentos, como a certeza anatômica como destino e a perspectiva misógina freudiana em relação ao feminino, diretamente ao campo psicanalítico. É o caso de Judith Butler (2003), importante filósofa no universo anglo-saxônico e, possivelmente, uma das mais conhecidas no âmbito das severas críticas ao biologismo naturalizante de Freud e seu binarismo sexual. Para a autora, a operação científica do fundador da psicanálise o conduz a uma ontologia da identidade sexual, apoiada por uma teoria da gênese natural dos gêneros que ela denomina de "heterossexualidade compulsória". Essas e outras críticas possibilitam a percepção de que Freud "não escapa das tentativas cientificistas de estabelecer a natureza das sexualidades masculina e feminina" (Kehl, 2016, p. 11), o que aponta para a afirmação de que o mestre de Viena é um homem do seu tempo, mas que se entenda:
Pertence verdadeiramente ao seu tempo [...] aquele que não coincide perfeitamente com ele nem se adequa às suas exigências e é, por isso, nesse sentido, inatual; mas, precisamente por isso, exatamente através dessa separação e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que outros, de perceber e de apreender o seu tempo. (Agamben, 2014, p. 22, grifo nosso).
Nesse sentido, permanecer nessa leitura de uma diferença natural entre os sexos, fundada em um discurso datado, é endossar uma compreensão precipitada e rasa da obra freudiana, visto que o próprio fundador da psicanálise, ao percorrer pelas sendas do feminino, deparou-se com um universo atravessado por inúmeras contradições e ambiguidades que ultrapassam a possibilidade de levar a cabo a noção de comparação de um modelo masculino e outro feminino. Isso porque "dois modelos são idênticos se a relação de suas ordens puder ser expressa como correspondência biunívoca, ou seja, tal que um termo de um corresponda um, e apenas um, do outro" (Abbagnano, 2000, p. 678, grifo do autor).
É nesse contexto que Iannini e Tavares (2018) nos advertem de que "Freud não deve ser compreendido ou julgado somente pelos pressupostos aparentes em suas formulações, mas sim por aquilo que seu discurso é capaz de desativar nos dispositivos que herda" (p. 14, grifos nossos). Esse é o desafio de ler os textos freudianos levando em consideração seu contexto sócio-histórico sem se perder nele.
A diferença moral entre os sexos: um produto da verdadeira ruptura freudiana
De qualquer modo, ontem como hoje, as diferenças sociais entre os sexos, se não deixam de ter alguma relação com as diferenças biológicas, não são delas um decalque, um reflexo ou uma consequência direta; são uma interpretação, uma modificação e uma amplificação. A sociedade produz estereótipos sociais dos papéis sexuados (condutas em função do sexo nas circunstâncias diversas da vida cotidiana) e dos papéis sexuais (condutas em função do sexo nas relações sexuais). Para ser reconhecido como um homem ou uma mulher, não basta ser um macho ou fêmea, é preciso comportar-se da maneira esperada pela sociedade (Chiland, 2005, p. 32, grifos da autora).
Chiland (2005) expressa bem a situação com a qual Freud se deparou ao se enveredar pelas narrativas clínicas de suas pacientes. Não sem razão, ele desloca sua teoria de um trauma sexual real para a teoria da fantasia que habitaria uma realidade psíquica que lhe permitiria compreender os (des)arranjos entre a pulsão e a cultura. Temos, pois, duas dimensões do humano, uma natural e outra cultural, que parecem não coadunar, uma vez que, para a construção e desenvolvimento da segunda, a primeira precisa sofrer sanções.
Recorremos a Lévi-Strauss (1982), em "As estruturas elementares de parentesco", para compreender melhor essas dimensões, de modo que o autor nos chama a atenção para o fato de que a "ausência de regra parece oferecer o critério mais seguro que permita distinguir um processo natural de um processo cultural" (p. 46). Nesse contexto, o sexo poderia ser entendido como natural e as normas que o organizam seriam fruto da cultura. Temos, nas palavras do antropólogo, uma interessante distinção entre natureza e cultura, que permite a compreensão de que tudo que está sujeito a normas é da ordem da cultura e, por isso, exibe atributos relativos e particulares. Isso significa que assume os contornos das diferenças conjunturais, dos contextos sociais, econômicos, políticos e ideológicos.
A partir dessa percepção, podemos questionar: em que medida o discurso da diferença entre os sexos, que vigorou no século XVIII e XIX, é natural? Tal indagação se dá pelo fato de que, ao que tudo indica, a biologia foi utilizada para endossar uma suposta diferença segura e estável entre homens e mulheres, que havia se tornado insustentável com as reinvindicações universais por igualdade e liberdade, como assevera Laqueur (2001). Esse questionamento nos lança na direção de uma dicotomia entre natureza e cultura que, não raro, afeta o discurso científico, sem haver consenso entre as inúmeras áreas do saber, nem mesmo dos pesquisadores dos próprios campos do conhecimento, desde os gregos.
Nesse sentido, é fato que Freud não se debruçou em um trabalho exclusivamente dedicado a tratar dessa dicotomia, porém, a própria pulsão como um conceito limite, desenvolvido por ele, aponta para a tentativa de uma possível solução, na qual cauciona a interseção entre mente e corpo ao propor a pulsão enquanto uma natureza humana que precisa ser reprimida para que a cultura se estabeleça. O que significa, decerto, que "a 'repressão pulsional' (Tribenunterdrückung) participa da fundação do edifício cultural" (Assoun, 2012, p. 14, grifos do autor) e que "o inconsciente é estruturado como Cultura" (p. 12).
O resultado dessa contradição é uma curiosa combinação que Iannini (2017) arrisca dizer ser a psicanálise - "uma ciência da natureza sem natureza" (p. 111, grifos do autor), e que Assoun (2012) propõe ser uma "ciência da Cultura", na medida em que "todo o trajeto do fundador da psicanálise adquiriria sentido como um gigantesco e necessário 'desvio' para responder aos 'problemas culturais' [...] de uma dimensão maior a do 'mal-estar' estrutural no centro do processo cultural - Unbehagen in der Kultur" (p. 11, grifos do autor).
Nesse contexto, verifica-se que Freud (1905/1996, p. 229), ao teorizar sobre a pulsão, evidencia a existência de uma "relação inversa entre a cultura e o livre desenvolvimento da sexualidade" (natureza humana), uma vez que a civilização impõe regras para controlar grande parte das emoções e vontades dos indivíduos. A cultura seria, portanto, "o resultado dessa renúncia progressiva" (Assoun, 2012, p. 14). Não sem razão, o mesmo autor assevera que o neurótico seria aquele que testemunha a "dissonância fundamental entre pulsão e cultura" (p. 16).
É por essa linha de raciocínio que Badiou (2007) expõe que a verdadeira ruptura freudiana foi assumir "o face a face pensamento/sexualidade" (p. 115), ou seja,
que o face a face com o sexual não é da ordem do saber, mas da ordem de uma nominação, de uma intervenção, daquilo que ele chama "discussão franca", que precisamente procura dissociar os efeitos do sexual de toda apreensão puramente cognitiva, e por consequência de toda subordinação ao poder da norma. Desse ponto de vista, a atestação de uma "ontologia" do sexual (o sexual tal qual é, "órgãos e funções") sustenta realmente uma emancipação do julgamento. Pouco a pouco, queira ela ou não, a psicanálise acompanhará o perecimento das normas explícitas mediante as quais se organizava o saber da sexualidade. É que ao pensá-la, num face a face, como o in-sabido de todo pensamento, ela dava à sexualidade um estatuto e, pode-se dizer, uma nobreza, com a qual nenhuma das normas anteriores podia se ajustar (Badiou, 2007, p. 115, grifos do autor).
Diante desse contexto, Iannini (2017, p. 121) afirma que "o que a psicanálise freudiana introduz é a ausência radical de sentido do sexo". Assim como escancara o antagonismo fundamental entre a satisfação sexual e o desenvolvimento da civilização. Esse antagonismo nos leva a questionar: qual o impacto do processo civilizatório sobre a subjetividade e, mais especificamente, sobre a sexualidade? Buscando responder essa questão, o médico vienense descreve três estádios de civilização:
um primeiro em que o instinto sexual pode manifestar-se livremente sem que sejam consideradas as metas de reprodução; um segundo em que tudo do instinto sexual é suprimido, exceto quando serve ao objetivo da reprodução; e um terceiro no qual só a reprodução legítima é admitida como meta sexual. A esse terceiro estádio corresponde a moral sexual 'civilizada' da atualidade. (Freud, 1908/1996, p. 175, grifos do autor).
A atualidade mencionada pelo fundador da psicanálise se refere ao século XIX e ao início do século XX, nos quais vemos se estabelecer "os padrões seculares, em que a ideia de Natureza substitui a ideia de Deus" (Kehl, 2016, p. 35). Assim, no terceiro estádio freudiano de civilização, a atividade sexual somente era permitida com vistas à reprodução legítima ou monogâmica, condição que torna a família o centro organizador das relações, seja no espaço privado ou no público.
Dessa forma, Roudinesco (2003) descreve a família moderna como, casamentos que se originavam no amor romântico e nos desejos carnais, além de valorizar a divisão do trabalho que passou a definir os papéis sociais do pai, da mãe e dos filhos. Modelo, esse, que vigorou do final do século XVIII a meados do século XX, e que se desenvolveu por meio de duas grandes ordens: uma biológica (diferença sexual) e outra simbólica (proibição do incesto e outros). Por esse viés, a família passa a possibilitar a união de um fato de natureza, inscrito nas leis de reprodução biológica a um fato de cultura, construído pela sociedade. Nessa perspectiva, veremos se consolidar a moral sexual civilizada da qual Freud (1908/1996) realizou uma leitura original, tendo, por base, o conflito existente entre a pulsão e a civilização na modernidade (Birman, 2005).
Para uma configuração precisa desse território da moral sexual civilizada, precisa-se compreender quem foram os burgueses, sua trajetória e as consequências de sua ascensão. Assim, ressalta-se que a chamada burguesia já existia no feudalismo, mas não era uma categoria importante socialmente. No século XVIII, o termo passa a se referir a uma classe responsável pelas atividades de distribuição como o comércio e não mais à produção. Essa nova classe, burguesia mercantil, consolidou-se no século XIX, junto ao capitalismo (Sennett, 1999). Nesse percurso, Kehl (2016, p. 32, grifos da autora) chama a atenção para "a posição conquistada do burguês contra a posição herdada de outros sujeitos de classes média herdeiros de cargos ou postos da antiga ordem feudal" que delimitará o mapa subjetivo da burguesia dessa época.
Kehl (2016) foi, indubitavelmente, exata no uso do termo conquistada para demarcar a condição de subjetividade do burguês, na qual a necessidade extremada de controle de si, dos outros e das transações comerciais ditava o tom das relações, inclusive, das sexuais. Nesse sentido, a máscara social se torna um artifício imprescindível para se transitar pelas contradições de uma sociedade que exigia a repressão dos afetos e desejos carnais, em prol de um maior desenvolvimento.
Com efeito, para Sennett (1999), essa representação nos espaços públicos promoveu o fortalecimento da vida privada, visto que oferecia o descanso dessas demandas sociais. Por consequência, criou-se um antagonismo entre convenção social, própria do espaço público, e liberdade, que ficou estrito ao domínio privado (Kehl, 2016). Relembrando Arendt (2000), ao caracterizar o privado como o reino da necessidade e o público como o reino da liberdade, verifica-se, então, uma inversão de valores importante para determinar a família como o lugar de intimidade e de surgimento do individualismo criado a partir de uma falsa oposição entre o bem comum e o bem pessoal.
Por esse viés, destaca-se que o século XIX foi resultado de uma soma histórica da qual o componente determinante para muitas ações sociais foi, sem dúvidas, segundo Hobsbawn (1988), a revolução francesa e seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Na visão de Laqueur (2001), o sexo foi um importante campo de batalha para essa revolução que, com a ascensão de uma nova classe burguesa, levantou com violência a questão de qual sexo deveria dominar a esfera pública.
Tem-se, portanto, a definição dos espaços sociais de pertencimento e de seus respectivos poderes e atribuições, tendo, como fundamento, as virtudes indiscutíveis das diferentes naturezas sexuais. À mulher, foi delegada a função de reprodução própria do espaço privado, ao homem foi atribuída a função da produção inerente ao espaço público. Essa repartição social legitimou ainda o registro dos direitos aos homens e dos costumes às mulheres. Sobre esses acontecimentos, Kehl (2001, s./p.) pontua que
no período em que uma parte da humanidade conheceu possibilidades de emancipação e progresso inusitadas, a ciência e a filosofia trabalharam para manter as mulheres atadas à natureza, enquanto os homens se beneficiavam de seu novo estatuto de seres de razão. No final do século 19, as ciências médicas e biológicas trabalham para atender a "demandas políticas imediatas para a criação de sexos biologicamente distintos", aos quais corresponderiam, é claro, lugares e papéis diferentes "por natureza" (grifos da autora).
Toda essa situação leva à construção de uma dinâmica familiar burguesa da modernidade. A percepção dessa configuração nos remete à Lévi-Strauss (1983, p. 84), no ponto em que esclarece que "são as [preocupações] de ordem econômica que desempenham um papel de primeiro plano, pois é sobretudo a divisão do trabalho entre os sexos que torna o casamento indispensável". Dessa maneira, não é difícil perceber que a grande maioria dos casamentos desse período buscavam a manutenção ou ascensão social e conservação ou aquisição de patrimônios. Por esse viés, as mulheres se tornaram um importante capital social simbólico ao apresentarem, por meio dos ritos sociais, uma postura que expressa a riqueza de sua família e o prestígio social que possuem nessa sociedade burguesa.
Diante dessa construção, a divisão do trabalho, assim como a definição dos papéis sociais são sustentadas pelo amor romântico e pela imaginação que oferecia a maternidade como as qualidades do ideal feminino. Uma boa ilustração dessas atribuições pode ser extraída em vários escritos de Jean-Jacques Rousseau. Um deles, datado de 1762, intitulado "Emílio, ou Da educação" propunha um modelo de mulher ideal - esposa dedicada, doce e submissa que dominou fortemente o imaginário do século XIX, tão fortemente que Kehl (2016) esclarece que, até hoje, é possível escutar, nas clínicas, as ressonâncias desse modelo idealizado que continua causando imenso sofrimento às mulheres.
Vale dizer, porém, que essa construção imaginária do território doméstico envolto ao amor paixão e o ideal de casamento, ao mesmo tempo, propiciou as aventuras fora do matrimônio, tema bastante recorrente em diários cifrados e romances da época (Iannini & Tavares, 2018). Narrativas que mencionavam histórias de como mocinhas de classe baixa se tornavam válvula de escape para jovens oficiais, bon-vivants dissolutos ou burgueses ricos mimados que buscavam nas aventuras prazeres sexuais que as jovens respeitáveis não ofereciam, muitas vezes, nem mesmo após o casamento (Gay, 2007).
Essa situação enseja duas questões importantes que se pode observar a partir dessa noção de moral sexual civilizada que legitima o sexo somente para procriação no casamento. A primeira é como esse discurso reforça as representações sociais da mulher como: santa, aquela mulher dita honesta, devota aos filhos e ao esposo, fiel e casta que tinha sua representação máxima na figura da mãe e da esposa ou; puta, aquela mulher que representava o desvio, a impureza, a imoralidade, a sensualidade e o erotismo, egoísta e infiel, características atribuídas às prostitutas e às moças que se entregavam ao sexo antes do casamento sem fins reprodutivos (Birman, 1999).
A segunda questão se refere ao fato de que essa moral sexual civilizada deixou, ao homem moderno, três destinos para sua pulsão sexual: 1º) sublimação dos impulsos sexuais que, conforme Freud (1908/1996, p. 178), "só pode ser efetuado por uma minoria, e mesmo assim de forma intermitente, sendo mais difícil no período ardente e vigoroso da juventude"; 2º) válvula de escape por meio de relações extraconjugais; 3º) adoecimento, destino percorrido pela grande maioria.
Com efeito, o médico vienense mostrou que esses destinos pulsionais também se referiam à mulher moderna que, até então, em sua grande maioria, era representada como uma pessoa frágil, suscetível ao desequilíbrio nervoso decorrente de sua condição biológica menstrual, em suma, uma doente por natureza (Kehl, 2016) por quem pesava as marcas morais do ser mulher na sociedade moderna. Porém, Freud (1908/1996) evidencia uma diferença fundamental: se o homem era quase estimulado a satisfazer suas pulsões sexuais fora do casamento com mocinhas ingênuas ou prostitutas experientes; à mulher, a proibição era severa e extremamente condenável, posto que a figura maternal deveria ser destituída de sexualidade, mas ao homem era legitimado o direito de se mostrar em sua potencialidade desejante e sua efetiva reprodutividade (Birman, 2016), o que marca uma assimetria entre os sexos.
Isso revela, de maneira radical, a oposição instituída entre a moral sexual civilizada para o homem e para a mulher. Essas foram as linhas de força que levaram Freud (1908/1996) a afirmar que, ainda que as restrições impostas pela moral sexual civilizada fossem "estendidas à vida sexual masculina [...], as diferenças naturais entre os sexos [impunham] sanções menos severas às transgressões masculinas, tornando mesmo necessário admitir uma moral dupla" (p. 169, grifo do autor).
Nessa leitura da moral sexual civilizada, a demanda sexual desmesurada, ou seja, aquela que transgredia o imperativo da reprodução dentro do contexto do casamento era tratada como anormal, visto que o normal se referia à norma reprodutiva imposta. Delineou-se, assim, um novo campo de anomalias - as perversões sexuais - que eram inimigas do imperativo de reprodução que permitia o controle social (Birman, 2016). Por isso, deveriam ser corrigidas ou eliminadas, em prol das exigências sociais.
Logo, verifica-se que uma das principais consequências da moral sexual civilizada foi a constituição da sexologia, com suas classificações e descrições detalhadas das perversões sexuais (Birman, 2016). Dessa maneira, o discurso biológico científico passa a ocupar agora posições estratégicas para o mapeamento, sobretudo, das mulheres transgressoras que eram classificadas em quatro modalidades principais de desvio moral da sexualidade - prostituição, infanticídio, ninfomania e histeria. As três primeiras correspondiam à escolha do erotismo como destino da sexualidade feminina e a consequente recusa da maternidade.
Birman (2016) as descreve da seguinte forma: a prostituta é aquela que utiliza o erotismo como forma de vida e se recusa à maternidade e à constituição familiar; a ninfomaníaca se caracteriza por um excessivo erotismo e; a infanticida não veria problemas em matar um filho recém-nascido para se livrar do peso da maternidade e permanecer desfrutando de seus encontros sexuais.
A histeria, por outro lado, encontrava-se em um outro registro, uma vez que a mulher histérica era aquela que não aceitava "identificar-se apenas com a maternidade, sendo permeada de fio a pavio pela dimensão erótica" (Birman, 2016, p. 78). Contudo, enquanto as três primeiras acimas descritas se localizavam na "dimensão da passagem ao ato, isto é, de realização direta de seus desejos eróticos e de oposição ativa à maternidade" (p. 78), a histérica se encontrava no registro do imaginário. Isso significa que
A mulher histérica seria aquela que gostaria de ser como a prostituta, a ninfomaníaca e a infanticida, mas que não suportaria ou não aguentaria como as outras passar da imaginação para a ação, isto é, deslocar-se do registro da fantasia para o ato. Isso porque, ficando presa no conflito psíquico entre as demandas opostas do erotismo e da maternidade, não conseguiria jamais se deslocar do registro do imaginário para o do real. Com isso, a mulher histérica adoeceria psiquicamente, presa que ficaria, portanto, ao seu conflito moral imobilizada e mortificada por não exercer todos os seus anseios e desejos. (Birman, 2016, p. 79).
Para Foucault (1988), a histerização do corpo da mulher é resultado de um atravessamento tríplice do processo de integração social. De modo que é preciso que haja uma comunicação entre um corpo social, que espera sua reprodução; um corpo familiar, que exige a manutenção do espaço doméstico e; a vida das crianças, que depende de sua responsabilidade biológico-moral. Na leitura freudiana,
quanto mais severa houver sido a educação da jovem e mais seriamente ela submeter-se às exigências da civilização, mais receará recorrer a essa saída [infidelidade conjugal]; no conflito entre seus desejos e seu sentimento de dever, mais uma vez se refugiará na neurose. Nada protegerá sua virtude tão eficazmente quanto uma doença. (Freud, 1908/1996, p. 180).
É nesse contexto que a histeria pode ser pensada enquanto um efeito da moral sexual civilizada do século XIX, ou seja, uma consequência do conflito gerado entre a moral sexual e a sexualidade da mulher que precisa ser contida (Assoun, 1993). Por esse viés, muitos sintomas físicos das mulheres, descritos por Sennett (1999), como, anemias, prisões de ventre, fobias, entre outros, parecem compor o espectro das queixas histéricas posteriormente (Kehl, 2016).
Formulações que não necessariamente se referiam ao natural do sexo, mas que utilizavam parte de um discurso biológico para sustentar uma moral social preocupada em atender às necessidades econômicas daquele contexto. Assim, em consonância com Kehl (2016), depreendemos que "a enorme produção teórica entre os séculos XVIII e XIX, destinada a fixar a mulher no lugar ao qual sua verdadeira natureza a destinou, leva-nos a desconfiar da 'naturalidade' desse lugar" (p. 49, grifo da autora). Isso porque a audácia freudiana permite o estabelecimento
[...] de um face a face entre o pensamento e o sexo que não apenas não toma a forma da inquisição moral, mas ainda examina o poder determinante dos avatares reais do sexo sobre a constituição do pensamento, e não tanto a maior ou menor capacidade do pensamento de controlar o impulso sexual (Badiou, 2007, p. 113).
As marcas dessa audácia serão determinantes para se pensar a sexualidade do próximo século, uma vez que as investigações do mestre vienense são basicamente inseridas nas reminiscências dessa moralidade burguesa.
Considerações finais
[...] diante da pergunta pelo referente da diferença entre os sexos não se espere encontrar um saber que consista como verdade [...]. Trata-se, antes, de fazer operar o enigma, na busca de um saber que será sempre, de saída, parcial (Poli, 2008, p. 357).
Neste artigo, verifica-se que o século XVIII, com seus avanços iluministas, tornou-se um campo fértil, no qual vigorou a proposição de novos discursos sobre a divisão sexual. Dentre eles, evidencia-se o discurso médico-científico, de base biológica e determinista, que legitimou a partilha dos sexos por meio da anatomia, atribuindo a isso a característica de natural. É nesse contexto que Freud cria a psicanálise. Entende-se, pois, que os pressupostos que possibilitaram esse nascimento não escapam às tentativas cientificistas de sua época de estabelecer a natureza das sexualidades masculina e feminina, tanto que o mestre vienense dedicou grande parte de sua teorização ao estabelecimento das psicodiferenças sexuais entre homens e mulheres.
O salto teórico que se verifica dos estudos anteriores da sexologia às investigações freudianas decorrem de um deslocamento do foco da sexualidade do puramente biológico, que operava a partir de uma concepção na qual a natureza havia provido as diferenças básicas entre os sexos, para o psíquico, que evidenciava os furos desse discurso, posto que quanto mais se tentava provar que a diferença era natural, mais se percebia o quanto ela era instável e ameaçadora. Com efeito, Freud opera uma leitura clínica que demonstra as marcas de um discurso moral que se encontrava na origem do sofrimento psíquico de homens e mulheres de sua época. Portanto, essas descobertas freudianas indicam que o que é tido como natural está sujeito a ser apropriado para legitimar as diferentes criações da cultura.
Cabe pontuar ainda que essa vertente é percebida quando o fundador da psicanálise ressaltou que há uma linha tênue entre a natureza que se expressa pelo instinto e a natureza humana que se manifesta pela pulsão. Além de mostrar como a segunda se apoia na primeira para nos constituirmos enquanto sujeitos, e qual parcela de renúncia dessa pulsão é necessária para nos desenvolvermos culturalmente. Nessa perspectiva, as normas passam a estabelecer os limites entre pulsão e civilização, dito de outra forma, elas apontam para o que deve ser renunciado em prol do progresso civilizatório, a saber, o sexual.
Observa-se ainda que, na modernidade, o ápice desse desenvolvimento se deu com o que Freud nomeou de moral sexual civilizada, que instituiu como normal a prática sexual somente após o casamento e para fins reprodutivos. Situação essa que terminou por legitimar um discurso natural da diferença entre os sexos, de modo a se definir características, funções e papéis a partir dessas distinções que culminaram em um pensamento heteronormativo que ignora um olhar positivo da diferença, tentando moldar uma sociedade burguesa utópica constituída de uma única forma de manifestação da sexualidade, desvalorizando a diversidade como produção de vida.
Nessa perspectiva, o pensamento freudiano permite uma desterritorialização da concepção da anatomia como destino, no ponto em que descortina o conflito entre pulsão e moral sexual civilizada como pano de fundo de um mal-estar psíquico que emerge como "real" destino da humanidade. O que vai permitir a autores como Homem e Calligaris (2019), no contemporâneo, evidenciar que "os dois gêneros só existem no papel, por assim dizer, e o que temos de fato são corpos que se distribuem num contínuo de variantes possíveis, entre a 'mulher' e o 'homem'" (p. 10, grifos dos autores). Portanto, atrelada às marcas anatômicas, estaria uma moral sexual civilizada produzindo traços psíquicos e delineando seus horizontes irrefutáveis na construção da diferença psíquica, inserida em um contínuo variável de posições que se encontram "entre" homens e mulheres.
Financiamento
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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Endereço para correspondência:
Elizabeth Fátima Teodoro
elektraliz@yahoo.com.br
Recebido em:02/06/2019
Aceito em:25/10/2019