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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.14 no.2 Juiz de Fora maio/ago. 2020
https://doi.org/10.34019/1982-1247.2020.v14.27752
ARTIGOS
Como delimitar e descrever um sistema de Memória Humana?
How to delimit and describe a Human Memory system?
¿Cómo delimitar y describir un sistema de Memoria Humana?
Luísa Superbia Guimarães
Université de Fribourg, Département de Psychologie (Suiça). E-mail: luisa.superbia@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0310-7367
RESUMO
O estudante ou pesquisador que inicia seus estudos em Psicologia Cognitiva geralmente aprende sobre o funcionamento de diversos sistemas de memória (e.g. memória declarativa/explícita e não-declarativa/implícita, memória episódica, memória semântica, memória operacional/de trabalho, memória procedural), mas não tem acesso aos detalhes do processo científico de descrição desses sistemas. De maneira semelhante, o profissional clínico pode enfrentar dificuldades para compreender os detalhes metodológicos dos estudos que originaram ferramentas de avaliação e intervenção neuropsicológica ao consultar a literatura científica da área. O objetivo deste artigo é apresentar uma visão global dos desafios teóricos e metodológicos no estudo da memória humana, com ênfase na delimitação dos sistemas de memória. A autora apresenta o método experimental geralmente usado nas pesquisas, alguns dos critérios usados no campo para delimitar os sistemas de memória, e uma proposta para a formulação de um modelo integrado dos sistemas. Ao final, são feitas considerações sobre os desafios do estudante/pesquisador que quer contribuir com o campo.
Palavras-chave: Psicologia cognitiva; Psicologia experimental; Memória.
ABSTRACT
The student or researcher beginning his/her studies in Cognitive Psychology usually learns about the functioning of various memory systems (e.g. declarative/explicit memory and non-declarative/implicit memory, episodic memory, semantic memory, working memory, procedural memory), but does not have access to the detailed scientific process of describing these systems. Similarly, clinical psychologists may face difficulties to comprehend methodological details that originated neuropsychological evaluation and rehabilitation instruments while consulting the scientific literature of the field. The aim of this paper is to present an overview of the theoretical and methodological challenges in the study of human memory, with emphasis on the delimitation of memory systems. The author presents the experimental method commonly used in research, some criteria used in the field to delimit memory systems, and a proposal for the formulation of an integrated memory model. The author concludes with considerations about the challenges of the student/researcher willing to contribute to the field.
Keywords: Cognitive psychology; Experimental psychology; Memory.
RESUMEN
El estudiante o investigador que comienza sus estudios en Psicología Cognitiva generalmente aprende sobre el funcionamiento de varios sistemas de memoria (por ejemplo, memoria declarativa/explícita y memoria no-declarativa/implícita, memoria episódica, memoria semántica, memoria operativa/ de trabajo, memoria de procedimiento), pero no tiene acceso a los detalles del proceso científico de descripción de esos sistemas. Del mismo modo, los psicólogos clínicos pueden enfrentar dificultades para comprender los detalles metodológicos de los estudios que originaron los instrumentos de evaluación e intervención neuropsicológica mientras consultan la literatura científica del campo. El objetivo de este trabajo es presentar una visión general de los desafíos teóricos y metodológicos en el estudio de la memoria humana, con énfasis en la delimitación de los sistemas de memoria. La autora presenta el método experimental comúnmente utilizado en las investigaciones, algunos de los criterios utilizados en el campo para delimitar los sistemas de memoria y una propuesta para la formulación de un modelo integrado de sistemas. La autora concluye con consideraciones sobre los desafíos del estudiante/investigador que quiere contribuir al campo.
Palabras clave: Psicología cognitiva; Psicología experimental; Memoria.
O estudo da cognição humana é um tema central na formação do psicólogo, seja por sua presença nos currículos de graduação em Psicologia, seja em cursos de especialização. A motivação para este artigo foi a constatação de que, não raro, o jovem estudante ou pesquisador em Psicologia Cognitiva se depara com uma multiplicidade de termos e definições da memória humana na literatura nacional e internacional e, ao longo de sua carreira, especializa-se em alguma área circunscrita do estudo da memória (e.g. demência precoce, déficits de memória operacional em crianças com discalculia, pacientes amnésicos etc.) sem tomar conhecimento de como o vasto corpo de pesquisas sobre o tema converge para um modelo integrado. De modo semelhante, profissionais clínicos (neuropsicólogos, terapeutas ocupacionais, psicopedagogos, psicoterapeutas) lidam com ferramentas de avaliação/intervenção pautadas em uma visão modular da cognição humana e, eventualmente, recorrem à literatura editada em português para entender a inter-relação dos diferentes sistemas de memória (e.g. implícita vs. explícita, episódica, procedural, operacional etc.).
Tanto o estudante/pesquisador quanto o profissional podem enfrentar dificuldades para compreender os trabalhos de natureza experimental sobre o funcionamento da memória humana, sem antes terem sido iniciados na lógica que subjaz essas pesquisas. Para o estudante/pesquisador, não compreender o método científico usado no campo terá um impacto direto sobre sua produção acadêmica futura, que poderá refletir uma compreensão fragmentada do funcionamento cognitivo humano. Para o profissional, há o risco de se equacionar o resultado de testes neuropsicológicos com o constructo que eles se propõem a mensurar, incorrendo em reducionismos perigosos que anulam e/ou limitam as possibilidades de desenvolvimento do paciente em questão.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a área de Psicologia definem o desenvolvimento do conhecimento científico como o primeiro princípio da formação do psicólogo (artigo 3º, Brasil, 2011). Considerando o desenvolvimento científico como um dos pilares da formação em Psicologia, este artigo abordará alguns dos desafios teóricos e metodológicos no estudo científico da memória humana, com ênfase na delimitação dos sistemas de memória. Apresentarei o método experimental geralmente usado nas pesquisas científicas, alguns dos critérios usados no campo para delimitar os sistemas de memória, e uma proposta para a formulação de um modelo teórico integrado desses sistemas. Espero, com isso, fornecer um recurso de estudo que seja útil tanto ao estudante que se inicia no campo da Psicologia Cognitiva, quanto ao psicólogo em processo de formação contínua.
Definindo termos e conceitos
A comunidade científica considera que a precisão de termos, conceitos e métodos reflete a maturidade de uma disciplina científica (Holton & Brush, 1985; Mayr, 1982; Shneider, 2009). A Psicologia é uma ciência recente e fragmentada, tanto pela vastidão e variedade de seus temas de estudo, como pela diversidade de perspectivas sobre um mesmo tema. Não raro, o jovem estudante ou pesquisador interessado no estudo da memória humana se depara com uma multiplicidade de designações ou - pior - significados para o fenômeno sob investigação. A formulação de Mário Bunge (1998) sobre a diferença entre conceitos, termos e coisas poderá auxiliar o estudante que faz suas primeiras incursões no campo.
Para o autor (Bunge, 1998), coisas são entidades que existem no mundo real (importante notar que a definição não se restringe ao mundo físico); conceitos são entidades que existem puramente na forma de pensamentos abstratos sobre as entidades do mundo real; termos são sinais linguísticos e também são entidades do mundo real, mas sua única função é denotar conceitos e suas associações correspondentes no mundo real. Bunge sugere o uso de aspas simples ('') para referir-se a 'termos' e aspas duplas (" ") para "conceitos". Aplicando a proposição de Bunge (1998) ao estudo da memória, podem-se fazer as considerações que seguem:
Memória é uma coisa, pois existe no mundo real como fenômeno subjetivo que pode ser acessado pelo observador de maneira indireta via respostas comportamentais. Entre psicólogos cognitivistas, 'memória' é um termo que designa uma ampla gama de coisas: uma propriedade da cognição humana, um repositório de experiências passadas ou o conteúdo desse repositório, para mencionar algumas. Não há ainda uma formulação conceitual unívoca de "memória": a Psicologia Cognitiva ainda não atingiu maturidade científica a ponto de um termo ('memória') evoluir para um conceito ("memória"), adotando a terminologia gráfica de Bunge (1998).
Para dificultar mais ainda o trabalho do estudante/pesquisador novato, a memória é não-unitária por natureza (temos memórias para cheiros, palavras, rostos, conceitos, esquemas motores, fatos históricos...), de tal modo que a Psicologia Cognitiva atual considera a existência de muitos sistemas de memória. Livros e manuais introdutórios de Psicologia editados em português (Eysenck & Keane, 2017; Sternberg & Sternberg, 2017) comumente apresentam os sistemas de memória procedural, episódica, semântica, operacional, implícita e explícita, sem, contudo, explicar como esses sistemas se relacionam entre si ou esmiuçar os métodos de pesquisa que levaram cientistas a descrevê-los. Em parte, isso se deve ao fato de os métodos usados serem muito complexos para o escopo de um livro-texto, mas também porque o estado atual das pesquisas em memória ainda não permite a formulação de um modelo teórico completo abarcando todos os sistemas já descritos na literatura científica. A delimitação de um sistema de memória e a posterior descrição de como ele opera de modo concatenado com os demais sistemas são os desafios e os objetivos últimos do estudioso da memória humana.
Delimitando sistemas de memória: critérios e propostas
O estudo sistematizado da memória remonta ao século XIX e teve seu início atrelado ao associacionismo, ramo da filosofia empirista que defende que o fortalecimento de conexões entre comportamentos, ideias ou experiências vividas pelo indivíduo é o princípio fundante da aprendizagem humana. Estudos de tradição associacionista forneceram boas descrições para o comportamento humano em testes de memória e em situações de aprendizagem (e.g. curva de esquecimento de Ebbinghaus, 1885; aprendizado de pares-associados, Russell & Storms, 1955), mas, em última instância, não explicaram como a memória opera internamente ou quais são seus meios de representação (para uma visão sobre o debate dos meios de representação da informação na memória, veja Pylyshyn, 1973, 2003). Na década de 1960 em diante, as perspectivas cognitivistas incorporaram elementos das teorias do processamento da informação - campo em ascensão na época - ao estudo da memória. As noções de codificação/decodificação de mensagens, limite da capacidade de um sistema, informações de entrada ou saída do sistema, foram agregadas às pesquisas (Posner, 1967; Simon, 1978; Simon & Feigenbaum, 1964; Turvey, 1977), e junto a elas uma ênfase mais processual na descrição dos fenômenos atinentes à memória humana (Neisser, 1967). Por "processual", entende-se que as teorias dessa vertente objetivam descrever não só particularidades do comportamento final do indivíduo (o ato de lembrar-se ou esquecer-se de informações), mas também as etapas ao longo do transcurso - ou seja, os mecanismos internos que dão suporte à memória.
Os modelos do funcionamento da memória podem ser derivados de três grandes fontes de dados: introspecção/experiência pessoal; observação de casos clínicos; tarefas experimentais controladas, das quais se extraem o desempenho comportamental do sujeito e/ou medidas fisiológicas de sua atividade cerebral. A fragilidade da introspecção como método científico válido e a dificuldade do estudo com casos clínicos (dadas a raridade, gravidade e/ou especificidade do quadro) fazem do método experimental a principal ferramenta dos psicólogos cognitivistas estudiosos da memória.
O delineamento básico de um experimento de memória envolve uma fase de estudo do material apresentado, uma fase de retenção desse material e uma fase final de recuperação do mesmo. A fase de estudo (ou codificação, na linguagem científica) é o momento em que o participante entra em contato com o material do qual deverá se lembrar no futuro. Esse material pode ser apresentado ao participante de várias maneiras: podemos, por exemplo, pedir que ele estude as palavras contidas em uma lista, que memorize uma sequência numérica, observe atentamente uma foto ou imagem, um vídeo, ouça uma história prestando atenção ao enredo. A fase de retenção corresponde ao tempo entre a fase de estudo do material e o momento em que se solicita ao participante que se lembre desse material. Ela pode variar de milissegundos ou dias, dependendo dos objetivos da pesquisa e do sistema de memória que se pretende investigar (e.g. memória operacional ou memória de longo prazo).
A depender dos objetivos do pesquisador, manipulações específicas são feitas ao longo da tarefa (e.g. indução um estado de humor no participante, manipulação de especificidades do contexto durante as fases de estudo e/ou recuperação de estímulos, manipulação da duração do intervalo de retenção e/ou inserção de tarefas intervenientes, manipulação do tipo de material apresentado etc.). São muitos os refinamentos experimentais possíveis, mas há concordância no campo quanto à utilização de cada tipo de manipulação: manipulação da apresentação dos estímulos para estudo da etapa de codificação (Baddeley & Ecob, 2017; Campoy, Castellà, Provencio, Hitch, & Baddeley, 2015); do intervalo de retenção para o estudo da fase de manutenção da informação na memória (Narimoto, Matsuura, & Hiratani, 2018; Vasques, Garcia, & Galera, 2016); e do teste para o estudo da recuperação da informação memorizada (Cochran, Greenspan, Bogart, &Loftus, 2016; St. Jacques, Szpunar, &Schacter, 2017). Idealmente, as conclusões derivadas de resultados comportamentais e/ou de neuroimagem obtidos em estudos experimentais com pessoas de memória intacta deverão convergir para aquelas derivadas da observação de casos clínicos.
Independentemente do método usado, as pesquisas não acessam as propriedades da memória humana per se, mas apenas o resultado de suas operações. Dada tal limitação, grande parte do trabalho dos teóricos cognitivistas se baseia em conjecturas a respeito dos mecanismos internos (mentais) que geram um conjunto de respostas comportamentais (e.g. relatar lembrar-se de algo, recordar uma lista de estímulos, reconhecer itens etc.) e as alterações orgânicas correlatas a ele (ativação neuronal, depleção de estruturas anatômicas). Essa é uma das razões para a ausência de consenso entre os modelos do funcionamento da memória e sobre quais são os sistemas de memória existentes. Há mesmo divergência na adoção de critérios para se estudar um sistema de memória suposto: os critérios podem incluir desde a especificação das estruturas cerebrais subjacentes (Nadel & Moscovitch, 1997; Squire, 2009); a duração do tempo em que a informação é armazenada (e.g. memória icônica, Sperling, 1960; o registro sensorial, a memória de curto prazo e a memória de longo prazo, Atkinson & Shiffrin, 1968); o grau de consciência do sujeito a respeito das informações armazenadas (e.g. memória declarativa e não-declarativa, Cohen, Poldrack, & Eichenbaum, 1997; Squire & Dede, 2015; a memória procedural, semântica e episódica, Tulving, 1985); a natureza do material armazenado no sistema (e.g. informações visuoespaciais e fonológicas, Baddeley&Hitch, 1974); as propriedades das representações mentais mantidas na memória (e.g. imagens mentais ou conteúdo proposicional, Denis & Kosslyn, 1999; Pearson, 2001; Pylyshyn, 2003); até o envolvimento de mecanismos atencionais no sistema (e.g. modelos propostos por Barrouillet & Camos, 2012; Cowan, 1993; memória primária e secundária, Unsworth & Engle, 2007).
Diante das várias estratégias metodológicas adotadas pelos pesquisadores do campo para investigar os sistemas de memória, Schacter e Tulving (1994) propõem três critérios para o isolamento de um sistema, a saber:
Operações de inclusão de classe
Quais os tipos de informação armazenados e manipulados pelo sistema e qual o tipo de tarefa que o sistema executa? É importante ressalvar que este critério não se baseia estritamente na natureza do material (incluindo especificidades da modalidade sensorial) contido no sistema; o critério está pautado no tipo de tarefa que o sistema executa, e não no material por ele processado: "Um sistema de memória intacto permite que alguém execute um número muito grande de tarefas de uma classe ou categoria particulares, a despeito do conteúdo informacional específico da tarefa" (Shacter & Tulving, 1994 p. 15, tradução minha). A ênfase está no que o sistema faz em vez de com o que o sistema lida.
Tomemos como exemplo um influente modelo de memória operacional: o modelo multimodal (Baddeley & Hitch, 1974; Logie, 2003, 2011). Nesse modelo, há um componente especializado em manipular e armazenar informações de natureza visuoespacial. Esse componente se subdivide ainda em outros dois componentes: o innerscribe, responsável pelas informações de natureza puramente espacial (localizações, trajetórias no espaço); e o visual cache, responsável pelas informações puramente visuais (propriedades intrínsecas à aparência do objeto, suas cores, forma, textura). O innerscribe e o visual cache são considerados parte do mesmo sistema de memória (memória operacional) pois operam em conjunto, ainda que o material por eles processados tenha características diferentes. Considerar cada um deles como um sistema de memória próprio seria um contrassenso, pois informações de natureza espacial e visual são incorporados em representações unitárias e usualmente (i.e., fora do ambiente experimental controlado ou de pacientes neurológicos) recuperadas em conjunto (nos lembramos da aparência de objetos em algum lugar no espaço). O critério de operações e inclusão de classe trata justamente dessa conformidade entre o tipo de tarefa executada pelo sistema e o tipo de informação por ele processado.
Propriedades e relações
É possível enumerar as propriedades do "candidato a sistema" que está sob estudo em termos de função especializada, substrato neural, regras de operação, tipo do material processado? Como o novo sistema se relaciona com os sistemas já conhecidos e postulados? Esse critério replica princípios científicos comuns a muitas áreas do conhecimento. Independentemente do fenômeno descrito, qualquer novo modelo teórico necessita (ou deveria) ter suas propriedades listadas e deve se relacionar de alguma forma com os modelos já existentes (modelos iniciados do zero, sem quaisquer correspondências com modelos predecessores são boa ficção ou, no máximo, bons palpites).
Dissociações convergentes
Dois sistemas são independentes se as performances em tarefas que supostamente são executadas por cada um deles estiverem dissociadas - dirigir e relatar como foi a primeira aula na autoescola, por exemplo. Essa é, segundo os autores, a condição necessária para que se postule a independência entre dois sistemas. Experimentalmente, paradigmas de tarefas interferentes são usados para submeter um modelo de memória ao crivo deste critério. O raciocínio básico é o seguinte: dadas as tarefas simultâneas 1 e 2 e o sistema A, e sabendo que o processamento dentro de um único sistema é serial (uma tarefa por vez), o bom desempenho concomitante em 1 e 2 só será garantido caso um segundo sistema B execute uma das tarefas paralelamente àquela executada por A (para um exemplo de aplicação desse raciocínio, ver Uittenhove, Chaabi, Camos, & Barrouillet, 2019). Dentre os três critérios postulados por Schacter e Tulving (1994), este é o mais simples de se operacionalizar experimentalmente e também de se verificar via observação clínica.
Os três critérios descritos acima são ferramentas usadas no campo para isolar um sistema de memória, isto é, afirmar que ele é um sistema distinto dos demais. Uma vez isolados os sistemas de memória, a questão que se coloca ao pesquisador do campo é como cada um desses sistemas opera conjuntamente com os demais. Tulving (1995) sugere um modelo explicativo chamado SPI (serial, paralelo, independente). Nesse modelo, as informações são codificadas serialmente dentro de um sistema, armazenadas paralelamente em diferentes sistemas, e recuperadas independentemente de cada um dos sistemas onde estavam guardadas.
Um exemplo de codificação serial dentro de um sistema é a impossibilidade de codificar duas sequências numéricas ao mesmo tempo na memória operacional (e.g. memorizar dois números de telefone inéditos concomitantemente). Como exemplo de armazenamento paralelo em diferentes sistemas, temos que o sistema de memória semântica armazena conhecimento geral sobre o mundo (e.g. bicicletas foram inventadas na França), enquanto o sistema de memória procedural armazena esquemas motores e habilidades cognitivas (e.g. andar de bicicleta ou saber ler), sem qualquer tipo de interferência mútua entre as informações armazenadas. Já a recuperação independente de cada sistema pode ser exemplificada pelo fato de que, ao recuperar a memória episódica de quando se aprendeu a dirigir (e.g. o primeiro dia na autoescola), não é preciso recuperar a memória procedural de como se dirige (pisar nos pedais, trocar marchas etc.), ou seja, a evocação de uma informação ou habilidade armazenada em determinado sistema de memória independe de informações contidas em outros sistemas.
Desafios permanentes
A existência dos sistemas de memória citados nesse texto é aceita consensualmente no campo, e o detalhamento de suas propriedades internas são constante foco de estudo dos pesquisadores. Não obstante, propostas teóricas integradoras são raras tanto pela dificuldade metodológica que impõem ao pesquisador quanto pela fluidez conceitual dos constructos que servirão de base ao modelo de memória que se pretende construir. Ademais, a descrição científica do funcionamento da memória enquanto sistema operacional mental deve coadunar com os conhecimentos atuais da neurociência. A rapidez das novas descobertas neurofuncionais torna ainda mais desafiadora a tarefa de acomodar um modelo teórico da memória humana no que já se sabe sobre o funcionamento do cérebro.
Para o jovem pesquisador que aspira fazer avançar o campo, compreender as várias acepções do termo 'memória' é o primeiro passo rumo a uma definição conceitual mais sólida de "memória". Ter clareza sobre os termos usados na área facilita a compreensão dos métodos empregados e os dados por eles gerados, especialmente porque algumas manipulações experimentais não são de fácil entendimento. O segundo passo é compreender os critérios adotados pela comunidade científica para unificar tais dados em um modelo teórico que seja coeso e acomode os sistemas já reconhecidos na literatura. Para o profissional, conhecer a terminologia e os métodos de pesquisa em Psicologia Cognitiva é fundamental para que se identifiquem as potencialidades e limitações das ferramentas de avaliação e/ou intervenção usadas em seu trabalho. Ademais, uma melhor compreensão da inter-relação entre os sistemas de memória conduz a um entendimento mais claro do funcionamento cognitivo global de seus pacientes - objetivo último da avaliação neuropsicológica e ponto de partida para o planejamento de qualquer intervenção. Os modelos apresentados neste artigo fornecem uma estrutura para que o leitor organize seus conhecimentos teóricos sobre os diversos sistemas de memória, compreendendo mais a fundo por que e como eles foram estabelecidos.
Os métodos e modelos apresentados neste artigo são a base das pesquisas sobre memória humana e servem como um guia para alcançar a convergência dos conhecimentos já produzidos na área. Apesar de sua importância, eles não são explicados em detalhes nos materiais didáticos introdutórios, sendo conhecidos apenas por leitores mais especializados. Meu objetivo foi fornecer um material condensado em português para o leitor iniciante no campo, apresentando-lhe uma visão geral dos desafios teóricos e metodológicos no estudo da memória humana, com ênfase na delimitação dos sistemas de memória. Dessa forma, espero contribuir tanto para a formação científica do psicólogo quanto do futuro pesquisador da memória humana, fazendo avançar a pesquisa em Psicologia Cognitiva.
Agradecimentos
Este trabalho foi desenvolvido com financiamento do Conselho Nacional de Pesquisa e Tecnologia (CNPq, processo número 131443/2017-8), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, código de financiamento 001), e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo 2017/23217-6). Agradeço ao Professor César Galera e ao Dr. Ricardo Basso Garcia por algumas indicações de leitura que originaram este artigo.
Referências
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Endereço para correspondência:
Luísa Superbia-Guimarães
luisa.superbia@gmail.com
Recebido em: 23/08/2019
Aceito em: 03/12/2019