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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.16 no.1 Juiz de Fora jan./abr. 2022

https://doi.org/10.34019/1982-1247.2022.v16.30385 

ARTIGOS

 

Esquizofrenia infantil como autoproteção psíquica - concepção da psicologia analítica

 

Childhood schizophrenia as subjective psychic protection - conception of analytical psychology

 

Esquizofrenia infantil como autoprotección psíquica - concepción de la Psicología analítica

 

 

Maíra Meira NunesI; Carlos Augusto SerbenaII

IUniversidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: mairameiran@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2336-008X
IIUniversidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: caserbena@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5568-839X

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A esquizofrenia infantil é considerada um processo psicopatológico de incidência rara cujas repercussões tendem a culminar em comprometimentos no desenvolvimento de funções simbólicas psíquicas, embora haja a preservação da cognição e dos afetos. Na psicologia analítica, o sintoma é compreendido como organizador e, muitas vezes, compensador de situações psíquicas em prol de sua preservação em relação a uma situação experienciada como ameaçadora. Nessa direção, o objetivo desse trabalho consistiu em compreender, a partir da psicologia analítica, o sentido da emergência da esquizofrenia na infância, abordando o papel dos afetos e a dinâmica psíquica. O método adotado foi o da revisão de literatura narrativa e a análise conceitual da noção de esquizofrenia infantil. Concluiu-se que, na esquizofrenia infantil, a cisão psíquica surge como uma forma de autoproteção a partir de situações que se configuram como traumáticas, visando a preservação do núcleo essencial da personalidade.

Palavras-chave: Esquizofrenia infantil; Psicologia analítica; Trauma; Autoproteção; Afeto.


ABSTRACT

Childhood schizophrenia is considered a psychopathological process of rare incidence whose repercussions tend to culminate in impairments in the development of psychic symbolic functions, although cognition and affects are preserved. In analytical psychology, the symptom is understood as organizing and often compensating for psychic situations in favor of its preservation in relation to a situation experienced as threatening. In this direction, the objective of this work was to understand, from analytical psychology, the sense of the emergence of schizophrenia in childhood, addressing the role of affects and psychic dynamics. The method adopted was the narrative literature review and the conceptual analysis of the notion of childhood schizophrenia. It was concluded that, in childhood schizophrenia, the psychic split emerges as a form of self-protection from situations that are configured as traumatic in order to preserve the essential core of the personality.

Keywords: Childhood schizophrenia; Analytical psychology; Trauma; Subjective psychic protection; Affection.


RESUMEN

La esquizofrenia infantil se considera un proceso psicopatológico de incidencia rara cuyas repercusiones tienden a culminar en impedimentos en el desarrollo de funciones psíquicas simbólicas, aunque se conservan la cognición y los afectos. En Psicología analítica, el síntoma se entiende como organizador y, a menudo, compensador de situaciones psíquicas a favor de su preservación en relación con una situación experimentada como amenazante. En este sentido, el objetivo de este trabajo fue comprender, desde la psicología analítica, el significado del surgimiento de la esquizofrenia en la infancia, abordando el papel de los afectos y la dinámica psíquica. El método adoptado fue la revisión de la literatura narrativa y el análisis conceptual de la noción de esquizofrenia infantil. Se concluyó que, en la esquizofrenia infantil, la división psíquica surge como una forma de autoprotección frente a situaciones configuradas como traumáticas para preservar el núcleo esencial de la personalidad.

Palabras clave: Esquizofrenia infantil; Psicología analítica; Trauma; Autoprotección; Afecto.


 

 

A esquizofrenia infantil é uma psicopatologia de baixa incidência, mas, quando presente, tende a culminar em comprometimentos significativos ao desenvolvimento da criança e à formação simbólica pertinente a essa fase, importante nesse período e em outros momentos da vida. Na psicologia analítica, as contribuições no tocante a essa psicopatologia na fase infantil são parcas; no entanto, o aporte de Jung quanto à esquizofrenia do adulto é relevante, atual, peculiar e se comunica e correlaciona às proposições de autores contemporâneos da abordagem sobre a esquizofrenia infantil. No presente artigo, serão discutidos os fatores relativos à possibilidade de compreensão da esquizofrenia infantil pela abordagem da psicologia analítica.

Em termos epidemiológicos, a esquizofrenia de início na infância é considerada uma psicopatologia rara: se aproximadamente 1% da população é acometida pela esquizofrenia, cerca de 0,1 a 1% desse percentual corresponde aos casos com início antes dos 10 anos de idade, sendo que, nessa faixa etária, é aproximadamente 50 vezes menos frequente, quando se considera o diagnóstico a partir dos 15 anos (Tengan & Maia, 2004). A baixa incidência constitui uma das dificuldades de diagnóstico diferencial. O principal fator que diferencia a esquizofrenia dos outros tipos de psicose e que corresponde a um critério diagnóstico na visão psiquiátrica é a característica da cronicidade (Januário & Taffuri, 2009), fator que, aliado aos prejuízos decorrentes quanto ao elemento da sociabilidade, geralmente comprometido, faz com que ela seja considerada uma psicopatologia grave, ainda que o aspecto intelectual em geral não seja diretamente afetado (Assumpção Jr. & Curátolo, 2004).

É importante destacar que o conceito de esquizofrenia infantil, assim como sua classificação diagnóstica, não coincidiu com a evolução da concepção de esquizofrenia - em sua forma clássica, considerada uma patologia do adulto - embora haja algumas derivações e correspondências em termos históricos.

Segundo Assumpção Jr. & Curátolo (2004), em 1857, Morel emprega a designação "demência precoce" para caracterizar um quadro de estagnação das funções mentais que culminaria em um processo demencial, terminologia que posteriormente foi substituída pela de "esquizofrenia". Já em 1893, Kraepelin sugere a classificação das psicoses em dois agrupamentos: maníaco-depressivas e demência precoce, essa última com três subtipos possíveis: catatonia, hebefrenia e vesania típica. O termo hebefrenia havia sido empregado por Hecker em 1871 e intitulava o quadro clínico da demência precoce de início na adolescência (Assumpção Jr. & Curátolo, 2004). O primeiro registro da então demência precoce na infância ocorreu em 1906, empregado por Sancti de Sanctis, que a designou como demência precocíssima (Caetano, Frota-Pessoa, Bechelli, 1993).

Com as revisões de Bleuler no campo da psiquiatria, sua sugestão do termo esquizofrenia para caracterizar os estados de cisão psíquica com desagregação do curso das ideias, autismo e ambivalência afetiva, substitui a anteriormente chamada demência precoce (Assumpção Jr. & Curátolo, 2004). Destaca-se que tanto Kraepelin quanto Bleuler haviam sinalizado que em alguns casos de esquizofrenia a afecção estaria presente desde a infância, no entanto, eles não discutem um tipo específico de psicose ou esquizofrenia da criança (Ajuriaguerra, 1983).

Durante a primeira metade do século XX, emergiram, de modos distintos, registros de quadros psicopatológicos da infância, caracterizados pela cisão psíquica psicótica, que foram nominados como esquizofrenia infantil, autismo ou, de maneira mais genérica, psicose infantil. No entanto, a diferenciação entre esses estados nem sempre esteve clara e, embora a psiquiatria fosse reconhecida como campo da medicina desde o século XIX, é em 1935 que o ramo da psiquiatria infantil se estabelece como uma especificidade no intuito da uniformização e classificação dos quadros psicopatológicos da criança na área (Caetano et al., 1993). Além disso, por outro lado, psicólogos que acompanhavam crianças, principalmente pelas tradições psicodinâmicas, lidavam com quadros infantis compatíveis aos da esquizofrenia infantil, nomeando genericamente esses estados como psicóticos.

Já em 1933, Potter havia proposto critérios específicos para o diagnóstico da esquizofrenia infantil - tendo utilizado pela primeira vez essa terminologia -, sinalizando que alterações do comportamento relacionadas à motilidade (aumento ou diminuição consideráveis) e tendência significativa da perseveração ou estereotipia marcam de maneira explícita a diminuição do tônus afetivo da criança em relação ao ambiente e caracterizam esses estados (Assumpção Jr., 2009; Assumpção Jr. & Curátolo, 2004; Caetano et al., 1993), mas essa terminologia nem sempre foi utilizada, seja no campo da psiquiatria, seja no da psicologia.

Além da dificuldade de uniformização dos critérios diagnósticos e da especificação de quadros clínicos infantis psicóticos distintos, outra questão ocasionou dificuldades quanto à definição dos diferentes estados: o emprego do termo autismo. Essa nomenclatura foi utilizada, ora como característica de quadros clínicos do adulto e da criança, ora como designação de outros quadros, como o atual transtorno global do desenvolvimento que é intitulado assim - como autismo - desde 1943. No entanto, o termo autismo havia sido empregado anteriormente (em 1909) no campo da psiquiatria por Bleuler, que o associou à esquizofrenia - síndrome autista do esquizofrênico - para designar as dificuldades de demonstrar afeto ou de sociabilizar, inacessibilidade, rigidez, estagnação do pensamento e das ideias (Dalgalarrondo, 2008, p. 331). Posteriormente, o termo autismo passou a ser empregado na caracterização de outros estados, sendo uma característica comum entre a esquizofrenia e o transtorno do espectro autista em suas concepções atuais.

Assim, desde a concepção de Kanner do transtorno do autismo, o quadro clínico desse estado se caracteriza pela presença dos sintomas desde o início da vida, portanto, já identificável no comportamento do bebê, o que o diferencia do da esquizofrenia infantil, na qual identifica-se uma descontinuidade no curso do desenvolvimento e da identidade, mesmo que indícios sutis do seu posterior desencadeamento possam estar presentes anteriormente à formação do ego. A distinção catalogada se estabelece em 1994, na 4ª Edição Revisada do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), na qual indica-se que o autismo, diferentemente da esquizofrenia, inicia-se antes dos 30 meses de idade e demonstra comprometimento quanto à sociabilidade como sintoma primário (na esquizofrenia, é secundário), ao passo que a especificidade da esquizofrenia infantil em relação ao autismo é a possível presença de alucinações e delírios. Ambas apresentam em comum a presença de comportamentos que demonstram um distanciamento da realidade (Moreira, 1986; Vargas & Schmidt, 2011).

Segundo o DSM-5, "a esquizofrenia com início na infância costuma desenvolver-se após um período de desenvolvimento normal ou quase normal. Há descrição de um estado prodrômico no qual ocorrem prejuízo social, interesse e crenças atípicos" (American Psychiatric Association, 2014, p. 58), no entanto, na edição atualizada do Manual não constam critérios específicos para o diagnóstico da esquizofrenia na infância, sendo a sintomatologia condizente à de sua forma de início na vida adulta. Os possíveis sintomas presentes são: delírios; alucinações; discurso desorganizado; comportamento desorganizado; expressão emocional diminuída ou avolia; sinais de perturbação; prejuízos em tarefas anteriormente desenvolvidas a contento (DSM-5, 2014).

Quanto à etapa do desenvolvimento, considera-se que a esquizofrenia tem início na infância quando os sintomas surgem anteriormente aos 13 anos de idade, sendo que, diferentemente da forma adulta, não há classificações em subtipos, e que, na infância, os sintomas tendem a se apresentar de modo indiferenciado, com preponderância da desorganização do comportamento e da fala (Kuniyoshi & McClellan, 2014). Além disso, em geral, o início da esquizofrenia infantil é considerado inespecífico, já no adulto, suas primeiras manifestações tendem a ocorrer de forma aguda (Asarnow, 2013).

Em relação à etiologia da esquizofrenia, não há uma compreensão unívoca: existe a possibilidade de que aspectos neurológicos subjazam a sua eclosão, no entanto, é provável que seus fundamentos sejam heterogêneos, tendo os fatores ambientais e/ou familiares, um papel importante. No caso da esquizofrenia infantil, no entanto, alguns autores apontam que a esquizofrenia, nessa fase, pode reverberar em interrupções mais significativas no desenvolvimento neurológico (Asarnow, et al., 2013; Kuniyoshi & McClellan, 2014). De modo complementar a esses dados históricos e diagnósticos, discutiremos, no presente artigo, as contribuições da psicologia analítica à compreensão da esquizofrenia infantil.

Na perspectiva da psicologia analítica, há discussões contemporâneas a Jung que favorecem a compreensão mais específica acerca da esquizofrenia infantil, mas que não estão desvinculadas da sua compreensão da esquizofrenia do adulto. Destacar-se-á as proposições das vertentes clássica e desenvolvimentista da abordagem, em correlação a pesquisas mais recentes - contemporâneas a Jung e a alguns pós-junguianos - com bebês e crianças, que convergem quanto à percepção dos processos psíquicos relevantes imbuídos na esquizofrenia infantil.

Nessa direção, destaca-se que o desencadeamento da esquizofrenia na infância ocorre após os processos egóicos terem minimamente se formado, tendo a criança percepção e clareza sobre o fato de ela apresentar uma identidade e uma subjetividade distinta das demais pessoas. A esquizofrenia infantil, nesse sentido, irrompe como uma falha e/ou interrupção dos processos psíquicos em desenvolvimento e em processo de estabelecimento em contraste com o próprio impulso natural de desenvolvimento da personalidade, o processo de individuação.

Tendo em vista que o pensamento junguiano fornece uma perspectiva teleológica na progressão da libido, este trabalho tem por objetivo compreender o sentido da emergência da esquizofrenia na infância a partir da psicologia analítica.

 

Desenvolvimento, individuação e fatores subjetivos do processo esquizofrênico

Embora Jung não tenha discutido de maneira específica sobre a esquizofrenia em sua forma de apresentação na infância, as concepções do autor sobre a psique e seu embasamento, bem como da própria dinâmica psicológica subjacente à esquizofrenia, auxiliam quanto à compreensão dessa psicopatologia quando manifestada pela criança. Ela é ampliada por outros autores da abordagem, tendo Michael Fordham e Erich Neumann especificado alguns aspectos referentes à esquizofrenia infantil e aos processos psicóticos na infância. Por outro lado, serão abordadas em paralelo as contribuições da linha desenvolvimentista de Daniel Stern, no intuito de ampliar as discussões acerca da esquizofrenia infantil. O referido autor não está inserido no campo psicologia analítica, mas percebe-se uma correspondência no que diz respeito à compreensão dos fatores psíquicos - nesse caso, especificamente da infância - a partir do afeto, tal qual Jung propusera.

De fato, Jung considerara que a personalidade humana é fundamentada pela afetividade, que pode se manifestar, psíquica e corporalmente, através de variações, nominadas por ele como tonalidade afetiva: "a tonalidade afetiva é um estado afetivo acompanhado de inervações corporais" (Jung, 1907/1986, p. 33). Através do teste de associação de palavras aplicado por ele, foi possível perceber empiricamente que, a nível psíquico, os complexos exercem, a depender da circunstância, funções e atitudes diversas. Esses componentes psíquicos irrompem a vivência egóica com ideias derivadas de um forte teor afetivo e apresentam relativa autonomia em relação ao eu. Assim, a partir de uma situação vivenciada como ameaçadora ao eu, que pode ser uma experiência nova (efeito agudo do complexo) ou reprimida (efeito crônico do complexo), o complexo inibe fatores egóicos, demovendo-os a um papel secundário na psique. Nesse caso, a modulação da atenção é mobilizada e concentrada nessa experiência afetiva (Jung, 1939/1986).

Na psique saudável, o complexo do eu consiste no fator psíquico de maior importância às experiências conscientes, na quais os complexos podem exercer uma atuação intrusiva momentaneamente. De acordo com Jung, "o complexo do eu, devido à sua ligação direta com as sensações corporais, é o mais estável e rico em associações" (Jung, 1907/1986 p. 34). De maneira similar, quando de uma situação ameaçadora ao eu, a percepção psíquica que a vivencia se conecta à inervação corporal, alterando-a, assim como às associações derivadas, portanto, os efeitos do complexo são observáveis tanto no pensamento e nas ideias quanto no comportamento e na ação, podendo ser, inclusive, distorcidos. Em um processo esquizofrênico, a autonomia desses complexos tende a ser mais duradoura, seja por sua força, seja pelo nível de dissociação egóica existente. Jung nominou como afeto do eu, a alteração do complexo do eu que ocorre após a atuação de um complexo de significativa tonalidade afetiva (Jung, 1911/1986).

O próprio Jung sugeriu haver situações inconscientes subjacentes à irrupção psicótica do adulto que podem remeter a vivências da infância:

Quando investigamos a história de vida de uma pessoa em que isto aconteceu [a perturbação do equilíbrio consciente e inconsciente], descobrimos com frequência que ela já vivia num estado peculiar de isolamento, fechada com maior ou menor intensidade para o mundo real. Esse estado de isolamento pode ser atribuído a certas singularidades inatas ou adquiridas na infância, as quais sempre se manifestam ao longo da vida (Jung, 1914/1986, p. 190).

Um dos fatores diretamente relacionados a essa atuação espontânea de componentes psíquicos alheios à vontade e direcionamento egóicos é, portanto, a experiência traumática. O trauma, que consiste numa experiência vivenciada como insuportável ao eu, provoca uma reação defensiva, sendo a dissociação um tipo de autoproteção psíquica que permite uma fragmentação do eu e a sua relativa preservação, para que ele possa evitar entrar em contato direto novamente com uma circunstância aversiva e ameaçadora. Toda situação que possa ativar esse tipo de emoção tende a ser revivida de maneira a atualizar a vivência afetiva dolorosa e, no caso da esquizofrenia, o processo integrativo dessa experiência à psique falha, tendo os complexos de teor afetivo uma atuação preponderante em relação ao eu, o que pode ocasionar rupturas do sentido de coesão da identidade do eu. As disposições psíquicas e corporais se encontram fortemente subordinadas aos complexos, o que se observa nos sintomas e em sua fenomenologia: alucinações; delírios; desorganização do pensamento e do comportamento; falas e expressões emotivas (como riso e choro) aparentemente imotivadas ou descontextualizadas; avolia; distanciamento da realidade (Jung, 1959/1986; Kalsched, 2013). Nesse sentido, é possível considerar que, na criança, a esquizofrenia infantil reverbera em aspectos corporais em formação, pois é nessa fase que a criança constitui, de modo construtivo, o eu, a partir das sensações corporais inicialmente.

Segundo Kalsched (2013), a reverberação patológica do trauma compreende duas instâncias da situação experienciada: o episódio externo e o fato psicológico, sendo a cisão egóica, que ocorre de maneira característica na esquizofrenia, realizada pela própria defesa do processo psíquico em curso. É possível depreender, desses fenômenos psíquicos, o papel do afeto nas vivências significativas e traumáticas na esquizofrenia, dado que ele exerce importância central na psique: abarca sensações e memórias significativas, que, quando fortemente perturbadas, desorganizam-se em relação à realidade e em função do fato traumático. Quanto maior a regressão dos complexos de tonalidade afetiva, maior a probabilidade do teor arquetípico desses componentes psíquicos se manifestar. Esses estados psíquicos são típicos da primeira infância e dos estados regredidos do adulto (Kalsched, 2013). Depreende-se que, no caso de uma cisão psíquica na infância que culmine em um processo esquizofrênico, a energia psíquica tende a regredir a períodos anteriores da experiência da criança - primeiros anos após o nascimento - com um teor arcaico1 e arquetípico presente, vivenciado na experiência de vida da criança até então. A integração das experiências emotivas, em construção no período da infância, tende a dar lugar, na esquizofrenia infantil, a uma fixação do complexo e a toda a sua gama de afetos na personalidade e em relação ao eu, ainda em estruturação nessa etapa de vida, além da formação de defesas arquetípicas, mais basilares do que as defesas egóicas. Dessa forma, compreende-se que a esquizofrenia infantil apresenta um teor mais arcaico, arquetípico. Talvez por essa razão, em relação à esquizofrenia do adulto, a da criança não seja classificada em subtipos, notando-se a coexistência de sintomas de todos eles, que podem ser observados, em geral, de modo distinto no adulto.

De acordo com Jung (1976), a força psíquica dos arquétipos subjaz os distúrbios psicológicos, incluindo os neuróticos e os psicóticos (como citado em Abrams, 1990, p. 30) e, segundo Samuels et al. (1986), "os comportamentos arquetípicos evidenciam-se ao máximo nos momentos de crise, quando o ego está muito vulnerável" (como citado em Abrams, 1990, p. 301). Utilizando a compreensão de Jung acerca dos arquétipos e sua ação psíquica, Fordham observou a presença e a atuação das imagens arquetípicas na psique das crianças, indicando que elas derivam, nessa fase, do processo de desintegração2 do self, isto é, na cisão momentânea da psique em função do movimento extrovertido da libido e no estabelecimento de vínculos com objetos externos. A introversão subsequente da libido, a reintegração, atua então inicialmente compondo núcleos de ego que convergem na formação do ego central (Astor, 2005).

Para Fordham, a dinâmica de desintegração e reintegração favorece a experiência de vida da criança quanto à integração subjetiva no contexto onde está inserida. Assim, a experiência arquetípica nos bebês se consolida na vivência da desintegração, quando a energia psíquica se volta para o ambiente externo e para as relações interpessoais; na reintegração, tende a ocorrer a integração dessas experiências à subjetividade. No entanto, caso haja uma vivência traumática para a criança, sem que ocorra a sua devida assimilação, a reintegração não ocorrerá senão com falhas, o que reverberará, por sua vez, em distúrbios dos novos processos de desintegração, ocasionando dificuldades, tanto no que diz respeito à integração saudável da experiência, quanto na disposição interativa interpessoal. Tal qual Jung considerara em relação à configuração da experiência traumática e de como ela pode repercutir em termos psicológicos, os principais fatores relacionados ao trauma são o teor do evento externo, a disposição e a "natureza" subjetiva, e a maneira como os dois aspectos interagem (Urban, 2003). A experiência afetiva pode se configurar como ameaçadora à coesão psíquica, o que culmina nas respostas defensivas, sendo, no caso da esquizofrenia, a defesa em prol da preservação, mesmo que para isso seja necessário o processo de cisão psíquica.

Ao analisar crianças com diagnóstico de esquizofrenia, Fordham (1994) compreendeu que, devido a determinados processos traumáticos, o que elas manifestam no comportamento e também através dos sintomas, de modo geral, tende a consistir em representações não-pessoais oriundas do self - organizador da psique -, cujas imagens são defensivas em relação à ansiedade que culminou no processo de cisão psíquica, diretamente relacionada aos afetos envolvidos. Nesses casos, o afeto está atrelado aos fatores do inconsciente coletivo, cuja representação se expressa de maneira avassaladora (Fordham, 1994).

No tocante aos processos relacionais da infância e nas possibilidades de culminarem na psicopatologia esquizofrênica, Neumann (1995) sugere que eventuais distúrbios da relação primal estejam diretamente relacionados a essa patologia, pois tende a ser constelada na criança a imagem arquetípica da Mãe Terrível3, representada pela maneira como as pessoas com esquizofrenia demonstram uma desintegração, pautada na experiência caótica dessas vivências. Para o autor, o arquétipo da Mãe Terrível está associado à morte, ruína, aridez e representa uma reversão do princípio de Eros. Como, segundo Neumann, o self, nas primeiras experiências de vida da criança perpassa pelo self da mãe/cuidador, a esquizofrenia é compreendida como uma falha no processo de transferência do self à criança (Neumann, 1995). Destaca-se que, nesse caso, sugere-se haver uma defensividade exclusivamente egóica, tendo o self um papel acessório de acordo com a maneira como a relação primal se estabelece (Kalsched, 2013), o que difere da perspectiva de Fordham, na qual a preservação psíquica é impulsionada e mantida pelo self.

Embora ambos compreendam a função defensiva psíquica de modos distintos, pois para Fordham é o self da criança que realiza a atuação de defesa e, para Neumann, o ego em formação que o faz, ambos convergem para a compreensão dos processos psicóticos e esquizofrênicos como sendo um modo de preservação psíquica frente aos conteúdos avassaladores do inconsciente coletivo quando emergem de modo desenfreado na psique da criança após um processo traumático. Nesse sentido, o fator pessoal e subjetivo da criança tende a se resguardar em relação a esses conteúdos e se preservar, na ausência de um processo psicótico. Entretanto, a experiência de vida da criança com esquizofrenia tende a ocorrer de modo fragmentado e descontínuo em relação ao desenvolvimento pregresso, devido à cisão dos fatores egóicos, cujo propósito é o de preservar o máximo possível a integridade psíquica em meio aos conteúdos impositivos e traumáticos, nesse caso, de teor avassalador.

Nesse sentido, compreende-se que as contribuições de Neumann ressaltam o papel das imagens psíquicas consteladas e o seu teor arquetípico, devido a uma fragilização psíquica que constela imagens do arquétipo da Mãe Terrível. No entanto, observa-se que, como o fundamento da esquizofrenia, desde as proposições iniciais de Jung, consiste num processo de fragmentação egóica, devido às dificuldades existentes em se lidar com situações significativamente aversivas, compreende-se que, na criança, o mesmo processo tende a ocorrer com as seguintes peculiaridades: 1) na criança, para que se compreenda tratar-se de um processo esquizofrênico e não de um transtorno global do desenvolvimento, como o autismo, a criança já deve ter minimamente estabelecido seus processos egóicos basilares e, tal como no adulto, uma eventual situação traumática tende a incorrer num processo de desorganização e cisão que culmina nos sintomas; 2) como a infância apresenta especificidades, como a necessidade de intervenções de cuidadores e desenvolvimento gradativo da linguagem e simbolizações, na criança, o processo regressivo, típico da esquizofrenia, desloca a energia psíquica para fases anteriores ao período da infância, no qual ocorreu a eclosão dos sintomas, o que indica uma constelação de fatores mais arcaicos. Assim, a contribuição de Neumann favorece essa compreensão, mas frisa-se o potencial defensivo do self, e não necessariamente do ego, em formação na infância.

Podemos considerar que Neumann, ao escrever sobre a criança a partir do self (psique total), e Fordham, a partir do ego (consciência), trazem contribuições complementares no que diz respeito à compreensão dos processos psicológicos da infância (Mathers, 2001). Nessa direção, destaca-se a atividade do organismo direcionada para sustentar e preservar esse processo de desenvolvimento, que, no campo psicológico Fordham, relaciona com o processo de individuação. Além, disso, como destaca Neumann, o desenvolvimento não se dá apenas de forma individual no interior da psique, mas também por meio da relação e vínculo com o outro. Assim, é possível situá-los conjuntamente na visão de uma abordagem pluralista (Samuels, 2005). De modo complementar, em ambos os processos está contemplada a noção de afeto como gênese e embasamento da personalidade, tal como Jung sugere.

 

Processos defensivos do self primário e do ego

Fordham (1974) e Kalsched (2015) apontam que, frente à ameaça psíquica, atuam defesas mais básicas e anteriores que as defesas do ego. Eles postulam, seguindo a compreensão de M. Klein, a existência de mecanismos de preservação da unidade e da integridade do próprio self primal. Assim, são as defesas do próprio self que são ativadas após uma vivência ameaçadora à integridade psíquica, no intuito de preservar o "potencial de totalidade na personalidade". Nas palavras de Fordham:

Finalmente, existem as defesas mais primitivas contra objetos maus; divisão, projeção e idealização dirigida contra objetos inteiros ou parciais. No caso de objetos parciais, não há inconsciência, mas sim tentativas mais ou menos violentas de atacar e acabar com o objeto mau - eles podem atingir um nível em que se deve falar em termos de aniquilação. É neste último grupo de sistemas de defesa que vou focar, pois é nessa área que as defesas totais são mobilizadas (1974, p. 193).

Portanto as dissociações, as cisões vistas de uma perspectiva externa, podem ser compreendidas como uma forma de inviolabilidade do fator mais importante ou central da psique. No entanto, o deslocamento da energia defensiva tenderá a ocorrer também em relação ao ambiente ou ao outro, o que pode interferir no potencial que esse self abarca. Esse aspecto é explorado por Kalsched, que relata que, frente a uma situação que provoca grande e ameaçador afeto à consciência egóica e ao próprio self,

(...) as defesas retrocedem profundamente e ativam estruturas e afetos primordiais da camada coletiva do inconsciente descrita por Jung. A ideia de que essas defesas podem ser "coordenadas" pelo self se encaixa muito bem com essas descobertas e faz sentido com a misteriosa sabedoria do sistema defensivo. Então o mesmo ocorre com o fato de que "profundo", "primordial", "daimônico" e "mitológico", também pode se traduzir em "primitivo", "não recordado", "implícito" e "infantil" (Kalsched, 2015, p. 478).

Acerca desse aspecto, Jung considerara que as psicopatologias consistem em maneiras de a psique lidar com as situações desestruturantes e ameaçadoras à personalidade (Jung, 1928/1986). Nessa direção, segundo Jacoby, na criança, a atividade arquetípica é vivenciada em correspondência aos fatores pessoais: se houver um distanciamento significativo entre os dois aspectos, arquetípico e subjetivo (que pode ocorrer pelo ensimesmamento ou fragmentação psíquica), tende a ocorrer um processo de falha do processamento simbólico e da assimilação subjetiva dos aspectos impessoais (Jacoby, 2010). No caso da esquizofrenia infantil, tal como Fordham (1994) sugere, através de um processo psicoterapêutico cuja transferência ocorra favoravelmente, as imagens, em geral, amedrontadoras à criança após a cisão egóica, podem ser elaboradas para que se transformem de sua forma de apresentação concreta para uma vivência simbólica. Assim, o trabalho com as imagens que se fizerem presentes tende a catalisar o processo de assimilação psíquica, tendo a transferência o papel também restitutivo em relação aos "fragmentos" egóicos decorrentes do processo esquizofrênico na criança (Fordham, 1994, p. 140).

Para Fordham, por mais que as imagens do inconsciente coletivo possam exercer uma força impactante na psique, a criança com esquizofrenia, em análise, pode estabelecer níveis de transferência com o psicoterapeuta, o que tende a favorecer a elaboração das imagens arquetípicas no seu processo de desenvolvimento em curso, pois a partir da teoria dos arquétipos de Jung, depreende-se que a criança apresenta o potencial formador de imagens, portanto, uma disposição criativa (Astor, 2005). Nesse sentido, portanto, a esquizofrenia infantil consiste numa ferramenta defensiva do self, visando a própria preservação. Sobre isso, ressalta-se a importância do fator afetivo nos processos psíquicos implicados na esquizofrenia, sustenta-se que a energia presente nas imagens avassaladoras pode ser incorporada no contexto continente da análise, encorajando-se a sua integração. Pesquisas recentes realizadas por Stern demonstram que o compartilhamento de estados afetivos entre a criança e os adultos tende a favorecer o desenvolvimento emocional da criança, por isso, pode-se dizer que os cuidadores e o contexto social no qual a criança está inserida exercem influência significativa à formação de processos psíquicos importantes da criança (Jacoby, 2010; Stern, 1992). Correlacionando esses dados à visão da psicologia analítica, é possível dizer que essas vivências tendem a favorecer o senso de identidade e o reconhecimento dos aspectos tanto positivos quanto negativos do self, de modo mais integrado à subjetividade.

Ampliando essa compreensão, torna-se pertinente destacar o fator motivacional implicado nas experiências interpessoais da criança, sobretudo porque na esquizofrenia um dos sintomas característicos é o chamado "embotamento afetivo". Segundo Jacoby (2010), "motivações podem emergir nas mais diversas gradações de intensidade, correlacionadas aos afetos e à força que os acompanha" (p. 78). Dessa forma, pode-se depreender que a eventual experiência aversiva mobilizadora de afetos na criança tende a exercer uma repressão dos afetos aos níveis mais primitivos. Sobre isso, Fordham destaca que passa a exercer, nos processos psicóticos, um tipo de defesa peculiar que culmina no isolamento da personalidade, pois exerce força contrária e até mesmo destrutiva à consciência e/ou ao eu, mas que está pautado na defesa do próprio self, como preservação psíquica diante de uma situação traumática (Fordham, 1974). Assim, compreende-se que a energia psíquica se volta a uma preservação psíquica a partir da configuração afetiva traumática vivenciada.

Salienta-se que a gênese dos processos afetivos psicológicos se encontra arraigada nas vivências corpóreas da criança desde os primeiros momentos de vida, elas estão diretamente relacionadas à formação egóica, já que é na percepção (inicialmente sensorial) entre eu-outro que a criança vai realizando a experiência de diferenciação e caracterização das próprias necessidades. Schmidt aponta que o contato corporal da pele entre mãe/cuidador e bebê é crucial para a formação de aspectos cognitivos, disponibilidade à interação social e desenvolvimento dos aspectos emocionais da criança. Para o autor, as funções de proteção do próprio ego estão conectadas à vivência das defesas da criança quando da necessidade de se preservar de alguma situação disfuncional na infância, tendo a pele um papel decisivo quando se encontra em fase de formação. No caso da esquizofrenia, cria-se uma espécie de "armadura" calcada numa vivência de formação do ego difícil e fragilizada, e essa disposição apresenta um componente corporal simbólico e uma representação psíquica (Schmidt, 2012).

De maneira similar, à luz de pesquisas neuropsicológicas contemporâneas, Wilkinson reitera que a existência de um complexo traumático na infância provoca reações estressoras e a dissociação psíquica culmina num estado de autoproteção, sendo que, nessa fase, a repercussão é percebida como uma "intrusão na integridade corporal" (Wilkinson, 2003, p. 237). Assim como Fordham, a autora defende que é através do processo de transferência e contratransferência na análise que se torna possível sustentar a elaboração gradativa das defesas psíquicas, através do desenvolvimento de novas experiências de mundo com uma relação analítica favorável. Quanto aos aspectos corporais imbuídos na experiência afetiva de uma possível esquizofrenia, Schmidt ressalta a importância que trabalhos de contenção como pintura e escultura, preconizados por Jung, podem exercer, pois são maneiras de tradução de afetos em imagens. Esses processos podem favorecer o deslocamento da energia psíquica protetora dos processos destrutivos derivados da cisão psíquica para novas maneiras de externar as emoções (Schmidt, 2012). De modo complementar, Fordham (1994) ressalta que esses processos, facilitados na infância por atividades lúdicas, tendem a culminar em maior possibilidade de organização psíquica através da brincadeira, na qual torna-se possível que a criança exerça, em alguma medida, níveis de transferência, favorecendo a proposta interativa da análise como Jung havia pensado, de modo aplicado à análise da criança.

 

O sentido de autoproteção da esquizofrenia infantil

A esquizofrenia infantil pode ser considerada um processo psicopatológico cuja compreensão consiste num desafio, não apenas pela baixa incidência, como também pelo comprometimento existente, no curso do desenvolvimento em uma fase inicial de vida, dos fatores psíquicos elementares às trocas interpessoais. No entanto, os autores mencionados na discussão são unânimes em indicar a preservação dos aspectos cognitivos e do senso de autoproteção psíquica às situações traumáticas e às imagens arquetípicas sentidas como ameaçadoras à psique na esquizofrenia infantil.

Ainda que não seja uma psicopatologia frequente, a esquizofrenia nessa fase tende a culminar em prejuízos consideráveis à integração psíquica e à adaptação ao contexto social, mesmo que nesse sentido se preze pela preservação da autonomia e da singularidade de cada ser. No caso da esquizofrenia infantil, ainda que os processos egóicos tenham sido formados, a cisão psíquica e consequente ruptura do desenvolvimento humano ocorrem em um período no qual a construção da linguagem verbal, em geral, encontra-se em curso, portanto as expressões são ainda dificultadas por essa via. Torna-se pertinente, então, o fomento a outras formas de expressão, que favoreçam o sentido das vivências em curso.

Não existe, no momento, um fator etiológico unívoco que defina ou explique o processo psicológico existente na esquizofrenia infantil de maneira definitiva, no entanto, segundo Jacoby (2010), os sistemas motivacionais aversivos, que funcionam como uma maneira de equilíbrio psíquico quando a criança precisa lidar com situações ansiogênicas, podem atuar de modo patológico na infância, o que indica que, mesmo em situações traumáticas, é provável haver uma predisposição à organização patológica do sistema motivacional aversivo (Jacoby, 2010). Da mesma maneira, Fordham (1974) sugere que não necessariamente situações difíceis na primeira infância ocasionam determinada psicopatologia, mas sim que o trauma proeminente pode ocorrer em qualquer momento da vida, mesmo após a primeira infância, sendo a psicopatologia um tipo de defesa por parte do self dos fatores externos em prol da preservação da subjetividade primeva. Na esquizofrenia infantil, portanto, os fatores traumáticos tendem a ocasionar a cisão psíquica e a formação de complexos de forte carga afetiva, como Jung havia descrito.

Nesta psicopatologia, tende a ser perceptível um processo psíquico que se sobrepõe ao eu de maneira inversa ao continuum de integração das sensações que tende a se fazer presente na infância, de acordo ao que coloca Mathers (2001), pois ao longo do desenvolvimento psíquico a criança vivencia, através das sensações, os fatores palpáveis que favorecem o próprio pensamento concreto, de significativa importância nessa fase da vida; a dinâmica entre o pensamento simbólico e as vivências infantis exerce papel central na formação da identidade. Contrariamente, nos chamados "distúrbios de significado", nos quais se inclui a esquizofrenia infantil, determinada situação traumática intensa reverbera nas experiências entre corpo e psique (Mathers, 2001). É possível depreender, portanto, que, na esquizofrenia infantil, lapsos entre as sensações e uma representação psíquica aversiva culminam numa paralisação e/ou regressão dos comportamentos e das percepções infantis, o que favorece a eclosão dos sintomas típicos mencionados.

Além disso, considera-se possível lidar com os fatores psíquicos a partir das expressões simbólicas no contexto analítico, tal como Fordham (1974; 1994) propusera, visando possíveis mudanças mais funcionais da experiência específica do indivíduo e da criança, com a transposição da energia psíquica dos complexos patogênicos a outras fontes de afeto possíveis. Na esquizofrenia infantil, os fatores arquetípicos que se impõem tendem a ser percebidos de modo vívido e, muitas vezes, concreto, através do teor invasivo dos sintomas psicóticos - alucinações, delírios, desestruturação psíquica. A modulação dessa experiência em prol de um equilíbrio psíquico, não necessariamente um restabelecimento, tende a favorecer a saúde psíquica dentro das possibilidades que o contexto de análise pode fornecer. Essa experiência pode estimular novas reorganizações afetivas, no intuito de que possam fluir do complexo patogênico a outras significações.

A partir da pesquisa realizada, ressalta-se a escassez de contribuições que indiquem possíveis medidas de precaução de um processo de cisão psíquica da criança. Algumas pesquisas (Artigue & Tizón, 2014) indicam fatores de risco para o desenvolvimento da esquizofrenia no adulto. No entanto, como demonstrado anteriormente no presente artigo, fatores observáveis nas pesquisas com crianças podem demonstrar novos olhares às medidas possíveis de fortalecimento egóico de modo contextualizado à família e ao ambiente da criança. Pesquisas vindouras que correlacionem essa circunstância de vida a eventuais fatores de risco à esquizofrenia na infância podem favorecer a prevenção dessas situações psicopatológicas.

 

Considerações Finais

Verifica-se a atualidade das proposições junguianas acerca da esquizofrenia forjadas desde o início do século XX. No contexto psiquiátrico, ele constatou a presença de conteúdos psíquicos que irrompem de modo avassalador na consciência, seja pela força que abarcam quando inconscientes, seja pela fragilidade egóica que culmina em sua fragmentação. Esses conteúdos, os chamados complexos psíquicos, apresentam um teor afetivo capaz de ocasionar uma mobilização modificadora da identidade e, consequentemente, da personalidade, como uma forma de proteção do fator psíquico mais significativo, o self.

Quando o processo esquizofrênico irrompe no período da infância, observa-se que a característica regressiva desses estados remete a fases iniciais de vida; nessa direção, a tendência é a de que a presença de imagens avassaladoras se imponha, assim como ocorre no processo esquizofrênico do adulto, porém com um teor arquetípico, embasado pela afetividade. Para compreender esse aspecto, tornou-se pertinente averiguar os fatores do desenvolvimento psicológico da infância a partir da perspectiva afetiva e vincular, que permitem constatar a presença de uma disposição psíquica infantil para o seu desenvolvimento, que passa pela interação humana constante.

Portanto, a partir da pesquisa realizada, constata-se que a esquizofrenia na criança corresponde a uma autoproteção psíquica que repercute na organização egóica; evidencia-se o papel que a família/cuidadores exercem no desenvolvimento infantil, pois fornece não apenas a segurança necessária à vida da criança, como também representa a matriz das experiências e trocas interpessoais do início da vida. No entanto, é evidente a dificuldade em se definir a gênese da esquizofrenia, mesmo porque fatores de propensão genética também são considerados.

Evidencia-se a alta probabilidade de que o processo seja desencadeado por uma situação de vida não suportada a nível egóico pela criança, a partir da qual a cisão psíquica pode preservar alguns aspectos subjetivos, para que seja possível lidar com as imagens e as vivências dificultosas experienciadas no processo psicopatológico. Verificou-se, na discussão, a importância que os processos desintegrativos exercem na diferenciação eu-outro na infância e, consequentemente, no estabelecimento dos aspectos subjetivos de maneira coesa, mas também dinâmica; nesse sentido, ao vivenciar uma situação traumática que desencadeará uma esquizofrenia infantil, a criança tenderá a lidar com os fatores aversivos de modo a incorporá-los à experiência subjetiva, portanto reintegrando aspectos amedrontadores ao eu. Aqui se verifica uma complementaridade entre as contribuições dos autores da psicologia analítica, com destaque a Fordham e Neumann, pois suas perspectivas, ainda que trilhem direções muitas vezes oponentes, corroboram para a visão de que na esquizofrenia infantil se configura como um processo de descontinuidade, ruptura e hostilidade de "outros" (perceptíveis nos sintomas típicos invasivos, como alucinações e delírios) em relação ao eu. Ainda assim, constata-se que o senso de preservação e autocuidado psíquico tende a ser exercido por parte do self, como organizador central da personalidade, o que conduz à perspectiva de que a autoproteção psíquica perpassa por uma reação a uma vivência de teor afetivo, o que tende a ativar fatores arquetípicos ainda mais incisivos na infância.

Sugere-se, portanto, que os processos psíquicos em evidência na esquizofrenia infantil, diferentemente do transtorno do autismo, não necessariamente perpassem por falhas simbólicas na formação do eu na fase anterior à constituição egóica, mas sim posteriormente, quando os processos egóicos foram conformados, ainda que com eventuais percalços e dificuldades. Na esquizofrenia infantil, portanto, a partir de uma situação que se configure como traumática, o sistema de autoproteção psíquica tende a agir em função de preservar o essencial da personalidade; para isso, inevitavelmente tende a ocorrer a cisão do ego, para o qual a vivência apresenta um teor aversivo, o que favorece a manifestação de outros complexos psíquicos, além do fato de que a função transcendente4 e a comunicação ego-self5 tendem a apresentar prejuízos. Como se trata de uma experiência que se estabelece após uma vivência de forte teor afetivo, que se conecta ao embasamento da personalidade, indica-se a importância que o fator afetivo das relações interpessoais exerce nessa psicopatologia, percepção que pode favorecer a perspectiva de acompanhamento psicológico à criança com esse diagnóstico, sobretudo tendo em vista a hipótese defendida aqui, de a esquizofrenia infantil consistir num processo de autoproteção psíquica, diante de uma situação contextual.

Ressalta-se a relevância do fator psicológico e da expressão simbólica que se fazem presentes quando de uma psicopatologia. Como Jung propusera, a psique pode ser compreendida como um sistema dinâmico, e o olhar construtivo fornece maneiras de integração da experiência, pois, havendo um sentido da cisão psíquica, como no caso da esquizofrenia, outros sentidos podem decorrer das expressões simbólicas em curso. Nessa direção, por maiores que sejam as dificuldades envolvidas no acompanhamento de uma pessoa com diagnóstico de esquizofrenia, a tentativa de compreensão das imagens psíquicas que podem se manifestar em cada comportamento, gesto, fala, representação, pode conduzir a maneiras pertinentes de se lidar com a assimilação do sintoma e à reorganização psíquica da criança.

 

 

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Endereço para correspondência:
Maíra Meira Nunes
marameiran@hotmail.com

Recebido em: 29/04/2020
Aceito em: 11/08/2020

 

 

1 Em Sobre os conflitos da alma infantil, Jung refere que o pensamento da criança apresenta um teor predominantemente arcaico, fortemente atrelado aos estágios inconscientes e subliminares da psique (Jung, 1910/2012, p. 23). Aqui, a ideia expressa no termo é mantida pela perspectiva de que, na infância, o processo de emergência do "eu", como central à consciência, é gradativo.
2 Fordham propõe que, desde o momento em que habita o útero materno, o bebê pode desintegrar-se e reintegrar-se, o que significa, respectivamente, que ele reage aos estímulos que lhe chegam e, depois, os assimila e elabora gradativamente. Esse processo indica uma incorporação de fatores externos para a constituição gradativa da consciência egóica (Fordham, 1993).
3 Conforme explicita Neumann, a criança vivencia, nos primeiros estágios de vida, uma percepção de si diretamente atrelada ao arquétipo da Grande Mãe, que lhe confere sentido a partir das trocas e mediação com o mundo exterior. No entanto, segundo ele, quando, na experiência vivida, sobressai a rejeição por parte desse outro, constela-se o arquétipo da Mãe Terrível, de teor predominantemente negativo para a experiência da criança (Neumann, 1995, p. 36).
4 Na psicologia analítica, a função transcendente consiste num processo de autorregulação psíquica que se dá através da interação entre opostos psíquicos (geralmente, do inconsciente com a consciência), com a integração egóica de processos significativos anteriormente não reconhecidos. A função transcendente decorre da conversão do afeto, de maneira dialética (Jung, 1960/2000).
5 Jung (1914/1986) ressaltava a importância do método construtivo quanto à atuação clínica em psicologia analítica. Nessa direção, reconheceu e validou que os fatores inconscientes e arquetípicos podem apresentar à consciência um devir, sobretudo quando se manifesta através de símbolos, conteúdos que não se esgotam com o reconhecimento da consciência. Assim, o self pode emitir expressões simbólicas significativas para o ego, mas no caso da esquizofrenia, com a cisão egóica, sua integração pode apresentar prejuízos.

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