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Revista Estudos Lacanianos

versão impressa ISSN 1983-0769

Rev. Estud. Lacan. vol.3 no.4 Belo Horizonte  2010

 

ARTIGOS

 

Don Giovanni e as vozes do desejo1

 

Don Giovanni and the voices of desire

 

 

Bernard Baas*

Liceu Fustel de Coulanges

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo central destacar a essência musical-desejante de Don Juan. Tendo isso em vista, será privilegiada neste estudo a figuração mozartiana – musical por excelência – do personagem, a saber: Don Giovanni. As interpretações a serem avançadas levarão em conta, principalmente, as análises de Kierkegaard e Lacan acerca da figura de Don Juan. Será feita, ademais, uma revisão crítica da literatura sobre o tema, com o intuito, dentre outros, de afastar as leituras moralizantes do personagem em questão.

Palavras-chave: Don Giovanni, Desejo e música, Feminilidade, Kierkegaard, Lacan


ABSTRACT

The present work holds as its main purpose to point out Don Juan’s musical-desiring essence. Having that in mind, this study will privilege Mozart’s figuration – musical par excellence – of the character: Don Giovanni. The interpretations to be made will consider specially Kierkegaard’s and Lacan’s analysis of Don Juan. A critical revision of the literature concerning the theme will take place as well, in order to, among other things, rule out the moralizing readings of the character.

Keywords: Don Giovanni, Desire and music, Femininity, Kierkegaard, Lacan


 

 

Um caso embaraçoso

Don Juan – nós o sabemos – é a figura, por excelência, do sedutor. Não ficamos, portanto, espantados com o fato de que o autor do Diário do Sedutor lhe tenha prestado atenção particular. Para Kierkegaard, com efeito, Don Juan é a encarnação do desejo, é o desejo em ato: “É apenas enquanto deseja que ele [Don Juan] se encontra em seu elemento” (KIERKEGAARD, 1943, p. 80). Podemos, por outro lado, nos espantar com o fato de que Lacan, inteiramente ocupado com sua teoria do desejo, tenha consagrado apenas algumas observações, pontuais, alusivas e até mesmo obscuras, a esta figura emblemática do desejo, mesmo que ele tenha um dia declarado que “a imagem de Don Juan é capital” (LACAN, 1975 [1972-73], p. 15). Pode-se crer que ele não sabia muito bem o que fazer de Don Juan2 .

No máximo, ele soube o que fazer com Don Juan, mais precisamente com o Don Giovanni de Mozart, já que este também lhe serviu, na ocasião, como um tipo de chamariz de atração para a análise. É o que aconteceu, parece, com Françoise Giroud, que, tendo-se retirado para a Provence a fim de se curar de sua ruptura com Jean-Jacques Servan-Schreiber, viu Lacan em pessoa chegar bruscamente em sua casa, convidando-a para uma representação da ópera de Mozart no festival de Aix-en-Provence; segundo seu próprio testemunho, foi no caminho de volta que ela pediu a Lacan para aceitá-la em análise (ROUDINESCO, 1993, p. 503). A história não diz se eles cantaram “Là ci darem la mano”... Eis aí, sem dúvida, um singular efeito desta ópera da sedução... Mas isso ainda não é um comentário.

Gostaríamos aqui de mostrar que, apesar do embaraço em que claramente a figura de Don Juan o colocava, a teoria de Lacan permite uma nova aproximação dos enigmas desse mito. Mas isso requer dar ouvido às vozes do desejo que se fazem ouvir na ópera de Mozart, e que apenas Kierkegaard tinha até então escutado. Pois, se Lacan pôde dizer, na ocasião, que “o Don Juan de Mozart” é “o ápice do personagem”, é primeiramente Kierkegaard quem fez do Don Giovanni a versão mais acabada do mito. E não é impossível que, em parte, as poucas observações de Lacan sobre Don Juan lhe tenham sido inspiradas pelo comentário kierkegaardiano. Em todo caso, as duas leituras têm, ao menos em comum, o fato de recusar toda compreensão moralizante de Don Juan. É por aí que podemos começar.

 

O musical para além do moral

Com efeito, a interpretação mais inocente, a mais escolar, talvez também a mais corrente, da figura de Don Juan é seguramente a interpretação moralizante: o mito de Don Juan seria o mito da oposição entre o desejo e a virtude, a exemplificação do destino daquele que, desprezando a virtude, se entrega ao desejo e aos excessos do desejo – in quali eccessi... dirá Dona Elvira (Ato II, cena 10d [532]) 3 –, para no fim ser exposto à sua culpabilidade e ao seu castigo. Certamente, os argumentos aparentes em favor dessa leitura não faltam. Todo bom professorzinho de escola [petit maître d'école] – como diria Hegel – crê ser seu dever listar os vícios do personagem: Don Juan é sedutor, enganador, infiel, mentiroso, hipócrita, perjuro, libertino, glutão, blasfemo... – bela lista de imoralidade (quando não se acrescenta a isso a pequena nota “de esquerda”: sua arrogância aristocrática que o faz desprezar a gente pobre! 4 ). É verdade que a peça de Molière se presta muito facilmente a essa leitura. E o título exato do libreto de Da Ponte para o Don Giovanni vai no mesmo sentido: “Il dissoluto punito”. Essa parece mesmo ser a moral da história, como o confirma a cena dita “última” – a não ser confundida com a cena final – da ópera de Mozart, em que o sexteto entremeia as vozes para cantar esta sentença: “Quem faz o mal termina mal” (DG, ato II, cena última [702]) 5 . Mas, justamente por vir após o trágico da grande cena final, a inocência desta última cena, assim como sua tonalidade musical bastante ligeira, sempre espantou. De resto, ela parece só ter sido executada quando da criação, em Praga, em 1787, o próprio Mozart tendo-a suprimido, um ano depois, para a representação vienense (ela não figura no libreto impresso em Viena, em 1788); eis aí o que justificou o fato de que todos os intérpretes da ópera, durante mais de um século – até o próprio Mahler –, tenham terminantemente apagado esta cena julgada excessivamente “moralizante”.

É verdade que é preciso estar severamente intoxicado pela moralina – teria dito Nietzsche – para reduzir o personagem de Don Juan a esse estatuto de contra-exemplo da moralidade. É preciso mesmo ser cego – e, sem dúvida, também surdo – para não ver ou ouvir que essa pose de moralista se torna objeto de derrisão nas obras mesmas que ela invoca em seu favor. Pois essa postura moralizante é exatamente aquela do criado de quarto – Sganarelle ou Leporello –, que dá ou tenta dar lição de moral a seu senhor. E, para dizer a verdade, o que ilustra assim essa figura do criado de quarto é a inveja da qual procede implicitamente, e de maneira mais ou menos não confessada, tal postura. Há aí todo o ressentimento daquele que inveja as extravagâncias de seu senhor, que amaria poder, como ele, perseguir sem medida seus desejos, mas que não tem nem a vontade, nem, sobretudo, a coragem para isso, de tal modo que é retido pelo preconceito moral com o qual é moldado. Assim, Sganarelle, tentando dar sermões em Don Juan, que faz a apologia de sua vida de sedutor, solta finalmente esta confissão: “eu me acomodaria bem com isso, se não houvesse nisso mal nenhum” (DJ, ato I, cena 2). Da mesma forma, Leporello se permite às vezes algumas admoestações; mas ele não desdenha participar das extravagâncias de seu senhor, sob a condição, todavia, de não correr nisso nenhum risco (cf. DG, ato I, cena 8 [120] e ato II, cenas 1 a 3). Mas o que é, a esse respeito, o mais notável na ópera de Mozart é que Leporello guarda, ele próprio, a famosa lista das conquistas de seu senhor; ele chega mesmo a reivindicar seu mérito, como o atesta a frase inaugural da ária dita “do catálogo”: “Prezada Senhora, eis aqui o catálogo das belas que meu senhor amou; é um catálogo que eu mesmo fiz” (DG, ato I, cena 5 [99]). Certamente, em uma ocasião, mas em apenas uma – trata-se da ária dita “do champanhe” – Don Juan diz: “minha” lista (DG, ato I, cena 15 [231]); mas como ele se endereça então a Leporello, deve-se compreender: “a lista que tu tens de minhas conquistas”. Pois é ele – o criado de quarto – que é o “secretário”, como o nomeia com justeza Kierkegaard (1943, p. 66); é ele que guarda a lista graças à qual ele goza, de algum modo por procuração, das conquistas de seu senhor. Se não houvesse o preconceito moral, ele assumiria voluntariamente o papel de sedutor.

Tal é – nomeada com justiça – a “moral do criado de quarto”: uma fraqueza corroída de inveja. Ela é também a moral de nossa época, essa moral pequeno-burguesa que combina hedonismo e boa consciência em um pequeno cocktail ao mesmo tempo malandro e apaziguador. Quanto a esse ponto, Baudelaire não se enganou; em algumas notas que deixou de um projeto de drama sobre Don Juan, ele caracterizava assim o personagem do doméstico: “ele fala sem parar de virtude e de economia; ele associa voluntariamente essas duas ideias; [...] é a futura burguesia” (BAUDELAIRE, 1980, p. 373). Acrescentemos que ele não conhece outra lógica senão aquela da acumulação, acumulação dos prazeres – donde a lista – e acumulação proporcional das boas ações (em todos os sentidos da palavra). É a lógica propriamente servil, desse servilismo mercantil que os criados de outrora como os “senhores” de hoje têm por único “valor”. Tanto Molière quanto Da Ponte não se enganaram quanto a isso e terminam suas peças, tanto um quanto o outro, com uma réplica do criado mostrando-se explicitamente como o que ele é: Sganarelle só sonha recuperar o que lhe é devido (“meu salário, meu salário, meu salário!” [DJ, ato V, cena 6]), e Leporello, que, em sua primeira aparição, reclamava orgulhosamente não querer mais servir (cf. DG, ato I, cena 1 [1]) 6 , não tem, no fim, outra preocupação senão se conservar na servidão (“e eu, eu vou encontrar um senhor melhor” [DG, ato II, cena última – 700]). Tal é a postura do criado de quarto; tal é também a postura dos professorezinhos de escola que entendem reduzir o personagem de Don Juan a um libertino moralmente condenável mesmo se, teatralmente, ele distrai. A estes, como àquele, convêm o julgamento de Hegel: “Não há herói para seu criado de quarto; não porque o herói não é um herói, mas porque o criado de quarto é um criado de quarto” (HEGEL, Phénoménologie de l’esprit, VI, 616).

Desde então, podemos estar legitimamente surpresos de reencontrar algo desta posição moral no que foi a primeira interpretação psicanalítica da figura de Don Juan. O célebre ensaio de Otto Rank – Don Juan, mais frequentemente citado como Don Juan e o duplo7 –, satisfazendo às necessidades da causa psicanalítica, declara com efeito necessário renovar, no modo próprio da dita causa, a oposição entre vício e virtude: “O mau princípio se encarna em Don Juan. Nós podemos mesmo dizer que Don Juan é uma personificação do Diabo. Os escrúpulos de consciência, princípios do bem, próprios ao herói, é Leporello, o duplo contrário de Juan, quem os personifica” (RANK, 1973, p. 132). Mas os dois princípios assim distintos devem ser compreendidos como a clivagem interna a um mesmo psiquismo, clivagem do desejo e da culpabilidade; daí a necessidade declarada: “Teria sido impossível fazer do personagem de Don Juan este cavaleiro frívolo, sem consciência, não tendo respeito por nada, se Leporello não constituísse precisamente a parte de Don Juan que representa a crítica, o medo, isto é, a consciência do herói” (Ibid., p. 131). Teremos compreendido: Leporello é “o duplo” moral de Don Juan: “As grosseiras advertências pelas quais Leporello exorta Don Juan, constituem a voz da consciência de Don Juan que critica os atos deste último, enquanto que na covardia e no medo de Leporello se simboliza o sentimento de culpabilidade do herói frívolo” (Ibid., p. 133). Objetar-se-á, com razão, que o ensaio de Rank envolve outros motivos – sobre a figura do pai, sobre o estatuto da mulher, sobre a função do herói, sobre a questão da idealização etc. – que não autorizam a reduzi-lo a estas coordenadas éticas. Seguramente. Resta, no entanto, que, de uma ponta a outra, ele implica, a título de princípio hermenêutico, esta tese do duplo como consciência moral. E, segundo seus desvios próprios, o estudo de Pierre Jean Jouve sobre O Don Juan de Mozart renova ainda esta tese do “duplo”. Assim, comentando o recitativo em que Don Juan e Leporello dialogam logo depois do assassinato do Comendador (cf. DG, ato I, cena 2 [19 a 28]), ele evoca “a ejaculação volúvel, as ameaças e as explosões surdas de palavras pelas quais Don Juan se endereça ao criado como a sua própria consciência”; e ele precisa: “Don Juan e Leporello, do ponto de vista do drama, são feitos em uma só e mesma realidade psíquica. [...] Leporello reproduz sempre Don Juan; Leporello é a parte baixa de Don Juan. Don Juan usa de Leporello; ele se nutre de Leporello. […] Leporello alivia Don Juan, Don Juan anima Leporello” (JOUVE, 2004, pp. 47-48). Certamente, também aqui, não se poderia pretender reduzir o estudo de Pierre Jean Jouve apenas a esta explicação. Não é menos verdadeiro que essas duas leituras psicanalíticas de Don Juan – que são também os dois estudos psicanalíticos mais célebres desta figura mítica – se apresentam, de início, a nós por este traço sublinhado de moralismo. O que é, de qualquer modo, um pouco paradoxal.

E, mesmo se isso pode parecer a alguns ainda mais paradoxal, cabe, excepcionalmente, ao filósofo – na ocasião Kierkegaard – evitar toda inclinação moralizante. Com efeito, o autor do Diário do sedutor afastou, deliberada e explicitamente, toda consideração moral de sua leitura do mito de Don Juan. Seria mais justo dizer: de sua escuta do Don Giovanni de Mozart. Pois, se Kierkegaard se prendeu principalmente à ópera mozartiana, é porque lhe parecia essencial a dimensão musical do personagem de Don Juan. Em consequência, é justamente o índice moral, como um tipo de critério negativo, que o conduzia a fazer a diferença entre a peça de Molière e a ópera de Mozart:

O Don Juan de Molière é mais moral que o de Mozart. Esta observação, se ela é bem compreendida, constitui justamente um elogio da ópera. Nesta, o que encontramos, não são falatórios a propósito de um sedutor, mas um sedutor: Don Juan; e não se pode negar que a música em seus detalhes não seja muitas vezes bastante sedutora. É isso o que ela deve ser e é isso justamente que constitui sua grandeza. É uma tolice concluir disso que a ópera é imoral (KIERKEGAARD, 1943, p. 91).

A diferença se liga, portanto, à música. A peça de Molière, justamente pelo fato de seu estatuto textual, implica mais um juízo refletido – e ao mesmo tempo convoca a um tal juízo – sobre o comportamento ou a conduta de Don Juan, mesmo se isso é tratado de modo cômico, enquanto a ópera de Mozart, precisamente porque ela é uma obra musical, tem por objeto próprio o desejo de Don Juan e a sensualidade deste desejo. Kierkegaard o confirma: “Eu aprendi com a música que apenas ela pode exprimir Don Juan” (Ibid.) – declaração que explica que Kierkegaard, em uma época que ignorava as gravações, ia à ópera para ouvir Don Giovanni a cada vez que a ocasião se apresentava, mas se distanciando o mais possível da cena e mesmo da sala, até se contentar com os corredores onde ele podia se entregar apenas à música (o que, além disso, lhe fazia economizar o preço do bilhete, como ele próprio o reconhece!... [cf. Ibid., p. 94]). E é porque não se poderia seriamente seguir as reflexões de Kierkegaard sobre Don Juan sem acompanhá-lo em sua escuta da música de Mozart, por exemplo, em seu comentário da Abertura instrumental da ópera (cf. Ibid., p. 99). Infelizmente, não se pode fazê-lo aqui. Mas, mesmo sem entrar no detalhe dos comentários musicais, há muito a aprender dessas páginas em que se deixa ler a devoção de Kierkegaard pelo Don Giovanni de Mozart.

Para compreender seu sentido e o que está em jogo nele, é preciso primeiramente situar o lugar dessa figura de Don Juan na teoria kierkegaardiana dos três estágios da existência. Esses três estágios – Kierkegaard fala também de três “esferas” – não são três etapas sucessivas que se deveria atravessar como um itinerário obrigatório; também não são as três etapas de uma dialética mais ou menos hegeliana. Trata-se, ao contrário, de três estágios independentes e mesmo exclusivos uns dos outros; e o terceiro não é a síntese, ainda menos a substituição [relève] dos dois outros. Esses três estágios são o estágio estético, o estágio ético e o estágio religioso, aos quais correspondem respectivamente três “existentes”: o sedutor, o esposo e o cavalheiro da fé. A figura emblemática do cavalheiro da fé é Abraão. Em oposição, a figura emblemática do sedutor é Don Juan – ainda que esse título de “sedutor” seja problemático, como se o verá mais à frente. Há, todavia, um ponto comum entre o cavalheiro da fé que é Abraão e este outro “cavalheiro” – o cavaleiro – que é Don Juan: é que, precisamente, a ação deles os leva para além da moral. Abraão, com efeito, aceitando sacrificar seu filho, se coloca para além da moral; e até mais: a moral seria para ele uma traição de sua fé. E sabemos como Don Juan não apenas despreza toda regulação moral da existência, mas dá finalmente por prova de sua coragem a recusa em se arrepender. Um e outro – cada um segundo seu modo próprio – se colocam fora da esfera ética. Mas é apenas esse o único ponto comum entre eles. Apenas importa agora o estágio dito “estético” e o papel que nele tem a figura de Don Juan.

Em Ou... ou..., precisamente na primeira parte (no qual se encontra também O diário do sedutor), a figura de Don Juan aparece na segunda seção, intitulada: As etapas eróticas espontâneas ou o erotismo musical. Se o erotismo é dito aqui musical, é porque a música é essencialmente erótica. O que Kierkegaard pensa sob o termo erotismo não é o desejo refletido, calculado, que escolhe seu objeto em função de seu interesse bem compreendido; é, ao contrário, o desejo espontâneo, ingênuo, o desejo que advém por si mesmo, imediatamente: é “a sensualidade genial” (genial no sentido de ingênuo). Por isso trata-se aqui de etapas eróticas “espontâneas”. Ora, “o que é espontâneo é indeterminável, a língua não pode, portanto, concebê-lo” (Ibid., p. 58). Desde então, se compreende que a música, porque ela está além da linguagem, seja ela mesma o “médium” próprio ao desejo espontâneo, o que não quer simplesmente dizer o meio de expressão do desejo, mas seu elemento próprio: “a música exprime sempre em sua espontaneidade o que é espontâneo” (Ibid.). Se, portanto, o erotismo espontâneo é a sensualidade genial e se a potência da música concerne propriamente à espontaneidade, pode-se concluir que “a sensualidade genial é o objeto absoluto da música. Ela é absolutamente lírica e se dá, na música, inteiramente e em toda a sua impaciência lírica” (Ibid.). Eis aí por que Kierkegaard reporta as três etapas eróticas espontâneas a três figuras líricas, mais precisamente a três personagens das óperas de Mozart. E, dessa vez, trata-se mesmo de três etapas, logicamente distintas, e cuja sucessão forma uma continuidade que não é outra senão a gênese do desejo.

Na primeira etapa, o desejo erótico visa um objeto ideal singular, mas indeterminado; o desejo é, portanto, também “ideal”, no sentido de um devaneio, sem que este objeto seja efetivamente dado como tal. Nessa etapa, o desejo é apenas o “pressentimento de si mesmo”; ele se sente podendo desejar reportando-se a um ideal, mas ele não se atualiza em um desejo efetivo. Sua figura é o Pajem, isto é, o personagem de Cherubino em As Bodas de Fígaro: é o adolescente que se apaixona por todas as mulheres que ele cruza, mas sem ter ainda a audácia de abordar nenhuma delas. O objeto de seu desejo é a feminilidade tal qual ela aparece exteriormente em cada mulher, mas esse objeto é visado no modo do devaneio, de maneira que ele não o atinge realmente jamais. E essa contradição explica, para Kierkegaard, que Mozart tenha paradoxalmente escrito o papel para uma voz de mulher: é a “contradição de um desejo tão pouco determinado e de um objeto tão pouco distinto que ele repousa de uma maneira andrógina no desejo, como em alguns vegetais, o macho e a fêmea estão reunidos na mesma flor” (Ibid., p. 63). Tal é o desejo unido a seu objeto como objeto onírico, o desejo que mal nasceu: “a sensualidade desperta [...], mas o desejo ainda não despertou” (Ibid., p. 62); ele permanece preso no devaneio. Nessa primeira etapa, portanto, o desejo erótico “sonha”.

Na segunda etapa, o desejo erótico “busca”; ele busca, na multidão e na diversidade, o que será seu objeto próprio. Mas ainda não é um desejo desejante; ele apenas busca o singular na multidão: “O desejo não encontra seu verdadeiro objeto, mas ele descobre a multidão, buscando aí o que ele quer descobrir. Assim o desejo despertou, mas não é ainda determinado como tal” (Ibid., p. 65). A figura desse desejo “volúvel e incansável” (Ibid.), desse desejo de algum modo “borboleteante”, que busca seu objeto por um “roçar” sucessivo de uma multidão de objetos, sem jamais desejar precisamente nenhum deles, essa figura é, para Kierkegaard, o personagem Papageno, mas Papageno exatamente tal como ele se apresenta nas primeiras cenas de A Flauta mágica: é um personagem também musical, um personagem musicalmente “gorjeador” e “volúvel” – como os pássaros que ele tenta capturar –, um personagem alegre e “feliz em suas ocupações e em seu canto” (Ibid., p. 66). Pouco importa aqui que Papageno encontre no final sua Papagena; o essencial, para Kierkegaard, é a figura mítica de Papageno tal qual ela aparece no início da ópera; é a figura do desejo que “busca” seu objeto.

A terceira etapa é aquela em que o desejo não é mais simplesmente “sonhador” ou “buscador”, mas em que ele se torna verdadeiramente “desejante” (cf. Ibid., p. 65). Don Juan é sua figura emblemática:

Em Don Juan, o desejo é absolutamente determinado como tal, e ele é, em um sentido intensivo e extensivo, a unidade espontânea das duas etapas precedentes. A primeira etapa desejava, idealmente, o singular; a segunda desejava o singular sob a determinação da multidão; a terceira etapa faz a unidade. No singular o desejo encontra seu objeto absoluto e o deseja de uma maneira absoluta (Ibid., p. 68).

Embora isso peça ainda explicações, deve-se compreender que, na terceira etapa, o desejo encontra, em cada objeto singular da multidão de objetos singulares em direção dos quais ele se dirige, seu objeto absoluto. Don Juan é, portanto, a figura por excelência desse desejo erótico absoluto do objeto erótico absoluto. E ele é sua figura necessariamente musical. Isso confirma a observação segundo a qual o Don Giovanni de Mozart, contrariamente ao Dom Juan de Molière, não deve ser compreendido no registro moral. A moralidade supõe, com efeito, uma determinação reflexiva; é-lhe necessário o médium da linguagem para que ela possa se dizer. A sensualidade, ao contrário, porque é espontânea, pede o médium musical. Isto é, o “reino” da sensualidade é ele próprio musical; é um mundo de voz. Ora, Don Juan, na medida em que apenas com ele o desejo desperta como desejo absoluto, é “o primogênito” deste reino que, enquanto musical, escapa à determinação reflexiva, portanto, da mesma forma, à determinação moral:

A idade média falou muito de um monte que não se encontra em nenhum mapa e que se chama o monte de Vênus. É lá que a sensualidade está em casa, é lá que ela encontra seus prazeres selvagens, pois é um reino, um Estado. Nem a língua, nem a circunspecção do pensamento, nem a aquisição laboriosa da reflexão podem se estabelecer aí – aí só se ouve a voz elementar da paixão, o jogo dos desejos, o alarido selvagem da embriaguez – só gozamos em um zunzum eterno. O primogênito deste reino é Don Juan. Isso não quer dizer ainda que isso seja o reino do pecado, pois ele só pode ser observado no momento em que se apresenta na indiferença estética; é apenas quando a reflexão intervém que ele se mostra como reino do pecado, mas então Don Juan foi morto, a música se matou (Ibid., p. 72).

Há, com efeito, “indiferença estética”, porque o reino da Venusberg não é senão o reino da sensualidade, da sensualidade inocente, sem ser de modo algum parasitado por algum escrúpulo moral. Para dizê-lo através de uma imagem, o reino de Venusberg não é o castelo de Sade; pois, em Sade, na medida em que se trata explicitamente de fazer o mal, de querê-lo como tal e, portanto, de fazer obstáculo a toda forma de moralidade, ainda estamos referidos à moral. Nada de semelhante no reino de Venusberg; nada de semelhante em Don Giovanni. A sensualidade na qual se desenvolve é estranha a toda consideração moral. É apenas no fim da ópera, quando Don Juan desapareceu e, portanto, também quando a própria música se esvaneceu, que se pôde dizer, por uma reflexão retroativa, que essa sensualidade era pecadora, que o reino de Venusberg era o reino do pecado8 .

É, portanto, um contrassenso querer compreender a figura de Don Juan no registro moral. É preciso, na contracorrente dessa determinação reflexiva, compreendê-lo pelo que ele é essencialmente: sua “genialidade sensual”, o que – mais uma vez – significa sua sensualidade “espontânea”. Com efeito, “gênio” não designa aqui alguma coisa de mental; muito ao contrário: se Don Juan é um sedutor “até o mais profundo de si mesmo”, é porque “seu amor não é mental, mas sensual” (Ibid., p. 75). Trata-se aqui de uma diferença de estatuto temporal: “O amor mental, diz Kierkegaard, é existência no tempo; o amor sensual é desaparecimento no tempo” (Ibid., p. 76). Com efeito, o amor mental é o amor que, ele próprio, se reflete, que se avalia e que constrói, pela mediação da representação mental, a relação com seu objeto, de modo que ele visa o objeto como o que ele poderia ou que ele deveria possuir e que assim ele adia a sua possessão. Ao contrário, o amor sensual é imediato e absoluto; ele se experimenta como possessão imediata de seu objeto. Assim Don Juan se sente imediatamente unido a cada uma das mulheres que ele ama, de tal modo que ele não adia o momento dessa possessão, o momento do enlace [l’étreinte]: ele está imediatamente na cama de Dona Anna, ele toma imediatamente Zerlina em seus braços... Por isso a modalidade temporal desse amor sensual é o desaparecimento no tempo: mal ele enlaça o objeto presente de seu desejo, esse amor já desaparece para se dirigir a outro objeto. E é precisamente essa modalidade temporal do desaparecimento que permite a Kierkegaard precisar: “... o amor sensual é desaparecimento no tempo, e o médium que exprime isso é a música” (Ibid.). Pois a música é ela própria incessante desaparecimento. Eis aí uma primeira razão que explica que, para Kierkegaard, Don Juan é, dessa maneira essencial, musical; ele é de essência musical. Ao que Kierkegaard acrescenta esta outra precisão: para quem escuta a ópera de Mozart, o personagem de Don Juan é, por um lado, a ideia mesma da sensualidade (isto é, a ideia geral da sensualidade como potência, como vitalidade, como vigor etc.) e, por outro lado, ele é um indivíduo, um indivíduo singular, de modo que, para o espectador, ou, antes, o ouvinte da ópera, Don Juan não cessa de oscilar entre o estado de ideia e o estado de indivíduo; e, acrescenta Kierkegaard, “essa oscilação é a vibração musical” (Ibid., p. 74). Somente a musicalidade permite encarnar em um mesmo personagem a ideia geral da sensualidade. O que implica excluir daí toda determinação moral que se bastaria, adequadamente, com o médium da linguagem. Sob a condição dessa exclusão, devemos poder apreender a relação estreita, essencial, entre a música e a sensualidade de Don Juan, entre a música e o desejo absoluto que anima Don Juan.

 

O desejo de Don Juan

Resta saber qual é esse desejo de Don Juan, qual é esse desejo absoluto do objeto absoluto. Para este fim, colocaremos por um tempo entre parênteses as observações de Kierkegaard. Mas não esqueceremos o que elas conquistaram até aqui para a reflexão: não se pode reduzir Don Juan à figura imoral de um libertino preocupado em acumular conquistas. Se, portanto, Don Juan é algo diferente do que chamamos habitualmente um “don juan”, qual pode ser o objeto de seu desejo? Conhecemos a resposta mais rebatida, a mais simplista, a resposta dos professorzinhos de escola: Don Juan busca a mulher ideal. Mas podemos relançar a questão: qual mulher ideal? E recaímos em uma resposta simplista: a mulher ideal que busca Don Juan é a mulher que lhe daria a volúpia, isto é, o maior gozo sexual. Tal resposta não se afasta da lógica mercantil do criado de quarto, para o qual Don Juan é apenas um libertino que faria seu negócio até encontrar o melhor produto.

É, todavia, essa lógica que Baudelaire atribui a Don Juan para denunciar a sua ilusão. Sua interpretação do personagem de Don Juan é, com efeito, construída em oposição ao personagem de Tannhäuser, na ópera de Wagner. O erro de Don Juan é crer que ele encontrará a volúpia acumulando as conquistas, de modo que ele não encontra jamais a mulher ideal; ao contrário, Tannhäuser visa à idealidade voluptuosa não na multidão das mulheres, mas em uma mulher singular, verdadeira encarnação do ideal absoluto: é Venus, a mulher da Venusberg, que ele ama frequentar para se esquecer das boas maneiras da virtuosa Elisabeth. Mas, justamente porque ela é uma mulher singular, mais exatamente tal mulher singular (não qualquer uma), a mulher do Venusberg é, aos olhos de Baudelaire, mais absoluta que todas as mulheres e mesmo que a soma de todas as mulheres seduzidas e abandonadas por Don Juan; ela é a mulher ideal e absoluta. O que é o mesmo que dizer que Tannhäuser teria sucesso lá onde Don Juan teria falhado:

[Wagner] se livrou felizmente da fastidiosa multidão de vítimas, das Elviras inumeráveis. A ideia pura, encarnada na única Vênus, fala bem mais alto e com mais eloquência. Não vemos aqui um libertino ordinário, esvoaçando de bela em bela, mas o homem universal, vivendo morganaticamente com o Ideal absoluto da volúpia, com a Rainha de todas as mulheres diabólicas, de todas as faunesas e de todas as satiresas, relegadas sob a terra desde a morte do grande Pan, isto é, com a indestrutível e irresistível Vênus (BAUDELAIRE, 1968, pp. 282-283).

Que seja. Compreende-se que Baudelaire tenha podido encontrar nesta figura wagneriana de Tannhäuser o ideal de um “amor desenfreado, imenso, caótico, elevado à altura de uma contrarreligião, de uma religião satânica” (Ibid., p. 282). Mas, justamente essa dimensão piedosa, mesmo que “contrarreligiosa”, é estranha a Don Juan. Nem em Molière, nem em Mozart, não se trata de Satã ou de qualquer pacto diabólico. E é exatamente por isso que Don Juan não vai a Roma: ao contrário de Tannhäuser, que busca obter o perdão do Papa, Don Juan recusa-se decididamente a se arrepender. E isso faz uma diferença essencial. Não apenas por causa da tonalidade “catho-kitsch” – se ousamos dizê-lo – da ópera de Wagner (que, aliás, repetirá isso com seu Parsifal); mas, sobretudo, porque o mito de Tannhäuser se desdobra ainda integralmente, mesmo que seja de modo negativo, no registro moral9 , enquanto o Don Giovanni de Mozart – como Kierkegaard bem o viu – excede totalmente a esfera moral. Da mesma forma, em seu comentário da ópera wagneriana, Baudelaire fala, a propósito de Tannhäuser, do “excesso no desejo”. Mas esse excesso, que “versa no mal todas as forças devidas à cultura do bem”, procede ainda de uma determinação moral, já que ele é “a energia [...] de uma alma sensível que se enganou de via” (Ibid.). Ao contrário, quando se trata de excesso na ópera de Mozart – “Em que excesso se envolveu o miserável...” (DG, ato II, cena 10d [532]), diz Dona Elvira, que ao mesmo tempo pede para Don Juan a punição e canta a piedade que esse destino lhe inspira –, esse excesso não tem a ver simplesmente com a transgressão dos interditos morais e religiosos; mas é, efetivamente, o excesso do desejo no desejo, é – nós o mostraremos mais à frente – o desejo que se excede a si próprio.

Mas, antes, é preciso voltar à questão de saber qual é essa mulher ideal (ou esse ideal feminino) que Don Juan buscaria. Depois da resposta “romântica” – a mulher da absoluta volúpia –, é preciso examinar a resposta psicanalítica: a mulher que Don Juan busca por meio de todas as mulheres que ele seduz é a mãe. Poderíamos imaginar isso... Mas essa resposta, aparentemente admitida, pode ela própria se declinar duplamente.

Ela implica, em primeiro lugar, pensar a mãe como figura do objeto absoluto do desejo, no sentido do que Lacan chamava, em certa época do seu ensino, a Coisa (das Ding). A mãe é, então, a figura do objeto do que teria sido o gozo originário, o objeto da famosa experiência originária de satisfação da qual o sujeito foi, por necessidade, separado, e que, desde então, enquanto sujeito separado e alienado ao significante – em suma, enquanto sujeito do desejo –, ele não cessa de buscar na sucessão de todos os objetos empíricos de seu desejo10 . Seguindo essa lógica, as aventuras galantes de Don Juan nos dariam uma figuração “mítica”, isto é, “épica” – diria Lacan11 – do desejo como visada ao mesmo tempo necessária e impossível da Coisa, isto é, como visada desse horizonte inacessível de gozo que anima todo desejo12 .

Mas esta explicação do desejo de Don Juan pela referência materna pode também significar (sem que isso seja, aliás, contraditório com a explicação precedente) que o amor de Don Juan por sua mãe é tal que ele fez sua a feminilidade da mãe. Tal é a interpretação psicanalítica de Pierre Jean Jouve. Pode-se resumi-la muito brevemente e, tomando de empréstimo seu léxico: o desejo de Don Juan é inteiramente tendido para uma “Forma do passado” – a maiúscula está no texto –; essa Forma é a mãe. Pois ele amou a mãe, e ele a amou ao ponto de introjetar em si mesmo a feminilidade da mãe. Desde então, ele busca provar sua virilidade possuindo uma a uma todas as mulheres que ele encontra – e isso sempre com violência (Jouve pensa aqui na violação ou na tentativa de violação de Dona Anna ou de Zerlina). Mas, a cada vez, ele recai em sua própria feminilidade, de tal modo que, para provar ou re-provar sua virilidade, ele investe em uma nova mulher (JOUVE, 2004, pp. 78-79). Muito evidentemente, essa tese inscreve Don Juan no esquema edípico clássico, no fim das contas, visto que a figura do pai intervém aí sob os traços do Comendador que chama Don Juan de volta à lei edípica do interdito da mãe, expondo-o assim à sua culpabilidade e fazendo cair sobre ele o castigo (cf. Ibid., pp. 161-181). Mas o que faz a especificidade disso é a lição implícita que convida a “entrever a verdadeira natureza psicossexual de Don Juan e sua tendência maior que não está do lado das mulheres” (Ibid., p. 49). Em uma palavra: Don Juan é um homossexual. Como se sabe, esta tese se tornou o lugar comum da literatura psicanalítica sobre Don Juan. Lacan, no entanto, a desqualificou, com um revés: “Sabe-se muito bem como os psicanalistas se divertiram com Don Juan, do qual eles fizeram tudo, inclusive, o que é o cúmulo, um homossexual” (LACAN, 1972-73/1975, p. 15).

Mas isso não diz como Lacan pretendia dar conta do desejo de Don Juan. É preciso, portanto, considerar agora as poucas observações que ele pôde “soltar” sobre Don Juan. Se a tese maciça da homossexualidade de Don Juan é assim repelida, essas observações têm, no entanto, em comum visar – cada uma à sua maneira – um certo estatuto feminino não de Don Juan, mas da figura de Don Juan. Com efeito, trata-se, sucessivamente, do “objeto” feminino que Don Juan busca (LACAN, 1956-57/1994, p. 418), do “sonho feminino de Don Juan” (LACAN, 1962-63/2004, p. 224) ou do “sonho de mulher de onde saiu Don Juan” (LACAN, 1971/2007, lição de 17 de fevereiro), e ainda da “fantasia feminina de Don Juan” (LACAN, 1962-63/2004, p. 233), e enfim do “mito feminino de Don Juan” (LACAN, 1972-73/1975, p. 15). Isso constitui uma certa constante. É melhor, todavia, considerar uma a uma essas diferentes observações. A primeira dentre elas é, de início, uma maneira polida de se distanciar das interpretações psicanalíticas habituais13 e, de maneira não menos polida, mas firme, de pôr pra fora [mettre sur la touche] a tese de Otto Rank sobre o duplo, assim como a de Jouve sobre a homossexualidade de Don Juan. Lacan investe então em precisar em que sentido deve ser entendida, no horizonte de Don Juan e mais particularmente no Don Giovanni de Mozart, a noção de sedutor: o sedutor Don Juan não é aquele que atua com uma técnica de sedução; mas ele seduz porque ele ama.

Penso que, contrariamente ao que se diz, Don Juan não se confunde pura e simplesmente, e muito longe disso, com o sedutor que possui pequenos truques que podem sempre ter sucesso. Creio que Don Juan ama as mulheres, eu diria mesmo que ele as ama o suficiente para saber, quando a ocasião se apresenta, não dizê-lo a elas, e que ele as ama o suficiente para que, quando ele o diz a elas, elas o crêem (LACAN, 1956-57/1994, p. 418).

E Lacan sugere que este amor não é sem relação com a “situação sem saída” na qual Don Juan se encontra “sempre”. Mas, nesse texto, ele não diz mais nada sobre esse tema do “sem saída”, do qual apreciaremos mais à frente a pertinência. Ele continua sua observação reintegrando a ela o tema da bissexualidade, não, aparentemente, para renovar a ideia da homossexualidade de Don Juan, mas para sugerir que o objeto do desejo de Don Juan é “a mulher fálica”:

Creio que é no sentido da noção de mulher fálica que se deve procurar. Nas relações de Don Juan com seu objeto, há, certamente, algo que tem relação com um problema de bissexualidade, mas é precisamente no sentido em que Don Juan busca a mulher, e é a mulher fálica. Como ele a busca de verdade, como ele vai até ela, como ele não se contenta em esperá-la nem em contemplá-la, ele não a encontra, ou ele acaba por encontrá-la apenas sob a forma deste convidado sinistro que é, com efeito, um além da mulher, pelo qual ele não espera, e do qual não é por nada, com efeito, que é o pai. Mas não esqueçamos que, quando ele se apresenta, é – coisa curiosa – sob a forma do convidado de pedra, desta pedra com seu lado absolutamente morto e fechado, para além de toda vida da natureza. É aí que Don Juan vem, em suma, se quebrar, e encontra o acabamento de seu destino (Ibid., pp. 418-419).

O que compreender disso? De certa maneira, é muito claro: a paixão de Don Juan pelas mulheres tem a ver com o fato de que ele visa nelas a mulher fálica, no sentido em que a psicanálise a entende, isto é – segundo o dicionário de Laplanche e Pontalis – “a fantasia segundo a qual a mãe teria retido no interior de seu corpo o falo recebido na ocasião do coito” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967, p. 310), de tal modo que a aventura de Don Juan é sem saída e que ela não pode senão terminar pela aparição inesperada daquele que é o detentor do falo, isto é, o pai. Assim resumido, isso se sustenta. Mas é talvez apenas uma aparência [semblant] de coerência. Pois essa leitura é exatamente aquela que faz de Don Juan um homossexual, já que a fantasia da mãe fálica é justamente, segundo a psicanálise, a fantasia angustiante própria à homossexualidade masculina. Há aí um sério paradoxo: como compreender que Lacan recorre à explicação de Don Juan pela homossexualidade, no momento mesmo em que ele declara querer afastar essa explicação? É que ele devia ter em vista, mesmo confusamente, outra coisa, outra coisa que só poderemos explicitar em vista de seu ensino mais tardio. Pois, ao considerar as coisas retrospectivamente, pode-se pensar que, nesse curso de 1957, Lacan institui, sem chegar a esclarecê-lo, que há, na figura de Don Juan, algo a procurar do lado da diferença dos sexos e, portanto, da relação com a função fálica; ora, ele só se dedicará a isso de verdade no Seminário do ano 1972-1973, isto é, justamente o Seminário em que se encontra sua última observação sobre Don Juan. Voltaremos a isso mais à frente. Mas, nessa primeira ocorrência, podemos ao menos reter que se encontram aí amarrados os temas do amor efetivo de Don Juan pelas mulheres, do “sem saída”, do fálico e do pai.

No Seminário sobre A angústia (1962-1963), Lacan faz duas novas observações sobre Don Juan; elas são enunciadas com uma semana de intervalo, de modo que se pode reagrupá-las. É aqui que se trata do “sonho feminino” de Don Juan e da “fantasia feminina de Don Juan”. Como se trata aí, igualmente, também aí, do falo, poder-se-ia crer que Lacan apenas repete sua observação inicial. Ora, não é de fato o caso. Certamente, ao ler superficialmente essas duas passagens, podemos ser conduzidos a pensar que Lacan retomaria como sua a tese, tornada clássica em psicanálise, sobre a feminilidade de Don Juan, sobre o desejo feminino de Don Juan. Mas, na verdade, Lacan se dedica então a caracterizar não tanto o que é o desejo de Don Juan – no sentido do genitivo subjetivo –, mas, antes, o que é o sonho ou a fantasia de Don Juan – no sentido do genitivo objetivo –, isto é, no sentido em que Don Juan é o objeto de um sonho ou de uma fantasia.

Don Juan é um sonho feminino. O que seria preciso, em cada ocasião, é um homem que fosse perfeitamente igual a si mesmo, como a mulher pode, de certa maneira, se vangloriar de sê-lo em relação ao homem. Don Juan é um homem ao qual não faltaria nada. [...] É quase banal sublinhar a relação de Don Juan com a imagem do pai enquanto não castrado. O que é talvez menos banal é marcar que esta é uma pura imagem feminina (LACAN, 1972-73/1975, p. 224).

Se o fantasma de Don Juan é um fantasma feminino, é porque ele responde a este voto feminino de uma imagem que exerce sua função, função fantasmática – que haja um, homem, que o tenha – o que, tendo em vista a experiência, é evidentemente um desconhecimento evidente da realidade –, melhor ainda, que ele o tenha sempre, que ele não possa perdê-lo. O que implica justamente a posição de Don Juan na fantasia é que nenhuma mulher possa tomá-lo dele, eis aí o essencial. É o que ele tem em comum com a mulher, de quem, é claro, não pode tomá-lo, já que ela não o tem (Ibid., pp. 233-234).

Pode-se tentar reconstruir o que essas proposições deixam mais ou menos confusamente entender: a história ou o mito de Don Juan tem o estatuto de uma fantasia, na qual o personagem de Don Juan tem um certo papel, uma certa função. Mais precisamente: Don Juan representa o homem “ao qual não faltaria nada”, isto é, para ser explícito, o homem que não perde jamais o falo e que não pode perdê-lo, o que reenvia, muito evidentemente, à imagem do pai absoluto, o pai da horda primitiva. Ele possui assim o que nenhuma mulher pode lhe tomar. É uma fantasia feminina pelo fato de que, nessa fantasia, é Don Juan que é aquele do qual não se pode tomar o falo; ora, da mulher, pode-se também dizer que não se pode tomar-lhe o falo (pela razão que se sabe); é, portanto, isso que Don Juan, na fantasia, tem em comum com a mulher. E, portanto, se compreende por meio disso “a relação de Don Juan com essa imagem do pai enquanto não castrado”, isto é, “uma pura imagem feminina”. Tudo isso é evidentemente um pouco obscuro. Mas há, ao menos negativamente, uma coisa de claro: não é dito que o desejo de Don Juan seria um desejo feminino. E compreenderemos mais à frente por que esse desejo não pode ser feminino, mesmo se ele é apresentado em uma fantasia que, ela, é feminina.

Por agora, é preciso ainda mencionar um outro tema que Lacan sugere nessa mesma ocasião; é o tema da impostura:

O traço sensível disso que eu digo a vocês no que concerne a Don Juan é que a relação complexa do homem com seu objeto é, para ele, suprimida, mas ao preço de aceitar sua impostura radical. O prestígio de Don Juan está ligado à aceitação dessa impostura. Ele está sempre aí, no lugar de um outro; ele é, se eu posso dizê-lo, o objeto absoluto (Ibid., p. 224).

Esse tema da impostura não é evidentemente sem relação com aquele da “situação sem saída” que lemos precedentemente. Esta é uma coordenada essencial à figura de Don Juan e mesmo a seu desejo. Para dar conta dela, nos afastaremos um momento da referência lacaniana, para tomar de empréstimo alguns desvios nos quais iremos reencontrar o Don Giovanni de Kierkegaard.

 

A impostura

Tomando para si a afirmação de Kierkegaard, segundo a qual “Don Juan é um ser absolutamente musical”, Michel Poizat lembra que, nas primeiras versões do mito (notadamente em Tirso di Molina), o qualificativo oficial de Don Juan não era “el seductor”, mas “el burlador”, isto é, o enganador (POIZAT, 1986, pp. 199-201 e IDEM, 1991, pp. 226-240). Na ópera de Mozart, este caráter enganador é sublinhado em mais de quinze vezes: Don Juan é enganador, traidor, desleal, mentiroso, pérfido... É o mesmo que dizer que lhe é essencial não ser um homem de palavra14 . E é isso mesmo o que ele reivindica: “Eu não conheço nenhum juramento” (DG, ato I, cena 4 [63]). Ora, Don Juan é um “cavalheiro”, como ele próprio o lembra na ocasião (“Un nobil cavalier come io mi vanto” [DG, ato I, cena 9 – 137]), a cavalaria sendo esse sistema social inteiramente fundado sobre o princípio da palavra [parole] dada, de tal modo que, recusando o princípio mesmo do juramento, Don Juan se exclui a si mesmo desse sistema da cavalaria ao qual, no entanto, ele pertence. Eis aí o que permite já compreender que a situação na qual se mete Don Juan é uma situação efetivamente “sem saída”. Apoiando-se no estudo de Shoshana Ferman15 , Poizat mostra que a relação de Don Juan com a fala [parole] é uma subversão constante do princípio da palavra [parole], isto é, uma subversão constante da relação entre o que a linguística chama de o sentido e o referente. Com efeito, falas [paroles] tais como “eu prometo”, “eu juro que”, “eu me comprometo a”, “eu dou a minha palavra [parole]...” – e Don Juan não cessa de fazer uso de tais fórmulas – são enunciados performativos, enunciados “autorreferenciais”: a única verdade que eles enunciam é o ato mesmo de prometer, de jurar, de se comprometer, mas eles absolutamente não asseguram a verdade do que é o objeto da promessa, ainda menos sua realidade. O conteúdo da promessa é suposto ser verdadeiro por aquele que recebe a promessa – como se sabe: “as palavras só comprometem aqueles que acreditam nelas!”... Ora, é justamente aí que se faz, em Don Juan, a disjunção entre o sentido e o referente. Don Juan enuncia o performativo do qual ele é o referente, mas ele não concede estritamente nenhum valor de comprometimento ao sentido do enunciado. Poder-se-ia dizer que sua palavra é isenta de todo valor de comprometimento. Mas essa isenção libera, de algum modo, sua voz. Com efeito, quando Don Juan fala, o discurso é esvaziado de seu sentido, de tal modo que não resta dele nada além da voz da enunciação, voz ela própria isenta de sua relação com a palavra [parole]. E, lembrando a definição de Lévi-Strauss: “a música é a linguagem menos o sentido” 16 , Poizat conclui daí que essa abolição do sentido em seu discurso faz de Don Juan um personagem essencialmente musical. Mas, de fato, não está aí a razão pela qual Kierkegaard fala da essência musical de Don Juan.

Para aproximar o que Kierkegaard entende por isso, é preciso primeiramente retomar, de uma outra maneira, diferente da de Poizat, esse tema do enganador e aproximá-lo daquele do impostor. Falar de impostura – como o fez Lacan – poderia evidentemente parecer remeter à imoralidade de Don Juan, à sua disposição desavergonhada para a mentira, à falsa promessa, ao perjúrio... Mas aqui – já o dissemos – a moral não convém. Podemos até mesmo sustentar o paradoxo de que essa disposição para a mentira procede da sinceridade fundamental do desejo que anima Don Juan. Mas isso só é paradoxal para o moralista que não deixa de ter argumentos para acusar Don Juan de mentira e de perjúrio. Mas acusar assim Don Juan de mentira e de perjúrio é se colocar no ponto de vista das próprias palavras que Don Juan pronuncia, isto é, do ponto de vista do enunciado. Ora, enquanto sujeito da enunciação – portanto sujeito do desejo –, Don Juan é sincero, e até mesmo de uma sinceridade sem falha, já que ele não renuncia jamais a seu desejo. É exatamente por isso que Lacan – nós o vimos – podia afirmar que “Don Juan ama as mulheres [e] que ele as ama o suficiente para que, quando ele o diz a elas, elas acreditam”. É, portanto, essa sinceridade do sentimento que o autoriza à enganação nas palavras. É a verdade da enunciação que autoriza a falsidade do enunciado. Assim, a Leporello, que lhe pergunta: “e o senhor tem a coragem de enganá-las todas?”, Don Juan responde: “É por amor. Quem a uma só é fiel é cruel para com as outras; eu, que experimento um sentimento tão extenso, eu as amo todas. As mulheres que não sabem refletir chamam de enganação meu bom caráter [mon bon naturel]”; o que justifica este comentário de Leporello: “Eu jamais vi caráter mais vasto, nem mais benevolente” (DG, ato II, cena 1 [361-363]). Há, portanto, uma sinceridade de Don Juan em seu próprio desejo: no momento em que ele declara seu amor a tal ou tal mulher, nada permite duvidar de sua sinceridade. Certamente, pode-se duvidar de suas promessas de casamento, de suas juras de fidelidade; mas não se poderia duvidar de seu amor por aquela à qual ele se endereça e que não é simplesmente uma mulher entre outras, uma mulher fácil que se deixaria “consumir”. Além disso, ele jamais anuncia que quer simplesmente se aproveitar dos charmes da bela; mas, mal a percebe, ele já declara amá-la e queimar com todos os fogos por ela. E essa declaração de amor não é apenas endereçada à mulher encontrada – poderíamos, então, pensar que isso é apenas manobra ou “lábia” –, é uma declaração que ele endereça a si mesmo ou a seu criado, antes mesmo de abordar a dama. Assim, a Leporello: “Uma beleza que me toca o coração e eu estou certo de que ela já me ama” (DG, ato I, cena 4 [67]); ou a Sganarelle: “esse coração não deve me escapar” (DJ, ato II, cena 2). Mas é verdade que, em Molière, essa resolução é motivada pelos “charmes” da jovem desejada. De maneira geral, é antes a versão mozartiana que faz aparecer um Don Juan não simplesmente desejoso de consumir o corpo das mulheres, mas buscando sinceramente ser por elas animado.

Esse amor sincero de Don Juan pelas mulheres explica as situações impossíveis – as “situações sem saída” justamente indicadas por Lacan – nas quais se mete Don Juan. Não seria o caso se ele se contentasse em correr atrás das mulheres fáceis - elas não faltam - como o faz um conquistadorzinho [petit drageur] com falta de conquistas. Mas seu amor se dirige a mulheres já amantes, mulheres que já devotaram seu amor a um outro. Assim, em Molière, Charlotte já é amada por Pierrot; em Mozart, Zerlina já é amada por Masetto, Dona Anna já é amada por Don Ottavio. E se Mozart não nos diz nada do que era a situação de Dona Elvira antes de seu primeiro encontro com Don Juan, sabemos que a Elvira de Molière tinha de início dedicado todo seu amor a Deus, de tal modo que Don Juan foi arrancá-la do convento. Da mesma forma, ele anuncia a Sganarelle sua intenção de seduzir “uma jovem noiva conduzida neste lugar por aquele mesmo com quem ela acaba de casar”, explicando que o espetáculo de “seus mútuos ardores” tinha emocionado seu “coração” até o amor (cf. DJ, ato I, cena2). Da mesma forma também, em Mozart, Don Juan tem prazer em contar a Leporello como se fez passar por ele junto a uma jovem; e a Leporello, que se choca com isso e imagina que poderia ter-se tratado de sua própria mulher, ele responde: “melhor ainda!” (cf. DG, ato II, cena 11 [547-563]). Tudo isso basta para confirmar que Don Juan só ama mulheres que outros já amam, o que só pode expô-lo a situações “sem saída”. Certamente, Otto Rank já o tinha notado de modo incidente; mas ele tinha tirado disso apenas uma lição psicológica sobre a “superioridade” que Don Juan buscava assim demonstrar (cf. RANK, 1973, p. 158). Ora, o que está aqui em jogo ultrapassa a simples psicologia. Trata-se da impostura que Lacan justamente sublinhou, da impostura como “postura própria”: Don Juan é um impostor pelo fato de que ele toma sempre o lugar de um outro que o precedeu em seu amor. E se essa impostura o põe assim em “situações sem saída”, no sentido de situações inextricáveis ou quase inextricáveis – como aquela que fecha o primeiro ato da ópera de Mozart –, é também e, sobretudo, essa impostura essencial que o conduzirá à situação sem saída da cena final.

Essa impostura essencial justifica a fórmula de Kierkegaard: “Don Juan não tem existência própria”; fórmula que é preciso compreender de maneira radical: o próprio de Don Juan é essa impropriedade mesma. Mas se Don Juan não tem existência própria, ele tem, por outro lado, para Kierkegaard, uma essência própria: é a musicalidade, no sentido já indicado, isto é, no sentido em que o musical é desaparecimento no tempo, assim como a modalidade temporal do amor sensual de Don Juan é o desaparecimento. Kierkegaard precisa, com efeito:

Don Juan não tem, em suma, existência própria, mas ele precipita em um perpétuo esvanecimento – justamente como a música, a respeito da qual se pode dizer que ela acaba desde que ela cessou de vibrar e só renasce no momento em que ela recomeça a vibrar (KIERKEGAARD, 1943, 81).

A musicalidade de Don Juan está ligada à sua impostura essencial. E, por isso, Kierkegaard pode igualmente reportar a esta impostura o estatuto fundamentalmente não discursivo de Don Juan. Com efeito, assim como Lacan o notará depois dele, ele precisa que não se pode qualificar Don Juan de sedutor no sentido habitualmente dado a esse termo, razão pela qual ele prefere “tratá-lo de impostor”. Pois Don Juan não é o que se chamaria hoje de um “conquistador barato” [batineur] 17 ; ele ama e, de uma certa maneira, ele só faz amar, sem que isso se acompanhe de qualquer manobra discursiva, a tal ponto que, como o observa Lacan, “ele as ama o suficiente para saber não dizê-lo quando a ocasião se apresenta” (LACAN, 1956-57/1994, p. 418). Nada é mais estranho a Don Juan que a estratégia verbal. O que justifica essa afirmação de Kierkegaard: “A fala, a réplica não lhe pertencem – com elas, ele se tornaria imediatamente um ser refletido” (KIERKEGAARD, 1943, p. 81).

É por isso que não se poderia qualificá-lo, rigorosamente falando, de sedutor. E, no entanto, ele seduz. E até mesmo, como já o sublinhamos, ele seduz imediatamente. É, portanto, seu desejo como tal que tem poder de sedução; e porque este desejo por si mesmo sedutor é estranho ao regime discursivo, ele só pode significar pela música. A música é a enunciação do desejo sem o enunciado:

É preciso uma certa consciência e uma reflexão particular para gerar um sedutor, e, desde que elas são reunidas, falar de finezas, de artifícios e de assaltos astuciosos pode se justificar. Essa consciência falta a Don Juan. Ele não seduz, mas ele deseja, e esse desejo tem um efeito sedutor. [...] Um sedutor deve estar em possessão de uma força que Don Juan não possui a despeito de todos os seus outros dons: é a potência da palavra. Uma vez que nós lhe damos a potência da palavra, ele cessa de ser musical e o interesse estético muda inteiramente (Ibid., pp. 79-79) 18 .

Podemos, portanto, resumir o argumento: tratar Don Juan como sedutor é ambíguo, porque essa palavra implica a astúcia, o artifício, ou o que Lacan chama “os pequenos truques”, dito de outro modo, porque essa palavra implica a consciência refletida e calculadora que é aquela do sedutor no sentido habitual do termo (i.e. o “conquistador” [dragueur]); e é justamente uma tal consciência calculadora que vale ao sedutor a reprovação moral. Ora, Don Juan não é um tal calculador. Em presença de uma mulher, porque é uma mulher – precisaremos isso em um instante –, ele é espontaneamente desejante e ele é apenas desejante. E é apenas esse desejo, retirado de toda determinação verbal, que tem “um efeito sedutor”. A força pela qual Don Juan seduz é, portanto, a força mesma do desejo; é a força do desejo extra-palavra, a força, a força do desejo que se manifesta como enunciação sem enunciado. Eis por que Don Juan é, por essência, um ser musical. A potência sedutora de Don Juan não tem a ver com o discurso, mas com isso que, na fala, excede o discurso, isto é, a voz, a voz desprendida de sua relação com a fala significante. Isso não é uma maneira de forçar a interpretação da tese de Kierkegaard, já que ele próprio também declara: “O que ouvimos não é Don Juan enquanto indivíduo particular, nem também seu discurso, mas a voz, a voz da sensualidade que passa através dos desejos da feminilidade” (Ibid., p. 77).

 

O objeto absoluto

Eis aí o que reconduz à questão inicial: qual é o desejo de Don Juan? Qual é o objeto desse desejo? O que está em jogo nesse amor no qual ele queima por cada mulher encontrada? A resposta de Kierkegaard é sem ambiguidade: o que deseja Don Juan é a feminilidade da mulher. A feminilidade de toda mulher. Na última observação citada, a fórmula – “os desejos da feminilidade” – deve muito evidentemente se entender no sentido do genitivo objetivo: o objeto do desejo de Don Juan é a própria feminilidade, a sensualidade da feminilidade em geral:

Qual é a força pela qual Don Juan seduz? É a do desejo: a energia do desejo sensual. Em cada mulher ele deseja a feminilidade toda, inteira, e é nisso que se encontra a potência, sensualmente idealizante, com a qual ele embeleza e vence sua presa ao mesmo tempo. [...] Assim, ele ilumina cada jovem, pois sua relação com ela é essencial. E é por isso que todas as diferenças particulares se esvanecem diante dessa relação essencial: ser mulher (Ibid., p. 79).

De fato, Don Juan não se liga à particularidade de tal mulher; ele não se interessa a isso que faz com que a mulher que ele deseja seja tal mulher. Contrariamente ao que pretende Leporello, na ária do catálogo, em que estão em questão atrativos respectivos, de morenas, loiras, grandes, pequenas, redondas, magras... – dito de outro modo, contrariamente a essa contabilidade de secretariozinho preocupado em introduzir critérios distintivos em seus registros, ele, Don Juan, não visa nenhuma diferença entre as mulheres. Pois as diferenças não têm para ele nenhuma importância; só conta o fato de que elas são mulheres, só conta a feminilidade delas. O objeto do desejo de Don Juan é apenas a própria feminilidade, e o que Kierkegaard chama de “a feminilidade totalmente abstrata” (Ibid., p. 76). Mas “abstrata” não significa aqui uma abstração intelectual (pois o desejo de Don Juan é “espontaneidade concreta” (Ibid., p. 77); “abstrata” remete à universalidade da mulher em toda mulher, mas a uma universalidade conceitualmente indeterminada e indeterminável (senão ela se diria no registro discursivo e não musical). E é precisamente esse desejo da feminilidade abstrata que faz a potência própria desse desejo, sua potência irresistível de sedução, de tal modo que as mulheres são efetivamente tocadas por esse desejo que visa nelas a própria feminilidade:

Qual é essa potência? – Ninguém poderia dizê-lo; mesmo se eu colocasse a questão a Zerlina antes que ela fosse ao baile: ‘qual é então a potência que te atrai a ele?’, ela me replicaria: ‘não se o sabe’. E eu lhe responderia: ‘Bem dito, minha criança’ [...] E a infelicidade quer que, eu também não, eu não poderia dizê-lo a ti (Ibid., p. 80).

A potência desse desejo é indizível porque seu objeto é uma universalidade abstrata, conceitualmente indeterminável. E é por isso que as características que poderiam definir a mulher desejada como tal mulher não tem aqui nenhuma importância. Certamente, é, a cada vez, a uma mulher singular que se dirige esse desejo; mas apenas na medida em que é requerido por esse desejo que essa singularidade seja a encarnação de feminilidade como universalidade abstrata; o que exclui toda consideração pelo excepcional ou pelo extraordinário:

Cada jovem é para Don Juan uma jovem ordinária, cada aventura galante é para ele uma história banal. Zerlina é jovem e bela e ela é uma mulher, nisso está o excepcional, que ela tem em comum com cem outras mulheres; mas não é o excepcional que faz o objeto do desejo de Don Juan, é o que é ordinário, o que ela possui em comum com todas as outras mulheres. Se não fosse assim, Don Juan deixaria de ser absolutamente musical, e a estética exigiria então a fala, a réplica, enquanto que, já que é exatamente assim, Don Juan é inteiramente musical (Ibid., p. 77).

Apoiando-se nessa última observação, poder-se-ia analisar muitas passagens da partitura de Mozart, na qual são apenas os motivos musicais que fazem o laço entre o desejo de Don Juan e o desejo das mulheres que ele seduz. Assim, no célebre duo (cf. DG, ato I, cena 9 [135-151]) em que Don Juan declara a Zerlina que quer se casar com ela, exatamente quando ele acaba de lhe explicar que as promessas de casamento não valem nada, a música vem ultrapassar e, de algum modo, anular essa contradição verbal, já que, embora enuncie sua reticência, Zerlina reproduz a mesma linha melódica que a de seu sedutor, significando por meio disso que ela já cedeu (a que Mozart acrescenta, a título de comentário, uma pequena linha cromática dos violinos que figura judiciosamente os movimentos da serpente da tentação19 . Da mesma forma, como bem o observou Pierre Jean Jouve (cf. 2004, pp. 157-158), no último duo com Dona Elvira, as linhas melódicas de início distintas se confundem progressivamente uma com a outra, até que a de Don Juan se impõe à de Elvira (cf. DG, ato II, cena 14 [620-633]).

Não seria trair o sentido do texto de Kierkegaard dizer que essa feminilidade abstrata, que constitui o objeto do desejo de Don Juan, é de algum modo o segredo do desejo feminino, o enigma da sensualidade propriamente feminina, o enigma da mulher enquanto amante. Don Juan busca captar isso mesmo que anima secretamente o desejo feminino, ele busca a mulher que lhe revelaria o que a faz, ela e todas as mulheres, desejante e amante. E como nenhuma mulher não lhe entrega finalmente esse segredo da feminilidade, ele só pode buscá-lo a cada vez em uma outra. Tal seria a feminilidade abstrata, objeto de desejo sempre insatisfeito de Don Juan. Formalmente, essa explicação se compreende. Mas nem por isso ela é suficiente. É preciso, portanto, retomar o que pode significar essa perseguição do enigma da sensualidade feminina, essa busca do segredo da feminilidade amante, e acrescentar esta precisão: buscar isso que, na mulher, a faz ser desejante é, para Don Juan, buscar o que o faz ele próprio ser desejado. Mas não devemos nos enganar quanto ao sentido desta precisão. Não se trata da posição da histérica que demanda ao outro: “por que você me ama, a mim?” – e sabemos que a resposta a essa questão, porque é necessariamente parcial (“eu te amo por tua beleza, por teus atrativos, por teu dinheiro...”), é sempre considerada decepcionante. A questão implícita de Don Juan não é “por que tu me amas, a mim?”, nem mesmo “por que me amam elas todas?” – ele despreza isso totalmente –; mas é a questão que lhe concerne propriamente: “por que será que eu as amo todas?”. Pois – já o dissemos – Don Juan ama sinceramente as mulheres; e ele as ama todas: o herói de Molière faz disso um princípio: “Meu coração é de todas as belas” (DJ, ato III, cena 5); e o de Mozart o diz expressamente: “eu as amo todas” (DG, ato II, cena 1 [362]). A questão que anima o desejo de Don Juan pela feminilidade abstrata pode, portanto, ser assim formulada: “qual é a coisa que, em toda mulher, faz com que eu a deseje e que eu a ame?”

É preciso aqui repetir a citação já dada de Kierkegaard, a propósito da terceira “etapa erótica espontânea” de que Don Juan é o emblema: “No singular, o desejo encontra seu objeto absoluto e o deseja de uma maneira absoluta” (1943, p. 68; nós sublinhamos). Bem entendido, “encontrar” não quer dizer que Don Juan descobre o segredo da feminilidade abstrata; isso significa que, com Don Juan, o desejo encontra no objeto singular – isto é, na mulher a cada vez singular – a ocasião de desejar “o objeto absoluto”. A mulher singular que é a ocasião de seu desejo não é, então, desejada relativamente àquilo que ela é singularmente; ela não é desejada em sua singularidade; mas ela é desejada para além de toda identidade singularizante: ela é desejada absolutamente enquanto objeto absoluto. O desejo de Don Juan é absoluto pelo fato de que ele visa o absoluto e não o relativo. Inversamente, mas também correlativamente, se cada uma das mulheres encontradas se deixa seduzir por Don Juan, não é em virtude das promessas de riqueza ou de grandeza que ele poderia lhe apresentar de maneira sedutora diante dos olhos – a única promessa é “eu me casarei com você; e imediatamente” –, não é relativamente ao que Don Juan pode representar como estatuto social, nem mesmo o que sua aparência física pode representar como tipo de homem. Mas, como o mostra Kierkegaard, as mulheres são seduzidas por ele somente porque ele é desejante. O que não é evidentemente o caso dos homens que essas mulheres já amam, antes de encontrar Don Juan – como Don Ottavio ou Mazetto. Estes são amados pelo que eles representam; e eles usam, estes, cada um segundo seus recursos, de todos os artifícios verbais (de toda a “lábia” [“baratin”]) que podem valorizar o que eles esperam representar aos olhos de sua bela. É o mesmo que dizer que o desejo deles está inteiramente preso na lógica da identificação. Ao contrário, Don Juan, ele não se refere a si mesmo como representando um ideal que lhe valeria legitimamente a admiração das mulheres. Ele não crê nem um só instante no que ele pode representar para aquela que ele deseja; ele despreza isso a tal ponto que ele pode jogar com isso como quer, como o mostra toda a estratégia dos disfarces no segundo ato da ópera. É precisamente porque ele não se identifica com o papel que ele faz, que ele pode tanto mais jogar com ele. O que ele representa não tem para ele mesmo nenhuma importância. Ele não representa nada para si mesmo – Kierkegaard dizia: “ele não tem existência própria” –; mas ele está simplesmente presente. E até mesmo mais: ele está presente exatamente no lugar de um outro, sem por isso se tomar ele mesmo por esse outro. É essa a sua impostura radical. Ele está simplesmente presente, mas com essa presença desejante da qual Kierkegaard dizia que ela tem imediatamente “um efeito sedutor”. Nesse sentido, ele é, ele próprio, “o objeto absoluto”. Seu prestígio junto às mulheres não é relativo a tal ou tal traço particular de sua pessoa; esse prestígio tem a ver com o fato de que ele se coloca diante delas como desejante ou amante, e isso no lugar de um outro. Ele vem tomar o lugar desse outro como desejante e apenas como desejante, independentemente de qualquer outro valor. É exatamente isso que dizia Lacan na observação já citada: “O prestígio de Don Juan está ligado à aceitação dessa impostura. Ele está sempre no lugar de um outro; ele é, se posso dizê-lo, o objeto absoluto” (LACAN, 1962-63/2004, p. 224; nós sublinhamos).

É preciso, portanto, examinar agora como manter juntas estas duas fórmulas: a de Kierkegaard (“Don Juan deseja na mulher o objeto absoluto”) e a de Lacan (“Don Juan é o objeto absoluto”). Como o vemos, não é segundo a mesma lógica que Kierkegaard e Lacan falam de objeto absoluto. Poríamos assim transcrever a diferença: enquanto impostor, Don Juan é, para a mulher, o objeto absoluto; e a mulher é, para Don Juan, o objeto absoluto. Apresentando as coisas assim, é grande a tentação de pensar a relação entre Don Juan e a mulher como uma relação de complementaridade. Tanto mais que, para Don Juan como para a mulher, está em jogo a falta radical a partir da qual o desejo se sustenta. Ou, mais exatamente: a falta da qual procede o amor, se quisermos nos lembrar da lição constante de Lacan, segundo a qual o próprio do amor é, justamente, visar a falta no outro. Por isso, poderíamos pensar estar lidando com uma relação rigorosamente simétrica: de um lado, em cada mulher, Don Juan visa, para além de todo traço de identificação, o objeto absoluto, isto é, a pura falta que a constitui como mulher amante; por outro, tomando o lugar do outro homem sem se identificar com ele, Don Juan se apresenta, para cada mulher, como puramente desejante, como absolutamente amante; ele se apresenta como a presença mesma da pura falta; em uma palavra: como o objeto absoluto. Assim, Don Juan e a mulher se reportariam um ao outro como objeto absoluto.

Mas essa simetria – essa complementaridade recíproca – é inexata e ilusória. Pois é preciso estar atento à lógica das duas fórmulas citadas (“Don Juan deseja na mulher o objeto absoluto” – “Don Juan é o objeto absoluto”), mais precisamente à gramática delas, para apreender e guardar no espírito esta diferença essencial: para Don Juan a mulher tem o objeto absoluto; para a mulher, Don Juan é o objeto absoluto. Disjunção entre ter e ser. E isso é aqui decisivo, já que é preciso de saída concluir disso que Don Juan e a mulher não se reportam um ao outro da mesma maneira. Ao que se pode acrescentar que, nesse negócio, a mulher não se engana: Don Juan é o objeto absoluto, esse homem que ama sem outra intenção que não o amor, sem outro estatuto que não o de ser amante, esse homem que não é nada além do que o signo da falta. Ao contrário, Don Juan, ele se engana, pois a mulher que ele seduz jamais lhe concederá o objeto absoluto que ela é suposta deter, jamais ela poderá lhe dar resposta à sua questão: “qual é a coisa que, em toda mulher, faz que eu a deseje e que eu a ame?”. Ela não pode lhe dar essa resposta porque essa resposta não lhe pertence; essa resposta não concerne senão a Don Juan.

Com efeito, o que faz com que Don Juan deseje e ame a mulher – o que se pode, portanto, muito bem chamar de o objeto-causa de seu desejo –, é a voz. A voz é o que resta de Don Juan, uma vez que ele é despojado de todos os disfarces identificatórios. Essa lógica subtrativa é evidentemente análoga àquela que seguia Michel Poizat em seu próprio comentário: a voz é o que resta da fala, posto que o enunciado não tem mais nenhum valor de comprometimento (o disfarce é, aliás, o equivalente visual da mentira). Mas aqui tocamos verdadeiramente nessa essência musical de Don Juan, da qual fala Kierkegaard. O que é, portanto, esse personagem que não se identifica nem com suas palavras (sempre sem valor de comprometimento), nem com sua aparência (ele se disfarça), nem com seu estatuto social (ele o despreza)..., se não é uma simples voz? Se objetará que essa voz é ela própria ainda um traço identificatório, já que Don Juan empresta sua voz a Leporello afim de que ele possa melhor se fazer passar por seu senhor junto de Elvira (cf. DG, ato II, cena 2). Mas ele empresta sua voz justamente como se se tratasse aí de um objeto do qual possamos de alguma maneira nos desprender. Don Juan é apenas uma voz; ele é voz. E é essa voz que Mozart nos dá a ouvir.

Mas que sua voz seja isso mesmo de que se sustenta sua paixão amorosa pelas mulheres, Don Juan não sabe nada disso e não pode sabê-lo. Enquanto corre de uma dama a outra, a única voz com a qual ele lida é a voz das mulheres às quais ele se endereça. Certamente, cada uma dessas damas tem sua própria voz, seu timbre, sua tessitura, seus acentos próprios. Mas, como Don Juan só visa em cada uma delas a feminilidade abstrata, essa singularidade da voz não poderia interessá-lo. Assim como o odor di femmina (cf. DG, ato I, cena 4 [67]) é para ele o índice, certamente concreto em sua aparição, mas índice universal e indiferenciado da feminilidade, da mesma forma a voz da mulher, a voz da feminilidade indiferenciada, é o traço de universalidade que ele percebe em cada uma delas; mais precisamente: ela é o índice universal da feminilidade desejante e amante, porque ela é isso mesmo através de que se manifesta a sensualidade – “o médium da sensualidade”, teria dito Kierkegaard. Tal é a ópera mozartiana: voz de Don Juan entrecruzada com a voz das mulheres, com a voz da feminilidade. O desejo com que queima Don Juan é um negócio de voz. Don Juan é mesmo de essência musical. Mas será preciso ainda um episódio suplementar para que ele seja exposto à sua própria essência, isto é, à voz que o constitui como desejante. Esse episódio será a aparição do Comendador.

 

“Não toda”

Mas antes de chegar a este último episódio, gostaríamos aqui de nos deter nas duas últimas observações que Lacan “concedeu” à figura de Don Juan. Elas pertencem a este período de seu ensino consagrado à diferença dos sexos e às fórmulas da sexuação. Em função disso, evitaremos entrar aqui na tecnicidade quase “algébrica” desses textos. Por outro lado, não podemos também ceder à facilidade e nos contentarmos em recitar nosso pequeno breviário lacaniano para afirmar que a lista de Don Juan só pode se alongar ao infinito porque “A mulher não existe”. É verdade que o próprio Lacan não se privou de convocar seu teorema para remetê-lo à figura de Don Juan. Mas tratava-se então para ele de mostrar que a “relação/proporção” [“rapport”] entre o homem e a mulher não é uma relação [relation] de reciprocidade simétrica, em que cada um dos dois parceiros encontraria no outro precisamente o que ele próprio lhe oferece. A ilusão dessa reciprocidade simétrica se nutriria ela própria da ilusão “romântica” de ter sido destinado um ao outro. A própria ideia de que um homem possa encontrar A mulher – como se diz “a mulher de sua vida”, isto é, a mulher singular que seria a encarnação da feminilidade – é um sonho. Mas isso não é tanto o sonho do homem sem dúvida bastante inocente para ser assim iludido. É de início e, sobretudo “um sonho de mulher”; é preciso ser uma mulher para sonhar que um homem possa buscar, na multidão de mulheres, A mulher; dito de outro modo: para sonhar que um homem possa buscar uma universalidade da mulher na série das singularidades femininas. E esse sonho, esse sonho de mulher, é justamente “o sonho de onde saiu Don Juan”:

É preciso indicar que esta relação [rapport] entre o homem e a mulher, na medida em que é pela lei, a lei dita sexual, radicalmente deformada [faussé], é este algo que, apesar de tudo, permite desejar que para cada um haja sua cada uma para lhe corresponder. Se isso acontece, o que diremos? Não, certamente, que isso era uma coisa natural, já que não há natureza a esse respeito, já que A mulher não existe. Que ela exista, é um sonho, mas é o sonho de onde saiu Don Juan. Se houvesse um homem para quem a mulher existe, que maravilha! Estaríamos certos de nosso desejo. Isso é uma elucubração feminina. Para que um homem encontre sua mulher, que outra coisa senão a fórmula romântica: era fatal, estava escrito? (LACAN, 1971/2007, lição de fevereiro de 1971).

Todavia, quando Lacan afirma que “a mulher não é toda”, ele não visa apenas a função de quantificador lógico (“não todas as mulheres”) que justifica, com efeito, esta consequência: “A mulher não existe”, no sentido de que não há universal da mulher. Por este “não toda”, ele pretende igualmente significar que o gozo feminino não é totalmente redutível ao gozo fálico, que ele é também um outro gozo. E desse outro gozo, desse “gozo outro”, como diz Lacan, o objeto é justamente o que ele chama de “o significante da falta no Outro”. Por sua vez, do lado masculino, o gozo está inteiramente colocado sob o primado da função fálica: o que quer dizer, por um lado, que o gozo masculino, na medida em que o homem está inteiramente, portanto universalmente, sob a lei da castração, permanece um gozo do órgão, e, por outro lado e, sobretudo, que o objeto-causa de seu desejo é o objeto a, esse objeto não objetivável que prende o desejo a isso que excede toda identificação imaginária ou simbólica. É isso, formulado certamente de um modo desajeitado, o que se deixa ler na parte inferior dos matemas da sexuação (cf. LACAN, 1972-73/1975, p. 73). Mas, de uma certa maneira, isso encontra sua ilustração exemplar no que foi dito aqui da relação dissimétrica entre Don Juan e as mulheres. Com efeito, foi dito, por um lado, que, para cada mulher que ele seduz, Don Juan é o objeto absoluto, esse homem que ama sem outra intenção que não o amor, sem outro estatuto que não o de ser amante, esse homem que não é nada além do signo da falta (em dialeto lacaniano: para cada mulher, Don Juan não é nada além do que o significante da falta no Outro). E foi dito, por outro lado, que, para Don Juan, cada mulher é visada enquanto A mulher, isto é, na medida em que ela lhe revelará o que nela o faz ser desejante e amante; ora, ele só lida, no fim das contas, em cada uma dessas mulheres, com a voz, a pura voz a partir da qual ele próprio se sustenta como desejante (i.e. a voz com objeto a).

Sem dúvida, o estatuto dessa voz permanece ainda indeciso. É apenas o exame da cena final que permitirá dar conta dela. Mas ao menos as explicações precedentes deveriam permitir lançar alguma luz sobre esta última observação – na verdade, muito obscura – de Lacan:

Sabe-se quanto os analistas se divertiram em torno de Don Juan, do qual eles fizeram tudo, aí incluído, o que é o cúmulo, um homossexual [...]. Vocês não veem que o essencial, no mito feminino de Don Juan, é que ele as tem uma por uma? Eis aí o que é o outro sexo, o sexo masculino, para as mulheres. Quanto a isso, a imagem de Don Juan é capital.

Das mulheres, a partir do momento em que há os nomes, pode-se fazer uma lista delas, e contá-las. Se há mille e tre delas, é que se pode muito bem tomá-las uma por uma, o que é o essencial. E isso é uma coisa completamente diferente do Um da fusão universal. Se a mulher não fosse não-toda, se em seu corpo ela não fosse não toda como ser sexuado, nada se sustentaria de tudo isso (Ibid., p. 15).

Podemos nos arriscar a traduzir: o homem que pretende poder encontrar A mulher em sua mulher enquanto tal mulher (com todas as características que a singularizam), e não enquanto feminilidade abstrata se entretém com a ilusão romântica que lhe assegura que seu amor realiza a fusão, a unidade primordial que ele forma com sua metade, essa metade à qual ele crê ter sido destinado (que se pense aqui no mito de Aristófanes no Banquete de Platão [cf. 189d e seguintes, notadamente 191d]). Mas as mulheres, justamente porque elas não são todas e não totalmente submetidas ao primado da função fálica, “sabem” bem – com um saber não sabido – que os homens poderão sempre correr para encontrar A mulher. E é no que elas não se enganam sobre o que é o outro sexo, o sexo masculino: homens dedicados a tomar as mulheres uma por uma, e, portanto, a não se prender a nenhuma delas. O sonho, para uma mulher, seria que um homem só perseguisse em cada mulher A mulher, não enquanto aquela que mais bem lhe serviria de par, mas enquanto universal da mulher, enquanto feminilidade abstrata; o que implicaria que ela própria seja tomada por tal e que ele próprio não se dê por tal homem singular com as características que supostamente o definem, mas que ele seja “o objeto absoluto” (ao preço da impostura que requer o abandono de toda forma de identificação), isto é, que ele seja puramente desejante e amante, com um desejo por si mesmo sedutor. Esse sonho é “o mito feminino de Don Juan”.

Podemos retomar mais simplesmente. Se Don Juan não cessa de relançar seu amor de uma mulher a outra – para a maior alegria de seu secretário-contábil –, não é pelo gosto de multiplicar as conquistas. Mas é porque ele não cessa de perseguir em cada mulher o que nenhuma mulher poderá lhe dar. Nenhuma mulher jamais concedeu, nem concederá jamais a Don Juan o segredo de todas as mulheres: nenhuma mulher vale por A mulher.

Nenhuma mulher, e particularmente nem Dona Elvira, nem Zerlina, nem mesmo Dona Anna. Nem Dona Elvira, embora, na ópera, ela apareça de início a Don Juan sob o aspecto da mulher em geral – é ela que ele percebe pelo odor di femmina –; mas, se as árias que lhe são consagradas significam claramente que seu ódio é proporcional ao amor que ela dirige a Don Juan, é porque esse amor está inteiramente preso nas coordenadas morais do dever de fidelidade conjugal, aí incluído o momento em que sua compaixão a leva a incitar Don Juan ao arrependimento - coisas que são, todas elas, bem entendido, radicalmente estranhas a Don Juan. Nem Zerlina, que foge de Don Juan com a mesma rapidez com que ela se deixou de início seduzir; mas podemos nos perguntar a que extremidade seu desejo tinha sido levado, para que ela não tenha agora nada a fazer junto a seu ciumento Mazetto a não ser negociar com ele a paz em troca de golpes (“Batti, batti, o bel Mazetto” [DG, ato I, cena 16 – 239]). Nem mesmo Dona Anna. Certamente, seu caso parece mais claro: ela foi levada apenas pela vontade legítima de vingar o assassinato de seu pai. Mas isso não é evidente. Pode muito bem ser, aqui também, que seu encontro com o sedutor desconhecido e mesmo invisível, essa violação iniciada ou talvez até mesmo consumada com o homem sem outra identidade que seu desejo e sua voz – é por essa voz que ela o reconhecerá no fim (cf. DG, ato I, cena 13 [197]) –, tenha exposto Dona Anna a uma dimensão do amor que não corra o risco de lhe fazer conhecer aquele que ela acreditava até então amar, isto é, Don Ottavio, o outro cavaleiro da história, o cavalheiro fiel que faz rimar o amor com a honra. E não é indiferente que, até a última cena da ópera, Dona Anna tome o cuidado de adiar sua promessa de casamento com Don Ottavio, como se ela soubesse que este amor não seria nada em comparação com o que tinha acontecido durante a noite fatal. Essa hipótese não entra em contradição nem com o libreto de Da Ponte, nem com a partitura de Mozart, que se compraz em entreter uma certa ambiguidade melódica sobre os sentimentos de Dona Anna. Pierre Jean Jouve produz sua análise (cf. 2004, pp. 72-74 e pp. 147-150); mas, antes dele, Hoffmann fez dela o princípio de sua própria ficção sobre Don Juan (HOFFMANN, 1891, pp. 67-80). Nenhuma mulher... A lista poderia se prolongar indefinidamente, Don Juan jamais poderá se apropriar do segredo da feminilidade abstrata que é também o enigma de seu amor desvairado por todas as mulheres. Nenhuma voz feminina o revelará a ele próprio finalmente. Para isto, lhe será necessário afrontar uma outra voz: a voz do Comendador.

 

A voz do Comendador

Com efeito, mesmo que ele apareça em carne e osso na primeira cena da ópera, o Comendador é essencialmente uma voz. E mesmo nessa primeira cena – um drama na noite – ele se reduz à voz, à voz da agonia, entrecruzada com a voz do criminoso (cf. DG, ato I, cena 1 [16-18]. Aliás, o Comendador é a voz do além-túmulo. Desde sua primeira aparição, diz Kierkegaard, é já a voz de um espírito:

A gravidade do Comendador é profunda demais para um ser humano; ele é espírito antes de morrer. Na segunda vez, ele aparece enquanto espírito, e a voz trovejante do céu ressoa na sua, que é grave e solene; mas, assim como ele é transfigurado, do mesmo modo sua voz é algo a mais que uma voz humana (KIERKEGAARD, 1943, p. 97).

O ouvinte atento e apaixonado que era Kierkegaard evidentemente não deixou de observar que a instância que representa a voz “mais que humana” do Comendador é identificável a essa música aterrorizante e sepulcral pela qual a ópera é aberta. E ele precisa que, nessa Abertura, o acorde inicial faz já ouvir essa voz que ressoa como “uma advertência” (Ibid., p. 101). Essa mesma voz trazida pelo mesmo acorde sustentará toda a cena final, aquela da chegada da estátua do Comendador e a morte de Don Juan, essa cena da qual Kierkegaard diz, com razão, que ela é “uma situação absolutamente musical” (Ibid., p. 102). Kierkegaard sublima inicialmente o quanto essa voz é angustiante: ela é a própria angústia. E ele observa que, quando ela surge inicialmente, na Abertura, ela desaparece pouco a pouco para deixar lugar – seria mais justo dizer: para conduzir e mesmo induzir – ao tema mais ativo e cheio de vida que faz transição para a primeira cena e que lança assim “a corrida do desejo”. Mas é essa mesma voz que ressoa, mais angustiante ainda, na cena final, para, desta vez, se impor a Don Juan e pôr um termo na ópera. Assim, tudo o que o roteiro terá desenvolvido acontecerá entre esses dois surgimentos da angústia. Todas as aventuras galantes e todas as situações “sem saída” que Don Juan conhece terão lugar sobre o fundo desta angústia, significada com uma advertência no início da ópera e definitivamente confirmada em seu retorno final (poder-se-ia mostrar, aliás, que em algumas ocorrências de sua partitura, Mozart deixou discretamente ouvir os harmônicos que compõem o acorde inicial, como para sugerir a presença surda, mas constante da angústia). Kierkegaard tira disso este comentário: “Assim é a vida de Don Juan. Há angústia nele, mas essa angústia é sua energia. Ela não é subjetivamente refletida, é uma angústia substancial” (Ibid., p. 101). E porque ela não é refletida – assim como o desejo de Don Juan não é refletido –, essa angústia não implica nenhum desespero. É testemunha disso toda a ópera e, sobretudo, a cena final: Don Juan permanece até o fim determinado, resolvido, de modo algum desesperado quando aparece a estátua do Comendador. É talvez em quê Don Juan é autenticamente trágico: não apenas em virtude da alternativa impossível à qual o expõe o Comendador – voltaremos a isso em breve –; mas, em primeiro lugar, pelo fato de que nada é suscetível de fazê-lo “ceder em seu desejo”, nenhuma das situações sem saída nas quais ele se mete, nem mesmo a injunção ameaçante do Comendador que lhe pede para se arrepender e ao qual ele responde pelo “não”, três vezes repetido (DG, ato II, cena 15 [673, 675, 677]). É que ceder à moral do arrependimento seria ceder em seu desejo, seria – como ele próprio o diz – ser um frouxo (cf. DG, ato II, cena 15 [660]) 20 . Essa determinação inabalável de seu desejo implica uma força cuja fonte é, para Kierkegaard, justamente a angústia: “A vida de Don Juan não é desespero; ela é toda a força da sensualidade que nasce na angústia, e Don Juan ele próprio é angústia, que é justamente o equivalente do demoníaco desejo de viver” (KIERKEGAARD, 1943, p. 101).

É, portanto, essa angústia que faz surgir explicitamente a cena final a propósito da qual Kierkegaard fala de “situação absolutamente musical” (Ibid., p. 102). Tudo aí acontece, com efeito, no afrontamento das vozes de Don Juan e do Comendador, entrecruzadas à voz trêmula de Leporello. Alguns – seguramente não Kierkegaard, ainda que seu romance familiar pudesse tê-lo inspirado a isso –, alguns, portanto, identificaram essa voz do Comendador à voz do pai morto. Porque o Comendador é de início aquele que mata Don Juan quando este entende possuir sua filha; alguns se autorizaram a fazer o paralelo com o mito freudiano do pai da horda primitiva, pai que possui todas as mulheres, portanto todas as filhas, e que mata seus filhos, exatamente por essa razão. O assassinato do Comendador seria assim o equivalente do assassinato do pai. Segue-se que o assassino deveria poder possuir todas as mulheres, portanto, estar no lugar do pai, de tal modo que a vida sedutora de Don Juan seria assim a vida do filho que matou o pai para substituí-lo na possessão das mulheres. É, portanto, esse pai morto que retorna finalmente sob a forma da estátua do Comendador. E, assim como, no mito freudiano, os filhos assassinos se expõem à culpabilidade, da mesma forma Don Juan é ele próprio exposto à culpabilidade quando o Comendador lhe pede para se arrepender. Tal é, em suas grandes linhas, a interpretação dessa cena final por Pierre Jean Jouve (cf. 2004, pp. 174-175). É também a ideia de Poizat, quando ele compara a voz do Comendador ao som do shofar, tal como o havia analisado Théodor Reik (cf. POIZAT, 1991, p. 238; cf. também pp. 185 e seguintes). E é essa a tese à qual Lacan faz justiça, como já o lemos:

Don Juan busca a mulher [...]. Ele acaba por encontrá-la apenas sob a forma deste convidado sinistro que é, com efeito, um mais além da mulher, pelo qual ele não espera, e que não é por nada que seja o pai. Mas não esqueçamos que quando ele se apresenta, é – coisa curiosa – sob a forma de um convidado de pedra, dessa pedra com seu lado absolutamente morto e fechado, para além de toda vida da natureza. É aí que Don Juan vem, em suma, se quebrar, e encontra o acabamento de seu destino (LACAN, 1956-57/1994, pp. 418-419).

O Comendador é a instância da lei; ele simboliza a lei do pai, a lei superegoica.

Não se trata aqui de contradizer essa interpretação, que alguns negaram por princípio21 . Mas, tal qual, ela é sem dúvida insuficiente. Para precisar em que sentido a lei superegoica está aqui envolvida, é necessário explicitar a relação de Don Juan com a estátua do Comendador (e a relação entre as vozes deles); e, para esse fim, é preciso primeiramente examinar a situação, que é, desta vez, a situação efetivamente “sem saída”. Mas falta compreender precisamente a lógica ocorrente [occurrente] desse “sem saída”. É Don Juan que convidou a estátua de pedra para vir cear com ele (cf. DG, ato II, cena 11 [574]). Mas, sem dúvida porque o sentido da palavra dada lhe é estranho, Don Juan se instala para cear sem pensar mais em seu convidado; em todo caso, ele não parece esperá-lo (cf. DG, ato II, cena 15 [649]). E, no entanto, o Comendador chega. A situação então se modifica – e podemos notar de passagem (mesmo se isso não é muito congruente com a situação analítica) que essa modificação é significada por um “che vuoi?” (DG, ato II, cena 15 [654]). É, com efeito, nesse momento preciso que se produz a modificação (e, portanto, literalmente a catástrofe), pelo fato de que, agora, é a estátua do Comendador que convida Don Juan: “Você mesmo virá cear comigo?” (DG, ato II, cena 15 [658]). E como a palavra de Don Juan não poderia ser suficiente – já que ele não tem nenhuma palavra –, o Comendador lhe reclama uma garantia: “Dê-me a mão como garantia” (DG, ato II, cena 15 [666]). Como o faz observar M. Poizat (1991, p. 237), Don Juan é então encurralado, levado forçosamente ao impossível: ele aceita pagar o preço da “libra de carne” com a qual se paga, para o ser falante, o acesso à palavra. Pela primeira vez, Don Juan dá efetivamente sua palavra, uma palavra que ele deverá sustentar. E, em consequência disso, ele não pode mais recorrer aos artifícios da palavra mentirosa; no que a situação é então efetiva e definitivamente “sem saída”. Mais exatamente, só resta a saída fatal: para escapar da armadilha da palavra dada, ele precisa se separar absolutamente da ordem do discurso e, portanto se abolir a si mesmo em um grito. O que Michel Poizat resume: “Não tendo mais os recursos da perversão do discurso, da subversão da linguagem, Don Juan é encurralado e forçado à expressão mais destrutiva que há na ordem da linguagem: o puro grito” (Ibid., 238). Esse grito, ponto culminante de toda a ópera, é o grito do gozo. Para compreendê-lo, é preciso primeiramente lembrar que o gozo, no sentido em que o entende Lacan, é gozo “inter-dito”; o que significa ao mesmo tempo: interdita no sentido de proibida, e inter-dita no sentido do que se “diz entre”, do que se diz – sem se formular discursivamente – nos intervalos da cadeia significante, relançando assim sem cessar o desejo22 . O gozo é assim o que é recusado ao desejo ao mesmo tempo em que constitui a sua fonte. Ou, para dizê-lo de outro modo, e em referência à mesma lição de seu Seminário em que se encontra a última observação de Lacan sobre Don Juan, trata-se de pensar o gozo como o que procede diretamente do Supereu: “O Supereu é o imperativo do gozo” (LACAN, 1972-72/1975, p. 10). O que quer dizer que o Supereu não deve ser pensado apenas em sua significação censurante, sua face interditora ou proibitiva; ele deve ser pensado também em sua significação prescritiva e imperativa. Sob essa condição, é possível compreender de maneira mais completa que a figura do Comendador possa ser interpretada como a instância da lei superegoica. E, para precisar isso, é preciso retomar a situação trágica – a alternativa impossível – em que é colocado Don Juan pela aparição do Comendador.

O Comendador se apresenta de início a Don Juan sob o aspecto “proibitivo” da lei; ele é o Outro em sua função proibitiva, aquele que instaura o interdito. Segundo o texto do libreto, ele põe Don Juan diante desta escolha: “ou te arrependes ou morres”. Mas – nós o dissemos – esse arrependimento seria para Don Juan ceder em seu desejo e, portanto, ser um frouxo. A alternativa é, portanto, de algum modo a seguinte: “tu deves escolher entre o desejo ou a vida”. As implicações lógicas dessa alternativa podem ser esclarecidas a partir das observações de Lacan sobre o famoso “vel” da alienação – o “ou alienante”. Tomando por exemplo a alternativa: “a bolsa ou a vida”, Lacan explica: se escolhemos a bolsa perdemos as duas; e se escolhemos a vida, temos a vida desfalcada da bolsa. Da mesma forma para a outra alternativa: “a liberdade ou a vida”: “Se o homem escolhe a liberdade, babau!, ele perde as duas imediatamente; se ele escolhe a vida, ele tem a vida amputada da liberdade” (LACAN, 1964/1973, pp. 192-193). Tratando-se da escolha à qual Don Juan é exposto, “o desejo ou a vida”, a lógica é a mesma: se ele escolhe o desejo, perde os dois; e se ele escolhe a vida, ele tem a vida desfalcada ou amputada do desejo. Mas, justamente, o que seria a vida para Don Juan sem o desejo? A escolha proposta é, portanto, necessariamente escolha do perdedor. Mas essa explicação não basta. É preciso ainda remeter essa alternativa ao que Lacan, no mesmo texto, chama de “o fator letal”, isto é, a dimensão da morte que está presente quando a escolha proposta é a seguinte: “a liberdade ou a morte”. Lacan mostra que, aí, o que quer que se escolha, se tem os dois: a liberdade, dita em substância, é a liberdade de morrer; e escolher a morte é a única maneira de demonstrar que se tem a liberdade de escolha. O mesmo vale para Don Juan: a alternativa à qual o expõe o Comendador – “o desejo ou a vida” – põe Don Juan, na medida em que ele não pode renunciar ao desejo, na posição seguinte: “antes morrer do que renunciar ao desejo”. E, escolhendo morrer, ele afirma ainda seu desejo. É como se o tivéssemos ordenado a escolher entre “o desejo ou a morte”; o que quer que ele escolha, ele tem os dois: escolhendo o desejo, ele se destina à morte; escolhendo a morte, ele afirma o seu desejo.

Mas é precisamente por isso que passamos da face “proibitiva” da lei à sua face “prescritiva”. Com efeito, se a lei superegoica é proibição do gozo (portanto interdição no sentido corrente do termo), ela é também prescrição (sua inter-dição no sentido etimológico do termo). É preciso, portanto, explicar em quê o Comendador é a instância da inter-dição, a instância do que se diz entre os significantes da cadeia em que se articula o desejo de Don Juan – e essa “cadeia” é aqui a sucessão de mulheres seduzidas, das quais “se pode fazer uma lista”. Agora, face ao Comendador, não se trata de acrescentar um nome à lista; mas o que está em jogo é o intervalo, isto é, isso que, após cada mulher seduzida, relançou o desejo de Don Juan em direção de uma outra mulher. Esse intervalo – esse inter-dito –, pode-se, é claro, designá-lo no léxico lacaniano: é o vazio, o buraco, a hiância...; em uma palavra: a pura falta da qual procede o desejo de Don Juan. E esse vazio, essa hiância, encontra sua representação simbólica no abismo que se abre na cena: são as chamas nas quais Don Juan desaparece e que são o fogo do desejo que sempre o animou23 . Mas – é importante sublinhá-lo – é justamente o Comendador que arrasta assim Don Juan para esse absoluto do desejo. Ora, o Comendador só se manifesta a ele como voz. O que é essa voz? Para responder, é preciso primeiramente lembrar a última observação citada de Kierkegaard: “A vida de Don Juan [...] é toda a força da sensualidade que nasce da angústia, e o próprio Don Juan é essa angústia”; e Kierkegaard fazia a precisão: “Assim é a vida de Don Juan. Há angústia nele, mas essa angústia é sua energia”. Mas é preciso também lembrar a tese de Lacan: “A angústia não é sem objeto” (LACAN, 1962-63/2004, p. 155), sob a condição de entender esse objeto não como objeto empírico, mas como objeto a. Esse objeto a é aqui a voz. É a voz, sua própria voz, que está em jogo na angústia com a qual sempre se sustentou, como sua própria energia, o desejo de Don Juan. E é esta voz que agora, nessa cena extrema da ópera que é também o extremo de seu desejo, lhe retorna como voz do Outro – Comendador, Pai, Deus..., tanto faz. É à voz, angustiante e angustiada, que ele está agora exposto, essa voz na qual esteve em jogo seu desejo, essa voz que ele próprio foi e na qual ele se abole24 .

Podemos, portanto, redobrar a significação da “reviravolta” que advém nessa cena final. Agora é o Comendador que convida Don Juan; mas, é preciso acrescentar, através desse convite que põe Don Juan na necessidade de dar efetivamente sua palavra, o Comendador o convida ao acabamento de seu desejo, isto é, a levar seu desejo ao ponto do gozo último. Temos como prova disso a demanda que ele lhe endereça: “Dê-me a mão como garantia”. Este “dê-me a mão” endereçado pelo Comendador a Don Juan é a reviravolta da fórmula que Don Juan endereçava a Zerlina, na cena emblemática da sedução: “Là ci darem la mano”. E a essa injunção do Comendador, Don Juan responde: “ecco la” (DG, ato II, cena 15 [667]) (ei-la); é aceitação do gozo e do preço do gozo.

Eis aí em quê o Comendador é também a figura da face “prescritiva” do Supereu como imperativo do gozo: ele é a instância que conduz Don Juan ao gozo, isto é, a sua própria abolição, a sua morte. E isso advém na e pela voz. Por meio disso se confirma também esta observação de Lacan: “Não poderia haver concepção analítica válida do Supereu que esqueça que por sua fase mais profunda a voz é uma das formas do objeto a” (LACAN, 1962-63/2004, p. 342). A voz do Comendador é essa instância que ao mesmo tempo proíbe e prescreve o gozo. E é essa voz que, no fim, cai sobre Don Juan para lhe dizer de algum modo: “tu deves agora pagar tua dívida”. O que não se deve entender simplesmente no sentido moral dos erros, das faltas cometidas; mas no sentido literalmente apocalíptico: “tu estás agora exposto ao que te fez desejante”. Assim, a vida de Don Juan se resolve no objeto que sempre sustentou secretamente seu desejo, no objeto-causa de seu desejo: a voz. A vida de Don Juan se cumpre na voz absolutamente desligada da palavra: o grito.

Kierkegaard, de fato, não se enganou quanto a isso: a cena final é uma “situação absolutamente musical”. E toda a ópera de Mozart o terá confirmado: a música é de essência desejante. O que significa dizer também que o desejo é de essência musical. E é por isso que o personagem de Don Juan, o desejante por excelência, é ele próprio de essência absolutamente musical.

 

 

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Artigo recebido em: março de 2009
Aprovado para publicação em: abril de 2009

 

 

1 Este texto retoma uma conferência pronunciada na sexta-feira nove de novembro de 2007, na Escola Brasileira de Psicanálise de Belo Horizonte, por iniciativa do Professor Antônio Teixeira; a tradução consecutiva em português tendo sido assegurada pelo próprio e por Marcus André Vieira, aos quais agradeço. Tradução: Claúdio Oliveira, professor Associado 1 do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: claudio.oliveira@uol.com.br
2 Pode-se igualmente se espantar de não encontrar muita coisa sobre Don Giovanni no livro, de outro modo maravilhoso, que Slavoj Zizek consagrou à ópera (cf. S. Zizek [2006], La seconde mort de l’opéra, Belval: Circe, pp. 79 e seguintes).
3 Nós seguimos o libreto na edição seguinte: Mozart, Don Giovanni, L'avant-scène Opéra, n° 172, Paris, 1996 (doravante abreviado por DG), indicando entre colchetes o número da réplica.
4 Cf. Molière, Dom Juan, ou le festin de pierre, ato III, cena 2 [doravante abreviado por DJ]; cf. também DG, ato I, cena 8.
5 O texto diz exatamente: “Tal é o fim daquele que faz o mal; e a morte dos pérfidos é sempre semelhante à vida deles”.
6 “... Eu quero ser um cavalheiro e não quero mais servir”.
7 Trata-se na realidade de dois ensaios distintos reunidos em um mesmo volume: Rank, O. (1973) Don Juan et Le double. Trad. S. Lautman. Paris: Payot.
8 O que seria uma maneira de justificar o apagamento da famosa última cena, na medida em que seu registro explicitamente moralizante não pode se acomodar com o médium musical (salvo no modo irônico e, portanto enfraquecido, em comparação com a musicalidade de todo o resto da ópera). De resto, Kierkegaard não podia tê-la ouvido.
9 Slavoj Zizek teve a ideia, bastante engenhosa, de relacionar aos três estágios kierkegaardianos (o Estético, o Ético e o Religioso) as três óperas de Wagner: Tristão, Os mestres cantores e Parsifal (cf. S. Zizek, La seconde mort de l’opéra, op. cit., pp. 79 e seguintes). Por mais convincente que seja sua demonstração, ela suscitaria, todavia, esta questão: à qual estágio corresponderia o Tannhäuser? Não se trata de uma mistura híbrida dos três estágios kierkegaardianos? Ou melhor: ele não atesta a confusão, no espírito de Wagner, do estético, do ético e do religioso? É verdade que, alhures, Zizek havia estimado, não sem razão, que “Tannhäuser não é uma verdadeira ópera wagneriana”: “Tannhäuser é ‘por demais comum’, simplesmente esquartejado entre o puro amor espiritual (por Elisabeth) e o excesso do gozo erótico terrestre (que Vênus lhe proporciona), incapaz de renunciar aos prazeres terrestres, aspirando a desfazer-se deles” (cf. S. Zizek [1999], Le sujet qui fâche. Paris: Flammarion, pp. 393-394).
10 Sobre essa concepção da relação entre a Coisa e a figura materna e sua denunciação, cf. nosso estudo: Le désir pur. Louvain: Peeters, 1992, pp. 49 e seguintes.
11 “O mito é a tentativa de dar forma épica ao que se opera pela estrutura” (LACAN, 1974, p. 51).
12 Pode-se retomar aqui o esquema que construí alhures para dar conta dessa lógica que mostra que o objetivo final do desejo (sua meta última) é o gozo da Coisa, mas que, preso na cadeia significante do Outro enquanto barrado (faltoso), o sujeito do desejo ($) não pode senão errar indefinidamente esse alvo, posto que ele deva, necessariamente, se apoiar em um objeto empírico simbolicamente “escolhido”:



Aplicado ao caso de Don Juan – ao menos segundo a leitura psicanalítica aqui equivocada –, esse esquema pode ser assim retranscrito:


13 “Eu creio profundamente que Don Juan é um personagem que está longe demais de nós no aspecto cultural para que os analistas tenham podido percebê-lo corretamente” (LACAN, 1956-57/1994, p. 418).
14 A este propósito, pode-se notar esta réplica de Zerlina, na qual se deixa ouvir uma espantosa homofonia: “Ah non giovan le parole!” (DG, ato I, cena 16 [251]).
15 Cf. S. Felman (1980), Le scandale du corps parlant. Paris: Seuil.
16 “Sem dúvida, a música, também ela, fala, mas isso só pode ser em razão de sua relação negativa com a língua e porque, se separando dela, a música conservou a marca indireta de sua estrutura formal e sua função semiótica: não poderia haver música sem linguagem que lhe pré-exista e da qual ela continua a depender, se assim podemos dizer, como um pertencimento privativo. A música é a linguagem menos o sentido; desde então, compreende-se que o auditor, que de início é um sujeito falante, se sinta irresistivelmente levado a suprir esse sentido ausente, como o amputado que atribui a um membro desaparecido as sensações que têm sua sede no que resta de um membro depois de amputado” (LÉVI-STRAUSS, 1971, p. 579).
17 Homem que faz discursos elogiosos, bastante grosseiros, para seduzir uma mulher. (Nota da tradução)
18 É uma maneira de dizer que se passaria da estética musical de Mozart à estética teatral de Molière; mas ao preço de uma mudança radical do estatuto erótico de Don Juan.
19 Cf. o comentário musical e literário de Michel Noiray, in Mozart, Don Giovanni, L'avant-scène Opéra, op. cit., p. 40.
20 Slavoj Zizek faz notar que essa recusa em se arrepender, essa “fidelidade a si mesmo” e “unicamente a si” faz de Don Juan a figura exemplar da “ética imoral”, quer dizer, da ética para além da moral (cf. S. Zizek [2008], La parallaxe, Paris: Fayard, p. 15).
21 Cf. especialmente as observações ácidas de Jean Starobinski em oposição a Pierre Jean Jouve, in Mozart, Don Giovanni, L'avant-scène Opéra, op. cit., pp. 137-138.
22 Sobre essa dupla lógica, cf. nosso estudo: “L'élaboration phénoménologique de l'objet a”, in De la Chose à l'objet, Louvain-Paris: Peeters-Vrin, 1998, pp. 51-53. Pode-se, então, retomar o primeiro esquema dado aqui, na nota 10, para completá-lo: a fórmula da fantasia ($ ? a) coloca em conexão o sujeito barrado do desejo (determinado por tal significante da cadeia simbólica) e o objeto a, quer dizer, o “mais-de-gozar”, o resto de gozo “inter-dito”, que opera no intervalo da cadeia significante:


23 O que quer dizer que Don Juan nunca extinguirá seu desejo, nem, portanto, sua angústia, que ele não encontrará, efetivamente, a paz nas chamas que o devoram. Seria preciso conferir esse motivo e a versão que Eric Schulhoff apresentou desse fim de Don Juan, em sua ópera intitulada, justamente, As chamas. Quando aparece a estátua do Comendador, é a personagem “A morte” que revela a Don Juan o veredito: “Você não está convidado para a dança macabra! […] O veredito vale pela eternidade – você é Juan, aquele que não poderá jamais morrer” (citado por S. Zizek [2006], La seconde mort de l’opéra, Belval: Circé, p. 174).
24 Eis, então, o que torna o esquema precedente adaptado ao caso singular de Don Juan:


* Professor de Filosofia no liceu Fustel de Coulanges, em Strasbourg (França). Autor, entre outros, de O desejo puro (Revinter, 2001) e De la Chose à l'objet (Peeters-Vrin, 1998) . E-mail: contact@bernardbaas.com

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