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Contextos Clínicos
versão impressa ISSN 1983-3482
Contextos Clínic vol.2 no.1 São Leopoldo jun. 2009
ARTIGOS
O uso da CIF através do trabalho interdisciplinar no AVC pediátrico: relato de caso
The use of the International Classification of Functioning, Disability and Health (ICF-WHO) in interdisciplinary care of stroke in childhood: case report
Peterson Marco de Oliveira AndradeI; Fernanda de Oliveira FerreiraII; Vitor Geraldi HaaseIII
IDepartamento de Fisioterapia do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. Colaborador do Laboratório de Neuropsicologia da UFMG. Av. Antonio Carlos, 6627, 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil. petersonmarco@yahoo.com.br
IIDepartamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto. Colaboradora do Laboratório de Neuropsicologia da UFMG. Rua do Seminário, s/n, 35400-000, Mariana, MG, Brasil. ferreira.ufop@gmail.com
IIIDepartamento de Psicologia da UFMG, Laboratório de Neuropsicologia da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde - Saúde da Criança e do Adolescente - Faculdade de Medicina (UFMG). Departamento de Psicologia, FAFICH - UFMG. Av. Antonio Carlos, 6627, 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil. vghaase@gmail.com
RESUMO
A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) foi proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como referencial interdisciplinar em saúde, abrangendo: (a) estrutura e função do corpo, (b) atividades e participação e (c) fatores contextuais. O objetivo deste estudo foi aplicar a CIF por meio da avaliação interdisciplinar em um adolescente de 14 anos do sexo masculino que apresentou um episódio de Acidente Vascular Cerebral (AVC) aos 10 anos. Realizaram-se avaliações qualitativas, testes neuropsicológicos, escalas clínicas e entrevistas. Os resultados mostraram que o perfil funcional do adolescente foi hemiparesia direita, instabilidade postural, afasia de Broca, apraxia construtiva (estrutura e função do corpo), dificuldades de aprendizagem e motivacionais, limitações na comunicação, mobilidade, cuidado pessoal, vida doméstica e comunitária (atividades e participação). Foram registrados quatro barreiras (apoio da família imediata, amigos, professora, serviços de educação) e seis facilitadores (família ampliada, cuidadora, profissionais da saúde, atitudes da família imediata, serviços de saúde e situação econômica). Constatou-se que a CIF tem potencial para utilização na prática interdisciplinar e planejamento da reabilitação.
Palavras-chave: CIF, AVC pediátrico, interdisciplinaridade.
ABSTRACT
The International Classification of Functionality, Disability, and Health (ICF) was proposed by the World Health Organization (WHO) as a conceptual framework for interdisciplinary health care, involving (a) body structure and function, (b) activities and participation (c) and contextual factors. This paper aims to discuss the use of ICF model in the context of interdisciplinary assessment of a stroke in an adolescent. The methods of this study consist of qualitative assessments, neuropsychological tests, interviews and clinical scales used to assess the adolescent. The results showed that the adolescent functionality profile was comprised by right hemiparesis, postural instability, Broca's aphasia, constructional apraxia (body structure and functions), motivational and learning difficulties, limitations in mobility, communication, self care and domestic life (activities and participation). Four environmental factors were considered as barriers (e310, e320, e360, e385) and six as facilitators (e315, e340, e355, e410, e5801, e165) towards the participant's functionality. It was found that ICF can be used in the clinical practice and rehabilitation planning.
Key words: ICF, pediatric stroke, interdisciplinary work.
Introdução
A perspectiva biopsicossocial preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mediante a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), impõe vários desafios aos profissionais que trabalham com doenças crônicas e com suas consequências, como o acidente vascular cerebral (AVC) em pediatria (Andrade et al., 2009). O AVC pediátrico é uma área negligenciada por profissionais e pelo público em geral, principalmente por desconhecimento do problema e de suas consequências potenciais, bem como pelo elevado número de subdiagnósticos (Baumer, 2004). Estudos que definem o perfil funcional de crianças e adolescentes com sequelas de AVC são escassos na literatura (Gordon et al., 2002).
O grupo de trabalho para o AVC Pediátrico do Colégio Real de Medicina de Londres desenvolveu, em 2004, as Diretrizes Clínicas para o Diagnóstico, Tratamento e Reabilitação para casos de AVC em pediatria. Essas diretrizes estabeleceram a CIF como referência para a terminologia e para a estrutura teórica e metodológica em abordagem das equipes de saúde nos casos de AVC em crianças e adolescentes (Intercollegiate Working Party for Paediatric Stroke, 2004).
A CIF é uma classificação desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para complementar a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10). Assim, a CIF e a CID-10 fazem parte da família das classificações da OMS (OMS, 2003). A CIF apresenta a proposta de operacionalizar as ações de saúde em diferentes dimensões por meio de uma perspectiva biológica, individual e social (Stucki et al., 2003), não se limitando a classificar somente as características biológicas da condição de saúde. Além disso, a CIF apresenta o objetivo de padronizar a linguagem internacional para os componentes da saúde, com o uso dos conceitos de funcionalidade, incapacidade, estruturas e funções do corpo, atividade, participação, deficiência, limitação de atividades, restrição na participação e os fatores contextuais que influenciam a saúde do indivíduo (OMS, 2003).
O uso da CIF facilita a comunicação interdisciplinar (Allan et al., 2006; Stephenson e Richardson, 2006) e contribui para a definição das atribuições dos profissionais da equipe de saúde (Tempest e Mcintyre, 2006). Além disso, a CIF pode ser utilizada para a definição do planejamento terapêutico da equipe de saúde (Palisano, 2006) e para a escolha de instrumentos de avaliação.
Existem poucos estudos no Brasil sobre a avaliação do impacto da CIF na atenção à saúde. A pouca utilização da CIF decorre do fato de ser uma classificação recente e complexa que apresenta dificuldades durante sua operacionalização clínica. Essa situação é consequência da escassez de instrumentos validados conforme o modelo e do problema de pouca compreensão teórica acerca do processo de funcionalidade, por parte dos profissionais da saúde (Farias e Buchala, 2005).
Norteados pelo modelo da CIF, Steiner et al. (2002) desenvolveram um modelo denominado Formulário para a resolução de problemas em reabilitação (Rehabilitation Problem Solving Form - RPS-FORM). O modelo proposto por Steiner et al. (2002) sugere a avaliação centrada no paciente, pois ela permite aos profissionais de saúde a identificação dos problemas relevantes dos usuários, o discernimento dos aspectos que contribuem para esses problemas e o planejamento de intervenções específicas. Esse modelo, ao seguir a abordagem biopsicossocial, pode operacionalizar o processo de avaliação do usuário. O RPS-FORM segue a abordagem biopsicossocial, pois exige o registro da percepção do paciente e de sua família sobre o problema de saúde, os aspectos biológicos (estruturas e funções do corpo) e psicossociais (fatores contextuais, pessoais e ambientais). Essas informações podem auxiliar no levantamento de problemas, na definição de metas específicas dos profissionais e nos objetivos compartilhados pela equipe de saúde.
Há uma carência de estudos, no Brasil, que focalizem a aplicação da CIF por uma equipe interdisciplinar, em casos de doenças neurológicas crônicas na infância e adolescência, como o AVC. Diante dos desafios de operacionalizar a perspectiva biopsicossocial na prática clínica interdisciplinar, o objetivo do presente estudo é explorar a história, as queixas, as expectativas da família e do adolescente, com a intenção de desenvolver um planejamento terapêutico interdisciplinar.
Método
Procedimentos
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e contou com profissionais avaliadores das áreas de neurologia, neuropsicologia e fisioterapia, fato que caracteriza uma avaliação interdisciplinar. A avaliação do adolescente foi realizada mediante a sequência da história retrospectiva do caso até o momento do episódio da doença cerebrovascular (2002). Seguiu, prospectivamente, até dois anos (2004) bem como até quatro anos após o evento (2006). A coleta de dados foi dividida em quatro etapas. Na primeira etapa, foi realizada a exploração qualitativa da funcionalidade com o auxílio de entrevista semiestruturada com a mãe, 42 anos, e com a cuidadora contratada, 32 anos, que seguiu como referência o RPS-FORM. O formulário foi preenchido conjuntamente pela equipe interdisciplinar, em reuniões, após o término das avaliações do adolescente (RNC) em 2006. Para a elaboração do RPS-FORM de RNC, os resultados das avaliações realizadas com o adolescente e os dados das entrevistas com a mãe e a cuidadora foram relacionados com as categorias de primeiro e segundo nível da CIF. Com base nos resultados da primeira etapa, na segunda etapa os avaliadores definiram o que e como realizar a avaliação. Na terceira etapa, os instrumentos quantitativos foram escolhidos conforme as demandas clínicas e de acordo com a funcionalidade do adolescente, levantadas na primeira etapa do estudo. Os instrumentos utilizados foram a Escala de Berg (Franjoine et al., 2003), Teste do Desempenho Escolar (Stein, 1994), Miniexame do Estado Mental modificado para crianças (Jain e Passi, 2005), Teste das Matrizes Progressivas de Raven (Raven et al., 1988), Prova gráfica de Organização Perceptiva Santucci (Santucci, 1981), Tarefa de Discriminação de Fonemas, Tarefa de Detecção de Rimas, Tarefa de Decisão Lexical, Tarefa de Associação Palavra-Figura, Tarefa de Associação Figura-Figura, Tarefa de Fluência Verbal Semântica, Tarefa de Nomeação de Figuras, Tarefa de Repetição de Palavras e Pseudopalavras e Nine Hole Peg Test -9-HPT (Mathiowetz et al., 1985). Na quarta etapa da avaliação, os fatores ambientais foram avaliados segundo as orientações da CIF (OMS, 2003). O planejamento terapêutico caracterizou-se por um trabalho transdisciplinar, pois, após o término do processo de avaliação, os profissionais da equipe estabeleceram os objetivos da reabilitação em conjunto. O processo de funcionalidade e incapacidade da CIF foi utilizado para orientar a discussão dos profissionais.
Relato do caso
História clínica
RNC (iniciais indicativas do paciente estudado) apresentou desenvolvimento neuropsicomotor normal durante a primeira infância. Era independente para as atividades relacionadas com a aprendizagem, comunicação, mobilidade, cuidado pessoal, vida doméstica e vida comunitária. Aos dois anos de idade, realizou uma valvuloplastia para a correção de uma estenose aórtica, que foi bem sucedida e não deixou sequelas. Os pais divorciaram-se quando RNC tinha quatro anos de idade. O pai mudou-se para o exterior, chegando a permanecer três anos sem visitar o filho. O adolescente demonstrava sentir muita falta do pai. A mãe queixava-se que, após a separação, o pai telefonava para RNC com pouca regularidade, e que não era participativo no desenvolvimento do adolescente. Destaca-se que a mãe de RNC casou-se novamente, trabalha durante o dia e estuda à noite, mantendo pouco contato diário com o filho, que permanece a maior parte do tempo com uma cuidadora contratada pela família.
Segundo a mãe de RNC, ele era inteligente, muito comunicativo e não gostava muito de atividades escolares. Alfabetizou-se sem dificuldades. Antes da doença, ajudava-a a realizar compras e preparava sua alimentação. RNC apresentava-se assintomático até outubro de 2002, quando contava 10 anos de idade. Nessa idade, apresentou um quadro de pericardite que evoluiu para parada cardiorrespiratória durante a drenagem cirúrgica que visava a reversão de um tamponamento cardíaco, o qual desencadeou um AVC. O quadro de pericardite não foi associado ao procedimento cirúrgico realizado quando RNC tinha dois anos de idade. O adolescente permaneceu 87 dias internado; esteve 23 dias em coma na UTI. Necessitou de traqueostomia e de gastrostomia; apresentava incapacidade para as atividades que exigiam a mobilidade, permanecendo restrito ao leito. Após o evento cerebrovascular, ocorrido em 2002, RNC apresentou como consequências afasia de expressão, hemiparesia direita, comprometimento da motricidade fina e grosseira no hemicorpo direito, além de comprometimento cognitivo. Em 2002, RNC apresentava limitações completas para todas as categorias de atividades da CIF. O adolescente interrompeu os estudos na 4ª série do Ensino Fundamental, quando ocorreu o episódio cerebrovascular. Apesar do prognóstico, estabelecido por outros profissionais, inicialmente, em 2002, ter sido desfavorável, foi possível identificar uma evolução na funcionalidade do adolescente em 2004 e em 2006. RNC realizou atendimentos, desde o início das limitações, nas áreas de fisioterapia, terapia ocupacional, neuropsicologia e fonoaudiologia.
No ano de 2004, o pai retornou do exterior e procurou contato com a equipe para inteirar-se da situação, porém não participou das entrevistas para a avaliação da funcionalidade do seu filho. RNC esteve, em 2004 e 2006, sempre bem disposto durante as avaliações, exibindo motivação para brincadeiras e pouca motivação para se engajar em tarefas escolares. Durante a avaliação, o adolescente evitava demonstrar suas limitações, apresentando-se resistente e irritado com as atividades que desempenhava com dificuldades. Reclamava das tarefas que julgava difíceis e também afirmava que as demais eram muito fáceis. RNC trabalhava de forma lenta e apresentava dificuldades de concentração. Em algumas situações, o adolescente exibiu comportamentos de recusa na participação das atividades e revelou preferências por atividades lúdicas. Além disso, RNC evidenciou muita sensibilidade ao incentivo social (elogios), os quais contribuíram para melhorar seu desempenho, fato que resultou em maior engajamento nas tarefas propostas.
Segundo a mãe, RNC não possui amigos de sua idade.
Categorias da CIF selecionadas pela equipe interdisciplinar
A Figura 1 apresenta os capítulos considerados relevantes (categorias comprometidas ou com necessidades de intervenção definidas pela equipe de saúde ou pela família), identificados a partir da história clínica, para direcionar o processo de avaliação pela equipe de reabilitação. Foram selecionados 19 capítulos da CIF (quatro de funções do corpo; três de estruturas do corpo; nove de atividade e participação; e três de fatores ambientais). A partir dos itens da CIF de primeiro nível (capítulos), foram selecionadas as categorias de segundo nível da CIF, pela equipe interdisciplinar, para discriminar os aspectos relacionados com o relato da mãe e da cuidadora e avaliar a funcionalidade de RNC nas tarefas propostas pela equipe.
Nas Figuras 2 e 3, estão destacadas as subcategorias de segundo nível da CIF, relacionadas com as condições cognitivas (Figura 2) e motoras (Figura 3) do adolescente, identificadas pela equipe como categorias que apresentavam necessidades de intervenção. Considerando as funções cognitivas, foram selecionadas 23 subcategorias de segundo nível da CIF (sete categorias de funções do corpo; uma, de estruturas do corpo; seis, de atividade e participação e nove, de fatores ambientais).
A Figura 3 apresenta as 39 subcategorias relacionadas com as funções motoras (quatro de funções do corpo, quatro de estruturas do corpo, 22 de atividade e participação e nove de fatores ambientais).
A Tabela 1 descreve a evolução do caso, avaliada a partir da história clínica para uma investigação retrospectiva, de 2004 para 2002; e também das observações clínicas para um estudo prospectivo, de 2004 para 2006, de acordo com a referência dos capítulos de atividade e participação da CIF. O relato da mãe, em agosto de 2004, estava relacionado com dificuldades classificadas de moderadas a completas (Tabela 1) nas atividades de aprendizagem, tarefas e demandas gerais, comunicação, cuidado pessoal, vida doméstica, relações e interações interpessoais, mobilidade, áreas principais da vida e vida comunitária.
Avaliação da funcionalidade seguindo os capítulos de atividade e participação da CIF
Aprendizagem e aplicação do conhecimento
Segundo a mãe, RNC não apresentava limitações para o desempenho nas atividades que exigiam as habilidades de aprendizagem e aplicação do conhecimento até os 10 anos de idade (2002). Após o evento que desencadeou a doença cerebrovascular, RNC apresentou limitação completa para essas atividades, fato identificado pelo relato da mãe sobre a perda de consciência, orientação e memória no período que permaneceu internado. A evolução aos 12 anos (2004) foi evidenciada pela capacidade de RNC reconhecer as horas e as letras. Nessa idade, foi verificado, pela avaliação neuropsicológica, que o adolescente apresentava deficiências na memória, na atenção e nas funções executivas.
Na avaliação aos 14 anos (2006), o adolescente continuava apresentando deficiência em manter a atenção durante o processo de avaliação. Isso tornou necessário utilizar diferentes estratégias para conseguir mantê-lo concentrado durante a realização das tarefas. Apresentou incapacidade de leitura durante a execução do Teste de Desempenho Escolar (TDE) (Stein, 1994) e, por esse motivo, tal teste não pôde ser aplicado em sua totalidade. RNC apresentou muita resistência em realizar tarefas escolares, recusando-se a realizar o subteste de aritmética do TDE.
RNC apresentou dificuldade na realização do Miniexame do Estado Mental, que foi utilizado como um procedimento de triagem. O escore total do Miniexame do Estado Mental modificado para crianças é 37, e a média de acerto de adolescentes entre 12 e 14 anos é de 36,8, com desvio padrão de 0,63. O escore do Miniexame do Estado Mental do adolescente foi igual a 13, o que mostra que as dificuldades estavam relacionadas com deficiências nas funções de orientação, memória, atenção, funções de cálculo e funções mentais da linguagem.
As funções visoespaciais relacionam-se com o desempenho pré-escolar e escolar e foram avaliadas em RNC por meio de duas tarefas: prova gráfica de organização perceptiva de Santucci (Santucci, 1981) e tarefa de construções tridimensionais (Stiles et al., 1996). Em 2002, foi identificado que RNC não apresentava habilidades de coordenação motora que lhe permitiam desenhar. Em 2006, o adolescente demonstrou comprometimento significativo das habilidades visoespaciais, restrição que não lhe permitia completar as tarefas. Analisando as habilidades perceptivas e práxicas de RNC, pode-se concluir que ele apresenta um quadro de apraxia construtiva, situação que o impede de copiar desenhos mesmo elementares. Ainda que se tenha reduzido o impacto do componente motor, por meio da tarefa de construções tridimensionais - em que é solicitada ao examinando a montagem de uma figura utilizando blocos de madeira, conforme modelo apresentado - RNC não conseguiu realizar a tarefa, indicando sua grande dificuldade de representar formas gráficas.
Na avaliação, em 2006, foi usado o Teste das Matrizes Progressivas de Raven - Escala geral (Raven et al., 1988). RNC apresentou um percentil inferior no Teste Raven (percentil 8), entretanto, esse resultado não pode ser associado a uma deficiência intelectual, uma vez que se percebe, pela interação e comunicação com RNC, que se trata de um adolescente com inteligência normal e capacidade de raciocínio lógico. O desempenho inferior de RNC no Teste Raven pode ser atribuído ao componente visoespacial exigido pelo teste, habilidade em que o examinado apresenta comprometimento.
Tarefas e demandas gerais
RNC era independente para atividades simples e complexas até os 10 anos. Após a doença cerebrovascular, o adolescente apresentou dificuldades para todos os tipos de atividades simples e complexas estabelecidas na CIF. Durante a avaliação de RNC, em 2006, foram observadas limitações para realização de tarefas simples e tarefas complexas que exigissem habilidades motoras e cognitivas como; ler um livro, escrever um texto, arrumar a cama, realizar uma tarefa escolar e gerenciar a rotina diária.
Comunicação
Segundo a mãe, não havia limitações do adolescente durante as atividades que exigiam a comunicação, até os 10 anos de idade. Após o evento cerebrovascular, RNC apresentou afasia de Broca, caracterizada por agramatismo, parafasias fonêmicas, falta do vocábulo, dificuldade de nomeação, limitação para formar frases e articular palavras. O adolescente realizou tratamento com uma fonoaudióloga desde o início das limitações na comunicação. Na avaliação realizada em 2004, foi registrado que RNC apresentava progressos para articular palavras isoladas e palavras frase.
Na avaliação, em 2006, foram observados progressos em comparação com 2004, mas ainda foram identificadas limitações na capacidade de produzir palavras, frases e passagens mais longas. As atividades relacionadas à comunicação e funções mentais da linguagem foram avaliadas com o auxílio de tarefas psicolinguísticas, fundamentadas no modelo cognitivo neuropsicológico do processamento lexical de informação (Ellis et al., 1994).
Mobilidade
Em 2002, durante o período de internação hospitalar, o adolescente ficava completamente imóvel e, em consequência, dependente para as atividades de mudar a posição básica do corpo no leito. Desde então, o adolescente iniciou tratamento fisioterápico. Em 2004, foi observado que RNC não sustentava o membro superior direito contra a gravidade e que apresentava marcha atáxica e hemiparética direita. Além disso, foram verificadas deficiências no equilíbrio postural e na coordenação motora, mas a melhora das atividades que exigiam a mobilidade havia sido acentuada em relação a 2002. Na avaliação em 2006, RNC demonstrou melhoras significativas, porém ainda apresentou dificuldades na avaliação do equilíbrio estático nas atividades: (i) de mudar a posição básica do corpo de sentado para em pé; (ii) de permanecer em pé sem apoio com os olhos fechados; (iii) de permanecer em pé sem apoio com os pés juntos; (iv) de alcançar a frente com o braço estendido permanecendo em pé; (v) de pegar um objeto no chão a partir da posição em pé. O escore bruto da escala de Berg foi de 36/56, o que é considerado abaixo do esperado para sua idade, que indica um escore de 55, 86 (Kembhavi et al., 2002). O adolescente apresentou marcha independente, porém, devido à deficiência no equilíbrio postural estático e dinâmico, na força muscular dos membros inferiores e na coordenação motora, demonstrou insegurança e uma assimetria durante a realização das fases da marcha. A atividade de deslocar-se foi avaliada pela tarefa de subir a escada da clínica de fisioterapia. O adolescente segurou no corrimão da escada para garantir estabilidade postural durante a subida e a descida. Logo, a atividade foi realizada com independência funcional. Diante das dificuldades para atividades que exigem o equilíbrio postural dinâmico, a atividade de correr não foi solicitada ao adolescente.
Em relação à motricidade fina, foi verificado, em 2004, que RNC apresentava paresia do membro superior direito com muita dificuldade para segurar e usar o lápis para desenhar, tanto com a mão direita quanto com a mão esquerda, porém, RNC demonstrava preferência por usar a mão direita. Em 2006, a avaliação do uso fino da mão foi realizada com o Nine Hole Peg Test (9-HPT) em formato de entrevista com a cuidadora e com a mãe. Durante a execução da atividade do 9-HPT, o adolescente apresentou dificuldades para atingir os objetivos do teste, o qual foi realizado com lentidão e imprecisão. As estratégias motoras para a realização do teste não foram eficientes, pois o examinado deixou alguns pinos caírem no chão, fato que aumentou o tempo para a finalização da tarefa. Segundo o relato das entrevistas com a cuidadora, o adolescente tinha deficiências na motricidade fina da mão, que gerava limitações nas atividades de cuidado pessoal. Além disso, foram observadas limitações na atividade de segurar e movimentar um lápis, ação que exige a motricidade fina.
Cuidado pessoal
RNC era independente para todas as atividades de cuidado pessoal, segundo a mãe, até os 10 anos de idade. Em 2004, o adolescente usava o vaso sanitário sozinho para urinar, mas precisava de ajuda para se limpar após evacuar, mas conseguia evacuar na presença da mãe ou de uma auxiliar da família. Era independente para alimentar-se com a própria mão, usando colher, e havia começado a tomar banho sozinho. Em 2006, a avaliação do desempenho para atividades de cuidado pessoal foi realizada com base em entrevista com a mãe. RNC apresentou dificuldades nas atividades que exigiam o uso da motricidade fina como alimentar-se e utilizar talheres para cortar os alimentos, manipular botões das roupas durante a atividade de vestir-se, calçar o tênis, realizar a higiene pessoal e tomar banho.
Vida doméstica
Antes do episódio de AVC, em 2002, o adolescente realizava compras, ficava sozinho em casa algumas horas e preparava sua refeição. Esse relato da mãe indicou a independência e capacidade de RNC para as atividades de vida doméstica até o momento do evento cerebrovascular. Em 2004 e 2006, o adolescente não realizava atividades da vida doméstica de aquisição de bens e serviços, nem fazia a preparação de refeições ou as tarefas domésticas bem como não cuidava dos objetos da casa.
Relações e interações interpessoais
Segundo a mãe, na escola RNC apresentava um pouco de dificuldade disciplinar antes da doença cerebrovascular, gostava de ser o líder, achava que os outros deviam obedecer-lhe; era até colocado de castigo devido às brigas. Em 2006, foi observado que RNC mantinha o convívio diário com a cuidadora e com a avó regularmente. Ressalta-se que, como a mãe trabalha durante o dia e estuda à noite, o contato diário com RNC é reduzido. O contato paterno é restrito, uma vez que o pai reside no exterior. Um ponto a ser ressaltado é o fato de RNC não conviver com pessoas de sua faixa etária, fator que pode ser especialmente limitador na adolescência.
As atitudes do adolescente com os avaliadores eram de resistência em relação às atividades que considerava monótonas ou nas quais apresentava dificuldades para realizar. Havia engajamento quando as atividades eram do seu interesse, como as atividades lúdicas, as quais favoreciam a interação com os avaliadores. A família considera que RNC está feliz e disposto a realizar os tratamentos, mas que só trabalha se a tarefa despertar sua atenção e se não for monótona.
Avaliação dos fatores ambientais conforme o modelo da CIF - OMS
Os fatores ambientais foram avaliados conforme a orientação da CIF de verificar a influência dos fatores contextuais na perspectiva da pessoa. Esses fatores foram qualificados como facilitadores ou barreiras para o desenvolvimento da funcionalidade de RNC (Tabela 2). Os fatores ambientais considerados como facilitadores para a funcionalidade foram a condição econômica da família e as atitudes dos familiares relacionados aos cuidados com a reabilitação do adolescente, pois procuraram profissionais de saúde das áreas de fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia e neuropsicologia; contrataram a cuidadora e os serviços de saúde. As barreiras para a funcionalidade foram: (i) a ausência de amigos de sua idade, (ii) a carência de instituições de ensino e de profissionais da educação para favorecer o processo de aprendizagem, (iii)a restrição de tempo da mãe para uma interação interpessoal satisfatória com o adolescente e (iv) a ausência de relacionamento com o pai.
Plano de reabilitação estabelecido pela equipe
A Figura 4 apresenta os objetivos da equipe de reabilitação, conforme o processo de funcionalidade e incapacidade. Diante das capacidades potenciais de RNC e de suas deficiências nas estruturas e funções do corpo, das limitações nas atividades e das restrições de participação, podem-se considerar os seguintes objetivos para o trabalho da equipe de reabilitação e para os cuidados da família do adolescente:
(i) Estimular a interação com amigos de sua faixa etária para o desenvolvimento das atividades de recreação e lazer, com o objetivo de maximizar as capacidades motoras e cognitivas e estimular o desenvolvimento de RNC por meio de jogos e socialização;
(ii) Realizar uma reabilitação neuropsicológica com RNC com o objetivo de estimular as capacidades cognitivas e desenvolver estratégias compensatórias para lidar com as habilidades comprometidas. É interessante, ainda, que seja trabalhado o aspecto motivacional de RNC, a fim de que o adolescente aceite suas dificuldades e desenvolva estratégias para lidar com suas limitações e descubra suas potencialidades, o que pode ajudar a desenvolver o interesse em retornar à educação escolar. É interessante que a família também realize um treinamento de habilidades que possam promover o desenvolvimento e a autonomia do adolescente, e que conheça estratégias de estimulação cognitivas, sociais, afetivas e motoras que possam ser realizadas no contexto familiar e social de RNC.
(iii) Escolher a estratégia de reabilitação da motricidade fina para o desenvolvimento da escrita:
(a) terapia de indução ao movimento do membro superior direito e restrição do movimento no membro superior esquerdo;
(b) desenvolver a motricidade fina da mão esquerda (lado não dominante).
(iv) Realizar fisioterapia para potencializar as funções neuromusculoesqueléticas relacionadas com o movimento e as atividades que exigem a mobilidade.
(v) Manter o atendimento fonoaudiológico para tratamento da afasia.
(vi) Realizar exame de ressonância nuclear magnética para indicar a localização e extensão das lesões no encéfalo.
Discussão
Na evolução do caso de RNC, nota-se a possibilidade de recuperação funcional após episódio de AVC em crianças e adolescentes. A chave do sucesso terapêutico e preventivo, em reabilitação de condições crônicas, é compreender a relação entre as deficiências nas estruturas e funções do corpo e os fatores psicossociais para a definição e seleção dos problemas alvo que serão abordados pela equipe de saúde (Stucki, 2005). Para isso, durante o planejamento da intervenção pela equipe de reabilitação, os profissionais devem identificar e registrar os fatores com importante potencial de melhora. Para Stucki (2005), os objetivos dos serviços de reabilitação devem ser:
Prevenir futuros sintomas e incapacidades (estratégia de prevenção);
Tratar as deficiências das estruturas e funções do corpo (estratégia de tratamento);
Promover a funcionalidade, superando as deficiências nas estruturas e funções do corpo, limitações nas atividades e restrição na participação (estratégia de reabilitação).
Esse trabalho pode ilustrar a aplicação dos conceitos e recomendações da OMS por intermédio do registro das deficiências nas estruturas e funções do corpo, limitações nas atividades e restrições na participação. Além disso, as barreiras e facilitadores para a funcionalidade do adolescente foram identificados para facilitar as condutas e orientações da equipe de saúde. Dessa forma, a CIF poderá ser útil na prática clínica, e pode contribuir para o processo de decisão da equipe de reabilitação. De igual forma, pode auxiliar na elaboração de relatórios sobre o estado de saúde do indivíduo, em vista de complementar o tradicional registro da doença, quando é utilizada somente a CID-10. As estratégias tradicionais de registro nos prontuários não consideram o contexto em que o indivíduo vive (barreiras e facilitadores) e as necessidades de intervenção para a promoção da funcionalidade e prevenção de incapacidades (atividade e participação). O uso da CIF permite a superação do modelo biomédico tradicional de atenção à saúde que valoriza a mensuração dos comprometimentos nas estruturas e funções do corpo, a medicalização da saúde e a prescrição de procedimentos técnicos.
Para tornar a CIF operacional em todos os seus componentes, o uso de instrumentos validados podem ser associados com a investigação mediante critérios clínicos em que o avaliador realiza o julgamento clínico baseado na experiência clínica e no relato da família do adolescente. O modelo da CIF contempla os fatores ambientais e pessoais como variáveis moderadoras e mediadoras do processo de funcionalidade e incapacidade. Assim, os desfechos de saúde poderão ser investigados por meio de um modelo multidimensional centrado nos problemas individuais e nos fatores contextuais que influenciam a condição de saúde.
Superar os desafios de aplicar a perspectiva biopsicossocial depende de uma estrutura conceitual e operacional que fundamente as ações dos profissionais. A utilização da CIF como referência conceitual para a elaboração do relatório de um caso de doença cerebrovascular na adolescência facilitou a comunicação entre os membros da equipe interdisciplinar e contribuiu para uma abordagem centrada nos problemas de RNC e não somente nas especialidades dos avaliadores ou no conteúdo dos instrumentos de avaliação. A escala ordinal para qualificar os facilitadores ou barreiras não foi utilizada em vista da carência de instrumentos e critérios pré-estabelecidos para indicar a magnitude da influência dos fatores ambientais. A falta de instrumentos específicos e validados para a avaliação da funcionalidade de adolescentes com comprometimentos neurológicos nessa faixa etária exige da equipe de reabilitação o uso de critérios clínicos e de uma avaliação qualitativa associada com instrumentos padronizados. Algumas categorias da CIF não estão envolvidas nos instrumentos de avaliação validados. Diante dessas lacunas, os profissionais podem selecionar os instrumentos de avaliação disponíveis e relacionar os seus desfechos com os componentes da CIF. Assim, os profissionais da equipe interdisciplinar e pesquisadores precisam desenvolver critérios para classificar essas categorias segundo as recomendações da CIF. Logo, estudos são necessários para validar o uso de metodologias mistas e para elaborar instrumentos de avaliação que englobem os componentes da CIF a fim de operacionalizar o enfoque biopsicossocial no atendimento nos serviços de saúde e nas estratégias de pesquisa sobre a funcionalidade, incapacidade e saúde.
Referências
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Submetido em: 03/04/2009
Aceito em: 06/05/2009