SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número2Clínica da cooperação: um caminho para a insurgência e a autonomiaClínica intercultural: a escuta da diferença índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.8 no.2 São Leopoldo dez. 2015

https://doi.org/10.4013/ctc.2015.82.06 

ARTIGOS

 

O uso do Mapa dos Cinco Campos no estudo da rede de apoio social e afetiva de crianças vítimas de abuso sexual

 

The use of Five Field Maps in the study of Social and affective support network to children victims of sexual abuse

 

 

Danielly Bart do Nascimento; Edinete Maria Rosa

Universidade Federal do Espírito Santo. Av. Fernando Ferrari, 514, 29075-910, Goiabeiras, Vitória, ES, Brasil. danybartnasc@yahoo.com.br, edineter@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa cujo objetivo foi verificar quais mudanças ocorreram na rede de apoio social e afetiva de um menino e uma menina vítimas de abuso sexual extrafamiliar após inserção em um Serviço de Enfrentamento à Violência e se, na percepção das crianças, o Serviço passou a compor sua rede de apoio social e afetiva após o período de investigação. Participaram da pesquisa, as crianças, seus pais, a Assistente Social e a Psicóloga do Serviço. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e da aplicação do Mapa dos Cinco Campos. A análise dos dados foi qualitativa e, como principal aporte teórico, utilizamos a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. Dentre os principais resultados, estão a ampliação da rede de apoio social e afetiva e a melhora na qualidade das relações interpessoais das duas crianças. Após a participação no Serviço, o menino passou a apresentar interações mais frequentes e significativas com objetos presentes no ambiente do Serviço, e a menina passou a ter uma melhor qualidade na interação com as Técnicas, demonstrando efetividade na superação dos sinais do abuso.

Palavras-chave: rede de apoio social e afetiva, Mapa dos Cinco Campos, abuso sexual.


ABSTRACT

This article presents some results of a study that aimed at verifying what changes had occurred in the social and affective support network that was given to a boy and a girl victims of extra-familiar sexual abuse after their insertion into a Violence Combat Service and whether in the perception of children the Service is now part of his/her network of social and emotional support after the investigation period. The participants of this research were the children, their parents, the Social Worker and a Psychologist that works for this Service. All the data used in this research were collected through semi-structured interviews and through an application of the Five Fields Map. For the qualitative data analysis, the Bioecological Human Development Theory was used as the main theoretical contribution. Among the main results, we can infer that they are the expansion of the social and affective support network and the improvement of the quality of interpersonal relations of the two children. The Violence Combat Service monitoring influenced in a different way the developmental potential of the two children; for the boy, the interactions established with objects in the Service had a special symbolic value, while for the girl the relationship with the professional was more effective when analyzed the overcoming abuse signs.

Keywords: social and affective network support, Five Field Maps, sexual abuse.


 

 

Introdução

O abuso sexual contra crianças ocorre quando estas são submetidas à gratificação sexual de um adulto, ou de outra pessoa mais velha, maior, ou que, de alguma forma, exerça um poder sobre ela. Tipifica-se o abuso sexual como: aliciamento sexual, linguagem ou gestos sexualmente sugestivos, uso de pornografia, voyeurismo, exibicionismo, carícias, masturbação e penetração com objetos (Johnson, 2004; Sanderson, 2005). O abuso sexual pode ser do tipo intrafamiliar, envolvendo pessoas com ou sem laços de parentesco que convivem no mesmo domicílio (Araújo, 2002; Monteiro et al., 2008), ou extrafamiliar, sendo praticado por pessoas que não pertencem à família. Em muitos casos, na violência extrafamiliar, os perpetradores possuem vínculo com a criança, e o abuso pode ocorrer dentro da própria casa da vítima (Pietro e Yunes, 2008).

Conforme Brito e Koller (1999), a rede de apoio social é o conjunto de sistemas e de pessoas que compõem os vínculos de relacionamentos recebidos e percebidos pela pessoa e está diretamente relacionada ao desenvolvimento humano, pois deve fazer parte do contexto ambiental no qual a pessoa se desenvolve. O elemento afetivo está agregado a esse construto, pela importância na construção e manutenção do apoio.

Para Cobb (1976), o apoio social pode envolver três tipos de categorias, que são consideradas de forma independente ou concomitante. A primeira envolve um apoio emocional, quando a pessoa acredita que é cuidada e amada, o segundo relaciona-se ao apoio de estima, quando a pessoa acredita que é estimada e valorizada, e o terceiro é o apoio publicizado, exposto pelas pessoas que compõem a rede e que faz a pessoa elevar o sentimento de autoestima, que ocorre quando a pessoa acredita que pertence a uma rede de comunicação e obrigação mútua.

A rede de apoio social pode passar por diversas transformações ao longo da vida da pessoa, dependendo de suas necessidades e das interações que ela é capaz de desenvolver a partir do acionamento de um serviço ou de uma ajuda pessoal. Por isso, a estrutura e a função da rede de apoio dependem dessas necessidades e também das habilidades sociais que a pessoa possui para mantê-la ou ampliá-la (Samuelsson et al., 1996).

Couto (2007) destaca que a rede de apoio possui aspectos estruturais que se referem à quantidade e à multiplicidade das relações estabelecidas pela pessoa em desenvolvimento e dos aspectos funcionais voltados à qualidade dessas relações. Nesse sentido, a qualidade dos vínculos é mais importante que a quantidade de vínculos estabelecidos. A rede de apoio social e afetiva está relacionada principalmente aos recursos que oferece à pessoa em situações de risco (Brito e Koller, 1999), sendo que esses recursos podem ser de natureza emocional, material e afetiva (Sherbourne e Stewart, 1991).

Habigzang et al. (2011) destacam a importância do atendimento psicológico para auxiliar na superação de sinais como: alterações cognitivas, afetivas, comportamentais e outros. Além disso, apontam como constituintes da rede de apoio de crianças e adolescentes que passaram pela experiência de abuso sexual: a família, a escola, a comunidade, o Conselho Tutelar, a Delegacia, o Conselho de Direitos da Criança, o Ministério Público e o Juizado da Infância e Adolescência, as instituições de acolhimento, os serviços de saúde (postos de saúde e hospitais) e assistência social (Centro de Referência da Assistência Social e Centro de Referência Especializado da Assistência Social). Lordello e Costa (2014) acrescentam que essas instituições são microssistemas que, ao participarem da rede de apoio, atuam como transformadores potenciais do desenvolvimento.

Quanto mais recursos pessoais e ambientais a pessoa possuir, mais ela estará protegida de apresentar sintomas e de desenvolver doenças psicopatológicas (Bronfenbrenner e Ceci, 1994). Nesse caso, a rede de apoio social e afetiva dificilmente deixará de ser um recurso do qual ela lançará mão para estabelecer relações fortes e recíprocas. Os vínculos sociais e afetivos construídos na rede podem auxiliá-la no curso de um desenvolvimento saudável, facilitando a construção da resiliência, proporcionando maior mobilidade para utilizar-se de estratégias eficazes para superar situações de adversidades vivenciadas durante a vida (Brito e Koller, 1999).

Devido à influência da rede de apoio no desenvolvimento das pessoas, recorremos à Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano, desenvolvida por Urie Bronfenbrenner como aporte teórico para a discussão dos dados. Essa teoria define o desenvolvimento humano como um fenômeno de continuidades e mudanças duradouras nas características biopsicossociais do ser humano (Bronfenbrenner e Morris, 1998). Reúne quatro elementos, Pessoa, Processo, Contexto e Tempo, que for-mam seu modelo teórico (Modelo PPCT) e atuam de forma inter-relacionada no processo de desenvolvimento (Tudge, 2008).

O contexto é composto por um sistema de quatro ambientes, sendo o primeiro deles denominado microssistema. O microssistema "é um padrão de atividades, papéis e relações experienciadas face a face pela pessoa em desenvolvimento em um ambiente com características físicas, sociais e simbólicas particulares" (Bronfenbrenner, 1993, p. 15). Portanto, é o espaço onde se desenvolvem as atividades cotidianas e onde as pessoas se constituem como sujeitos psicológicos pertencentes a uma cultura. Bronfenbrenner deu especial ênfase à percepção da pessoa sobre o seu espaço, afirmando que este é formado tanto por elementos objetivos quanto subjetivos (Bronfenbrenner e Morris, 1998). A reunião dos diversos microssistemas nos quais a pessoa em desenvolvimento participa e as inter-relações entre eles é nomeada de mesossistema (Bronfenbrenner, 1993). O exossistema é formado pelos ambientes em que a pessoa não participa diretamente, mas que influenciam ou são influenciados pelos eventos ocorridos no micro e no mesossistema. O macrossistema compõe o complexo de sistemas (micro, meso e exossistema) que envolvem as ideologias e as organizações sociais presentes nas culturas de uma forma em geral ou nos grupos que pertencem a uma mesma cultura (Bronfenbrenner, 1993).

Na teoria Bioecológica, Bronfenbrenner enfatiza os processos proximais como o principal mecanismo responsável pelo desenvolvimento humano, com crescente complexidade de ações e atividades desenvolvidas com pessoas, objetos e símbolos presentes no ambiente por períodos de tempo duradouros (Bronfenbrenner e Ceci, 1994).

Os processos proximais podem produzir competências, quando ocorrem em ambientes ricos e estáveis, ou diminuir as disfunções, quando os ambientes são pobres e instáveis. As competências direcionam o desenvolvimento a uma evolução de habilidades e capacidades para conduzir e direcionar o comportamento (intelectual, físico, socioemocional, motivacional e artístico), enquanto as disfunções decorrem de dificuldades em manter o controle dos comportamentos (Bronfenbrenner e Morris, 1998). Assim, podemos prever que a presença de violência sexual na vida de uma criança, caracterizando a fragilidade e a instabilidade do seu ambiente, implica em que os processos proximais desenvolvidos com pessoas significativas atuem como inibidores de disfunções, tais como: exposição às novas recorrências de abuso, dificuldades no relacionamento interpessoal, apatia e timidez.

Bronfenbrenner e Ceci (1994) destacam que potenciais de desenvolvimento inatos que se apresentam como características latentes podem tornar-se manifestos, aumentando sua exposição a processos proximais no ambiente por meio de políticas e programas sociais que podem proporcionar recursos para que os processos sejam mais eficazes. Os autores ainda afirmam que o desenvolvimento é conduzido pela forma, pela força, pelo conteúdo e pela direção dos processos proximais, que variam sistematicamente como uma função conjunta das características da pessoa em desenvolvimento e do ambiente tanto imediato como mais remoto.

Bronfenbrenner e Evans (2000) complementam dizendo que o desenvolvimento também é produzido pelas contínuas mudanças sociais que ocorrem ao longo do tempo, através do curso de vida e do período histórico que a pessoa tenha vivido. Problemas familiares, como doença ou morte de um familiar ou amigo, perda do emprego, problemas com a justiça, separação na família, relações violentas, entre outros, são exemplos que podem causar estresse psicológico e interferir nas relações interpessoais.

As características pessoais são produtoras e produto do desenvolvimento humano; são o resultado dos traços biopsicológicos da pessoa em desenvolvimento em interação com o ambiente (Bronfenbrenner, 1999). Dessa forma, as características pessoais são qualificadas em três tipos: características de disposição, de recurso e de demanda (Bronfenbrenner e Morris, 1998).

As características de disposição são aquelas manifestadas nos comportamentos da pessoa em desenvolvimento capazes de motivar e sustentar ou de interferir e inibir o surgimento dos processos proximais. Assim, as características de disposição são subdividas em características generativas ou inibidoras. As características inibidoras são as que estabelecem uma dificuldade para a pessoa se envolver em processos proximais, tais como: impulsividade, explosividade, distração, agressividade, dificuldade em manter o controle sobre as emoções e o comportamento, apatia, irresponsabilidade, falta de interesse pelo seu ambiente, sentimentos de insegurança. As características generativas, por outro lado, estão relacionadas à capacidade que a pessoa possui de se relacionar, de participar de atividades com outras pessoas ou mesmo sozinha. Envolve um comportamento ativo e curioso no ambiente (Bronfenbrenner e Morris, 1998).

As características de recurso não envolvem disposições seletivas para a ação, e sim componentes biopsicológicos passivos ou ativos capazes de influenciar o organismo a se engajar em processos proximais. Já as características de demanda são aquelas que atraem ou desencorajam os relacionamentos sociais, podendo atrapalhar ou promover o desenvolvimento psicológico. Como exemplos de características de demanda, temos a aparência física atrativa ou não atrativa; hiperatividade ou passividade nos relacionamentos (Bronfenbrenner e Morris, 1998).

O elemento tempo possui influência direta no desenvolvimento humano. Com o conceito de tempo, é possível perceber as continuidades e as descontinuidades de acontecimentos ao longo da vida. O tempo é dividido em microtempo, mesotempo e macrotempo. O microtempo está relacionado às continuidades e às descontinuidades nos processos proximais ocorridos nas atividades diárias. O mesotempo refere-se a eventos ou atividades que ocorrem em intervalos de tempo maiores, como dias, semanas ou meses; e o macrotempo focaliza fatos e acontecimentos que dependem de um ciclo de vida ou de gerações para ocorrer (Bronfenbrenner e Morris, 1998).

Considerando a importância da rede de apoio social e afetiva para a superação de situações estressoras, o objetivo do presente estudo foi o de verificar quais mudanças ocorreram na rede de apoio social e afetiva dos participantes, um menino e uma menina vítimas de abuso sexual extrafamiliar após inserção em um Serviço de Enfrentamento à Violência. Além disso, o estudo investigou se havia, na percepção das crianças, a participação do Serviço de Enfrentamento à Violência em sua rede de apoio social e afetiva após o período de investigação.

 

Metodologia

Participantes

Participaram do estudo duas crianças, um menino com 10 anos e uma menina com 11 anos que passaram pela experiência de abuso sexual extrafamiliar e que estavam recebendo atendimento em um Serviço de Enfrentamento à Violência, o pai e a mãe das duas crianças e a Psicóloga e a Assistente Social que estavam responsáveis pelo atendimento das crianças e das famílias, totalizando oito participantes. Trata-se de um estudo de casos múltiplos, com lógica de replicação literal com resultados contrastantes por motivos previsíveis, o que caracteriza um estudo de replicação teórica (Yin, 2015).

Instrumentos e procedimentos

Os instrumentos utilizados foram um roteiro de entrevista semiestruturada e o Mapa dos Cinco Campos. As entrevistas foram realizadas com os participantes adultos no momento em que as crianças iniciaram o atendimento no Serviço e após seis meses de participação. O Mapa foi aplicado somente com as crianças também em dois momentos: no início e após seis meses de participação no Serviço.

O roteiro da entrevista com os pais, no momento inicial, abordava questões sobre a expectativa da família ao procurar a ajuda do Serviço, o estado emocional e as características pessoais apresentadas pelas crianças antes e após a ocorrência da violência. Após os seis meses de participação, abordava a percepção dos pais quanto às características pessoais das crianças, quanto aos relacionamentos estabelecidos pelas crianças com outras pessoas e com as Técnicas do Serviço e sobre o acompanhamento da criança naquele microssistema.

A primeira entrevista com as Técnicas buscou dados acerca das histórias de violência sexual sofridas pelas crianças, do primeiro contato com as crianças e das características pessoais percebidas nas crianças. Após os seis meses de acompanhamento, a entrevista investigou a percepção das Técnicas quanto às características pessoais e o relacionamento com as crianças e sobre as interações das crianças com o ambiente do Serviço. O roteiro de entrevista utilizado com as crianças foi aplicado somente após os seis meses de participação e investigava a percepção que elas tinham do ambiente do Serviço e de sua utilidade e sobre qual a sua relação com as pessoas (Técnicas) que conheceram e a importância do tempo que passaram naquele Serviço.

A entrevista semiestruturada é uma técnica previamente planejada que funciona como um estímulo à fala do participante. Perguntas complementares podem ser adicionadas, à medida que a entrevista vai evoluindo e, por serem abertas, favorecem respostas espontâneas que possibilitam a obtenção de informações não previstas inicialmente no roteiro (Olsen, 2015).

O Mapa dos Cinco Campos consiste em um tabuleiro ou uma folha na qual estão desenhados seis círculos concêntricos que representam os níveis de proximidade com o participante que se localiza no centro: o primeiro e o segundo círculos mais próximos representam as relações mais próximas, o terceiro e o quarto círculos correspondem às relações mais distantes, e o último círculo, mais afastado do centro, representa as relações mais insatisfatórias ou negativas. O Mapa foi subdividido em cinco campos, Família, Amigos, Parentes, Escola e Outras relações (Siqueira, 2006).

Na utilização desse instrumento, o participante era solicitado a colocar as pessoas que faziam parte da sua vida em cada um dos campos, obedecendo à satisfação no relacionamento, de forma que as pessoas que despertavam afeto positivo eram colocadas mais próximas ao centro e as que despertavam afeto negativo eram localizadas mais afastadas do centro. Foi investigada a presença de conflitos e rompimentos em cada um dos relacionamentos com as pessoas representadas em cada campo. Os vínculos foram representados pela primeira letra em maiúsculo: (S) Satisfatório, (I) Insatisfatório, (C) Conflito, (R) Rompimento (Siqueira, 2006).

O Mapa dos Cinco Campos é um instrumento que permite avaliar a estrutura e a função da rede de apoio de crianças, adolescentes e adultos observando a quantidade e a qualidade dos vínculos estabelecidos na rede (Samuelsson et al., 1996). Foi acrescentada na aplicação do Mapa uma questão que investigava se as crianças recebiam ajuda das pessoas representadas quando precisavam ou se costumavam ajudá-las quando elas precisavam.

Análise dos dados

Os dados das entrevistas foram utilizados para uma melhor compreensão da abrangência da rede de apoio social e afetiva das crianças. É uma técnica que "se caracteriza por uma comunicação verbal que reforça a importância da linguagem e do significado da fala" (Neto, 2002, p. 57). O Mapa foi avaliado de forma qualitativa, por meio da disposição das pessoas nos círculos adjacentes ao centro, em relação à qualidade da relação com as figuras parentais, quanto à diferença no número de pessoas representadas nas duas aplicações e em relação à qualidade nas relações com as demais pessoas representadas.

Procedimentos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo (processo nº 23068.720732/2010-11) e pela Secretaria Municipal de Assistência Social à qual o Serviço de Enfrentamento à Violência era vinculado. A coleta de dados ocorreu em uma sala de atendimento do próprio Serviço de Enfrentamento à Violência. As entrevistas foram gravadas em áudio com autorização prévia dos pais das crianças, mediante assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido das Técnicas do Serviço. As crianças assinaram um termo de assentimento livre e esclarecido, com os mesmos esclarecimentos do termo assinado pelos adultos. Os nomes dos participantes foram substituídos por nomes fictícios para o resguardo de suas identidades.

 

Resultados

História de Miguel

Miguel era o filho mais novo e possuía duas irmãs, uma com 12 e outra com 13 anos. De acordo com informações da família, desde bebê sofria de constipação intestinal, motivo pelo qual sempre era levado ao Hospital das Clínicas para receber tratamento e acompanhamento médico com o pediatra e gastroenterologista.

De acordo com o pai, Miguel passou por uma situação de abuso sexual por parte dos colegas da escola em que estudou, quando ainda tinha nove anos. O abuso foi identificado durante um atendimento no Hospital, e a equipe encaminhou o menino ao Serviço de Enfrentamento à Violência que fica localizado anexo ao Hospital. De lá, foi encaminhado à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), onde foi realizado o boletim de ocorrência, e ao Departamento Médico Legal (DML). O Serviço de Enfrentamento à Violência do hospital também encaminhou Miguel para o Serviço de Enfrentamento à Violência Municipal onde mora, para receber atendimento psicossocial.

Após ser incluído no Serviço de Enfrentamento à Violência Municipal, aos 10 anos, Miguel tinha seus atendimentos agendados mensalmente, passando a ser semanalmente, conforme decisão da equipe técnica. Dessa forma, o menino participou de 17 atendimentos dos 22 agendados durante os seis meses de pesquisa.

Após a descoberta da violência, o pai adotou como providência imediata a transferência do filho de escola, entretanto, somente levou a criança ao Serviço de Enfrentamento à Violência após seis meses de encaminhamento. Ao procurar o Serviço, expressou para as Técnicas que acreditava que uma das funções do Serviço era responsabilizar os agressores do menino pela violência cometida. Ao saber que esta não era competência do Serviço, demonstrou desmotivação em manter o filho no acompanhamento. Após várias faltas ao atendimento, a equipe técnica realizou uma intervenção com a família para explicar a importância do acompanhamento psicossocial, e, a partir de então, a mãe passou a acompanhar o filho ao Serviço.

Os pais de Miguel revelaram que a educação dada aos filhos era bastante rígida e que os proibiam de frequentar outros espaços além do ambiente familiar, da igreja e da casa de alguns parentes. Eles não permitiam que os filhos recebessem amigos em casa, ou que saíssem para brincar com colegas da rua ou da igreja. Eles afirmaram, ainda, que os recursos financeiros da família eram limitados e que os filhos não possuíam brinquedos.

As Técnicas, em entrevista, descreveram Miguel como uma criança retraída, acanhada, quieta e abatida e que evitava comunicar-se com desconhecidos. Conforme a Psicóloga, após seis meses de atendimento, o menino continuava sempre de cabeça baixa, no entanto, já permitia o contato físico, como pegar na mão e, apresentava um pouco mais de energia para se engajar nas brincadeiras e jogos durante o atendimento psicológico. Embora ainda não se comunicasse muito verbalmente, outras habilidades foram demonstradas com o passar do tempo, como facilidade para desenhar e ler. A mudança positiva em relação à interação com as Técnicas do Serviço também foi percebida e mencionada pela mãe.

Com as aplicações do Mapa dos Cinco Campos, foi possível visualizar a rede de apoio social e afetiva de Miguel. Observa-se, na Tabela 1, resultado da primeira aplicação do Mapa, que o menino representou pessoas nos campos "família", "parentes" e "escola", e na Tabela 2, resultado da segunda aplicação, o campo "amigos" também foi contemplado. O campo "outras relações" não foi contemplado em nenhum dos dois momentos.

Na primeira aplicação, Miguel representou em seu mapa 29 pessoas, e na segunda 31. Nota-se uma diferença significativa na representação dos membros de sua família nas duas aplicações do mapa: na primeira, ele representou o pai no último nível, dizendo que não gostava dele, mas não deu explicações ou motivos para tal. Indicou uma relação de conflito com as irmãs, mas também não quis explicar o porquê, e revelou que havia conflitos entre os seus pais e que a reação que tinha quando eles brigavam era chorar.

Na segunda aplicação, o pai passou para o segundo nível, e a mãe e as irmãs, para o terceiro nível. Perguntado o porquê de as pessoas terem mudado de lugar na segunda aplicação, principalmente o pai, o menino apenas balançou os ombros, sem apresentar uma justificativa para as mudanças. Relatou que a relação conflituosa com a irmã mais velha e com os pais devia-se a situações cotidianas sem grande importância. Quanto às pessoas do Serviço, o menino informou que eram suas amigas, entretanto, não conseguiu informar o nome de nenhuma delas, referiu-se à Psicóloga como "a de óculos", e à Assistente Social como "a grandona". Sua opinião sobre o ambiente do Serviço é que se tratava de um ambiente bom e bonito. O que mais lhe chamava a atenção no local eram os brinquedos e não conseguiu verbalizar mudanças ocorridas em sua vida após a inserção no Serviço.

Ao ser questionado a respeito de quem das pessoas representadas em seu mapa ele ajudava e quem o ajudava, a resposta de Miguel foi a seguinte: na primeira aplicação, respondeu que não era ajudado por nenhuma daquelas pessoas representadas, mas que ajudava duas primas e um primo quando eles precisavam (campo parentes). Já na segunda aplicação, disse que era ajudado pela irmã mais velha nas tarefas escolares (campo família) e pela professora e por duas meninas (campo escola) e que ajudava a um menino na escola.

História de Mariana

Mariana vivia no interior, era filha de lavradores e possuía um irmão com 17 anos e uma irmã com cinco anos. A violência sofrida ocorreu por parte de um vizinho funcionário do sítio próximo ao de seu pai. Conforme a descrição feita por sua mãe, Mariana e dois primos passavam em frente ao sítio, quando o vizinho chamou-os para ajudá-lo a levar galões de leite para dentro da casa. As crianças, mesmo não conhecendo bem o vizinho, resolveram ajudá-lo. Ao entrarem na casa, o vizinho prendeu cada menino em um quarto e abusou da menina; entretanto, o estupro não ocorreu, porque um dos primos conseguiu sair e com isso impediu que o agressor continuasse a violência. As crianças fugiram correndo do sítio em busca de ajuda. Após o ocorrido, o agressor fugiu do sítio e não tiveram mais notícias sobre ele.

No dia em que ocorreu a violência, a mãe de Mariana caminhou duas horas até chegar ao centro de sua cidade para declarar a ocorrência do fato na delegacia, que lavrou o boletim de ocorrência, mas não efetivou a investigação. No Conselho Tutelar, a mãe de Mariana foi encaminhada com a menina para o Serviço de Enfrentamento à Violência do Municipal mais próximo, onde passou a levar a filha para atendimentos.

Mariana tinha 11 anos de idade quando foi incluída no Serviço. Ela participou somente de cinco atendimentos, pois, conforme sua mãe, a menina dependia do Conselho Tutelar de seu município para chegar ao Serviço, com o qual nem sempre podia contar. Os pais informaram que acharam necessário levar Mariana ao Serviço para que ela pudesse ter um acompanhamento psicológico, pois avaliavam que um profissional poderia ajudá-la melhor que a família.

Após o período de seis meses de atendimento, a mãe relatou que Mariana obteve melhoras de relacionamento com pessoas em diversos ambientes. Estava mais calma para conversar e voltou a aceitar o carinho das pessoas, principalmente do pai e dos tios paternos, dos quais havia se afastado. Por sugestão da mãe, a menina havia escrito um diário, no qual relatava seus sentimentos. Em relação ao Serviço, a mãe revelou que a menina sempre comentou que gostava de conversar com a Psicóloga e falava das demais pessoas do Serviço com carinho.

Para as Técnicas, a menina era agradável e comunicativa. Em atendimento, falou sobre a violência e do medo de que situação semelhante voltasse a se repetir. Elas disseram que, nos primeiros atendimentos, Mariana parecia agitada e nervosa ao narrar o que havia acontecido com ela e com os primos. Mas, após os seis meses de atendimento, a menina apresentou-se decidida ao pedir para interromper o acompanhamento, por sentir-se bem e disposta a estar mais próxima das pessoas, inclusive das que poderiam lhe proteger.

Na segunda aplicação do Mapa, Mariana explicou que as pessoas do Serviço eram como amigas que a ajudaram a superar as dificuldades decorrentes da experiência de violência sofrida. Revelou que o diário sugerido por sua mãe foi uma estratégia que também a ajudou a enfrentar as dificuldades e que, por isso, achava que poderia seguir sem os atendimentos psicológicos. A menina reconheceu o Serviço como um lugar importante para todas as pessoas que passam pelo que ela passou e que o tempo que esteve vinculada ao Serviço de Enfrentamento à Violência foi importante, por saber que lá havia pessoas que a ajudaram a superar as dificuldades.

O Mapa dos Cinco Campos possibilitou visualizar a rede de apoio social e afetiva de Mariana. Observa-se, na Tabela 3, resultado da primeira aplicação do Mapa, que a menina representou pessoas nos campos "família", "parentes", "amigos" e "escola". Na Tabela 4, resultado da segunda aplicação, o campo "outras relações" também foi contemplado.

Ao observar o campo família nas duas aplicações do Mapa, realizado por Mariana, foi possível notar a mudança que ocorreu principalmente na representação do pai e do irmão, passando dos níveis três e quatro para o nível um. Os conflitos com os irmãos, segundo a menina, eram rotineiros e sem grande importância, eram apenas desentendimentos que logo se dissolviam.

Em relação à questão de ajudar e ser ajudada, informou, tanto na primeira aplicação quanto na segunda, que a pessoa da família que costumava ajudar e ser ajudada era sua mãe. No campo parentes, também nas duas aplicações, informou que costumava ajudar e ser ajudada pela madrinha. No campo escola, na primeira aplicação informou que costumava ajudar e ser ajudada pela colega Elaine; já na segunda aplicação, representou apenas um professor e uma professora, sobre os quais relatou gostar muito, ajudar e ser ajudada. No campo amigos, relatou ajudar e ser ajudada pelas amigas e amigos na primeira e segunda aplicações. Em relação aos conflitos relatados na segunda aplicação, explicou que eram desentendimentos passageiros que não abalavam suas relações com essas pessoas.

 

Discussão

As Tabelas 1 e 2 apresentam uma mudança expressiva na quantidade na qualidade das relações no Mapa de Miguel após os seis meses de atendimento, demonstrando a transformação e a dinâmica pela qual a rede de apoio social e afetiva é capaz de passar (Samuelsson et al., 1996). De modo geral, o Mapa de Miguel sofreu alterações que demonstra, conforme Couto (2007), um aumento tanto no aspecto estrutural quanto funcional da rede de apoio. Embora Miguel tenha representado apenas duas pessoas a mais no segundo Mapa, sua rede de apoio social e afetiva apresentou uma mudança qualitativa significante após seis meses de sua participação no Serviço. Isso porque, no primeiro Mapa, das 11 pessoas que estavam representadas no último nível, indicando pouca proximidade, relação insatisfatória e de rompimento, apenas duas permaneceram no último nível na última aplicação. Além disso, na primeira aplicação, 19 pessoas foram apontadas nos quatro primeiros níveis do Mapa, indicando sua participação na rede de apoio, enquanto, no segundo, 29 pessoas foram indicadas nos primeiros quatro níveis.

Outros aspectos qualitativos na melhora da rede de apoio de Miguel podem ser observados principalmente no campo família. No primeiro Mapa, o pai está no último nível, e o restante da família, no penúltimo nível; já no segundo mapa, a família passou a ser representada em níveis mais próximos, e há um deslocamento da figura paterna do último para o segundo nível. O menino não nos deu explicações quanto ao motivo da mudança de nível do pai, talvez limitado por sua dificuldade de comunicação verbal. Alguns acontecimentos no âmbito familiar, como o conflito entre os pais e a educação rígida, nos permite inferir que Miguel apresentava uma percepção controversa em relação a seu pai, que hora está no nível mais afastado, com relação satisfatória, e hora está no nível mais próximo, com relação conflituosa. Tais acontecimentos no âmbito familiar podem ser considerados fonte de estresse psicológico, que, segundo Bronfenbrenner e Evans (2000), possuem o poder de interferir nas relações interpessoais da pessoa em desenvolvimento e fragilizar os efeitos positivos dos processos proximais.

No campo escola, houve uma melhora significativa nas relações de Miguel: apenas dois colegas permaneceram no último nível; figuras adultas apareceram no primeiro nível, e colegas do sexo masculino, em um nível mais próximo na segunda aplicação. Bronfenbrenner (1996) destaca a importância da interação com pessoas mais maduras e experientes para que a pessoa em desenvolvimento tenha maior benefício no processo de seu desenvolvimento.

Outro aspecto qualitativo da rede de apoio de Miguel, advindo após os seis meses de inclusão no Serviço, diz respeito à percepção da ajuda que recebe das pessoas. Na primeira aplicação do mapa, Miguel não indicou ser ajudado por ninguém, e ajudava apenas alguns primos. Já na segunda aplicação, disse ser ajudado pela irmã, pela professora e por duas colegas de sala, enquanto ele ajudava outro colega. Percebe-se, assim, que ele reconhece a continuidade da ajuda que recebe de um membro da família e passa a reconhecer o apoio de pessoas na escola, ambiente que podemos pressupor ser fonte de estresse, devido à violência sofrida nesse tipo de espaço. Essa nova rede que Miguel declara possuir indica, na visão de Cobb (1976), a categoria de comunicação e obrigação mútua, a qual coopera com a elevação do sentimento de autoestima da pessoa em desenvolvimento.

Dentre as ações dos participantes da rede de apoio social de Miguel que funcionaram como fator de proteção para o menino, estão os encaminhamentos realizados para a Delegacia, para o DML e para o Serviço de Enfrentamento à Violência. Como ações da família, podemos destacar o fato de terem procurado o Serviço de Enfrentamento à Violência e de terem feito a denúncia do abuso à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). A denúncia da violência pela família é apontada por Habigzang et al. (2006) como um importante fator que contribui com a diminuição dos fatores de risco, pois acreditar na palavra da criança faz com que a família busque protegê-la.

Um fator de risco para Miguel foi o fato de ele não ter revelado o abuso à sua família, tendo este sido descoberto somente quando foi ao Hospital. Hohendorff et al. (2012), em um ensaio teórico, lembram que meninos e homens possuem maior dificuldade de contar suas experiências de violência sexual, devido ao medo das reações e da vergonha das pessoas, ao tomarem conhecimento do fato. Aliado a esse fator, estava a dificuldade de comunicação que Miguel possuía e que pode tê-lo impedido de contar sobre a violência sofrida.

O componente tempo é observado como algo essencial na formação de vínculos e no aumento de engajamento em processos proximais por parte do menino, pois a dinâmica da rede tem estreita relação com as habilidades sociais que a pessoa possui para mantê-la ou ampliá-la (Samuelsson et al., 1996). Como Miguel demonstrou ser uma criança pouco comunicativa e retraída, essas características pessoais de disposição inibidoras funcionaram como um limitador para que ele se envolvesse em novas relações, demandando tempo para que isso acontecesse tanto no ambiente escolar quanto no Serviço. Esse fator pode ter sido reforçado ao longo da vida de Miguel pela limitação de contatos e de ambientes que frequentava e pela educação familiar rígida que recebia.

A respeito das relações estabelecidas por Miguel no Serviço de Enfretamento à Violência que pudessem caracterizar processos proximais, observou-se que elas ocorriam mais frequentemente com os objetos disponíveis naquele ambiente, como livros, brinquedos, papel e lápis de cor. Ao descrever o espaço e o que nele fazia mais sentido para ele, as pessoas não foram mencionadas. Somente ao perguntarmos mais diretamente sobre as pessoas é que ele demonstrou que elas poderiam ter algum sentido em sua vida. Quanto à percepção do espaço como um campo fenomenológico, Bronfenbrenner e Morris (1998) esclarecem que, no ambiente microssistêmico, a experiência tem um valor especial no desenvolvimento psicológico, uma vez que é importante considerar como os elementos objetivos que o compõe são percebidos pela pessoa e como ela atribui significados a eles. Ficou evidente, no caso de Miguel, o poder do processo proximal desenvolvido entre pessoa-objetos na condução de seu desenvolvimento.

A configuração dos espaços microssistêmicos de Mariana eram bem diversificados, indicando um mesossitema rico. Mariana demonstrou perceber a importância da participação das pessoas em sua rede de apoio social e afetiva no processo de superação do abuso, com destaque para a figura da mãe, que a recomendou o uso de um diário. O diário permitiu a ocorrência de um processo proximal pessoa-objeto e tornou-se uma das estratégias de enfrentamento para a superação dos sinais causados pela violência e contribuiu para resultados positivos em seu desenvolvimento.

Conforme as Tabelas 3 e 4, o caráter dinâmico da rede de apoio social e afetiva também ficou evidenciado na vida da menina. No primeiro Mapa, Mariana representou 17 pessoas em quatro campos e, no segundo Mapa, representou 20 pessoas nos cinco campos. Destaca-se, nos Mapas da menina, a importância da qualidade dos vínculos (Brito e Koller, 1999), visto que as pessoas estão mais concentradas até o 2º nível, revelando o caráter funcional qualitativo da rede (Couto, 2007).

Na segunda aplicação, há um aumento no número de pessoas do sexo masculino representadas, bem como o deslocamento das já existentes para níveis mais próximos, com destaque para o pai, que passou do 4º nível para o 1º nível, demonstrando a superação do medo de figuras masculinas. Também foi possível observar um aumento no número de pessoas adultas na rede percebida por Mariana, outro fator que potencializa o desenvolvimento.

A configuração da família no segundo Mapa e os dados obtidos na entrevista demonstraram o quanto Mariana possuía relações e vínculos positivos nesse microssistema central, principalmente demonstrado na figura materna. A mãe tinha especial valor afetivo no discurso da menina, que dizia sentir-se compreendida e apoiada por ela.

Um dos fatores que contribuíram para a percepção da aproximação das pessoas de sua rede foram as características pessoais de disposição generativas de Mariana. Por ser uma menina comunicativa, recuperou a habilidade social para manter suas relações interpessoais, bem como para construir novas relações.

Um fator de risco para Mariana foi o tratamento recebido pela delegacia de polícia de seu município, pois, segundo a mãe da menina, embora o boletim tenha sido lavrado, em sua opinião, o crime não recebeu a importância devida. Outro fator de risco foi a infraestrutura do conselho tutelar de seu município, que, mesmo tendo participado da rede de apoio de Mariana, não pôde proporcionar uma maior frequência ao Serviço de Enfrentamento à Violência, por encontrar-se com a oferta de transporte prejudicada. Uma frequência maior ao Serviço poderia ter intensificado a assistência recebida pela menina, fortalecido a ela e à sua família e potencializado o processo de superação do problema.

Como fator de proteção presente na vida de Mariana, podemos citar o tratamento recebido no Serviço de Enfrentamento à Violência e percebido por ela e pela mãe como algo que as faziam sentirem-se bem e acolhidas. O interesse da família em buscar ajuda psicológica para a filha já pode ser considerado como um importante auxílio na superação das consequências da violência (Habigzang et al., 2011).

Nas duas aplicações do Mapa, Mariana relatou ajudar e ser ajudada mutuamente pelas pessoas, demonstrando uma percepção de rede do tipo comunicação e obrigação mútua, conforme descrita por Cobb (1976). Mariana também demonstrou reconhecer o apoio emocional recebido das pessoas e grupos, uma vez que ela expressava ter conhecimento de ter sido encaminhada ao Serviço para receber apoio psicológico e social.

Embora as Técnicas do Serviço não tenham sido representadas na segunda aplicação do Mapa, Mariana explicitou na entrevista a importância de ter sido acolhida pelas Técnicas do Serviço e a importância daquele espaço para a superação de suas dificuldades. Mesmo tendo sido atendida por cinco vezes pelas Técnicas do Serviço, reconheceu a importância daquele microssistema como participante de sua rede de apoio social e afetiva, pois os processos proximais ocorridos tiveram um efeito amplo, atuando durante os intervalos dos atendimentos.

 

Considerações finais

O uso da Teoria Bioecológica nesse estudo ajudou na compreensão das relações estabelecidas pelas crianças com pessoas, objetos e ambientes, na forma como essas relações contribuíram para aumentar os resultados positivos dos participantes e na indicação de quais elementos do ambiente tiveram significado para superarem a situação de estresse vivida. O período de seis meses de acompanhamento dos participantes mostrou-se suficiente para produzir resultados positivos de desenvolvimento em ambos os participantes, indicando que a intervenção com crianças pode dar seus primeiros resultados em um curto período de tempo, desde que aliado a uma atuação competente dos técnicos e da participação da família no processo de apoio às vítimas.

Quando a criança passa pela experiência da violência sexual, os membros da família também precisam de suporte emocional para a superação do evento estressor. Esclarecer à família o papel dos serviços de enfrentamento à violência, acolher e acompanhar os familiares, juntamente com a criança, são estratégias importantes no enfrentamento à violência e seus sinais.

A atuação do psicólogo na recuperação ou desenvolvimento de habilidades sociais das vítimas é um importante fator protetivo. Habilidades sociais como ser comunicativo, ter capacidade de demonstrar afeto positivo, ser recíproco nas relações e engajar-se em atividades com outras pessoas são características pessoais que podem facilitar a manutenção e ampliação dos vínculos estabelecidos na rede de apoio social e afetiva das crianças.

O Mapa dos Cinco Campos utilizado como ferramenta de pesquisa no estudo pode ser usado também no contexto clínico para a investigação da rede de apoio social e afetiva. O conhecimento que o Mapa proporciona auxilia na escolha de estratégias para intervenção e ampliação dos agentes protetivos da rede de crianças que tenham passado pela experiência de violência sexual ou qualquer outro tipo de violência.

A importância em estudar a rede de apoio social e afetiva de crianças que passaram pela experiência de abuso sexual está em descobrir quais pessoas e quais instituições estão atuando na superação dos sinais surgidos após a violência e quais podem ser acionadas para fazer parte da rede de proteção da criança.

 

Referências

ARAÚJO, M. de F. 2002. Violência e abuso sexual na família. Psicologia em estudo, 7(2):3-11. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-73722002000200002&script=sci_arttext Acesso em: 23/04/2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722002000200002        [ Links ]

BRITO, R.C.; KOLLER, S.H. 1999. Desenvolvimento humano e redes de apoio social e afetivo. In: A.M. CARVALHO (org.), O mundo social da criança: natureza e cultura em ação. São Paulo, Casa do Psicólogo, p. 115-126.         [ Links ]

BRONFENBRENNER, U. 1993. The ecology of cognitive development: Research models and fugitive findings. In: R.H. WOZNIAK; K. FISCHER (eds.), Development in context: Acting and thinking in specific environments. Hillsdale, Erlbaum, p. 3-44.         [ Links ]

BRONFENBRENNER, U. 1996. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre, Artes Médicas, 267 p.         [ Links ]

BRONFENBRENNER, U. 1999. Environments in developmental perspective: theoretical and operational models. In: S.L. FRIEDMAN; T.D. WACHS (eds.), Measuring environments across the life span: Emerging methods and concepts. Washington, DC, American Psychological Association Press, p. 3-28. http://dx.doi.org/10.1037/10317-001        [ Links ]

BRONFENBRENNER, U.; CECI, S.J. 1994. Nature - nurture reconceptualized in developmental perspective: A bioecological model. Psychological Review, 101(4):568-586. http://dx.doi.org/10.1037/0033-295X.101.4.568        [ Links ]

BRONFENBRENNER, U.; MORRIS, P. 1998. The ecology of developmental processes. In: W. DAMON (ed.), Handbook of child psychology. New York, John Wiley & Sons, p. 993-1027.         [ Links ]

BRONFENBRENNER, U.; EVANS, G.W. 2000. Developmental Science in the 21 Century: Emerging Questions, Theoretical Models, Research Designs and Empirical Findings. Social Development, 9(1):115-125. http://dx.doi.org/10.1111/1467-9507.00114        [ Links ]

COBB, S. 1976. Social support as a moderator of life stress. Psychosomatic Medicine, 38(5):300-314. Disponível em: https://campus.fsu.edu/bbcswebdav/institution/academic/social_sciences/sociology/Reading%20Lists/Mental%20Health%20Readings/Cobb-PsychosomaticMed-1976.pdf Acesso em: 30/06/2014. http://dx.doi.org/10.1097/00006842-197609000-00003        [ Links ]

COUTO, M.C.P. de P. 2007. Fatores de risco e proteção na promoção de resiliência no envelhecimento. Porto Alegre, RS. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 48 p.

HABIGZANG, L.F.; AZEVEDO, G.A.; KOLLER, S.H.; MACHADO, P.C. 2006. Fatores de risco e proteção na rede de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19(3):379-386. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722006000300006 Acesso em: 17/03/2014. http://dx.doi.org/10.1590/s0102-79722006000300006        [ Links ]

HABIGZANG, L.F.; RAMOS, M.S.; KOLLER, S.H. 2011. A revelação de abuso sexual: As medidas adotadas pela rede de apoio. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 27(4):467-473. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ptp/v27n4/10.pdf. Acesso em: 11/01/2014. http://dx.doi.org/10.1590/s0102-37722011000400010        [ Links ]

HOHENDORFF, J.V.; HABIGZANG, F.F.; KOLLER, S.H. 2012. Violência sexual contra meninos: dados epidemiológicos, características e consequências. Psicologia USP, 23(2):395-415. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642012000200008&script=sci_arttext Acesso em: 21/03/2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642012005000007        [ Links ]

JOHNSON, C.F. 2004. Child Sexual Abuse. The Lancet, 364(9432):462-469. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(04)16771-8        [ Links ]

LORDELLO, S.R.; COSTA, F.C. 2014. Gestação decorrente de violência sexual: um estudo de caso à luz do modelo bioecológico. Contextos Clínicos, 7(1):94-104. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/contextosclinicos/article/view/ctc.2014.71.09/4123 Acesso em: 21/09/2014. http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2014.71.09        [ Links ]

MONTEIRO, C.F. de S.; TELES, D.C.B.S.; CASTRO, K.L.; VASCONCELOS, N.S.V. de; MAGALHÃES, R. de L.B.; DEUS, M.C.B.R. de. 2008. Violência sexual contra criança no meio intrafamiliar atendidos no SAMVVIS, Teresina, PI . Revista Brasileira de Enfermagem, 61(4):459-463. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672008000400010 Acesso em: 22/03/2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71672008000400010        [ Links ]

NETO, O.C. 2002. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: M.C. de S. MINAYO (org.), Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, Vozes, p. 51-66.         [ Links ]

OLSEN, W. 2015. Coleta de dados: debates e métodos fundamentais em pesquisa social. Porto Alegre, Penso, 232 p.         [ Links ]

PIETRO, T.; YUNES, A.; MATTAR, M.A. 2008. Considerações jurídicas e psicossociais sobre o abuso sexual contra crianças e adolescentes. Âmbito Jurídico, XI(58). Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4021. Acesso em: 22/03/2014.         [ Links ]

SAMUELSSON, M.; THERNLUND, G.; RINGSTRÖM, J. 1996. Using the five field map to describe the social network of children: A metodological study. International Journal of Behavioral Development, 19(2):327-345.         [ Links ]

SANDERSON, C. 2005. Abuso sexual em crianças - fortalecendo pais e professores para proteger crianças contra abusos sexuais e pedofilia. São Paulo, M. Books, 345 p.         [ Links ]

SIQUEIRA, A. C. 2006. Instituições de abrigo, família e redes de apoio social e afetivo em transições ecológicas na adolescência. Porto Alegre, RS. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 134 p.

SHERBOURNE, C.D.; STEWART, A. L. 1991. The MOS social support survey. Social Science & Medicine, 32(6):705-714. http://cmcd.sph.umich.edu/assets/files/Repository/Women%20Take%20Pride/The%20MOS%20Social%20Support%20Survey.pdf Acesso em: 13/06/2014. http://dx.doi.org/10.1016/0277-9536(91)90150-B        [ Links ]

TUDGE, J. 2008. A teoria de Urie Bronfenbrenner: Uma teoria contextualista? In: L. MOREIRA; A.M.A. CARVALHO (eds.), Família e educação: olhares da psicologia. São Paulo, SP: Paulinas, p. 211-231.

YIN, R.K. 2015. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre, Bookman, 320 p.         [ Links ]

 

 

Submetido: 13/04/2015
Aceito: 02/09/2015

 

 

Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Attribution License (CC-BY 3.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons