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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.3 no.2 Juiz de fora dez. 2010

 

ARTIGOS

 

Pesquisa-intervenção em um CAPSad - Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas1

 

Research-intervention in a CAPSad - Psychosocial Care Center for Alcohol and Drugs

 

 

Ricardo Wagner Machado Silveira2; Diogo Rezende; Willian Araújo Moura

Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo irá traçar um processo de pesquisa-intervenção realizado ao longo de um ano em um Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPSad). Esta pesquisa se deu a partir de práticas baseadas nos conceitos que envolvem a Análise Institucional, preconizando, assim, um trabalho de análise da complexa rede de relações de saber e poder presentes em tal serviço, bem como da dinâmica institucional que faz circular ali forças produtivas, ou instituintes, além de forças que tendem a perpetuarem-se ao que está instituído. Utilizamos o método de pesquisaintervenção por ser um método de pesquisa que indissocia o pesquisar do intervir, fazendo com que o percurso desta pesquisa se trace na processualidade e complexidade dos acontecimentos investigados. Nesse processo investigativo-interventivo, problematizou-se a clínica da Redução de Danos por se constituir como uma diretriz das políticas públicas nessa área.

Palavras-chave: Análise Institucional, Pesquisa-intervenção, Redução de Danos


ABSTRACT

This article will outline a process of research-intervention carried out over a year in a Psychosocial Care Center for Alcohol and Drugs (CAPSad). This research took place on practices based on concepts that involve the Institutional Analysis, thus advocating a job analysis of the complex network of knowledge and power relations present in such service, as well as of the institutional dynamics which causes productive or instituting forces to circulate there, in addition to forces which tend to perpetuate themselves to what is established. We have used the method of research-intervention, for it is a method of research which dissociates the act of researching from the act of intervening, causing the route of this research to be traced in the processuality and complexity of the events investigated. In this investigative-intervening process, the clinic of the Damage Reduction became an issue, for it is a guideline for the public policies in this area.

Key words: Institutional Analysis, Research-Intervention, Damage Reduction


 

 

Atualmente, percebe-se grande crescimento de demandas quanto à saúde das pessoas que abusam ou são dependentes de álcool e/ou drogas, como mostram algumas pesquisas epidemiológicas (Carlini & Carlini-Cotrin, 1991; Carlini, Galduróz, Noto, & Nappo, 1997, 2002; Noto & Carlini, 1995; Almeida et al., 1992), sem mencionar que, como enfatizam Silveira e Moreira (2006), a questão do uso e abuso de substâncias psicoativas tem estado bastante em voga na mídia, em campanhas eleitorais e em estratégias governamentais. Historicamente, o uso dessas substâncias na sociedade tem significado e sido tratado como pecado, crime e, mais recentemente, como doença, culminando numa guerra às drogas.

Diante disso, consideramos necessário ampliar os focos de análise e significação, abarcando, na medida do possível, os contextos complexos em que as histórias de vidas acontecem. Assim sendo:

Temos a urgência da tolerância e da necessidade de mudança de paradigma: continuar excluindo o dependente que não consegue ou não deseja a sobriedade colocaria todos em risco. As estratégias pragmáticas da Redução de Danos começam a desmanchar as trincheiras da ineficaz 'guerra às drogas'. Abre-se espaço para se falar de serviços 'amigáveis' ao dependente. Finalmente, acenamos para o grande desafio: entender o outro, o diferente, e incluí-lo. A moderação frente ao objeto de desejo passa a ser uma alternativa possível (Silveira & Moreira, 2006, p. 4).

Surge a Redução de Danos (RD) como política e prática de saúde pública fundamentada na ideia de minorar o efeito deletério do consumo de drogas por meio de diversos procedimentos como a distribuição de seringas entre usuários de drogas injetáveis e a substituição de drogas mais disfuncionais do ponto de vista biopsicossocial para as menos disfuncionais. Contudo, mais do que isso, RD é uma mudança na relação do sujeito com a droga a partir da autonomia do mesmo e da não-priorização da abstinência para que o tratamento se realize, "[...] é tratar as pessoas não pelo que elas têm ou pelo que aparentam, mas pelo que elas são como seres singulares" (Lancetti, 2006, p. 61).

A RD é uma das políticas atuais privilegiadas pelo Governo Federal para o tratamento do abuso e dependência de álcool e outras drogas, juntamente com a implantação da rede substitutiva de atenção à saúde mental, que encontra nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) um de seus mais importantes dispositivos.

O Ministério da Saúde (Brasil, 2004) apresenta como princípios e diretrizes da política de Saúde Mental a desinstitucionalização e a reorientação do modelo assistencial com vistas à humanização no tratamento de portadores de sofrimento mental, privilegiando os casos mais graves, como neuróticos graves, psicóticos, egressos de internações psiquiátricas, os que fazem abuso e/ou sofrem de dependência de álcool e outras drogas. Essa política vem se efetivando por meio da reestruturação dos serviços de saúde mental com a implantação de novas tecnologias de cuidado, a reformulação das leis, a construção de um lugar para a loucura, o resgate da cidadania do usuário do SUS, a redução gradual dos leitos psiquiátricos e a ampliação da rede substitutiva que garanta o cuidado em saúde mental.

Os CAPS são estabelecimentos que visam a acolher os portadores de sofrimento mental, pretendendo fortalecer os laços sociais do usuário e integrá-lo ao território em que vive, além de prestar atendimentos médico e psicológico. Nessa perspectiva, ante o crescimento de demandas quanto à saúde das pessoas que abusam ou são dependentes de álcool e/ou outras drogas, o Ministério da Saúde, em 2002, criou o CAPSad, que se tornou serviço de referência na rede de saúde mental para implantação das políticas de promoção da saúde, prevenção e tratamento dos pacientes com abuso/dependência de álcool e drogas (Brasil, 2004).

O CAPSad deve funcionar como instância de planejamento e implantação de múltiplas estratégias de redução de riscos e danos causados pelo abuso e dependência de substâncias psicoativas, propiciando o fortalecimento de fatores de proteção da saúde, prevenção e tratamento por meio da intervenção terapêutica eficiente, da inserção comunitária e da colaboração de outros segmentos sociais.

Os CAPSad devem oferecer atendimento diário a pacientes que fazem um uso prejudicial de álcool e outras drogas, permitindo o planejamento terapêutico dentro de uma perspectiva individualizada de evolução contínua. Possibilita ainda intervenções precoces, limitando o estigma associado ao tratamento. Assim, a rede proposta se baseia nesses serviços comunitários, apoiados por leitos psiquiátricos em hospital geral e outras práticas de atenção comunitária (ex.: internação domiciliar, inserção comunitária de serviços), de acordo com as necessidades da população-alvo dos trabalhos. Os CAPSad desenvolvem uma gama de atividades que vão desde o atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de orientação, entre outros) até atendimentos em grupo ou oficinas terapêuticas e visitas domiciliares. Também devem oferecer condições para o repouso, bem como para a desintoxicação ambulatorial de pacientes que necessitem desse tipo de cuidados e que não demandem por atenção clínica hospitalar (Brasil, 2004, p. 24).

Tendo como um de seus compromissos fundamentais as diretrizes de políticas públicas para a saúde mental citada, realizamos a pesquisa "Análise Institucional do Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (CAPSad) da Rede de Atenção à Saúde Mental", cujo objetivo inicial era lidar com os impasses e problemas de gestão de processos técnicos, organizacionais e do trabalho em equipe, que têm dificultado a realização da missão desse serviço de saúde mental na rede pública de saúde da cidade, propiciando espaços de reflexão, gerando novos saberes e práticas, tendo como um de seus resultados o presente artigo.

Temos a Análise Institucional como um de nossos principais intercessores, uma referência teórico-metodológica que tem nos ajudado a problematizar as histórias contadas e não-contadas no cotidiano desse serviço, tendo em vista a explicitação dos não-ditos e a criação de possibilidades de maior protagonismo de todos os atores que compõem essa complexa realidade analisada. A intenção é que a análise, gestão e avaliação contínua dos processos seja sempre coletiva, potencializando a criação de saberes e práticas inovadoras e heterogêneas.

 

Sobre a Análise Institucional

A Análise Institucional é uma das correntes do Movimento Institucionalista, um movimento transdisciplinar que rejeita padrões e verdades préconcebidas, luta contra toda forma de discriminação, exploração e dominação social, utiliza conceitos e instrumentos desenvolvidos para a análise e intervenção nas instituições, visando à autoanálise e autogestão dos coletivos envolvidos (Baremblitt, 2002; L'abbate, 2003; Pereira & Penzim, 2007).

As instituições se caracterizam por serem um sistema de normas, que incluem os modos como os indivíduos concordam, ou não, em aderir a essas normas e, assim, as relações sociais reais e as normas sociais também fazem parte do conceito de instituição. A instituição não atua a partir do exterior para regular a vida de grupos ou condutas dos indivíduos, mas "atravessa todos os níveis dos conjuntos humanos e faz parte da estrutura simbólica do grupo, do indivíduo" (Lourau, 2004b, p. 71).

O CAPSad pode ser visto como um estabelecimento, lugar onde se "materializam" as instituições, as normas e regras que se concretizam por meio de dispositivos técnicos, instalações, procedimentos e redes comunicacionais que enunciam a composição de forças instituintes e instituídas em jogo num dado contexto ou processo a ser analisado. O instituinte refere-se às forças de contestação e à capacidade de renovação e transformação institucional. Já na dimensão instituída, podemos perceber a ordem estabelecida, os valores e os modos de representação e de organização considerados normais. O instituinte e o instituído constituem os dois polos de forças que dinamizam a vida institucional das organizações, estabelecimentos e equipamentos sociais (Lourau, 2004a, 2004b, 2004c; Baremblitt, 2002).

Para iniciar uma Análise Institucional, é fundamental compreender institucionalmente a dinâmica do estabelecimento. No nosso caso, trata-se de compreender melhor o pedido de análise e intervenção que nos foi feito pela equipe do CAPSad, em que condições esse pedido se produziu, quais os aspectos conscientes, manifestos e voluntários desse pedido, quais os aspectos inconscientes, latentes ou não-ditos. É preciso, então, fazer uma análise da produção da demanda.

Enquanto analistas institucionais, temos a necessidade de fazer uma análise contínua de nossa implicação, de nosso compromisso sócioeconômico-político-libidinal, com a tarefa investigativo-interventiva a que nos propomos realizar. A título de esclarecimento, nosso maior intuito neste trabalho não é analisar com a devida profundidade o processo implicacional ocorrido - consideramos essa uma empreitada que merece a produção de um artigo à parte. Nossa maior intenção é apresentar de forma clara e concisa todo o processo de investigação-intervenção realizado, com destaque para alguns efeitos produzidos pelos analisadores: roda de autoanálise e observação participante.

O pesquisador/analista institucional deve atentar-se e procurar identificar os chamados analisadores, fenômenos produzidos espontaneamente pela própria dinâmica institucional ou construídos pelos pesquisadores, com finalidade investigativo-interventiva, por serem eles constituídos de uma materialidade expressiva heterogênea, que manifestam e denunciam aspectos institucionais conflitantes, reprimidos, inconscientes, ao mesmo tempo em que contêm os elementos para dar início ao processo de seu próprio esclarecimento. Segundo Lourau (2004b):

[...] é o analisador que realiza a análise [...] chama-se analisador, em uma instituição de cura, aos lugares onde se exerce a palavra, bem como a certos dispositivos que provocam a revelação do que estava escondido (p. 69-70).

O papel do pesquisador/analista institucional é criar condições para que os analisadores possam evidenciar-se, sendo assumidos e autoanalisados por seus protagonistas. Não cabe ao analista institucional o papel de explicar ou interpretar materiais de análise, e, sim, trazer à tona os elementos que compõem um conjunto e transformar a palavra terapêutica em palavra política, liberada e liberadora.

Baremblitt (2002) diz que as diferentes escolas do Movimento Instituinte se propõem a apoiar e irromper nos coletivos processos de autoanálise e autogestão, os dois objetivos básicos do Institucionalismo. A autoanálise seria um processo coletivo em que acontece a produção e apropriação de saberes acerca de si mesmo, saberes muitas vezes desqualificados como ignorantes pelos saberes científicos instituídos. A autogestão é simultânea e articulada com o processo de autoanálise, uma vez que, enquanto se autoanalisa, o coletivo se auto-organiza e se autogere, isto é:

a autogestão visa participação e a transformação da comunidade que se autodirige, se autocritica (autoanálise) e estabelece diretrizes, pautas e leis para o êxito de seu empreendimento (Pereira, 2001, p. 136).

Os processos de autoanálise e autogestão, ao mesmo tempo em que são os objetivos principais das intervenções institucionalistas, são também os próprios meios para realizá-las. A nosso ver, a autoanálise e a autogestão como operadoras de uma análise institucional têm grande coerência e ressonância com os princípios de coresponsabilização pelos processos de saúdedoença-cuidado defendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), cujos atores sociais envolvidos são protagonistas de práticas inovadoras ou conservadoras de uma política de promoção, prevenção, reabilitação e reinserção social dos usuários da rede de atenção em saúde mental.

Fazer a análise institucional de um serviço como o CAPSad implica uma análise das instituições que atravessam e influenciam a constituição dos saberes e práticas produzidas por esse estabelecimento dentro de um contexto social e historicamente determinado. Por isso, trata-se de um esforço em mapear a relação de forças instituintes e instituídas que foram construindo historicamente o serviço e que configuram o campo de análise, o cotidiano de práticas de gestão, organização, planejamento, execução e avaliação das atividades realizadas pelo CAPSad na atualidade.

Para tanto, façamos um sucinto resgate de fatos marcantes na história da implantação e manutenção do estabelecimento em análise. Em 2005, foi criado o CAPSad II pela Secretaria Municipal de Saúde da cidade e, durante os primeiros três anos, o serviço privilegiava a lógica da abstinência com pouca adesão dos usuários ao serviço, com uma coordenação definida por critérios mais políticos que técnicos e uma equipe terapêutica despreparada para o trabalho com os usuários de drogas e suas famílias.

No final de 2008, com a demanda crescente de atendimento na área, o serviço enfrentava grandes dificuldades quanto à integração da equipe e inoperância do serviço, o que culminou numa intervenção feita pela coordenação de saúde mental local que visava à reestruturação do serviço balizada pela política de Redução de Danos. Definiu-se uma nova coordenação, eleita pela própria equipe de profissionais, e o processo de reestruturação do projeto clínico-institucional do serviço ganhou força. Nessa mesma época, várias comunidades terapêuticas do município foram fiscalizadas e fechadas a partir de denúncias feitas ao Ministério Público de maus-tratos e cárcere privado de usuários que procuravam esses estabelecimentos.

A partir desse processo de fiscalização e intervenção nas comunidades terapêuticas, foi se constituindo uma fecunda aproximação entre os gestores dos serviços de saúde mental local e as instâncias jurídicas e legislativas municipais que levaram a um debate mais ampliado sobre a política municipal de prevenção e tratamento ao uso abusivo e à dependência de álcool e outras drogas.

Como era de se esperar, a demanda de atendimento e de acolhimento de crises no CASPSad aumentou de forma abrupta e significativa. Foi nesse contexto profícuo de crise e mudança que a coordenadora do CAPSad nos convidou a realizar a pesquisa-intervenção relatada neste trabalho, que teve início no primeiro semestre de 2009 e continua em curso.

 

Sobre a metodologia socioanalítica

A Análise Institucional pressupõe a participação de todos os atores sociais envolvidos de forma autoanalítica e autogestiva, desconsiderando padrões, caminhos prontos e verdades pré-concebidas:

A análise institucional implica um descentramento radical da enunciação científica. Mas, para consegui-lo, não basta dar a palavra aos sujeitos envolvidos - às vezes uma questão formal, inclusive jesuítica. Além disso, é necessário criar as condições de um exercício total, paroxístico mesmo, desta enunciação. A ciência nada tem a ver com medidas justas e compromissos de bomtom. Romper, de fato, as barreiras do saber vigente, do poder dominante, não é fácil [...] É todo um novo espírito científico que precisa ser refeito (Guattari, 1977, citado por Lourau, 2004b, p. 66).

Para tanto, foi necessária a escolha de uma metodologia de pesquisa coerente com tais pressupostos teóricos e políticos e que pudesse responder à altura às demandas presentes no campo de intervenção-investigação. Para tanto, elegemos o método de pesquisa-intervenção por considerá-lo mais coerente com nossas intenções, pela riqueza em possibilidades de efetivação prática e pela produção de dados.

O método de pesquisa-intervenção se caracteriza por ser uma forma de realizar pesquisa que parte de um modo de ação não-prescritivo, sem regras nem objetivos previamente formulados, sem que com isso se tenha aqui uma ação sem direção. O processo investigativo "[...] se faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre o objeto da pesquisa" (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2009, p. 17).

Dessa forma, a pesquisa se faz de maneira indissociada da intervenção, de modo que a própria prática de pesquisar trará em si práticas interventivas que irão agir diretamente conectadas com todas as forças em movimento na instituição, para que o percurso desta pesquisa se trace na processualidade e complexidade dos acontecimentos investigados.

O processo investigativo-interventivo caracterizou-se por pesquisas bibliográficas e documentais, pela busca e levantamento dos analisadores históricos de tal estabelecimento, assim como por uma inserção direta na rotina do serviço mediante dois dispositivos analisadores construídos: as observações participantes da rotina de trabalho ao longo da semana e a constituição de reuniões quinzenais com a equipe de trabalhadores do CAPSad (chamadas "rodas de autoanálise e autogestão"), visando a um melhor conhecimento da história e da estrutura do CAPSad, de seus protagonistas e suas relações, das forças instituintes e instituídas em jogo naquele contexto.

Para a análise da implicação dos pesquisadores, realizávamos sistematicamente nossa roda de autoanálise com a finalidade de aprofundamento do estudo e domínio dos referenciais teórico-técnicos que fundamentam a pesquisa, para a análise dos dados e da implicação, do planejamento de ações e avaliação das mesmas em cada etapa do processo.

Na fase exploratória do campo de análise e intervenção, estabelecemos um primeiro levantamento dos problemas prioritários, identificando expectativas, apoios e resistências, convergências e divergências de posições no coletivo analisado como parte do que é tradicionalmente chamado de diagnóstico. Aqui, ocorreu prioritariamente a análise da produção da demanda, isto é, quais seriam as razões explícitas e implícitas que levaram a ocorrência da análise institucional do CAPSad, lembrando que uma demanda implícita refere-se a tudo aquilo que o grupo solicitante não consegue enxergar, seja por uma questão de recalcamento, repressão ou desconhecimento.

Vale dizer que, na análise da demanda, um dos aspectos mais relevantes foi a análise da oferta de nossos serviços, o que implicava questionar: quais os motivos implícitos e explícitos que levaram à coordenadora do CAPSad e sua equipe a nos demandar uma análise institucional? Quais as fantasias e expectativas que se estabeleceram em torno de nosso trabalho enquanto analistas institucionais? Enfim, em que medida a demanda foi influenciada pela oferta de serviços de um grupo de pesquisadores e pretensos analistas institucionais?

A análise da implicação passa pela análise da demanda e da oferta numa tentativa de desconstrução das ilusões da neutralidade analítica. De qualquer modo, é sempre o analisador quem dirige a análise. E o importante para o investigador é tudo aquilo que lhe é dado por sua posição nas relações institucionais.

Desde o inicio e durante algum tempo, fomos investidos de várias expectativas salvacionistas por parte da equipe que compunha a roda de autoanálise. Por várias vezes, escapávamos desse lugar, tentando desviar a atenção da roda para ela mesma e suas potencialidades de resposta a qualquer das demandas em pauta. Outras vezes, arriscávamos uma atitude mais diretiva "correspondendo" às expectativas salvacionistas, pois avaliávamos que, naquele momento, essa era a melhor saída para os impasses que se impunham, sempre tendo em vista a busca da autoanálise e autogestão do coletivo. Sempre foi de fundamental importância o exercício sistemático de análise das implicações (feito pela equipe de pesquisadores) do papel que desempenhávamos em cada acontecimento vivido e seus efeitos no contexto de análise e intervenção.

Partindo do princípio de que os grupos deveriam se tornar protagonistas de suas historias por meio de sua autoanálise, criamos dois dispositivos analisadores: a roda de autoanálise e as observações participantes, ferramentas que podem gerar acontecimentos e devires, que podem responder a uma dada urgência, que, em última instância, estão a serviço da produção de novos modos de ser e se relacionar enquanto coletivo organizado em busca de novas formas de ser equipe, de cuidar e ser cuidado, de fazer uma clínica ampliada, engajada politicamente na luta pela cidadania e reinserção social dos usuários de drogas.

No tortuoso acontecer das rodas de autoanálise e autogestão, num movimento descontínuo que oscilava entre a autogestão criativa e instituinte e a sujeição conservadora e instituída, a equipe foi tecendo outro importante analisador na/da sua rotina, as assembleias, em que todos os atores que fazem parte do serviço tinham, ou pelo menos deveriam ter, o poder da voz e do voto.

Ao final de cada uma das observações participantes e das rodas de autoanálise com a equipe do CAPSad, era feito o registro por escrito de tudo o que havia acontecido para posterior análise dos dados produzidos em rodas da equipe de pesquisadores.

Na medida em que começou a funcionar, a roda de autoanálise e autogestão foi gradativamente propiciando a explicitação dos conflitos, tornando-se manifesto o jogo de forças em embate, os desejos, interesses e fantasmas dos segmentos organizacionais, fazendo com que a instituição mostrasse suas contradições, seus limites e possibilidades (Baremblitt, 2002; L'abbate, 2003).

 

Mapeando o campo de forças

Um dos resultados esperado foi que a roda se tornasse uma atividade incorporada na rotina do serviço e que pudesse funcionar efetivamente como instância de autoanálise das práticas ali realizadas, operando como autogestora de novas práticas e saberes, alimentando circuitos de troca, mediando aprendizagens recíprocas e/ou associando competências. É por estarem em roda que os atores sociais envolvidos criam possibilidades à realidade vivida no cotidiano.

Durante a realização da pesquisa-intervenção, apareceram nas rodas realizadas junto à equipe do CAPSad várias queixas recorrentes: dificuldades de comunicação na equipe e entre turnos, a insuficiência de recursos para fazer funcionar uma potência terapêutica devido à falta de capacitação profissional e de reconhecimento do papel específico de cada um, a falta de integração e solidariedade dos membros da equipe no manejo dos casos, a burocratização das práticas e da rotina do serviço, a falta de recursos materiais básicos para o funcionamento do serviço e a desvalorização do profissional de saúde sempre muito mal remunerado e desmotivado para o trabalho. Além disso, a lida diária com casos difíceis e complexos gera na equipe um sentimento de insuficiência e fracasso terapêutico quando a meta restringe-se à abstinência.

A nosso ver, boa parte da equipe tinha grande dificuldade em aderir à implantação da política de Redução de Danos, que opera na contramão de práticas instituídas de exclusão "asséptica" dos que não aderem à lógica da abstinência e de terror e repressão ao uso de drogas, com a criminalização e preconceito ao dependente de álcool e outras drogas.

É realmente difícil deslocar-se do lugar comum em que prevalece uma clínica pautada exclusivamente pela lógica da abstinência e do corte abrupto do uso da droga, para ascender a uma clínica que irá trabalhar o mais próximo possível da pessoa que usa a droga, que não consegue ou não quer abster-se dela e, a partir desse lugar, ir construindo gradativamente, delicadamente, um vínculo, um lugar de negociação e terapêutica exequível, em que o usuário possa mobilizar seu lado saudável e passar a cuidar, mesmo que minimamente, da própria vida. Trata-se de uma clínica que não se conforma com os ditos "casos perdidos", que não desiste nunca, que não reduz o paciente à sua dependência, mas consegue vislumbrar um projeto de vida, de autonomia e de liberdade quando o que se apresenta aos nossos olhos parece ser um projeto hedonista e mortífero.

O que acontecia no CAPSad era uma dificuldade da equipe em lidar com a ideia de uma clínica que visa à construção da liberdade do paciente, que é muitas vezes confundida com uma espécie de libertinagem e conivência com a dependência de álcool e outras drogas. Questões que surgem em algumas rodas de autoanálise estão ligadas a isso. Vários membros da equipe se perguntam sobre os parâmetros dessa liberdade. Até que ponto se pode lidar com o paciente, colocando limites com assertividade sem que isso se torne controle e disciplina despótica.

Os terapeutas parecem estar em busca de protocolos objetivos, supostamente seguros e resolutivos, como forma de se esquivarem do desafio de construção processual de uma clínica que se fortalece a partir da construção de redes solidárias e de cuidado que são gestados, muitas das vezes, em contextos inóspitos onde a precariedade das condições de vida e o risco iminente da recaída fazem parte do cotidiano vivido.

É claramente perceptível na equipe a dificuldade em saber acolher o paciente resistente ao tratamento, em crise, que não consegue parar de usar drogas e alcançar a almejada abstinência. Até que ponto acolher? Qual o limite entre continência e contenção? Essas são questões sempre presentes e, assim, o acolhimento se torna tema fundamental a ser problematizado pela equipe no dia a dia: como devemos agir em relação ao portão de entrada do serviço? O paciente pode sair quando quiser, se drogar e depois voltar quando lhe convier?

É relevante dizer que a roda de autoanálise acabou por se tornar um lugar de acolhimento da equipe e suas angústias, permitindo o fluxo livre de conversações e afetos, lugar que possibilita o acolher e o ser acolhido, um analisador privilegiado das forças instituídas e instituintes que se atracam em movimentos dinâmicos e complexos, produtores de sofrimento e realização, de avanços e retrocessos, à busca de uma prática clínica mais resolutiva para todos os envolvidos. Porém, ainda é perceptível que há situações ou discussões em que alguns dos membros da equipe não conseguem se expressar livremente. Por exemplo, quando se está tratando das relações interpessoais no grupo ou das dificuldades e limitações profissionais de alguns no trabalho.

Já em relação ao acolhimento aos usuários do serviço, pode-se dizer que boa parte das dificuldades e angústias levantadas por alguns profissionais durante as rodas dizia respeito ao lidar com casos em que o usuário chega para o acolhimento sob o efeito das drogas ou quando há fortes suspeitas de que ele está portando drogas, ou então quando a suspeita é de que esteja usando drogas no CAPSad. Quando os profissionais se deparam com a crise, há dificuldades para acolher, prevalece uma atitude instituída pautada pela lógica do internamento e o argumento é que aqueles usuários não se adequam à rotina de tratamento, como se atender à crise não fosse papel do CAPSad!

De acordo com Silveira e Moreira (2005), a instituição como um todo pode ter um potencial terapêutico, e qualquer pretexto que promova produção de subjetividade pode gerar acolhimento. Mas, para isso, é necessário compreender como ocorrem negociações do usuário consigo mesmo e com a instituição na construção de uma relação de cuidado.

As observações e rodas nos mostram as dificuldades da equipe do CAPSad em viabilizar esse potencial terapêutico em função de uma rigidez pessoal e institucional que busca obsessivamente pautas, regras e protocolos salvacionistas para lidar com as dificuldades enfrentadas. Tal rigidez parece se sustentar numa lógica excludente e preconceituosa em relação ao usuário de drogas, muitas vezes travestida de um discurso cientificista que tenta legitimar a abstinência como terapêutica exclusiva a ser adotada nessa clínica.

A potência terapêutica da Redução de Danos favorece negociações que mexem com a rotina do serviço em prol da construção de projetos terapêuticos singulares e eficazes para lidar com a crise daquele que demanda ajuda, mesmo sem saber. Esse movimento de forças instituintes e solidárias convoca/incita ações terapêuticas coletivas que desafiam o poder instituído dos especialismos, dos profissionalismos e dos valores sociais instituídos, tipicamente segregadores e excludentes, que atravessam a problemática suscitada pela crise e pelo cuidado ao usuário de drogas.

Quando se coloca em xeque o instituído moralizante do tratamento pautado pelos princípios da abstinência, fica claro como o poder se faz presente nesse serviço e atravessa de formas múltiplas a trama social. Esse atravessamento se evidencia por meio de saberes e/ou práticas legitimados pelos ditos experts, profissionais que atuam sob o amparo de discursos científicos hegemônicos que destituem e marginalizam tudo e todos que escapam aos seus ditames.

A abstinência funciona como dispositivo de controle e exercício de poder científico, tendo como estofo a moral dominante que concebe as drogas como grave ameaça à ordem social por sua potência de mobilizar o prazer, a indolência, a perda do controle da razão, além de ser a moeda de troca do mercado "negro" da marginalidade social.

Historicamente, o usuário de drogas era visto como alguém que tem problemas de caráter, um marginal, um criminoso. Essa imagem social explicitamente estigmatizante foi gradativamente substituída por uma concepção de dependência de drogas como doença mental e o usuário de drogas como doente, num processo de patologização que passa a ser o mecanismo de controle privilegiado e supostamente destituído de qualquer referência moral para tratar com toda a neutralidade asséptica da ciência psicológica e psiquiátrica os usuários de drogas.

É nesse jogo excludente e patologizante que se considera a abstinência o único caminho em direção à saúde que, por vezes, a equipe do CAPSad, mesmo sem perceber, é capturada e se vê em dificuldades para produzir novas práticas e novos encontros a partir de forças instituintes inspiradas pela política da Redução de Danos (Deleuze & Foucault, 1979; Baremblitt, 2002).

Essa dificuldade da equipe de construir novas ferramentas terapêuticas, como a Redução de Danos para acolher os casos mais difíceis, denuncia o despreparo pessoal e profissional de alguns de seus membros, o que acaba por potencializar os graus de insegurança e ansiedade institucionais.

Esse despreparo foi percebido particularmente nas observações feitas pelos pesquisadores dentro da rotina de trabalho, principalmente quando se observa a coordenação de oficinas terapêuticas por parte de alguns profissionais. Nessas situações de observação participante, o profissional fica exposto, exercendo uma função ativa como coordenador de um grupo. É de extrema importância que ele tenha uma preparo profissional para exercer essa função, ao mesmo tempo acolhedora, assertiva, mobilizadora de laços afetivos e solidários, produtora de aprendizagens mútuas e de cuidado consigo e com o outro.

Em contrapartida, o que se nota é que alguns profissionais adotam uma postura rígida, disciplinadora, preconceituosa, que produz distanciamento e resistência por parte de alguns pacientes. Outras vezes, esses mesmos profissionais agem como líderes laissez-faire, omissos e negligentes em relação ao que se passa na oficina, o que acaba por provocar desinteresse, desamparo e até abandono do tratamento por parte de alguns dos pacientes.

Além disso, pudemos presenciar coordenadores de grupo interpretando como pessoais ações e reações de pacientes que deveriam ser manejadas com vistas ao fortalecimento do vínculo e do trabalho terapêutico naquele contexto. Por vezes, o que vimos foram reações intempestivas e iatrogênicas por parte desses terapeutas despreparados. Também observamos oficinas terapêuticas improdutivas, desmotivadoras, nas quais imperavam um clima de tédio e a sensação de que se fazia algo somente para driblar o ócio, para que o tempo pudesse passar mais rápido.

Trata-se de uma grave situação que reforça a lógica manicomial num serviço que deveria ser essencialmente antimanicomial, particularmente nas oficinas terapêuticas, ferramentas fundamentais do processo de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial defendido pela Reforma Psiquiátrica no Brasil.

As oficinas se sustentam na possibilidade de representarem dispositivos que sejam catalisadores da produção psíquica dos sujeitos envolvidos, facilitando o trânsito social deles na família, na cultura, bem como sua inserção ou reinserção no trabalho produtivo (Cedraz & Dimenstein, 2005, p. 307).

Como já dissemos, um grande desafio enfrentado pelo CAPSad, gerador de um intenso processo de mudança da rotina de trabalho, foi a "crise que veio de fora", da intervenção judicial e do fechamento de comunidades terapêuticas da cidade que foram denunciadas por maus-tratos, irregularidades administrativas e precariedade de recursos materiais e humanos para seu funcionamento.

A partir de então, a crise na equipe se explicitou de forma contundente nas rodas de autoanálise, pois, com o aumento da demanda e a sobrecarga de trabalho, que já era uma queixa presente, se intensificaram as queixas relacionadas com a precariedade do trabalho em que faltam recursos humanos e materiais e políticas de qualificação profissional para realizar um trabalho clínico que gera extremas dificuldades de manejo, bem como salários defasados.

A roda de autoanálise novamente funcionou como um dispositivo potente, como espaço de acolhimento da equipe, permitindo aos profissionais serem os protagonistas das reflexões de seus próprios problemas e potencialidades. Por um lado, fortaleceu-se o trabalho em equipe pela autoanálise de suas fragilidades para lidar com as demandas de crise, inclusive de seus riscos de desmantelamento enquanto equipe e, por outro lado, propiciou-se a autogestão de rotinas e estratégias inovadoras para lidar eficazmente com esse momento crítico por que passou o serviço.

Apesar da capacidade de enfrentamento dessa crise, a equipe oscilava. Por vezes, o movimento era de paralisia, numa atitude excessivamente reflexiva, de negação e racionalização, funcionando como mecanismos de defesa em relação ao risco de se deparar com suas dificuldades e insuficiências e entrar em crise generalizada, fracassando na resposta eficaz às demandas emergentes.

A crise que veio "de fora" passou a funcionar como um importante analisador espontâneo que potencializa os processos autoanalíticos e autogestivos. Com a finalidade de ampliar a rede de conversações e potencializar a troca de saberes e experiências com maior acesso aos não-ditos, a equipe de analistas institucionais instigou, durante as rodas com a equipe, a discussão de casos clínicos.

Muitas vezes, a equipe se deparava com suas potencialidades e/ou dificuldades quando o terapeuta de referência de um determinado caso clínico socializava importantes informações sobre o caso que deveriam estar à disposição da equipe há mais tempo ou, ao contrário, quando a equipe tinha realizado importantes intervenções ou tido acesso a dados relevantes sobre o caso e que o terapeuta de referência desconhecia. Ou seja, em consequência das limitações da rede comunicacional e da qualidade de alguns vínculos estabelecidos no cotidiano, a equipe, muitas vezes, não se dava conta das limitações e avanços dos casos atendidos e do seu próprio trabalho enquanto equipe.

Essas discussões revelavam a potência terapêutica de vários dos atores que compõem a equipe, independente de sua formação profissional, rompendo com discursos instituídos em que predominam os saberes dos ditos especialistas, com maior horizontalidade no uso da palavra e na construção de discursos e práticas terapêuticas de todos os que trabalham ali independente de que lugar institucional do qual se expressam.

São exemplos dessa democratização do discurso e do poder terapêutico o caso de uma vigilante que surpreendeu a equipe ao compartilhar informações sobre um paciente, que mudou os rumos da conversa dos especialistas sobre a equivocada ideia de crise e necessidade de internação desse paciente; ou quando essa mesma vigilante, com grande apreensão por medo de ser repreendida pelos supostos detentores do saber, arriscou dizer que estava preocupada com o paciente, por ele ter confiado nela a ponto de não somente contar que usou droga nas dependências do CAPSad, como falar de seu grande sofrimento, chegando, inclusive, a mostrar a droga para ela (nessa hora, a equipe ficou na expectativa de saber como ela reagiu), que, de forma mais uma vez surpreendentemente terapêutica, adotou uma atitude tranquila, por isso mesmo acolhedora, e, ao mesmo tempo, firme e não omissa com a situação, ao negociar e convencer o paciente a se desfazer da droga ou, pelo menos, não portá-la durante o tempo em que estivesse no CAPSad.

Algo que ficou claro no decorrer da pesquisa-intervenção foi o papel de protagonista que os usuários desempenham no serviço. Em observações participantes, pudemos perceber como os usuários tomam a palavra, reclamam, problematizam questões referentes ao dia a dia no estabelecimento, exercem um importante papel de colaboradores e co-terapeutas na manutenção de uma boa convivência, regando o jardim, trocando o lixo, acolhendo outros usuários em crise, ou seja, buscando fazer com que o CAPSad possa ser um lugar de convívio saudável.

Em determinada roda de autoanálise, propusemos a técnica da cadeira vazia e colocamos nela o paciente do CAPSad. Em seguida, pedimos que as pessoas dissessem o que quisessem ao paciente ali "presente". O silêncio foi prolongado. Posteriormente, surgiram falas esperadas, clichês como: "estamos aqui para cuidar de você", "você precisa querer se tratar", "não é fácil esse trabalho", até que nos surpreendeu a fala de uma das psicólogas que, a nosso ver, ficou muito mobilizada com a cena e em comoção disse: "você está sozinho". Essa frase pareceu catalisar e dar visibilidade/dizibilidade a algo de importante que estava acontecendo ali. A impressão que tínhamos é que usavam as palavras para preencher um vazio ou simplesmente cumprir uma tarefa proposta, para se esquivar de um silêncio inevitável e necessário para que algo de realmente importante pudesse ser dito. Parecia tratar-se de uma solidão vivida por todos e por cada um naquele momento difícil em que a equipe se via "patinando". Não conseguiam personificar o papel de cuidadores e viviam naquele momento uma espécie de crise.

Apesar de a presença efetiva do usuário na roda não ter ocorrido, vale destacar que sua voz vem sendo cada vez mais ouvida na definição dos rumos do serviço por meio das assembleias que tem acontecido no dia a dia. É importante dizer que a proposta de se fazerem assembleias nasceu em uma das rodas quando a equipe passou a reconhecer e valorizar o fato de que todos os atores inseridos no CAPSad são co-responsáveis pelo serviço e tem uma potência terapêutica que pode ser mobilizada. Não é raro ver que aquilo que é discutido e deliberado nas assembleias é importante subsídio para as análises e gestões feitas nas rodas de autoanálise, tanto que ficou acordado que, em situações de crise, por exemplo, quando um usuário faz o consumo de álcool ou de alguma droga dentro do CAPSad, a rotina seria interrompida e o acontecimento seria debatido com todos os que estivessem presentes no momento. O espaço da assembleia tornou-se, então, uma rica ferramenta em que usuários e técnicos debatem temas referentes ao convívio e ao tratamento no CAPSad, constituindo-se como importante espaço de acolhimento para todos.

Um exemplo que ilustra essa delicada possibilidade de construção coletiva da terapêutica é o caso de uma assembleia acompanhada por um dos pesquisadores em que um dos usuários do serviço coloca sua dificuldade de conviver com outros usuários que estão em crise. Ele reclama que, muitas vezes, eles causam confusões, geram brigas e que isso pode atrapalhar o tratamento dos pacientes que já estão mais estáveis, e continua dizendo que eles não respeitam ninguém, fumam em qualquer lugar, bebem lá dentro e fazem o que querem do CAPSad. Pede, então, que haja um acompanhamento mais intensivo dos que estão em crise, que eles não façam parte do convívio com os usuários estáveis e que no CAPSad tenha um lugar que seja só para os pacientes em crise. A partir dessa fala, outros dois usuários, que se reconheceram como usuários em crise, responderam de prontidão. Um deles disse de maneira enfática que "o CAPSad não é uma prisão" e, nervoso, completou, dizendo que o CAPSad é um lugar de tratamento, que todos ali estão no mesmo tratamento para álcool e outras drogas e se o serviço separasse os que estão em crise viraria uma prisão. O outro usuário diz que não aguenta mais ser sempre apontado como "o" paciente em crise, pois sempre que se discute crise há somente acusações em relação a ele, que tudo que está errado no CAPSad é culpa dele, pois "estão sempre apontando o dedo" para ele. Diz, então, que ali todos estão no mesmo tratamento e que ,se ele está em crise agora, todos ali já estiveram em crise também e, ao invés de apontarem o dedo, deviam ajudá-lo. Diz que se ele está em crise e todos começam a simplesmente acusá-lo, ele vai piorar, tendo em vista que é muito ruim se sentir perseguido.

Em meio à discussão, um terceiro usuário, recém-chegado de uma internação no Hospital Psiquiátrico, interrompe o andamento da assembleia. Ele está muito impregnado e tinha acabado de defecar pelas pernas abaixo. Diante da clara necessidade de acolhimento, justamente os dois usuários, que todos diziam estar em crise e que saíram em defesa dos que passam pela crise, se levantaram prontamente para ajudar a equipe no acolhimento, limpando o paciente sujo de fezes e o banheiro que também estava muito sujo.

Nessa cena, fica clara a urgência e importância em se considerar os usuários como co-responsáveis pela gestão, acompanhamento e avaliação do serviço, mobilizando o potencial terapêutico de todos os implicados.

Essa cena pode ser vista como um disparador de uma problematização sobre as relações de solidariedade, autonomia e protagonismo dos envolvidos na construção de uma clínica que se afirma enquanto política antimanicomial e de humanização no/do SUS.

Quando o usuário diz que "o CAPSad não é uma prisão", ele traz consigo uma fala que perpassa anos de história, uma fala de insurgência ante uma história de clausura, exclusão, marginalização, disciplinarização e despotismo contra os ditos loucos, malucos e drogados. Sua fala grita contra os manicômios que hoje assumem outras formas mais sutis e espraiadas, que persistem em várias frestas desse serviço, em várias atitudes moralistas de profissionais. Ele grita contra os manicômios mentais (Pelbart, 1992) que existem no discurso sensacionalista e excludente da mídia e nas políticas públicas de mera guerra contra as drogas.

Quando esses dois usuários acolhem um companheiro em crise não é apenas uma mera atitude altruísta de ajuda mútua. Há ali uma dura imagem que deixa claro o quanto hoje o usuário de drogas está desassistido, o quanto está desamparado, o quanto há não só um crônico despreparo profissional para o tratamento dessas pessoas, como há também um violento e marginalizante "não-lugar" desses usuários na sociedade, pois, aos olhos de um massivo e incessante discurso instituído, esse indivíduo é não só um louco, mas também um criminoso que faz o uso de substâncias que, além de insalubres, são ilícitas.

 

Implicando-se

Ao longo do processo da pesquisa-intervenção no CAPSad, buscamos não nos posicionar como atores dotados de um suposto poder do saber científico. Tentamos escapar de um discurso sustentado pelo papel de experts. Esse foi o nosso maior esforço de implicação e de análise. Ocupar esses lugares de suposto saber significaria não só nos afastarmos de nossos princípios teóricos, políticos e do método de pesquisa-intervenção, mas também definiria lugares, formataria fronteiras, separando, distanciando, enrijecendo as conexões e encontros dos pesquisadores com o coletivo. Se assim fosse o papel de promoção da co-responsabilidade entre equipe terapêutica (no seu sentido mais amplo e democrático) e pesquisadores seria prejudicado, comprometendo a processualidade autoanalítica e autogestiva que fundamenta nosso trabalho.

Nosso papel foi, então, o de atuar como facilitadores desses processos, colocando-nos como agentes implicados com os desejos, os afetos, as angústias, os medos, os desafios e as forças que circulam ali e fazem mover a dinâmica de funcionamento desse serviço em saúde mental.

Essa nossa implicação, debatíamos exaustivamente nas rodas de autoanálise da equipe de pesquisadores/analistas institucionais, que aconteciam semanalmente.

Buscamos sempre ampliar ao máximo a comunicação, o contágio e as ressonâncias entre os dispositivos/analisadores: as rodas de autoanálise do CAPSad, as observações participantes, os intercessores teórico-metodológicos e a própria roda de autoanálise dos analistas institucionais. Com isso, fomos, acima de tudo, aprendizes das várias posições que íamos habitando no decorrer deste trabalho: de facilitadores, de observadores participantes, de investigadores, de terapeutas, de testemunhas.

A partir das demandas que foram sendo mapeadas, implicamo-nos com tudo aquilo que incitava processos de diferenciação e saídas dos impasses repetitivos e desvitalizantes que se impunham ao longo do processo.

A cada inserção que fazíamos no serviço, escrevíamos um relato descritivo dos fatos ocorridos juntamente com um "extratexto" em que colocávamos em palavras as várias sensações e sentimentos que nos habitavam, por vezes de forma arrebatadora ou na delicadeza quase imperceptível dos encontros. Escrevíamos livremente tudo o que nos atravessava no momento exato da escrita e essas associações livres da escrita.

Esse processo de produção textual, eventualmente, nos surpreendia, dando passagem àquilo que escapa aos instituídos relatos científicos descritivos e que pode constituir novos sentidos para a experiência vivida, enriquecendo o processo de análise institucional em curso.

Foi dessa forma que produzimos um rico diário de bordo, um extenso material de análise que sempre nos permitiu reviver, reativar sensações e afetos vividos em nossa experiência investigativa (Lourau, 2004a, 2004c)

Assim, tornamo-nos pesquisadores, aprendendo a habitar e a nos implicar com as cenas e encontros vividos no CAPSad, com as potências e impotências de uma equipe, com a ânsia por respostas e saídas miraculosas de situações complexas e difíceis de serem enfrentadas, tanto no manejo de casos clínicos quanto na organização dos processos de trabalho.

A clínica que lida com álcool e drogas é uma clínica árdua, uma clínica que precisa encontrar estratégias para suportar e escapar, quando possível, da intensa "fissura" que sempre aparece; uma clínica que convive com esse estar "fora de si" em constante diálogo com o prazer (muitas vezes, simplesmente hedonista e destituído de qualquer produção de sentidos) obtido pelo uso da droga, uso que pode levar o usuário para uma espécie de buraco negro repleto de sofrimento e autodestruição.

Em uma das últimas rodas de autoanálise com a equipe, uma profissional da área administrativa disse: "a gente sofre, pois a gente quer que o outro fique bom, mas talvez o outro não fique bom". Essa simples e sincera frase deixa clara a angústia de se viver e ter que trabalhar com uma clínica da precariedade, do inacabamento, da insuficiência, em que não há lugar para certezas; uma clínica do devir, onde se vive o mal-estar pela falta de verdades e tecnologias absolutistas que prometem o duvidoso sucesso terapêutico medido pela capacidade ou não de abstinência. Apesar disso, e talvez justamente por isso, é que podemos contar com a alegria e a coragem da experimentação de novas formas de saber e fazer que ampliem esse tão difícil clinicar.

Acreditamos que os benefícios desta pesquisa para os profissionais da equipe do CAPSad dizem respeito a um maior reconhecimento de sua história, de suas ações, de suas crenças e convicções, propiciando uma reflexão sobre o papel social desempenhado pelo serviço e as possíveis e viáveis mudanças políticas e organizacionais para a realização de seus objetivos.

Acreditamos, também, nos benefícios obtidos com a implantação do dispositivo da roda de autoanálise na rotina do CAPSad na medida em que a equipe valoriza e reconhece os efeitos positivos da roda como um espaço e um tempo de parar para pensar sobre o cotidiano do trabalho, refletir e avaliar crítica e democraticamente sobre seus saberes, suas práticas e a resolutividade das mesmas.

Nas rodas, cada um dos protagonistas tem a oportunidade de reconhecer seus próprios limites e potencialidades, demandar cada vez mais de si mesmo, de seus pares, dos gestores dos serviços de saúde e das instituições formadoras, numa atitude de co-responsabilidade, maior autonomia e criatividade para construção de uma clínica ampliada em que o exercício da cidadania, da promoção da saúde, do tratamento e reinserção psicossocial de usuários de álcool e outras drogas são a meta fundamental a ser alcançada.

Por meio dos conhecimentos adquiridos pelos referenciais teórico-metodológicos usados para a consecução do projeto e da inserção num serviço público de saúde mental da rede de atenção à saúde do município, a comunidade acadêmica, representada pela equipe de pesquisadores, teve a oportunidade de familiarizar-se com a realidade social e suas complexas demandas e com os grandes desafios enfrentados no processo de implantação e fortalecimento das políticas públicas de saúde mental para acolhimento e atenção à saúde dos usuários de drogas.

Este trabalho possibilitou a problematização do processo de formação universitária dos futuros trabalhadores da saúde mental, de maneira que se possa lutar para que tenhamos cada vez mais profissionais compromissados com as politicas públicas do SUS e capazes de lidar, de forma eficiente, criativa e ética com os enormes desafios que a realidade social apresenta.

 

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Recebido em: 27/09/10
Aceito em: 23/11/10

 

 

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