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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.5 no.2 Juiz de fora dez. 2012

 

A formação da psicologia pela análise arqueológica

 

The formation of psychology through archaeological analysis

 

 

Janaína Rodrigues Geraldini1

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


RESUMO

A proposta deste artigo é refletir sobre a múltipla formação da psicologia na esfera do saber, por meio da obra As palavras e as coisas, do pensador Michel Foucault. Trazendo algumas características da abordagem arqueológica como o modelo histórico de investigação desenvolvido pelo autor, este percurso inicia-se no século XVI, passando pelos séculos XVII e XVIII, e finalmente chegando à modernidade - palco do nascimento das ciências humanas. A psicologia surge enquanto disciplina influenciada pelas bases epistemológicas e metodológicas da ciência moderna, atravessada inclusive pelas reflexões filosóficas da época. Dentro desse contexto é possível compreender a diversidade de conceitos, métodos e objetos que constituem a psicologia, problematizando-a enquanto construção histórica.

Palavras-chave: Psicologia; História; Análise Arqueológica


ABSTRACT

The proposal of this article is to reflect on the multiple formation of psychology in the sphere of knowledge, through the work the order of things by the philosopher Michel Foucault. Bringing with it some characteristics of the archaeological approach such as a historical model of investigation developed by the author, this philosophical journey begins in the 16th century, passing through the 17th and 18th centuries, and finally reaching modernity - the stage of the birth of human sciences. Psychology emerges as a discipline influenced by the epistemological and methodological bases of modern science, highly influenced by the philosophical discussions of the period. In this context, it is possible to understand the diversity of concepts, methods and objects that constitute psychology, questioning same as a historical construction.

Keywords: Psychology; History; Archaeological Analysis


 

 

Este trabalho nasceu da necessidade de abordar temas e discussões existentes no campo da história da psicologia a partir das ideias do pensador francês Michel Foucault. Ao longo das nossas pesquisas surgiu, então, a obra de grande referência para realizar a construção desta proposta de estudo, qual seja, "As palavras e as coisas". Foucault dedicou-se ao estudo das configurações do saber, deixando um complexo pensamento que contribui para a compreensão da formação das ciências humanas na história do pensamento ocidental. Por se tratar de uma obra difícil, arriscamos trilhar este caminho não pretendendo dar conta de toda a sua complexidade, mas na tentativa de entender o tema da história arqueológica dos saberes, buscando compreender o nascimento do homem e das ciências humanas, tendo como principal foco a construção da psicologia dentro de tal contexto.

Pretendendo situar o leitor acerca dos pensamentos e discursos que contribuem para a formação da psicologia na abordagem arqueológica proposta por Foucault, esta pesquisa inicia seu percurso no Renascimento do século XVI, passando pelo Classicismo dos séculos XVII e XVIII e, finalmente, chegando à modernidade - palco do nascimento da sociologia, da análise das literaturas e dos mitos, e da psicologia.

 

A análise arqueológica

Inicialmente, falaremos sobre o método histórico que norteou a análise do saber, compreendendo, por meio das características de tal abordagem, as posições e inovações que esta metodologia trouxe como contribuição para o pensamento acadêmico.

A arqueologia do saber pergunta o que torna possível determinado saber. É neste sentido que Foucault, no processo da análise arqueológica, focaliza múltiplas transformações que ocorrem no campo do saber, inferindo sobre a criação de outras formas de racionalidade (Motta, 2005).

Fazer análises arqueológicas significa fazer análises dos discursos. Entretanto, os discursos de uma dada época são analisados de forma a não priorizar um tipo específico, como focalizar apenas discursos científicos, ou apenas filosóficos, ou de romances e poesias etc. Foucault, e aí se encontra o diferencial em suas análises, rompe com as análises tradicionais que caracterizam um discurso por um modo determinado de enunciação, e procura uma unidade que perpasse os diferentes discursos de uma época.

A arqueologia do saber conduz todo o processo de construção histórica da episteme renascentista, clássica e moderna. Foucault desenvolve esta abordagem influenciado pela epistemologia, trazendo dela algumas posições metodológicas, embora formule outro objeto de análise. Assim, o objeto de estudo das análises arqueológicas é o saber enquanto aproximação e distinção de discursos, os quais são estudados independentemente de se caracterizarem como científicos.

A fim de explicitar que, para Foucault, ciência e saber não são sinônimos, é preciso considerar que o saber não é exclusividade, nem dependente das ciências, embora toda ciência esteja localizada no campo do saber. O saber é definido por meio de documentos científicos, filosóficos ou literários que possibilitam a constituição de formações discursivas. É por isso que a questão da cientificidade ou não de determinados discursos não merecerem, para a arqueologia, importância teórica.

Fica claro, então, que, embora na análise arqueológica sejam encontrados conceitos científicos, não é objetivo deste método traçar o caminho percorrido pelas disciplinas para obter o caráter de cientificidade. Da mesma forma, não é objetivo da arqueologia focalizar somente os conceitos científicos, embora estes também façam parte de suas análises. Machado (1981, p.173) explica que "a arqueologia, neutralizando a questão da cientificidade, interroga as condições de existências dos discursos, mesmo quando os discursos são ou se pretendem científicos".

Desta forma, a arqueologia propõe seu estudo problematizando a ciência enquanto saber e não a ciência em sua estrutura específica. É por isso que, como formações discursivas de um determinado saber, é possível encontrar textos jurídicos, expressões literárias, reflexões filosóficas, decisões de ordem política, propósitos cotidianos, opiniões, etc. (Foucault, 1987).

É importante destacar, já que estamos falando da arqueologia, das semelhanças e diferenças existentes entre esse método de análise e o método epistemológico, podendo, desta forma, mostrar outras características da abordagem arqueológica. A ciência é objeto de estudo da epistemologia e, aqui sim, cabe o destaque para as análises de caráter científico.

A epistemologia tem como objeto as ciências por ela investigadas em sua historicidade a partir da constituição histórica de seus conceitos, isto é, quanto ao tipo de progresso que os caracteriza, quanto à conquista da objetividade, quanto à produção da verdade, quanto à instauração de critério de racionalidade, etc. (Machado, 1981, p.154).

A arqueologia tem como objeto o saber, enquanto que a epistemologia privilegia a ciência. Desta forma, elas são diferentes na medida em que cada uma tem seu nível próprio de análise (Machado, 1981). Enquanto a epistemologia procura estabelecer em que condições é dada a validade das ciências, ou seja, como obtêm seu caráter científico, a arqueologia busca as condições de possibilidade dos discursos, considerando estes enquanto saber. Embora haja distinções entre as histórias arqueológica e epistemológica, não devemos tomá-las como incompatíveis. Elas apresentam vários pontos em comum, e vale destacar que Foucault é fortemente influenciado por dois autores que desenvolvem em seus trabalhos o método epistemológico. Estamos falando de Gaston Bachelard e Georges Canguilhem (Machado, 1981).

Tanto a arqueologia quanto a epistemologia criticam a visão de história que julga a ciência como sendo construída por um progresso contínuo. É por isso que Machado (1981) considera que a história arqueológica é epistêmica no sentido de não postular a existência da evolução do conhecimento científico. Estes dois métodos históricos também se assemelham ao negar as pretensas continuidades estabelecidas pelas análises retrospectivas que privilegiam os temas ou teorias. Ambas criticam a história factual, e se constituem enquanto história conceitual (Machado, 1981).

Diante disso, podemos falar sobre a questão da descontinuidade histórica, presente nas duas formas de análises que não se caracterizam por um processo homogêneo, nem atingem todas as formações discursivas ou conceituais de uma época. Assim, deve ser considerado, mais especificamente para a arqueologia, que o tempo do saber, ou o tempo do discurso, não está disposto da mesma forma que o tempo vivido, mas apresenta descontinuidades e transformações específicas (Foucault, 2005b). É neste sentido que a cronologia não é nem linear, nem homogênea.

Foucault (1987, p.199) considera que "a contemporaneidade de várias transformações não significa sua exata coincidência cronológica". Assim, não quer dizer que a ruptura que ocorre entre as análises da história natural com a biologia coincida com o mesmo tempo cronológico da ruptura que se dá entre a análise das riquezas com a economia política, por exemplo, embora ambas rupturas signifiquem a passagem do saber clássico para o moderno. Podemos dizer que houve contemporaneidade no sentido da episteme, mas não no sentido de tempo cronológico. Daí Foucault (conforme citado por Machado, 1981) diferenciar contemporaneidade de atualidade, e priorizar em seus estudos a primeira2.

Embora tanto a epistemologia quanto a arqueologia levem em consideração a descontinuidade histórica em suas análises, um ponto de divergência entre estes dois métodos é que a arqueologia não se propõe estabelecer as rupturas epistemológicas, mas atentar-se às diferenças e ao sistema que as possibilita. Assim, falar de rupturas arqueológicas é referir-se à ruptura não de um determinado conceito, como ocorre na epistemologia, mas da ruptura de uma episteme, ou seja, de um conjunto de saberes de determinada época que possui conceitos interrelacionados (Machado, 1981).

Diante das considerações feitas a respeito da arqueologia, podemos ainda destacar que o método arqueológico não implica um número determinado de procedimentos invariáveis a serem utilizados na produção de um conhecimento [...] uma característica fundamental da arqueologia é justamente a multiplicidade de suas definições; é a mobilidade de uma pesquisa que, não aceitando se fixar em cânones rígidos, é sempre instruída pelos documentos pesquisados (Machado, 1981, p.14).

É a partir desta definição que Machado (1981) explica existir uma trajetória da arqueologia, referindo-se a não existência de uma unidade metodológica nas obras de Foucault. Explicando melhor, essa trajetória foi realizada desde "A história da loucura", passando pelo "Nascimento da clínica", e finalmente chegando à obra "As palavras e as coisas"3. Neste sentido, estes livros, que são escritos por meio do método arqueológico, merecem ser "estudados como etapas cujas transformações se aplicam em parte pelos próprios objetos das investigações" (Machado, 1981, p.14).

Citando uma das transformações da arqueologia4, temos que o conceito de positividade equivale à cientificidade para a epistemologia e inicialmente para Foucault - como pode ser constatado em sua obra "O nascimento da clínica", por exemplo - (Machado, 1981); já em "As palavras e as coisas" (1999), positividade passa a desempenhar um papel de a priori histórico, ou seja, não mais se refere ao caráter científico de uma teoria, mas ao "conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva" (Foucault, 1987, p.147).

Citando Machado, no intuito de aproximar as considerações feitas sobre a análise arqueológica e o nosso objeto de estudo, que é a construção da psicologia na episteme moderna, podemos dizer que Foucault, na obra "As palavras e as coisas" desenvolve uma

análise histórica que, estabelecendo um mesmo recorte temporal para os saberes ocidentais do século XVI até o século XIX - Renascimento, época clássica e modernidade -, procura destruir o mito da existência de um saber sobre o homem em outras épocas que não a moderna, e demonstra o papel privilegiado que ocupa o homem nos saberes da modernidade, através do estudo [...] das ciências empíricas e da filosofia que instituem o homem como ser empírico e transcendental e, finalmente, das ciências humanas que o representa como interioridade psicológica ou exterioridade social (Machado, 1981, p.176).

 

As epistemes renascentista e clássica

Conforme Machado (1981), a análise das ciências humanas em As palavras e as coisas não corresponde a uma descrição isolada sobre tais disciplinas, mas equivale a uma interrelação de saberes:

assim, para analisar o aparecimento das ciências humanas em determinado momento foi necessário tanto [...] descrever outras épocas [...] para mostrar porque antes da época moderna não houve, nem poderia ter havido, um saber sobre o homem - o das ciências humanas ou outro qualquer -, como também descrever outros saberes da modernidade sem a existência dos quais não poderia haver ciências humanas e que, por este motivo, devem ser considerados seus saberes constituintes (Machado, 1981, p.123).

É por meio dessa perspectiva que escolhemos fazer uma dilatação do tempo, trazendo as características do pensamento ocidental num período anterior ao moderno, a fim de compreender o nascimento do homem como objeto do saber no século XIX, tal como proposto por Foucault (1999).

O século XVI é caracterizado por uma forma de pensar que Foucault (1999) chama de "similitudes". Pensar de acordo com as similitudes significa ver o mundo através de semelhanças e de diferenças com relação às coisas da natureza. Assim, algo passa a ser caracterizado comparativamente às coisas já conhecidas. Nesta percepção de mundo, a construção do saber está imbricada, inclusive, na compreensão dos signos que a natureza oferece aos homens e, de forma mais específica, no entendimento dos signos que Deus apresenta aos homens. Cabem aos homens, neste sentido, desvendá-los.

Se, por um lado, no século XVI existem conhecimentos e técnicas que falam dos signos e descobrem seus sentidos e, por outro lado, existem conhecimentos e técnicas que distinguem onde estão estes signos, é neste "espaço sombrio" entre o primeiro e o segundo - visto que ambos não se encontravam claros nem vinculados - que o saber do século XVI vai encontrar seu espaço, e aproximá-los.

As descrições das coisas da natureza através da decifração dos signos que os homens acreditam ter encontrado são dadas em termos de semelhanças. Como tais signos são colocados por Deus, há muito de divino no pensamento ocidental deste século. Assim, a natureza estaria repleta de figuras semeadas por Deus para serem decifradas. Se os antigos já haviam feito suas interpretações, cabia agora o entendimento delas. A atenção volta-se para os sinais da natureza, para o discurso dos antigos e para as indicações naturais que se mostram através das relações de semelhança que, paulatina e insistentemente, vão sendo elaboradas. Consequentemente,

os conhecimentos do século XVI eram constituídos por uma mistura instável de saber racional, de noções derivadas das práticas da magia e de toda uma herança cultural, cujos poderes de autoridade a redescoberta de textos antigos havia multiplicado. Assim concebida, a ciência dessa época aparece dotada de uma estrutura frágil; ela não seria mais do que o lugar liberal de um afrontamento entre a fidelidade dos antigos, o gosto pelo maravilhoso e uma atenção já despertada para essa soberana racionalidade na qual nos reconhecemos (Foucault, 1999, p.44).

Com relação aos séculos XVII e XVIII, denominado por Foucault (1999) de idade clássica, vamos encontrar no espaço do saber a análise da representação no momento em que "o pensamento cessa de se mover no elemento da semelhança. A similitude não é mais a forma do saber, mas antes a ocasião do erro, o perigo ao qual nos expomos quando não examinamos o lugar mal esclarecido das confusões" (Foucault, 1999, p.70). Assim, no Classicismo, constrói-se uma ciência geral ligada fundamentalmente a uma "teoria da representação". Representar significa comparar estruturas visíveis das coisas da natureza e relacioná-las, considerando identidades e diferenças, por meio de um princípio ordenador que contém elementos homogêneos.

Há, neste sentido, a colocação de plantas e animais em séries lineares, caracterizando-se de um modo universal uma ciência geral da ordem, cujo instrumento principal é a disposição das coisas em quadros ordenados das identidades e das diferenças. Por meio de um suporte epistemológico em que "o conhecimento dos indivíduos empíricos só pode ser adquirido sobre o quadro contínuo, ordenado e universal de todas as diferenças possíveis" (Foucault, 1999, p.199), surge um "tempo classificado" inscrito sob a influência do pensamento racional de Descartes que universaliza o ato da comparação. A partir dele, as coisas são comparadas em termos de medida e de ordem.

Para Foucault (1999, p.222), o que se configura no Classicismo como uma ciência da vida, não se constitui ainda uma biologia, pois "com efeito, até o século XVIII, a vida não existe. Apenas existem seres vivos". Considerando-se a existência dos elementos da natureza, e constituindo-se uma forma ordenada de abordá-los, busca-se também uma nova maneira de nomear os seres vivos. Assim, "a tarefa fundamental do 'discurso' clássico consiste em atribuir um nome às coisas e com esse nome nomear o seu ser" (Foucault, 1999, p.169). Ocorre, então, no domínio do saber, uma preocupação com relação à linguagem no sentido de lhe dar a função e o poder de representar o pensamento. Ao saber, "cumpre-lhe fabricar uma língua e que ela seja bem-feita - isto é, que, analisante e combinante, ela seja realmente a língua dos cálculos" (Foucault, 1999, p.86).

A ciência da vida para o Classicismo não está na ordem da biologia, mas configura-se como uma história natural. Foucault (2005a, p.201) concebe "a história natural como o conjunto dos métodos pelos quais se definiram os seres vivos como objeto de uma classificação possível, e que relações de ordem se estabeleceram entre eles". Com relação à análise das riquezas, que ainda não se inscreve como a economia política da modernidade, o processo de ordenação clássica está situado em cima do valor; utilizam-se o comércio e a troca para analisar a formação do valor a fim de se estudar as teorias da circulação e da distribuição de riquezas (Machado, 1981). A gramática geral, por sua vez, preocupa-se com a análise da representação por meio de uma ordem sucessiva, dispondo-a parte por parte em uma ordem linear, articulando os sons um a um, "desde as mais simples representações até as mais finas análises ou as mais complexas combinações" (Foucault, 1999, p.117).

 

A formação da psicologia na modernidade

Este autor diferencia a episteme clássica da moderna quando diz que a primeira é caracterizada pela representação e a segunda é marcada pela dupla experiência do homem enquanto sujeito e objeto do saber. Neste sentido, o "homem moderno do conhecimento" é chamado por Foucault (1999) de "duplo-empírico-transcendental". Foucault (1999) considera que, apesar de se poder reconhecer o "homem" no Classicismo, seja com relação à história natural, à gramática geral ou à análise das riquezas, esta ordem não se configura com uma consciência epistemológica do homem como fundamento e objeto. Assim, o século XIX constitui uma nova positividade que compõe ainda em grande parte as ciências atuais (Foucault, 1999).

O homem surge na biologia, na economia política e na filologia enquanto invenção recente desses saberes, não estando mais no final do quadro clássico como o modelo último e perfeito. Ele agora é dado à experiência, e é pensado como um objeto a ser descoberto e desvendado, como um objeto que tem um corpo físico com estrutura e funcionamento que devem ser explorados. Enquanto um ser que trabalha, as condições que circulam este espaço serão pensadas como constitutivas dele próprio. A linguagem também irá fazer parte desta busca que pretende entender o modo como o homem se constitui; investe, por sua vez, na fala enquanto meio para se obter tal conhecimento.

Além de considerar que a episteme moderna constrói um novo modelo de pensamento pautado na cientificidade, é importante destacar outra característica marcante deste período, que servirá também como base para a formação das ciências humanas: a filosofia moderna que é caracterizada enquanto antropologia analítica (Machado, 1981). Antropologia, no sentido de inaugurar a problemática do homem, sendo ele próprio o sujeito que legisla e que constitui o objeto. E analítica, no sentido das repetições que são promovidas pela identidade e pela diferença entre o homem que se apresenta, ao mesmo tempo, como ser empírico e como ser transcendental. Com o estudo do sujeito de Kant, a filosofia sai da metafísica da representação operada por Descartes e pelos Ideólogos, e traz o tema do transcendental para a modernidade. A partir da analítica kantiana, surgem a analítica positivista com Comte, as reflexões dialéticas com Hegel, e a fenomenologia de Husserl (Machado, 1981). Na modernidade, os domínios empíricos dialogam com as reflexões filosóficas sobre a subjetividade e o ser humano (Foucault, 1999).

Ao explicar a configuração epistemológica das ciências humanas, ou seja, da psicologia, sociologia e análise das literaturas e dos mitos, Foucault (1999) inicialmente delimita um espaço composto por três dimensões, chamado por este autor de "triedro epistemológico ou triedro dos saberes". Nas faces do triedro estão as ciências matemáticas e físicas (ciências dedutivas), as ciências da vida, da linguagem, da produção e da distribuição das riquezas (ciências empíricas) e, por último, aquela definida como a reflexão filosófica. Estas dimensões são caracterizadas a partir do século XIX e encontram-se definidas entre si num plano comum.

A figura do triedro esquematizada por Foucault (1999) mostra a configuração epistemológica do saber na modernidade, de forma a evidenciar que as ciências humanas não cabem neste modelo, e que não há, portanto, um espaço vazio nas superfícies para elas ocuparem. É nos interstícios deste triedro, nas arestas destas faces, que as ciências humanas irão transitar, sem estarem fixadas em um lugar específico. Elas irão reduplicar os conceitos das ciências empíricas e filosóficas e utilizar métodos e conceitos inclusive das ciências dedutivas a fim de se constituírem e se firmarem enquanto disciplinas.

O modelo de ciência que se edifica na modernidade diz respeito à produção de verdades devidamente fundamentadas. Para tanto, buscam-se regularidades, objetividade e universalismo, com a finalidade de desvendar as leis imutáveis que regem a natureza. A psicologia, na pretensão de alcançar status de cientificidade, desenvolve teorias e técnicas pautadas no modelo positivista da ciência moderna (Prado Filho, 2005). Assim, a psicologia transfere das ciências empíricas as leis que determinam os fenômenos naturais para, por meio de bases metodológicas quantitativas e por meio dos estudos de verificação com experimentos, aplicá-las ao homem (Foucault, 2002).

É neste sentido que podemos falar da naturalização dos fenômenos psíquicos e da naturalização dos estudos empreendidos para descobrir tais fenômenos (Hüning & Guareschi, 2005). Com raízes no modelo da objetividade natural, o conhecimento desenvolvido pela psicologia é voltado para descobrir as leis que regem a realidade psíquica do homem, espelhando-se nas descobertas das leis que movem a natureza. O mesmo movimento de separação entre o sujeito ativo do conhecimento e seu objeto de estudo, garantido pelos discursos de neutralidade do observador, foi transferido para os estudos empreendidos pela psicologia, no intuito de se constituir enquanto disciplina científica. Assim,

as psicologias que surgem até o final dos anos 1920 trazem o estigma do pensamento científico clássico, que é fragmentário, indutivista, quantitativista e positivista, e nascem sujeitas ao paradigma mecânico da física newtoniana, como não poderia deixar de ser com qualquer saber com pretensão ao estatuto de ciência nesse momento. Predominam no discurso psicológico [...] o pensamento funcionalista e um certo biologismo naturalizante - o conhecimento psicológico é ainda acrítico, e está muito próximo de suas matrizes biológicas (Prado Filho, 2005, p.82-83).

A psicologia tem como característica uma formação bastante diversificada de modelos transferidos de outras ciências. Vemos, num primeiro momento, que o processo norteador da sua constituição arqueológica é dado por meio da transferência de alguns conceitos da biologia e da fisiologia, passando a se realizar um estudo das representações no homem enquanto ser vivo funcional, fisiológico e neuromotor. Sua diversidade passa pelas influências da filosofia moderna, e pelos modelos formais herdados das ciências dedutivas.

Embora as influências sofridas pela psicologia estejam bem marcadas, é interessante pontuar que isto não implica um consenso entre os estudos psicológicos. O modelo orgânico da biologia e da fisiologia, as perspectivas evolucionista e adaptacionista herdeiras dos estudos de Darwin, os modelos quantitativos empiricamente comprováveis das matemáticas e das físicas, e ainda as reflexões filosóficas, que vão desde o homem transcendental kantiano, passando pelo positivismo de Comte, transitando vezes pelo pensamento fenomenológico de Husserl, vezes pelo materialismo histórico de Marx, ou ainda pelo humanismo proposto por Rousseau, compõem uma multiplicidade de diferentes conceitos, métodos e objetos que se unificam sob o nome de psicologia.

É neste sentido que chamamos atenção para se perceber uma amplitude de cruzamentos que a psicologia faz desde seu nascimento, visitando as diferentes disciplinas do triedro epistemológico na sua constituição histórica, não se fixando num lugar determinado. Num movimento diferente, ela transita pelas arestas desta figura, e se compõe enquanto múltipla, remetendo a uma disciplina que se fabricou de diferentes formas, o que impossibilita pensá-la a partir de uma unidade ou de uma universalidade. Consequências desse percurso incessante são as várias teorias e técnicas psicológicas, que se diferenciam ou se encontram, a depender do "guarda-chuva" ou "âncora" epistemológicos que cobrem ou (sustentam) cada uma delas.

Por meio do pensamento foucaultiano, perguntamos quais são as condições de possibilidade para a formação do saber psicológico. A análise arqueológica permite buscar na história as práticas e os saberes que provocam a emergência da psicologia enquanto disciplina científica no campo do conhecimento. Sob tal perspectiva, tomamos a ciência e a verdade como produções históricas, desnaturalizando-as. O homem, enquanto objeto de uma ciência que institui verdades, é uma invenção recente, datado historicamente, e que nasce no século XIX com a formação das ciências humanas (Foucault, 1999).

Diante destas análises, compreendemos que eleger uma verdade universal, ou legitimar um método perfeito para se conhecer um objeto, acaba se tornando descabido dentro da diversidade que compõe a formação da psicologia. A proposta que aqui fazemos é contrária ao modo de se produzir conhecimento sob a ótica da evolução, na qual a psicologia construída no contemporâneo é dada como mais avançada e melhor que as propostas de se pensar o homem feitas anteriormente, e na qual se busca a concorrência e legitimação de um modelo-perfeito a ser substituído pelas demais psicologias construídas.

A formação do campo de estudos psicológicos está configurada de forma múltipla, possui diversas entradas, transita sob diferentes espaços na esfera do saber e se mantém realizando novas parcerias e arranjos. Sendo assim, menos que investir em esforços para se produzir sua unificação e menos que fomentar o gerenciamento de uma única maneira para se pensar o homem, nossa proposta encontra-se mais consonante com a ideia de se pensar, por meio da história, no "homem" que estamos produzindo e nos modos de vida e de se viver que a psicologia, enquanto saber instituído, legitima e normaliza. Visto que o homem é um ser histórico, objeto de uma ciência que institui verdades e produzido pelo saber científico, a ocupação da psicologia de pensar-se enquanto agenciadora e parte constituinte desta formação de verdades que se concretiza sob o que conhecemos por "ser homem" se torna imprescindível.

 

Referências

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Prado Filho, K. (2005). Para uma arqueologia da psicologia (ou: para pensar uma psicologia em outras bases). In N. M. F. Guareschi & S. M. Hüning. (Orgs.), Foucault e a psicologia (pp. 73-92). Porto Alegre: Abrapso Sul.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 29/05/2011
Aceito em: 28/05/2012

 

 

1 Contato: jgeraldini@yahoo.com.br
2 "Dizer que uma formação discursiva substitui outra [...] é dizer que [...] aconteceu uma transformação geral de relações que, entretanto, não altera forçosamente todos os elementos, que os enunciados obedecem a novas regras de formação e não que todos os objetos ou conceitos, todas as enunciações ou todas as escolhas teóricas desaparecem" (Foucault, 1987, p.197). Neste sentido de transformação geral de relações, é possível perceber as rupturas dos saberes do século XVI com os saberes clássicos, e depois destes com o saber dos modernos. Por isso afirmar que "a arqueologia fala [...] de cortes, falhas, aberturas, formas inteiramente novas de positividade e redistribuição súbitas" (Foucault, 1987, p.194).
3 Para Machado (1981), estas obras de Foucault completam a constituição histórica dos saberes sobre o homem, como se fossem três volumes de um único estudo que procura compreender, por meio das diferentes etapas percorridas pela arqueologia, a formação das ciências humanas. É neste sentido que ele considera que "há [...] homogeneidade entre as pesquisas arqueológicas de Foucault quando consideradas em suas grandes linhas. Podemos afirmar que se trata de uma única e extensa pesquisa centrada na questão do homem no saber da modernidade" (Machado, 1981, p. 176).
4 Colocamos apenas este exemplo a título ilustrativo para mostrar uma das modificações na trajetória da arqueologia, pois não é objetivo desta pesquisa estender tal discussão, já que esta trajetória faz referência a outras obras de Foucault que não serão aqui estudadas.