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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
versão On-line ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.5 no.2 Juiz de fora dez. 2012
RESENHA
Deleuze, G. (2009). Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar [ Links ]
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler1
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
Desconstruir a unidade dialética do sadomasoquismo produzida pelo discurso psiquiátrico moderno é o procedimento realizado por Deleuze (2009) em Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Tal tarefa passa por uma problematização desdobrada na dupla injustiça em relação ao destino desse escritor austríaco do século XIX. Em primeiro lugar, porque sua obra caiu no esquecimento em nome do fortalecimento da literatura erótica de Sade. Em segundo lugar, por conta de uma injustiça ainda mais perturbadora: Masoch tornou-se uma extensão de Sade e intrínseco ao sadomasoquismo criou-se o que Deleuze (2009) chama de unidade dialética por meio da qual tal patologia é vista como uma perversão sexual e uma inversão das condutas de prazeres correlacionadas à experiência do comportamento anormal.
A problematização dessa unidade efetiva-se na construção de uma critica que coloca em evidência a elaboração de um espaço literário em que a textualidade de Masoch está implicada na noção deleuziana de devir, isto é, uma perfeita desmontagem do discurso das perversões sexuais pelo viés da potencialização dos desejos e das formas de prazer. Deleuze (2009) cria, portanto, uma apropriação da linguagem literária para afirmar as diferenças entre os elementos presentes tanto em Masoch quanto em Sade.
Ao longo da modernidade, as literaturas transgressivas foram utilizadas para a produção de um discurso psicopatológico e em especial os textos de Sade e de Masoch possuem uma eficácia por parte de saberes como a psiquiatria, a psicologia e o direito que nomeiam a perversão do sadomasoquismo. Contudo, não é pela perspectiva da doença que se deve procurar ler esse tipo de literatura, mas sim pelos critérios dos sintomas e dos signos. Esses sintomas e signos estão presentes na descrição de personagens e também na maneira como esse estilo de literatura subverte a linguagem. Que evidência é essa presente na literatura transgressiva? Tal pergunta é fundamental para afastar Sade de Masoch no contexto da filosofia da diferença. Recuperando um fragmento textual de Battaille, intitulado L'erotisme, Deleuze (2009) afirma que o paradoxo da linguagem sadeana é composto essencialmente pelas descrições das vítimas.
A tortura às quais todos os personagens são submetidos é radicalmente oposta à linguagem de ordem e de poder empregadas pelo carrasco. Por exemplo, Sade (2002) em "120 de Sodoma", elabora uma construção que gira em torno de narrativas proferidas por historiadoras. O libertino só participa como ouvinte e nada deve preceder a narração. Esse elemento existente na literatura sadeana pode ser aproximado da perspectiva kantiana, principalmente da formulação do que Deleuze (2009) chama de faculdade demonstrativa, na qual o libertino é aquele que elabora um estatuto criando regras e apresentando-as para a vítima. A principio, poder-se-ia supor que se trata de um convencimento ou de uma persuasão. Porém, a grande intenção que se esconde por detrás deste estatuto é a violência. Evidentemente que esta violência localiza-se no plano simbólico sem, contudo, deixar de efetivar-se por meio da onipotência de quem a demonstra.
A linguagem que o texto de Masoch produz é heterogênea. E essa heterogeneidade faz emergir o açoite. O legado de Caim, uma herança bíblica infame que assujeita toda sociedade ocidental por meio do ódio e do desprezo trabalhando temas como: o amor; a propriedade; o dinheiro; o Estado; a guerra e a morte. Que crimes e sofrimentos acometem a humanidade? Essa pergunta é essencial para, de acordo com Deleuze (2009), compreender-se que a crueldade não é somente um gesto explosivo. Existe frieza no olhar e a condição de olhar para o outro enxergando no seu carrasco o próprio destino. É dessa frieza que emerge uma nova subjetividade.
Em toda obra de Masoch, as práticas sexuais devem ser regulamentadas pelo contrato, é preciso, pois formalizar, verbalizar, dizer e prometer. É preciso rastrear o desejo em cartas anônimas ou através de pseudônimos, é preciso ainda atentar para aquilo que os classificados de jornais mostram. Eis os motivos pelos quais a literatura masochiana transcende qualquer discursividade pornográfica para inscrever-se no que Deleuze (2009) nomeia de pornologia, isto é, uma linguagem cartografada não somente por palavras de ordem, mas sim pela produção de formas sutis e ao mesmo tempo intensas de prazer.
"Navalha na carne" seria uma expressão que poderia ser extraída de Masoch, em que o corpo é sentenciado a diversas formas de obtenção de prazer. Contudo, o mesmo corpo é tangenciado pela regulação do contrato e a subjetividade masoquista preocupa-se em rastrear o amor, a paixão e o desejo. Descrever o ato? Representar o ato? Significar o ato? Não. A questão é experenciar por meio de um desejo maquínico toda a intensidade de multiplas formas de prazer. Ou seja, é preciso percorrer todos os limites e aceitar o desafio de atravessar um campo de tormentas para que se atinja uma prática extrema de prazer. Nesse sentido, o masoquismo é o calvário do idealista, pois "é a vítima que fala através do carrasco, sem comedimento" (Deleuze, 2009, p. 25). Existe uma beleza extraordinária nessas palavras. Se é a vítima quem fala, o lado político do masoquismo possui um efeito que passa pela produção do prazer da forma mais intensa possível. Ocorre que essa produção só pode existir quando o sujeito coloca em questão a importância do Outro neste processo, quando se procura convidá-lo ou persuadí-lo a praticar o ato sabendo de todos os riscos possíveis. É preciso formar o déspota fazendo-o assinar o contrato, correndo todos os riscos inerentes. Aquele/aquela que é convocado(a) para exercitar o estranhamento pode representar ou não esse papel, seja pelo excesso ou seja pela falta.
Estamos falando, de acordo com Deleuze (2009), da construção de um convencimento que pode ou não concretizar-se. Existe uma ironia nesta constatação. A produção textual de Masoch é carregada de decência e o inquisidor tem dificuldade em centralizar qualquer ato presente nas suas construções textuais. As fantasias masoquistas muitas vezes se confundem com jogos, brincadeiras e folclore. Por exemplo: quando os homens bebem nos sapatos de mulheres, ou ainda quando meninas solicitam aos seus namorados que se fantasiem de cachorros, ou quando uma mulher finge portar um papel assinado pelo amante ou, por fim, quando uma patriota se entrega aos inimigos para salvar sua cidade. Fantasias masoquistas que passam muitas vezes por brincadeira pueris ou gestos heróicos, mas que quase nunca são carregadas de obscuridade em si. O que existe neste conjunto de profanações é a formação do que Deleuze (2009) chama de espírito jurídico. O espírito jurídico do masoquismo consiste na contestação do real como condição de possibilidade para o fundamento ideal em que o processo de denegação afeta o próprio prazer sexual, no exato momento em que no extremo do gozo o masoquista identifica-se como um homem sem sexualidade.
Por conta desses aspectos, a linha que separa o sadismo do masoquismo, de acordo com Deleuze (2009), é a possibilidade de comparação entre dois processos: por um lado o processo de negação e regração; e por outro o processo de denegação e de suspensão. Embora se deva reconhecer que Sade e Masoch produzem uma literatura que nomeia, descreve e assinala o duplo do mundo, a textualidade de seus escritos atenta para um acolhimento da violência de seus excessos.
É justamente este o efeito político da literatura erótica qual seja o de apresentar as experiências que implicam uma leitura da sociedade não pelo viés do que Foucault (1977), chama de scientia sexualis, mas sim pelos critérios da experienciação máxima do prazer e da crueldade.
Por conta desses aspectos, o erotismo literário deve ser analisado a partir da linguagem produzida como efeito. Todavia, pode-se perguntar: qual a consequência deste efeito? O de ser um espelho do mundo em que o excesso e a violência fazem parte servindo diretamente a linguagem e seus duplos e agindo sobre os sentidos. O mundo descrito por Sade é carregado de perversão, o herói no interior do castelo esforça-se para reproduzir uma "história do coração" a partir de uma correlação entre natureza e costume pelo critério da sensualidade onde é preciso atingir a verdade sensível por meio da excentricidade do ato sexual. Já o mundo descrito por Masoch é igualmente ambicioso: toda história e toda moral precisam ser carregadas de perversidade e toda força deve emergir por meio da crueldade inscrita no campo da experiência sensível. Ambos os autores possuem, portanto, uma leitura da sociedade pela perspectiva da crueldade na formação de um teatro da literatura erótica. A crueldade é a grande responsável pela articulação entre literatura, sexualidade e sociedade tanto em Sade quanto em Masoch.
O maior ensinamento presente no livro Sacher-Masoch: o frio e o cruel (Deleuze, 2009) corresponde ao fato de que a complementaridade existente entre Sade e Masoch não é da ordem psicopatológica. Essa unidade dialética foi inventada pelos saberes psiquiátricos do século XIX. A complementaridade entre os dois é da ordem histórica e ética, pois ambos fazem, cada qual a seu modo, uma problematização dos valores e das normas pelo contexto da crueldade existente na sociedade ocidental.
Referências
Deleuze, G. (2009). Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Foucault, M. (1977). Historia da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
Sade, M. (2008). Os 120 Dias de Sodoma. São Paulo: Iluminuras. [ Links ]
Recebido em: 04/01/2012
Aceito em: 06/02/2012
1 Contato: diazsoler@gmail.com