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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
versão On-line ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.7 no.1 Juiz de Fora jun. 2014
ARTIGOS
Conversão religiosa: buscando significados na religião
Religious conversion: searching meaning in religion
Denis de Freitas1; Adriano Furtado Holanda
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil
RESUMO
O objetivo desta pesquisa foi investigar os sentidos daquilo que comumente se chama de "conversão religiosa", como se deu a vivência do fenômeno e que consequências essa experiência teve na vida dos participantes. Foram entrevistadas quatro pessoas que se definiram como evangélicas ou simpatizantes dessa religião, as quais diziam ter vivenciado uma experiência de conversão religiosa. As entrevistas foram analisadas qualitativamente dentro de um enfoque fenomenológico. A experiência de conversão religiosa se mostrou um elemento fundamental no processo de transformação das significações de vida dos participantes. As transformações se mostraram a partir de novas concepções de mundo, novos valores, mudanças de comportamentos, sentimentos de força, harmonia e felicidade.
Palavras-chave: Conversão religiosa, Experiência religiosa, Religião, Sentido de vida, Fenomenologia
ABSTRACT
The objective of this research was to investigate the meaning of that is commonly called "religious conversion", how the experience of the phenomenon took place and what consequences this experience had on the participants1 lives. We interviewed four people who defined themselves as evangelical or supporters of this religion, who claimed to have experienced a religious conversion experience. The interviews were qualitatively analyzed using a phenomenological approach. The religious conversion experience proved a key element in the transformation process of the meaning of the participants' lives. The changes are shown from new worldviews, new values, changes in behavior, feelings of strength, harmony and happiness.
Keywords: Religious conversion, Religious experience, Religion, Meaning of life, Phenomenology
A conversão religiosa é um tema complexo, mas de extrema importância para o estudo do comportamento humano. Todavia, há escassez de materiais de pesquisa, mesmo pelo fato do tema envolver o interesse de diversas ciências e abordagens como Psicologia, Sociologia, Teologia, História, Antropologia e Filosofia, dentre outras.
O debate sobre o tema tem seus primeiros registros no século XIX, com teóricos como William James e J.H Leuba, que privilegiavam a experiência "interior" do sujeito que se converte (Valle, 2002). Sendo assim, o interesse não estava nas instituições religiosas, mas, nas palavras de James, "nos sentimentos, atos e experiências de indivíduos em sua solidão, na medida em que se sintam relacionados com o que quer que possam considerar o divino" (James, 1902/1995, p. 31). Posteriormente, no século XX, tem-se o avanço da sociologia e da antropologia, cujo interesse se volta para os aspectos psicossociais do fenômeno, como movimento para escapar à tendência psicologizante de certas abordagens (Valle, 2002).
Atualmente, no Brasil, percebe-se um aumento significativo de publicações científicas sobre religião, num entrelaçamento com várias temáticas, como saúde, experiência religiosa, vocação, identidade e relações entre psicologia e religião (Paiva et al., 2009). No presente trabalho procurase realizar, tomando como ponto de partida o método fenomenológico, uma investigação a respeito dos significados subjetivos da conversão religiosa, preocupando-se em não negligenciar os aspectos históricos, sociológicos e culturais que envolvem a experiência de conversão.
Muito se questiona se o fenômeno religioso é algo universal ao homem. Até o momento, o que pode se afirmar, é que existem registros de manifestações religiosas em todas as civilizações já documentadas (Jung, 1958/1978; Alves, 1975; Siqueira, 2008). Diante disso, devemos reconhecer sua "grande influência na constituição da subjetividade do indivíduo expressa em crenças, valores, emoções e comportamentos a ela relacionados" (Henning & Moré, 2009, p. 85) e, consequentemente, a importância dessa dimensão espiritual para o homem (Vergilio & Holanda, 2010). Destaca-se também "a eficácia da religião em promover comportamentos saudáveis e restringir comportamentos nocivos" (Paiva, 2007, p. 101). Segundo Baungart e Amatuzzi (2007), em pesquisa com católicos, a vivência religiosa proporcionou mudanças de comportamento, as quais foram sentidas, pelos participantes, como algo importante para melhora na qualidade de vida à medida que estes modificaram seu olhar em relação ao mundo.
Entende-se que a relação com o divino, mais do que proporcionar mudanças de certos comportamentos, muitas vezes é um elemento primordial no processo de transformação e de resignificação na vida das pessoas. Não é difícil conhecermos pessoas que contam testemunhos de transformação de vida após aderirem a uma determinada religião. Muitas vezes, ex-moradores de rua, ex-usuários de drogas ou pessoas que apresentavam alguma enfermidade, atribuem sua transformação de vida a algum tipo de conversão religiosa. Não se qualifica a conversão como único fator de transformação dessas vidas, mas como um elemento fundamental nesse processo de resignificação subjetiva . Também não cabe a essa pesquisa realizar uma análise crítica sobre questões institucionais da religião. O foco da pesquisa fenomenológica consiste apenas em descrever como os conversos atribuem sentido ao fenômeno da conversão religiosa.
O presente trabalho pretende investigar os sentidos daquilo que comumente se chama de "conversão religiosa" -as características comuns aos conversos, quais os significados que este fenômeno traz para o cotidiano das pessoas, uma vez que elas buscam a religião e o que a religião lhes oferece. Busca-se compreender que elementos foram decisivos para que as pessoas buscassem uma experiência em determinada religião, como foi o processo de conversão e, consequentemente, qual a importância da religião em suas vidas, na época da conversão e atualmente.
Conversão religiosa: características
Conceito
Entendemos por conversão o sentido de "mudança", "transformação" tanto no nível de ideias como no nível de práticas. Como descreve Gomes (2011), além daquele que muda de uma religião para outra distinta, "o termo conversão é utilizado também para caracterizar a entrada em uma nova religião, capaz de transformar a cosmovisão do sujeito, mudar a identidade do converso e alterar sua relação com a realidade e o mundo" (p. 158).
Distingue-se o termo "conversão" do termo "adesão", sendo que, por adesão compreende-se qualquer forma de participação em um movimento religioso, sem que haja alteração sistemática do estilo de vida. Em contrapartida, a conversão envolve mudança no sistema de valores e visão de mundo (Gomes, 2011). O novo converso assume novas práticas, novos costumes e novas atitudes diante da vida, fenômeno este que representa para a vida do converso "uma divisão de antes e depois da conversão" (Alves, 2005, p.75). A conversão também se caracteriza por novos esquemas de significação; a conversão é "um processo psicossocial que se caracteriza pela desestruturação de esquemas de significação, seguido pela adoção de outro, estruturalmente distinto do primeiro" (Alves, 2005; p. 73).
Para investigarmos quais os significados da conversão religiosa, utilizaremos tanto o termo "religiosidade", quanto "espiritualidade". Cabe aqui distinguir os dois conceitos, os quais apresentam divergências entre autores.
Pessanha & Andrade (2009) descrevem que existem duas perspectivas para se compreender o termo "espiritualidade": "no primeiro a espiritualidade tem impreterivelmente uma ligação com o sagrado, já no segundo essa ligação pode não existir" (p.77). Utilizaremos a primeira opção, a qual, segundo os autores, a pessoa, apesar de acreditar e ter devoção em algo superior, não possui necessariamente uma crença religiosa, nem participa de uma religião institucionalizada, caracterizando-se mais como uma busca pelo significado da vida e o relacionamento com o sagrado. Por outro lado, a religiosidade se dá através de atividades pré-estabelecidas, como cultos, ritos e reuniões, como uma busca por alguém em que se crê e se tem fé em sua possibilidade de ouvir seus questionamentos e atender seus pedidos (Pessanha & Andrade, 2009).
Para Holanda (2005), a religiosidade refere-se à atitude mais voltada para um campo institucionalizado, enquanto a espiritualidade se refere a uma vivência mais individual do transcendente. Ou seja, a espiritualidade remete a uma experiência transcendental individualizada, não necessariamente ligada a dogmas ou alguma determinada religião, enquanto que a religiosidade se vincula a uma experiência religiosa organizada e institucionalizada. Também cabe aqui salientar que a palavra "sentido" é igualmente utilizada como sinônimo de "significação" e remete a um "direcionamento".
Processo
Considerado um dos primeiros estudiosos do tema, no clássico livro As Variedades da Experiência Religiosa, publicado originalmente em 1902, William James descreve a experiência de conversão como um processo de mudança de estado em que o converso passa de "dividido, conscientemente errado, inferior e infeliz," para um sujeito "unificado, conscientemente certo, superior e feliz" por conta da nova realidade religiosa (James, 1902/1995, p.126).
Os estudos de James sobre conversão religiosa foram de grande importância para a identificação de uma excitação emocional que, segundo o autor, "é extremamente eficaz para precipitar rearrumações mentais" (James, 1902/1995, p. 131). O autor faz uma distinção entre dois tipos de conversão: o "tipo volitivo", consciente e voluntário; e o "tipo da renúncia de si", inconsciente e involuntária. O primeiro é "geralmente gradual, consiste na edificação, peça por peça, de um novo conjunto de hábitos morais e espirituais, mas há sempre pontos críticos em que o movimento progressivo parece muito mais rápido" (James, 1902/1995, p. 138). E o segundo tipo, que, para o autor, é o tipo mais interessante e abundante, é uma conversão instantânea em que, após uma exaustão emocional, acontece a entrada de uma emoção superior, como se houvesse uma entrega de si ao poder maior (James, 1902/1995). Segundo o autor, na conversão, "as ideias religiosas, anteriormente periféricas em sua consciência, assumem agora um lugar central, e metas religiosas formam o centro habitual da sua energia" (James, 1902/1995, p. 130).
Um ponto importante dos estudos de James refere-se ao estado que antecede a conversão religiosa, o autor descreve que "há duas coisas na mente do candidato à conversão: a primeira, o inacabamento ou erro presente, o ‘pecado1, de que ele tanto anseia por escapar; e, segunda, o ideal positivo que ele ambiciona levar a cabo" (James, 1902/1995, p. 137). Para James, na maioria das vezes, é o sentimento de redenção do pecado que está mais presente.
O autor deixa claro que existem diferentes formas e manifestações para a conversão, não sendo todas as pessoas que terão uma crise aguda de desespero e de renúncia antes da conversão, mas esses casos instantâneos são os que chamam mais atenção. James também aponta para duas maneiras de desfazer-nos de afeições indesejáveis como desespero, medo e preocupação. "A primeira é uma afeição oposta saltear-nos avassaladoramente, e a outra é ficarmos tão exaustos da luta que temos de parar - e, destarte, cair, desistir e não nos incomodarmos mais" (James, 1902/1995, p. 139). Essas descrições são importantes para pensar como se apresentam os comportamentos emocionais que propiciam a mudança de estado.
Rubem Alves (2005) também aponta para uma crise emocional que possibilita a necessidade da conversão; mas, para o autor, a crise é um colapso nos sistemas de significação. Para Alves (2005) "não existe conversão sem crise, não existe conversão sem sofrimento" (p. 96). Dessa forma, a conversão passa a ter um papel fundamental na transformação de vida do sujeito, pois se trata de uma resignificação do sentido da vida, uma reorganização, a pessoa passa a dividir sua vida em antes e depois da conversão (Alves, 2005). Comportamento muito bem caracterizado no protestantismo pelo ato de "aceitar Jesus" ou pelo "batismo nas águas", "o que caracteriza esse sentimento é uma entrega, um abrir mão do próprio destino" (Alves, 2005, p 92).
Significados da Experiência Religiosa
Em estudo baseado na fenomenologia existencial para descrever a experiência religiosa, Pereira (2006) aponta para a importância da religião como doadora de sentido e segurança para o homem. O autor descreve que há períodos de crise em que o homem perde algum tipo de significado da vida humana e:
(...) no afã de re-significar sua vida, este mesmo homem encontra na experiência religiosa um lugar que pode lhe proporcionar ou propiciar uma possível re-estruturação dos significados, valores e sentidos perdidos e/ou abalados pela situação de crise (p.121).
O autor também fortalece a interpretação de cisão entre antes e após a conversão quando cita que:
(...) a eternidade é uma qualidade da vida divina não podendo ser atribuída a um ser condenado pelo pecado; já a conversão é a experiência pela qual o Homem experimenta a regeneração e o perdão de seus pecados, livrando-se da condenação, sendo resgatado do não-ser e tendo a possibilidade de vida autêntica, de transcendência (Pereira, 2006, p.124).
Nesta perspectiva, na conversão o homem se torna autêntico, ele assume sua história e sua existência no mundo. Vergote (2001) ressalta que, nas civilizações antigas, "os homens pensavam o sentido da vida, do mundo e da religião, a partir do interior da visão religiosa do todo"(p. 14). Dessa forma "não se levantava a questão da necessidade da religião porque se vivia no a priori cultural e religioso de sua necessidade" (Vergote, 2001, p.14). Essa concepção levanta uma qualidade importante da religião, pois, durante a história, a religião tem norteado costumes, valores e, assim como a ciência, conhecimentos acerca do mundo. Para Pessanha e Andrade (2009) a instituição religiosa pode ser buscada com a ilusão de que esta propicie um modelo a ser seguido.
Em pesquisa realizada com 1500 universitários, Barros e Santos (1999) perceberam que as necessidades pessoais e a busca de significado para os fenômenos da vida cotidiana são motivos de grande relevância para os sujeitos que buscaram suas crenças religiosas. Para Barros e Santos (1999), a religião pode dar inteligibilidade às vivências, dando respostas às situações que fogem do controle individual. A pesquisa aponta para uma lacuna deixada pela ciência, no que se refere à explicação do mundo vivido, a qual a religião passa a ser assimilada como suporte para orientar os estudantes em suas tomadas de decisão.
A característica central do novo converso é um estado de harmonia com a vida, "é a perda de todas as preocupações, o sentido de que tudo está finalmente bem conosco, a paz, a harmonia, a disposição de ser, ainda que as condições exteriores permaneçam as mesmas" (James, 1902/1995, p. 159). "As emoções anteriores de confusão, culpa e ansiedade são substituídas por sentimentos de paz, alegria e poder" (Alves, 2005, p. 74). Em estudo com novos convertidos, Barra (2008) destaca que os convertidos se sentem reconciliados e "harmonizados consigo mesmos e com os outros dos diversos meios com os quais convive" (p. 161). A autora também descreve uma nova postura para com a vida, "o converso assume a linguagem religiosa desse grupo, ele rompe com sua biografia, submetendo-a a novos valores e formas de perceber e viver a realidade" (Barra 2008, p.52).
Assim como apontado por James (1902/1995) no segundo tipo de conversão, o tipo da renúncia de si, tais características de mudança de vida apontam para um estado anterior de crise e angústia, um estado de necessidade de organização das próprias significações existenciais. "A questão é organizar a relação homem-mundo. Não apenas conhecimento do mundo, mas conhecimento do meu destino: a questão do sentido da vida" (Alves, 2005, p. 74).
A conversão religiosa apresenta comportamentos muito marcantes, já apontados nos estudos de James (1902/1995), como: a forte característica emocional que envolve o processo, um estado anterior de sofrimento seguido da ruptura de certas significações e visões de mundo, caracterizando assim um indivíduo em maior harmonia e envolto de graça e sentido de vida. Atualmente, percebemos, também, que a experiência com o divino tem-se dado, muitas vezes, de forma mais livre e, menos institucionalizada.
Trânsito religioso
Para discutirmos sobre a conversão religiosa, deve-se levar em conta o momento histórico-social da pesquisa. De acordo com o Censo 2010, os evangélicos representam o grupo que mais cresceu, proporcionalmente, no Brasil, desde o ano 2000 até 2010, passando de 15,4% da população a 22,2%. No mesmo período, também aumentaram a proporção daqueles que se designam como "sem religião", de 7,3% para 8,0%. Essas mudanças foram acompanhadas por um decréscimo da proporção de católicos, os quais passaram de 73,6% para 64,6% (IBGE, 2010).
Com relação aos "sem religião", esses não são necessariamente ateus, mas experienciam uma vivência religiosa particular, sem a necessidade de intermediação de instituições religiosas (Fernandes, 2006). A partir disso, Siqueira (2008) chama atenção para um processo de transmutação de religião em espiritualidade, entendendo a espiritualidade como um processo desistitucionalizado, voltado para aspectos fundamentais da vida, o qual pode, ou não, levar ao desenvolvimento de rituais religiosos ou à formação de comunidades.
Esse processo de espiritualidade é descrito por Valle (2002) com o termo "bricollage". Para o autor, o brasileiro nunca se distinguiu pela adesão a uma ou outra religião; sua espiritualidade se caracteriza por ser um mix, por ele mesmo construído, de fragmentos de várias crenças, mas que para o sujeito não são contraditórios. Essa tendência confere maior liberdade para uma identidade religiosa. Já para Siqueira (2008) está havendo um processo de desinstitucionalização, no qual as pessoas têm buscado uma religião antiinstitucional, anti-hierárquica e anti-clerical, afirmando que essas pessoas circulam por diversas religiões, vivenciando uma espiritualidade por conta própria, não pertencendo a nenhuma religião específica. Essas pessoas acabam fazendo uma combinação criativa de diversas fontes, aparecendo então o discurso ecumênico, centrado em uma busca por uma unidade com Deus. Passa-se então a pensar esse comportamento de espiritualidade dentro de um contexto cultural moderno, pluralista e transitório. Pluralismo que possibilitaria, para o indivíduo, uma contínua exploração de sentido. As crenças e as práticas religiosas passam a ser cada vez mais transitórias, provisórias e fluidas, não respondendo mais às diretrizes de uma instituição religiosa (Siqueira, 2008). Essas características são importantes para se investigar aqueles indivíduos que apresentam dificuldades em se denominar pertencentes a uma religião em específico.
Método
A presente pesquisa foi realizada em duas etapas, sendo uma teórica e outra empírica. Primeiramente, foi feito um levantamento da produção bibliográfica sobre o tema proposto, realizada em livros e revistas especializadas, disponíveis nas bases de dados eletrônicas - BVS-Psi, LILACS e Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC) - buscando o tema da conversão religiosa através dos seguintes descritores, que foram usados como ferramenta de busca e de cruzamento: "conversão religiosa"; "experiência religiosa"; "religião", "sentido de vida" e "fenomenologia". Esta busca visou fundamentar teoricamente a pesquisa empírica, bem como foi utilizada como recurso para discussão dos dados da pesquisa.
Posteriormente - no momento empírico - foram realizadas quatro entrevistas com pessoas que afirmaram ter passado pelo processo de conversão religiosa. Optou-se por entrevistar apenas pessoas que se definiram como evangélicas ou simpatizantes dessa religião. Essa restrição se deu para facilitar a comparação dos dados obtidos e por considerarmos que a religião evangélica apresenta um discurso muito motivado pela transformação de vida, além de representar um segmento em crescimento, na população em geral, consoante o Censo 2010. As entrevistas foram orais com o intuito de que o entrevistado descrevesse sua experiência de conversão, o sentido dado à sua vivência, como era sua vida antes da conversão e o que mudou em seu cotidiano após a experiência religiosa.
As entrevistas foram analisadas a partir de uma leitura fenomenológica para compreender os sentidos dados ao processo de conversão à religião evangélica. A opção pelo método fenomenológico se deu por este estabelecer como sentido de uma experiência vivida aquilo "que a experiência significa para as pessoas que tiveram a experiência em questão e que estão, portanto, aptas a dar uma descrição compreensiva desta" (Holanda, 2006, p.371). Após a transcrição, as entrevistas foram lidas várias vezes até que emergissem temas abordados pela literatura referente a conversão religiosa e características comuns aos conversos. Tendo como referência a literatura, observou-se que parte expressiva dos relatos foi ao encontro da teoria, ao mesmo tempo em que se identificaram possíveis questionamentos teóricos.
Foi utilizado como referência o modelo fenomenológico naquilo que Van der Leeuw (1933/2009) delimita como o revelar progressivo do fenômeno da religiosidade, em busca de uma estrutura da experiência a ser compreendida. No plano empírico-metodológico, optamos pelo modelo descrito por Gomes (1998), que segue as seguintes etapas para análise das entrevistas: a) Descrição fenomenológica; b) Redução fenomenológica; c) Interpretação fenomenológica. Serão apresentados, aqui, os resultados decorrentes da organização final das entrevistas, no intuito de alcançar os sentidos da experiência da conversão religiosa, utilizando-se das próprias falas dos colaboradores (Gomes, 1998; Andrade & Holanda, 2010).
Descrição das Entrevistas
Foram realizadas quatro entrevistas abertas, que foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas literalmente para análise. As entrevistas foram construídas em torno de uma "perguntadisparadora", uma frase estimuladora para a coleta do discurso dos participantes, que foi a seguinte: conte-me como foi seu processo de conversão religiosa, como foi sua vivência e o que mudou em sua vida após essa experiência religiosa.
Os colaboradores são duas pessoas do sexo masculino e duas pessoas do sexo feminino, com idades e escolaridades variadas. Será feita uma pequena descrição de cada colaborador em cada subitem. Todas as entrevistas contaram com a anuência dos respectivos colaboradores, que assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Sabrina
Sabrina é uma jovem de 29 anos, solteira, sem filhos e que reside com sua mãe. Filha única, a jovem conta que sempre morou apenas com sua mãe, pois seu pai as deixou quando ainda era pequena. Sabrina é graduada em Letras, mas não atua na área. Antes de se converter à Igreja Evangélica, a entrevistada visitava muito pouco a Igreja Católica.
A entrevistada Sabrina relata que procurou a Igreja porque estava com problemas sentimentais e familiares depois de um término de namoro. Nas palavras de Sabrina, "eu tinha acabado de sair de um relacionamento fantasioso, mas eu sei que se não houvesse esse rompimento eu não teria ido para a igreja". Assim, segundo suas palavras, foi um sofrimento emocional que a motivou a buscar a Igreja.
A entrevistada expressa seu medo de viver sozinha e seu grande desejo de constituir uma família comum. Sabrina citou que ainda havia uma pressão por parte de sua mãe para que ela arranjasse um marido, inclusive dando seu telefone na rádio para que homens a procurassem.
Ao buscar a religião, Sabrina citou que foi iludida com a ideia de que: "venha para a igreja que se resolverão os seus problemas" e foi na palavra de Deus que ela encontrou um apoio para suportar o fato de ser sozinha, dando-lhe a expectativa de que uma hora o seu marido iria chegar: "A expectativa, atualmente, sobre casar ou não casar está mais forte ainda, ter família ou não ter família, nasci pra ser sozinha ou pra não ser sozinha? A Bíblia diz que ninguém nasceu pra ser sozinha", "[...] na igreja eu achei como sustentar, manter base pra esperar a hora certa". O sofrimento emocional, associado a um sentimento de solidão, foram responsáveis por seu movimento na direção do encontro com a igreja. Antes de converter-se, Sabrina sentia um "vazio" e que em suas palavras "[...] foi completado por isso, pela religião, pela igreja, pelo conhecimento da palavra, pelo conhecimento da Bíblia".
A nova convertida passou por um processo de resignificação de seus valores: "[...] eu sou uma pessoa antes e depois da igreja", "[...] o que eu penso hoje eu me condeno se é certo ou errado, se devo ou não devo fazer, desde o meu vestuário, muitas roupas que eu usava antes eu já não uso mais". Percebe-se que ela passou a seguir um modelo que norteia seu modo de vida: "minhas atitudes eram baseadas no que eu achava que deveria fazer, agora não mais, é no que diz a Bíblia". A entrevistada ainda confirma a necessidade de ter suas verdades confirmadas quando explica porque ia muito pouco a igreja católica e se descobriu na igreja evangélica: "E quanto ao vazio, é algo assim que a própria igreja católica não correspondia, as coisas que eu pensava, e a igreja evangélica já me trouxe isso, me completou".
Não podemos deixar de considerar o papel social da Igreja enquanto instituição, pois, além do sofrimento emocional, Sabrina relata que também precisava de um amparo sentimental:
é como se eu pudesse ir na igreja pra recarregar a bateria e voltar, aqui eu posso chorar, posso ser triste, posso dar risada, posso ser alegre, posso ter respostas pras minhas dúvidas, posso encontrar pessoas que gostam de mim realmente, ter amizades sinceras.
Ela relata que sentia muita falta do pai e que a religião a ajudava a suportar a falta dele: "a falta do meu pai, essa falta me levou a sentir rejeitada, me levou a sentir o peso de carregar a minha família", "deus é amor, todo poderoso, mas é próximo, é um pai mesmo, que eu não to vendo mas que sei que está aqui perto", assim como quando ela explica que gostava de ser cuidada, "graças a Deus que alguém faz isso por mim, né".
Pablo
Pablo é um estudante de 18 anos, solteiro e sem filhos. Atualmente reside com a mãe e o padrasto, está em curso para se tornar técnico em eletrônica. Nunca havia frequentado uma religião e se converteu à Igreja Evangélica após ceder aos convites do pai para conhecer os cultos.
O entrevistado Pablo relata que conheceu a religião evangélica após aceitar um dos vários convites feitos por seu pai para ir à igreja. Em suas palavras "meu pai, todos os dias que tinha culto, ficava insistindo muito pra eu ir junto e eu recusei várias vezes. Uma vez, ele me falou pra ir num retiro de jovens que ia ter, e de tanto ele insistir eu acabei aceitando". Apesar de ter se sentido um pouco forçado com a insistência do pai, ele afirma que estava aberto para as experiências, "já que já aceitei, já que tem que ir mesmo, vou de coração aberto". Nesse retiro, Pablo conta que foi recebido muito bem, houve quatro ministrações em três dias e uma balada, sem bebidas e só com músicas gospel. Para o entrevistado, isso "mostra que você não precisa de cerveja, não precisa de droga, de cigarro pra se divertir num ambiente bacana". Ele conta também que nas ministrações sentiu uma energia boa que segundo ele seria "a presença de Deus que está no lugar assim e que te domina, tu quer sentir aquilo de novo, tu quer ter a presença dele de novo".
De acordo com Pablo, foi a partir desse retiro que o processo de conversão começou, "a partir desse retiro, das palavras que foram dadas e tal, eu decidi mudar e comecei a ir todo domingo e to até hoje, porque é uma coisa que me faz muito bem, eu gosto de sentir a presença de Deus na minha vida e que me faz bem". Pablo explica que aceitou Jesus no retiro mesmo e descreve a experiência emocional que teve no momento:
Foi muito rápido, não sei muito bem como foi, foi um culto, e eu fui sentindo uma emoção muito forte do lugar, vem tipo uma energia muito positiva porque Deus estava ali, então é um negócio muito forte. Daí perguntava quem quer mudar e eu já comecei a sentir aquela vontade de mudar. E depois perguntou -você quer aceitar Jesus? e eu falei que queria, era isso que eu queria, quero mudar, quero seguir sabe. Daí passou uns 2 ou 3 meses eu me batizei na igreja, foi bem rápido.
O entrevistado descreve seu comportamento antes da conversão e o que mudou:
eu não ia pra aula se pudesse, não fazia nada, fui com vários zeros no boletim, fumava, enchia a cara todo fim de semana, cheguei a fumar maconha, poucas vezes, mas estava entrando nesse mundo e depois disso eu parei total mesmo, com tudo.
Ele explica porque houve essa mudança de comportamento, "Você não quer mais fazer essas coisas porque você quer estar na presença e porque você sabe que se tu fizer algo que desagrade Deus você acaba saindo da presença dele".
Quando questionado sobre o que é estar na "presença" ele relata, com dificuldade, que é "tipo de uma alegria interna sabe? Eu não sei explicar direito assim, mas tu sabe que Deus ta contigo, tu se sente mais forte pra vencer as batalhas".
O entrevistado explica que, para ele, os novos costumes não são um sacrifício, dizendo que:
[...] eu faço porque eu gosto, não algo do tipo -ah eu não posso mais beber, um sacrifício, não, eu não bebo porque eu não sinto mais vontade de beber, acho que acaba sendo uma coisa natural assim, quando tu decide, Deus te ajuda a parar, a reduzir suas vontades.
O entrevistado cita que hoje entende porque seu pai insistia para que ele fosse aos cultos, segundo ele, "quando você sente essa alegria de estar na presença de Deus, tu acaba querendo que todo mundo ao seu redor sinta isso11. Quando questionado se ele também tem essa vontade de levar a palavra de Deus para as pessoas ele afirma que: "Eu tenho muita vontade, mas acho que por enquanto eu ainda não estou tão firme assim, tipo acho que a partir do momento que você tem um fortalecimento espiritual maior fica mais fácil".
Ele cita também que na sua igreja já aconteceram milagres que, segundo ele, não tem como duvidar:
[...] teve uma mulher que chegou de cadeira de rodas num culto, e foi um culto muito forte aquele dia, um culto de cura, de libertação e tal, foi uma coisa muito forte e ela chegou de cadeira de rodas e saiu correndo da igreja assim, levantou da cadeira e saiu correndo.
Manoel
Manoel tem 26 anos, é solteiro, não tem filhos e reside com os pais. O entrevistado passou por 15 internamentos devido a uso abusivo de drogas e diz ter se convertido em seu último internamento. Atualmente trabalha como professor de música. Quando questionado sobre sua religião, Manoel afirmou que não se pode dizer de uma determinada religião, mas explica que: "se for dizer, a tradução de evangelho significa boas novas, então eu acho que sou mais para o evangélico", sendo que a igreja que frequentava era evangélica. Ele cita que "a minha conversão que eu digo foi mais um despertar espiritual".
Manoel relata que usava drogas desde os 16 anos e que, depois da ultima internação, a conversão foi a única saída para ele. Manoel conta que uma vez foi à igreja com um amigo, mas descreve que: "Quando eu orava parecia uma coisa distante, Deus não parecia uma coisa tão próxima, parecia uma entidade muito distante da gente e que é difícil chegar até ele."
Foi durante seu último internamento, em uma comunidade terapêutica, que Manoel afirma ter tido um encontro com Deus: ele descreve que tentou fugir, mas não conseguiu. Ele conta que podia ver a família apenas uma vez por mês e suas cartas eram confiscadas pela comunidade. Além disso, relata que teve uma conversa com um psicólogo: "[...] era um cara que eu tive uma empatia muito forte, as ideias bateram muito rapidinho". Esse psicólogo falou que sua mãe ligava todo dia e citou exemplos de como a sua família estava realmente cuidando dele, o entrevistado acha que: "as mudanças começaram a partir daí".
Manoel descreve que eles tinham um grupo de espiritualidade na comunidade terapêutica. Um dia chegou um paciente novo e sentou em seu lugar, segundo o entrevistado: "era um cantinho que encaixava legal, encostava e quase dormia com o meu capuz". Ele acabou deixando o rapaz ficar em seu lugar e sentou-se mais no meio. O entrevistado relata que: "Querendo ou não eu ouvi duas músicas que estavam tocando no violão, mexeu comigo, eram duas letras que foram feitas sobre medida pra mim, remetia a muitas coisas, fala de mim, da minha vida, da minha infância". Manoel conta que nesse dia: "meio que eu tive um encontro marcado com Deus". Ele conta que nesse momento fizeram uma oração e disse:
Jesus, por favor, me ajuda a sair disso porque eu já tentei através da psiquiatria, da psicologia, até acupuntura eu já fiz, já fiz de tudo, então me ajuda a sair disso, por favor, porque ou eu saio ou eu morro e está cada vez pior e eu gosto de fazer isso, então me ajuda a querer parar de usar as coisas que eu uso porque eu gosto eu quero usar.
Ele relata que:
na hora veio um choro, mas um choro gostoso, eu comecei a chorar de soluçar e um cara veio me dar um abraço e parece que passou um filme na minha cabeça de tudo o que passou comigo, deu uma sensação de que quando passou aquele choro, deu uma sensação de que eu estava livre, a minha cabeça mudou na hora, foi uma coisa incrível mesmo, era como se tivesse entrado uma máquina, um triturador e naquele meio tempo Jesus tivesse conversado comigo.
E complementa contando que: "de certa forma no meu coração eu já sabia o que tinha que fazer, eu saí dali vigorado né, saí pensando, nossa eu já sei o que tenho que fazer agora, e pô só depende de mim". O entrevistado conta que aquele dia foi a uma igreja, outro dia foi a outra e que: "a palavra de Deus diz que quando a semente foi plantada ela vai germinar uma hora ou outra né. Eu creio que foi meio que isso que aconteceu comigo".
Ele descreve como era sua vida antes da conversão para explicar como foi a transformação de vida, num momento de término de namoro como exemplo:
eu era bem promíscuo, então eu transei com outras fiquei com outras na balada, eu ficava muito louco o tempo todo, isso me afastou do contato com a dor que, ainda mais tendo banda naquela época, eu viajava direto pra lá e pra cá, então eu fiquei bastante distante de mim mesmo.
Complementa que antes da conversão: "eu arranjava muita briga, eu tive comas alcoólicos, tive overdose. Já briguei com meu pai fisicamente, já me envolvi até um pouquinho com o tráfico". Manoel cita que ainda faz algumas coisas que são contestadas pela Igreja: "[...] por exemplo, sexo antes do casamento, eu não estou mais namorando mas a gente fazia, eu fumo, parei de fumar por seis meses, mas infelizmente eu voltei".
Ele explica que precisou mudar seus ciclos de amizades, pessoas hábitos e lugares, porque sabia que eles podiam ser nocivos naquele momento. O entrevistado descreve o que mudou em sua vida após a conversão: "O que mudou depois foi que eu quis ficar longe disso tudo, por exemplo, eu evitei os amigos por um tempo, vamos dizer assim, porque mesmo querendo o meu bem, eu achava intragável umas coisas que eles faziam". Continua: "pra mim a droga virou uma coisa inanimada, graças a Deus né, mas querendo ou não eu achava aquela coisa feia, sei lá, não achava uma coisa legal". Manoel relaciona essa mudança de interesses ao momento em que se aproximou da Igreja: "isso veio junto com, quando eu estava andando mais próximo da igreja, eu busquei mais coisas boas e que me faziam bem de uma forma geral, caráter, sempre honrar meu pai, minha família". Ele cita que passou a valorizar coisas cotidianas que não valorizava mais. "Eu comecei a ver meu pai realmente como ele é, minha mãe também, eu estava sempre com uma aparência magra". "[...] eu comecei a valorizar essas coisas caseiras que eu não valorizava mais". "[...] eu voltei a assistir filme, eu voltei a estudar muito música novamente, comecei a ler de volta, voltei a praticar mais esporte que eu gosto".
Manoel complementa descrevendo uma mudança de visão de mundo: "[...] eu peguei uma visão pra algumas coisas que eu não tinha antes, eu vou num ambiente e percebo que esse ambiente está pesado, eu não tinha umas coisas assim".
Daí foi tudo isso, crescimento de caráter, como pessoa, comecei a me policiar até mesmo em não mentir. Passava mais tempo com a família, a fazer coisas que agregassem valores que eu pudesse levar pra sempre, por exemplo, espiritualmente falando né, mentalmente falando, nada de prazeres passageiros, imediatos, essa mudança foi também de hábitos mesmo, não porque eu preciso e tal, mas porque realmente eu passei a ver as coisas de modo diferente.
Lara
Lara tem 60 anos de idade, é casada e tem dois filhos. Advogada, já não atua mais na área. Conta que era católica, mas encontrou na religião evangélica explicações para uma determinada dificuldade em sua vida. Quando questionada sobre sua religião, Lara demonstra certa dificuldade para nomear alguma religião a que ela se enquadre, em suas palavras: "Eu era católica, hoje, segundo minha terapeuta, eu sou ecumênica, eu não tenho assim uma religião específica, eu sou evangélica".
Ela explica a diferença da Igreja Católica e da Evangélica, em sua opinião:
O católico é sempre morno né, ele vai na missa, ele reza, ele é formal, mas ele não entra dentro da questão, ele não sente a presença de Deus que os evangélicos me levaram pra esse caminho, de sentir a presença de Deus, eu até me arrepio quando falo nisso.
Lara expressa que enquanto era católica lhe faltava algo, em suas palavras: "[...] eu fazia novena, eu ia lá no perpétuo socorro, mas com o passar do tempo eu via que aquilo não trazia sentido pra mim, não fazia"e complementa:
a igreja católica não me dava mais aquele vínculo que eu precisava, foi boa, foi ótima, eu respeito, tenho grandes amizades dentro da igreja católica, mas não saciava mais o que eu precisava, eu precisava entender Deus, ter ele comigo, perceber ele ao meu lado.
Por outro lado, demonstra que a Igreja Evangélica lhe proporcionou uma experiência diferente: "Eu reconheço que os evangélicos foram quem escancararam a porta, pela forma com que eles veem". Ela descreve o que para ela seria uma pessoa ecumênica como "[...] aquele que aonde existe uma fé cristã ele está ali buscando, não importa qual a religião". Mas a entrevistada relata também que cuida com os limites de seus hábitos: "eu cuido muito pra não ficar fanático, pra não ficar aquela coisa de aleluia, não, tudo tem um limite, mas a presença de Deus pra mim é algo concreto e foi nesse meio que eu consegui isso".
Ela explica que a sua conversão aconteceu em um momento em que ela falou para si mesma: "bom, eu não tenho saída". Lara relata que aconteceu uma situação com seu filho, a qual ela preferiu não divulgar, e segundo ela:
caiu o mundo, quando aconteceu isso com o meu filho que eu entendi que eu era perdida, eu não tinha pra onde ir, eu entrei em total desespero, eu acabei, literalmente. Remédio, hospital, terapia, terapia eu já fazia na realidade, mas eu acabei.
Ela relata que a conversão foi um processo e ela queria entender por que havia ocorrido isso com seu filho, "eu parecia uma pessoa que estava totalmente fora do normal. E aquele processo foi, de muita revolta, revolta, de não entender por que".
Ela relata que esse processo durou quase um ano e, segundo ela:
aí vieram pessoas da igreja evangélica, por causa da situação do meu filho que começaram a me ajudar a entender o que acontecia com ele. Eu passava noites, madrugadas na internet tentando fazer contato com pessoas que tinham a mesma situação dele pra entender, eu não, eu queria entender, o meu racional queria entender o que tinha acontecido com toda a vida dele pra resultar no que resultou.
A entrevistada demonstra não se prender a nomenclaturas, mas busca na religião aquilo que lhe confere força, como é possível verificar nos relatos:
eu filtro aquilo que me fortalece e hoje eu alcancei um pouco tão gostoso que, assim, nos piores momentos da vida, você tem que forçar, você tem que ir atrás de Deus. Então eu vejo Deus como uma força, que está dentro de você, que te criou.
E ainda reforça que "se você evocar Deus pra sua vida, a proteção dele, ele transforma, não que ele transforma em coisa boa, ele vai dar força pra você aguentar isso e ter uma visão diferente". Segundo ela, "se Deus me der essa força, me der essa paz que eu tenho hoje, pra aguentar isso, pra mim já está bom"e" hoje eu ponho Deus na frente de todas as coisas, é um processo totalmente inverso e eu sinto essa força".
Lara conta que antes tinha problemas como medos e que foram superados:
Com essa idade eu tinha medo de dormir no escuro, o meu guarda roupa, eu tinha assim, um toque, a noite eu tinha que fechar tudo e eu ficava com medo de cair um defunto, com essa idade, hoje eu convivo na escuridão, então certos medos, problemas que eu tinha eu não tenho mais.
Segundo ela, "hoje até os meus negócios eu coloco pra Deus, eu reconheço que existe um ser maior que pode fazer com que eu atravesse a tempestade".
A entrevistada fala da conversão como algo de extremo valor em sua vida, "A busca por Deus, a conversão por parte dos evangélicos foi a melhor coisa que eu tive. Eu hoje não estaria suportando o que estou suportando sem a presença de Deus". Ela também demonstra atribuir parte de sua alegria de viver a Deus, "Hoje eu vejo que tudo que está acontecendo na minha vida, e não é pouco, eu ainda sinto alegria de ouvir os passarinhos cantando e, gente, eu tenho que atribuir isso a Deus, não é possível".
Os Sentidos da Conversão
Apesar das dificuldades em encontrar materiais de pesquisa sobre o tema e a necessidade de se realizar estudos complementares, percebe-se, tanto pela revisão de literatura quanto pela análise das entrevistas, que a experiência de conversão religiosa é, acima de tudo, uma tentativa de dar sentido à vida. Quando nascemos, não nos é cedido um manual de sobrevivência e de conquista da felicidade. Somos nós que, a cada dia, construímos, a partir de nossas vivências, a nossa própria perspectiva de mundo e criamos nossa trajetória de vida. A crença religiosa pode proporcionar ao indivíduo respostas que não são saciadas pela ciência, assim como os dogmas podem servir de guias para uma vida de sentido.
Destacamos aqui que, apesar de Manoel e Lara não se autonomearem evangélicos, ambos demonstraram ter tido um despertar espiritual a partir da religião evangélica. Os dois entrevistados chamaram atenção para um processo de transmutação da religiosidade em espiritualidade, como descrito por Siqueira (2008). Ambos demonstraram que o mais importante, para eles, não é o envolvimento institucional com a religião, mas o encontro com o divino. Fato que nos faz refletir sobre uma tendência pós-moderna, a qual:
(...) cada um seleciona as crenças que lhe pareçam mais plausíveis e pratica isoladamente os rituais que se lhe configurem mais eficazes. Essa recusa do institucional decorre da recusa da "verdade pronta", imposta pelos dogmatismos e exclusivismos. A religião é vista, e por isso valorizada, como uma busca constante em que o indivíduo vai se aprofundando no que lhe parece fazer sentido. Trata-se de uma atitude religiosa ativa, embora individual (Negrão, 2008, p.275).
A conversão religiosa tem como principal característica a possibilidade de transformação de vida do sujeito, refletida na mudança de comportamentos, sentimento de harmonia com a vida e nova visão de mundo. Distinguem-se duas fases de sua experiência: o homem velho que não sabia e não via, e o homem novo, que sabe e vê (Alves, 2005). Percebe-se que os quatro entrevistados passaram por uma mudança radical de comportamento após a conversão. Não temos aqui a pretensão de afirmar que as mudanças se deram apenas por conta da nova posição religiosa, mas de acordo com os sentidos relatos pelos participantes, consagra-se a conversão como um elemento fundamental nesse processo.
Sabrina descreve que buscou a religião por conta de um sofrimento emocional, um término de namoro; além disso, sentia solidão, uma expectativa de saber se um dia iria casar, falta do pai, um vazio e sentia que a Igreja Católica não correspondia mais a sua forma de pensar o mundo. Após a experiência de conversão, segundo os relatos de Sabrina, ela encontrou na Bíblia uma palavra de apoio para esperar o momento certo do casamento. Ela também descreve que sua proximidade com Deus amenizou sua falta de um pai, afirmando que Deus não é visto, mas está sempre perto e cuidando dela. Além disso, Sabrina relata que seu vazio foi completado pela religião. Suas atitudes, suas concepções do que é certo e errado, passaram a estar alinhadas com o que a Bíblia ensina.
Pablo é o único dos entrevistados que não apresentava um sofrimento aparente como justificativa para sua busca pela religião. Ele enfatizou, em seus relatos, a excitação emocional que sentiu no momento da vivência da conversão, uma energia, uma emoção muito forte que, segundo ele, era a presença de Deus no lugar. Pablo afirma também que o processo foi muito rápido e que logo sentiu uma vontade de mudar de vida e de seguir a Deus. Sua mudança de comportamento é evidente quando ele relata que não queria estudar, fumava, bebia e, após a conversão, passou a estudar, parou de beber, de fumar, passou a se sentir mais forte e passou a gostar dos novos hábitos, passados pela religião.
Manoel aderiu à crença religiosa em um momento de muito sofrimento em sua vida, quando vivenciava seu 15º internamento, devido ao uso de drogas. O processo de conversão de Manoel também foi marcado por uma forte excitação emocional, a qual iniciou com algumas músicas que, segundo seus relatos, lhe proporcionaram uma forte identificação. Manoel conta que foi um momento de ‘encontro com Deus1, de muito choro e que seu modo de pensar mudou instantaneamente, como se, a partir daquele momento, Manoel soubesse o que deveria ser feito. Além desse momento de identificação, Manoel destaca a importância do apoio familiar nesse processo. Sua mudança de vida se mostrou muito radical, tendo como principal característica o afastamento das drogas. Ele descreve também que se envolvia muito em brigas, havia tido comas alcoólicos, overdose, tinha se envolvido com tráfico de drogas, além de ser mais promíscuo e com aparência mais magra. Após a conversão, além de se afastar das drogas, Manoel conta que aconteceram muitas mudanças de hábitos, se afastou de alguns amigos que lhe pareciam danosos, passou a achar a droga uma "coisa feia", passou a valorizar outras coisas que lhe agregassem valores, como sua família, sua honra, assistir a filmes, estudar música, ler, praticar esportes. Ele relata que foi uma mudança de visão de mundo. A relação entre religião e melhora da dependência química não é nenhuma novidade no campo científico, dado que "existem estudos apontando para uma possível influência positiva da religiosidade para a recuperação dos dependentes de drogas" (Sanchez & Nappo, 2007, p.74).
Para Lara, a conversão não foi instantânea, foi um processo, o qual ela foi se apropriando, com o tempo, dos ensinamentos evangélicos, com o intuito de saciar seu sofrimento por não entender o que havia acontecido com seu filho. Ela conta que faltava algo na Igreja Católica que não lhe trazia sentido, sentido que ela encontrou nos ensinamentos evangélicos - ela passou a sentir a presença de Deus. Além da presença de Deus ela encontrou explicações para entender a situação que seu filho enfrentava. Lara descreve que, antes da conversão, sentia-se sem saída, também se sentia revolta, com muitos medos e se sentia em crise necessitando de remédios e psicoterapia. Após o seu processo de conversão religiosa, ou encontro com os ensinamentos evangélicos, ela relata que ganhou força para suportar os obstáculos, a nova crença lhe trouxe sentido e ela, inclusive, superou muitos medos que tinha. Além disso, Lara atribui sua felicidade a Deus, esse fato é destacado como algo que sustenta a crença. "Se um credo faz o homem sentir-se feliz, ele o adota quase inevitavelmente" (James, 1902/1995, p.59).
Além das transformações de significações apresentadas pelos entrevistados, é importante destacar que todos apresentaram um sentimento de harmonia com o mundo, de ser unificado, certo e feliz, como indicado por diversos autores (James, 1902/1995; Alves, 2005; Barra, 2008). Outro elemento muito presente nos relatos foi a excitação emocional vivenciada no momento da conversão, com exceção de Sabrina, que não enfatizou o momento da vivência e podia ser questionado em um momento posterior; enquanto Pablo, Manoel e Lara demonstraram ter sentido uma emoção que precipitou os rearranjos mentais, como descrito por James (1902/1995).
Ao final da pesquisa pode-se concluir que algumas questões ainda ficam por ser respondidas; uma delas seria se deve haver um "contexto" para que a conversão aconteça. James (1902/1995) aponta que existem dois estados que antecedem a conversão, que seria: 1) um sentimento de inacabamento ou erro presente; ou, 2) um ideal positivo que ambiciona ser levado a cabo. Para Alves (2005) existiria uma crise emocional de sentido, a qual gera sofrimento. O que percebemos nas entrevistas é que Manoel, Sabrina e Lara apresentavam um sofrimento designado aparente, porém fica o questionamento sobre o caso de Pablo, o qual buscou a religião por insistência do pai. Ele não relata um sofrimento, mas relata que se mostrou "de coração aberto" para o que pudesse acontecer.
Encontrou-se, no presente trabalho, limitações bibliográficas e que podem ser melhor trabalhadas num trabalho futuro. Para se obter uma maior abrangência de resultados, é fundamental que sejam realizadas pesquisas complementares e que sejam incluídas outras religiões na investigação, além da evangélica. Espera-se que o tema seja mais explorado pela comunidade científica compreendendo, a importância da experiência religiosa, que exerce grandes influências na constituição do ser humano e da sociedade como um todo.
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Recebido em: 14/05/13
Aceito em: 16/08/13
1 Contato: denisdefreitass@gmail.com