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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.9 no.1 Juiz de fora jun. 2016

 

REVISÕES CRÍTICAS DE LITERATURA

 

Os caminhos da pesquisa psicanalítica: da epistemologia ao método

 

The psychoanalytic research path: from epistemology to method

 

 

Tiago Ravanello1; Isloany Dias Machado; Marisa de Costa Martinez; Luiza Maria de Souza Nabarrete

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

 

 


RESUMO

A reflexão sobre a pesquisa em psicanálise se concentra em geral: (a) num embasamento epistemológico no qual o conceito de verdade esteja diretamente ligado à teoria do inconsciente; (b) num debate entre a pesquisa psicanalítica e os diferentes modelos de pesquisa científica, no qual as teorias em psicanálise podem ser colocadas em questão quanto ao seu método. O presente estudo propõe, em linhas gerais, a discussão sobre a construção de conceitos em psicanálise e, por consequência, seu estatuto epistemológico. Nesse sentido, voltamos às origens da teoria que surge no final do século XIX, com Sigmund Freud, a fim de questionar o contexto histórico de construção científica e os possíveis modelos de ciência de sua época. Na sequência abordaremos a questão a partir da proposta lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem que só poderia ser abordado a partir de seus efeitos (sonhos, atos falhos, sintomas).

Palavras-chave: Psicanálise; Epistemologia; Inconsciente.


ABSTRACT

The reflections regarding the psychoanalysis research generally focus on: (a) an epistemological basis, on which the concept of truth is directly connected to the theory of the unconscious; (b) a debate between psychoanalytical research and different models of scientific research, in which the psychoanalysis' theories can be put in question regarding their methods. The present study proposes, in general, a discussion about the construction of psychoanalytic concepts and, consequently, its epistemological status. In this sense, we return to the origins of the theory, developed in the late nineteenth century, by Sigmund Freud, in order to question the historical context of scientific construction and the possible models of science available at the time. Following, we will discuss the issue based on the Lacanian proposal of the unconscious structured as a language, which could only be approached from its effects (dreams, Freudian slip, symptoms).


 

 

INTRODUÇÃO

Partindo de uma abordagem ampla, podemos considerar que a epistemologia teria como intuito propor referências sólidas que traçariam o caminho que nos levaria dos seus princípios internos até a metodologia da construção do conhecimento, assim como à elaboração de princípios organizadores da práxis. Tratar-se-ia, portanto, de princípios norteadores da realidade e da visão de sujeito, que acabariam por culminar na produção de determinadas teorias e propostas metodológicas específicas (Japiassu, 1981).

Neste sentido, Freud provocou inúmeras reações adversas ao propor uma teoria do inconsciente, deparando-se com diversas dificuldades para que sua teoria fosse reconhecida no meio científico de sua época. Isso porque a psicanálise colocou a sexualidade no cerne de sua teoria, situando o homem como um ser em conflito entre forças antagônicas (as pulsões e a cultura repressora) e atribuindo grande importância aos acontecimentos da infância e sua relação com a constituição do psiquismo, características que o aproximavam da episteme romântica e o afastariam das ditas ciências naturais. A crítica a sua teoria residia justamente no fato de que, assim como as ciências naturais, os saberes psi também deveriam fornecer um conhecimento "útil" que visasse à previsão e controle dos eventos psíquicos e comportamentais e que garantissem a sua validez e neutralidade. Para as matrizes inspiradas no pensamento romântico de oposição ao racionalismo iluminista e ao domínio do método, o objeto da psicologia não se refere a eventos naturais, mas trata-se de formas expressivas, isto é, as ações, produtos e obras de uma subjetividade singular que por meio deles se propõe a conhecer (Silva, 2012).

Desta forma, o presente estudo tem por intuito propor uma discussão acerca do estatuto epistemológico da psicanálise, tendo como mote a seguinte reflexão: em que sentido sua implicação no campo da linguagem retira o seu estatuto do modo de configuração epistemológico das ciências da natureza? Vale destacar que, posteriormente, retomaremos a discussão por meio das contribuições da proposta lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem - e que só poderia ser abordado a partir de seus efeitos (sonhos, atos falhos, sintomas) -, fazendo recorrência, então, a uma concepção de sujeito desejante e assujeitado pela linguagem e, consequentemente, constituindo uma posição epistemológica própria. Portanto, levando isso em consideração, defendemos neste estudo a hipótese de que o estatuto epistemológico da psicanálise, partindo da teoria do inconsciente estruturado como uma linguagem, deve ser radicalmente repensado, contribuindo, portanto, para uma concepção de epistemologia condizente com uma fundamentação mais rigorosa no campo da linguagem.

 

POR UMA ABORDAGEM EPISTEMOLÓGICA E METODOLÓGICA EM PSICANÁLISE

A psicanálise surge no século XIX, em um período histórico de construção científica no qual o modelo vigente era o da ciência moderna. O nascimento desta ocorreu no século XVII e Descartes pode ser considerado um marco da nova ciência, pois representou um ponto de partida na discussão da valorização de um sujeito racional e sede da experiência do saber. Segundo Figueiredo (1995, p.16), "a dominância, tipicamente moderna, das tradições teóricas e epistemológicas, em que emergem e avultam as questões da fundamentação, e do método, reflete uma nova posição do homem [...]". Voltando à proposta original da ciência moderna em seu principal autor, apresentamos a afirmação de Descartes (1641/2008), segundo a qual a dúvida hiperbólica é o encaminhamento da certeza, sendo o sujeito enquanto resultante do cogito uma "coisa que pensa" e, expandindo a definição a partir da noção de coisa: "uma coisa que duvida, entende, concebe, afirma, nega, quer, não quer, e também imagina e sente" (p. 92). Logo, segundo Descartes, tudo isso faria parte do que o autor chama de "natureza humana". Por consequência, Descartes propõe um método científico que pudesse orientar essa coisa pensante, que expurgasse as variabilidades desse sujeito para que não incorresse em erros. O rigor do método serviria para controlar, o que pode ser notado no seguinte trecho:

Mas vejo bem o que se passa; meu espírito é um vagabundo que gosta de se perder e não poderia suportar que o prendam nos justos limites da verdade. Soltemos-lhe, pois, mais uma vez as rédeas e, dando-lhe todo tipo de liberdade, permitamos-lhe considerar os objetos que lhe aparecem externamente, para que, vindo mais tarde a retirá-la lenta e convenientemente e a detê-lo na consideração de seu ser e das coisas que encontra em si mesmo, ele se deixe depois disso mais facilmente governar e conduzir. (Descartes, 1641/2008, p. 93)

A ciência moderna, tendo como marco a obra cartesiana, propôs a ênfase no sujeito como fruto de um método de expurgo, do rigor científico, em que o objetivo principal das correntes epistemológicas era o de buscar um sujeito epistemológico pleno, consciente de si e senhor absoluto de sua vontade. Nesse sentido, temos a proposta de um sujeito que seria conduzido pela razão em oposição às paixões mundanas. A partir deste rigor temos, conforme Figueiredo (1995), uma cisão entre um sujeito ascético e tudo aquilo que comprometesse a confiabilidade desse sujeito, ou seja, tudo que pudesse remeter aos seus desejos e afetos, bem como sua variabilidade e singularidade. De acordo com o autor, afirmamos que é possível notar o fracasso reiterado dessa cisão, a partir da história construída sobre o projeto epistemológico moderno e suas diferentes versões.

Consideramos a psicanálise fazendo parte, segundo Garcia-Roza (2009), de um "conjunto de saberes sobre o homem, que se formou a partir do século XIX" com a proposta de descentramento da razão (p. 22). Isso não quer dizer que a psicanálise desconsidere a razão consciente, fruto da purificação do método, mas esta passa a não ser mais a base primordial do saber na teoria psicanalítica. Portanto, nesta temos uma razão calcada no inconsciente, que sobredetermina a consciência, sendo que a teoria freudiana apontaria para a sobredeterminação inconsciente, o que implica dizer que o sujeito não é senhor em sua própria morada, ou seja, não tem pleno controle de seus desejos, pensamentos, sentimentos e afetos. Assim, a psicanálise enfatiza a variabilidade em detrimento da regularidade e generalização dos fenômenos, o que implica em repensar a relação com os modelos científicos. Nesse sentido, a citação abaixo apresenta um panorama das questões a serem abordadas no artigo, quais sejam, a constituição do estatuto epistemológico da psicanálise e a construção dos conceitos a partir de uma teoria do inconsciente, que aponta para o sujeito, a seu modo, desejante:

Significa apenas dizer que, reorientada através dos esforços, como os de Lacan, para uma leitura inovante de Freud, a psicanálise pode se tornar uma teoria bem posicionada epistemicamente para substituir uma certa visão 'ortopédica' do sujeito da ciência - forjado nas cadeiras do cogito cartesiano - por uma visão 'profilática', das relações entre um ego cogitante e um sujeito desejante, entre o imaginário da sua cognição e a verdade do seu desejo. Tal convicção significa, pois, apenas querer ver o campo da ciência inclinar-se 'epistemologicamente' à evidência do inconsciente. (Beividas, 2000, p. 17, itálicos do autor)

O caráter inventivo da releitura lacaniana2 da teoria de Freud, ao propor uma subversão do cogito cartesiano a partir da invenção do inconsciente em função do desejo se sobressair em relação à razão consciente, destaca-se também pelo reposicionamento do analista diante do seu objeto de pesquisa e as características que delimitam sua práxis. É nesse sentido que destacamos a seguinte passagem do texto lacaniano a respeito do caráter fugidio do objeto de pesquisa em psicanálise: "Mas esse princípio, ao articulá-lo de um modo que, ao longo da análise, não se apresenta jamais como encerrado, fechado, completo, satisfatório, esse perpétuo movimento, deslizar dialético, que é o movimento e a vida da pesquisa analítica" (Lacan, 1958-59, p. 259). Ao contrário das tentativas de implicar o texto freudiano em abordagens realistas do mundo externo, seja por meio das reduções biologizantes do aparelho psíquico, seja pelo retorno a um inatismo de ordem instintual, Lacan nos propõe uma leitura do estatuto epistemológico psicanalítico marcado pelo papel estruturante da linguagem em todo o seu caráter dialético e inatural. É nessa conexão que retomaremos, ao longo do texto, o questionamento feito por Freud, nos limites da teoria psicanalítica, a respeito da prevalência da observação (haja vista que o inconsciente não pode ser observado se não pelos seus efeitos: os lapsos, chistes, sonhos e atos falhos) e a reflexão lacaniana quanto ao sujeito da ciência.

Lacan (1998), em A ciência e a verdade, afirma ser "impensável que a psicanálise como prática, que o inconsciente, o de Freud, como descoberta, houvessem tido lugar antes do nascimento da ciência" e que não foi um pretenso rompimento de Freud com o "cientificismo de sua época" (p. 871), mas esse mesmo cientificismo o teria conduzido à produção das bases da teoria psicanalítica. Porém, ainda que tenha surgido nesse contexto de expurgo da variabilidade dos sujeitos pelo rigor do método, segundo Figueiredo (1995), a psicanálise se ocupa justamente do que é colocado de lado pela ciência, pois o desconsiderado é algo que não cessa de se escrever, ou seja, de se fazer presente por meio das formações do inconsciente: sonhos, lapsos, chistes e sintomas. Isso implica que, mesmo sendo suprimido pela ciência moderna, o "resto" dessa ciência está presente em nossas ações cotidianas por meio das manifestações do inconsciente. Se para Lacan (1998) o sujeito da psicanálise não pode ser outro se não o mesmo da ciência, trata-se aqui do sujeito "não da desrazão e sim da razão inconsciente, cuja lógica é também apreendida através do método psicanalítico" (Quinet, 2000, p. 12).

Voltando à história da construção do saber psicanalítico, segundo defende Assoun (1983), ela teria seu nascimento marcado pelo conflito entre saberes pertencentes às ciências da natureza (Naturwissenschaften) e às do espírito (Geisteswissenschaften). Enquanto as últimas ainda buscavam o reconhecimento da comunidade científica, o estatuto epistemológico das primeiras já estava bem estabelecido de acordo com os critérios de validação da época. Embora a formação de Freud como pesquisador tenha se dado sob a lógica naturalista, o quanto tal formação foi ou não abandonada é um problema complexo e de contornos difíceis de precisar, uma vez que o texto freudiano apresenta, como pano de fundo, o conflito entre diferentes matrizes epistemológicas referentes aos dois modelos de ciências. Foi nesse contexto que Freud (1895) escreveu o seu Projeto para uma psicologia científica (1895) que, segundo Assoun (1983), seria um escrito de base fisicalista no qual se buscava na diferença entre tipos de neurônios, ou seja, na matéria "sistema nervoso", as explicações para eventos psíquicos, tais como os da sexualidade e da psicopatologia. Ainda segundo esse autor, no período inicial de sua obra, Freud faz uma analogia entre o objeto da psicanálise e o da química, dizendo que o determinante químico é subjacente ao determinante psíquico. Conforme Assoun (1983), a intenção inicial de Freud era a de colocar "o saber psicológico sob o rótulo de provisório, aguardando que o saber químico tome seu lugar, fornecendo-lhe seu substrato. Uma química integral seria, pois, o futuro da psicanálise" (p. 65). Nesse sentido, seu argumento aponta para o aspecto político do argumento freudiano, já que a comprovação material dos fenômenos psíquicos, em conformidade com o que era exigido como científico à época, tornaria o próprio modelo de pesquisa passível de validação. Para Assoun, é somente a partir da ruptura com a base fisicalista que a psicanálise passa a ter uma "epistemologia própria": a metapsicologia como tentativa de "reconstrução exaustiva do edifício metapsicológico que vai condicionar a elucidação dessa identidade" (p. 84). Entretanto, convém questionar o que seria uma epistemologia própria. Neste trabalho, visamos opor duas posições: ou bem a psicanálise se apresenta como uma teoria com validade externamente de acordo com os modelos científicos impostos por outros campos de saber (sendo aí notória a aproximação com as neurociências), ou bem será levada a questionar o peso subversivo da tese do inconsciente e da linguagem como estruturante dos fenômenos psi como releitura de seu papel no rol das visadas sobre a epistemologia. Retomaremos essa questão quando abordarmos a posição lacaniana sobre o tema.

O ponto de partida do argumento não poderia ser outro senão a maneira como Freud (1915/1996)3 vai paulatinamente se aproximando das estruturas discursivas de seus pacientes, de sua clínica, diferente de propostas de redução do fenômeno em seus determinantes de cunho biológico.4 Assim, estabelece uma nova posição epistemológica de ultrapassagem em relação aos projetos iniciais de instauração da psicologia centrada na consciência: a metapsicologia.5

Devido às críticas recebidas, o autor faz um questionamento quanto ao que define uma ciência, para tanto, em seu artigo metapsicológico As pulsões e seus destinos ele diz:

Ouvimos com freqüência a afirmação de que as ciências devem ser estruturadas em conceitos básicos claros e bem definidos. De fato, nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. [As] ideias [...] devem, de início, possuir necessariamente certo grau de indefinição; [...]. O avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive em se tratando de definições. A física proporciona excelente ilustração da forma pela qual mesmo 'conceitos básicos', que tenham sido estabelecidos sob a forma de definições, estão sendo constantemente alterados em seu conteúdo. (p. 123)

Isso implica que, "nem mesmo a mais exata" das ciências teria o poder (e quiçá a pretensão) de construir verdades absolutas na elaboração de seus conceitos. Freud aposta no movimento atribuído por ele à ciência, de revisão conceitual sistemática, dando a sua teoria status de ciência e não de dogma (imutável). Nesse sentido, Beividas (2000) aponta que "a obra de Freud é tão polivalente e a investigação da realidade psíquica o levou a atravessar tantos domínios da mente humana que há sempre flancos, nas entrelinhas do seu texto" (p. 27). Um exemplo da revisão teórico-conceitual tal como operada por Freud (1897/1996) é quando ele, na Carta 69, escreve a Fliess que não acredita mais em sua neurótica, que é a primeira teoria das neuroses como teoria da sedução, passando a formular a teoria da fantasia. Vale ainda acrescentar que Freud (1905/1996) faz adendos consideráveis ao texto na forma de notas de rodapé nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, sendo mais um exemplo de revisão teórica do autor de seus próprios textos. Porém, para Freud, neste momento, a construção do conceito diferencia-se da constatação da realidade, ou da coisa em si, mas sim, enfatiza-se o corte radical feito pela psicanálise, seguindo a leitura lacaniana, entre saber e verdade. Um encaminhamento possível nesse caso seria o retorno ao conceito freudiano de realidade psíquica, que traz a possibilidade de evitar a construção de elementos mentais que sejam vistos como simulacros do externo, os quais, a verdade ou erro seriam medidas por critérios de aproximação. A nosso ver, este é o encaminhamento dado por Freud, o que pode ser notado na citação a seguir:

A distinção nítida entre neurose e psicose, contudo, é enfraquecida pela circunstância de que também na neurose não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra que esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela existência de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo externo real na época da introdução do princípio de realidade. (Freud, 1924/1996, p. 208)

Por outro lado, a disjunção entre saber e verdade, tal como consta na releitura lacaniana sobre o tema, possibilita uma abordagem da realidade psíquica como regime de existência independente do que seria uma realidade externa. Sua relação com a verdade, nesse sentido, não se daria em termos de aproximação positiva com um objeto existente e independente da realidade psíquica, mas sim obedecendo aos critérios de desejo e investimento, o que leva Freud a supor o inconsciente como "verdadeira realidade psíquica" e sobredeterminante em relação à consciência (Freud, 1900/1996). Nesse caso, o discurso clínico em psicanálise coloca o saber proferido pelo analisando como real, factual e presentificado na medida da intensidade de sua expressão. Assim, a experiência do discurso analítico enquanto método clínico possibilitou a Freud sua construção teórica, tomando os casos clínicos como dados passíveis de interpretação, uma vez que toda clínica produz teoria e toda teoria visa produzir dispositivos clínicos. Tal intersecção entre teoria e clínica está presente desde os primórdios da psicanálise, como no texto Estudos sobre a histeria (1893), no qual se nota que a pretensão freudiana estava para além da cura, ou seja, remissão dos sintomas histéricos.

No processo de construção da teoria freudiana, o movimento de revisão conceitual permitiu, igualmente, a mudança dos critérios de legitimidade e das formas de compreensão dos fenômenos epistemológicos. Se Freud buscava inicialmente em sua pesquisa uma correspondência orgânica para o aparelho psíquico, conforme uma base inicial fisicalista, na posição acima descrita como a da busca da verdade por aproximação, a teoria vai gradualmente apontar para os indícios da impossibilidade dessa correspondência. Um exemplo disso é a passagem do texto O inconsciente, na qual Freud (1915/1996) defende a impossibilidade de localização cerebral do inconsciente enquanto substância ou matéria objetivável e observável enquanto tal.

Portanto, se a construção teórica das relações entre aparelho psíquico e realidade vai paulatinamente abandonar a possibilidade de uma relação ponto a ponto entre representação e objeto representado, a consequência epistemológica é a necessidade de apresentar os parâmetros por meio dos quais esta, então, se daria. Isso porque, ressaltamos, a hipótese do inconsciente como verdadeira realidade psíquica é contraditória com a posição de um realismo representacionista que acabaria por colocar a similaridade com o externo como prioridade na construção do psicológico. Assim, Freud defende um regime de realidade psíquica autônomo, porém, não totalmente alheio ao externo. Neste, o conceito de determinismo psíquico possibilita uma abordagem tanto entre os sistemas (inconsciente, pré-consciente, consciente) como também no que diz respeito à reconstrução psíquica dos elementos externos. Ao afirmar que o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, Freud (1900/1996) aponta para uma gradativa alteração de uma matriz de pensamento realista para uma matriz discursiva. Em A perda da realidade na neurose e na psicose, o autor (1924/1996) aponta mais uma vez para a máxima da realidade psíquica, uma vez que assevera que tanto na neurose como na psicose "em ambos os casos serve ao desejo de poder do id, que não se deixará ditar pela realidade" (p. 206). Desse feito, para Lacan (1966/1998), o conceito de realidade psíquica de Freud "deve ser lido como de fato é designado, ou seja, como a linha de experiência que o sujeito da ciência sanciona" (p. 871), reafirmando que esta cria um sujeito autônomo, artificial e provisório. Nesse sentido, a releitura operada por Lacan nos possibilitaria pensar a ciência como estando na origem de uma ordem peculiar de regime de existência imanente ao desejo como estruturante do sujeito.

Assim, Freud (1923/1996) formula claramente a definição de psicanálise no início do artigo Dois verbetes de enciclopédia, em que o autor afirma que a psicanálise é o nome: a) do procedimento para a investigação de processos mentais que, de outra forma, são praticamente inacessíveis; b) do método, baseado nessa investigação, para o tratamento de distúrbios neuróticos; c) da série de concepções psicológicas adquiridas por esse meio e que se somam umas às outras para formarem progressivamente nova disciplina científica. Diferencia a psicanálise da filosofia e defende que, apesar de primeira se aproximar de uma ciência do espírito, não pode ser equiparada com a segunda.

A partir disso, podemos afirmar que o advento da psicanálise freudiana propôs uma revisão epistemológica das ciências existentes até então quanto ao estudo do ser humano. Isso não quer dizer que as ciências daquele tempo foram forçadas a se reestruturarem epistemologicamente com finalidade de serem bem empregadas no estudo da mente humana, seguindo os parâmetros freudianos, mas sim que a suposição do inconsciente e a sua entrada no universo da pesquisa questiona os parâmetros de construção dos critérios epistemológicos das ciências de maneira geral. Isso ocorre em função do questionamento sistemático que a psicanálise faz ao sujeito do saber e da lógica da razão.

Lacan (1964/2008), ao destacar os quatro conceitos fundamentais da psicanálise - o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão - questiona o status científico da psicanálise e argumenta contra a suposição de que toda ciência possuiria objeto definido, considerando que esse objeto muda. Interroga, portanto, sobre a necessidade da causa para os filósofos e afirma que "entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação" (p. 29). O autor indica com o inconsciente e com a repetição que "nossa concepção de conceito implica ser este sempre estabelecido numa aproximação que não deixa de ter relação com o que nos impõe, como forma, o cálculo infinitesimal" (p. 27). É nesse sentido que se dá a retomada crítica quanto ao pensamento de Descartes e a necessidade de subversão de um sujeito da racionalidade consciente. Segundo Lacan:

O termo maior, com efeito, não é a verdade. É Gewissheit, certeza. O encaminhamento de Freud é cartesiano - no sentido de que parte do fundamento do sujeito da certeza. Tratase daquilo de que se pode estar certo. Para este fim, a primeira coisa a fazer é superar o que conota tudo que seja do conteúdo do inconsciente - especialmente quando se trata de fazê-lo emergir da experiência do sonho - de superar o que flutua por toda parte, o que pontua, macula, põe nódoas no texto de qualquer comunicação de sonho - Não estou certo, tenho dúvidas. (Lacan, 1964/2008, p. 41)

Descartes é retomado por Lacan não necessariamente pela ênfase na razão derivada do cogito - "penso, logo existo", - uma vez que há uma inversão lacaniana do cogito cartesiano "sou onde não penso". Nesse sentido, a proposta lacaniana é a de subversão do sujeito, o que implicaria em pensar o sujeito do inconsciente não como o da razão do pensamento, mas sim um efeito da linguagem que o estrutura, ou seja, uma consequência do encadeamento significante. Lacan, por fim, recupera a dúvida como apoio da certeza, uma vez que a certeza que interessa à experiência analítica é a de que tenho dúvidas as quais comportam um desejo, dito de outra forma, o inconsciente seria do âmbito da certeza antecipada. Nessa perspectiva, não podemos considerar a antecipação da certeza como avessa ao conceito de ciência, pois, como podemos destacar na citação do texto freudiano feita anteriormente, toda ciência seria igualmente constituída de elementos antecedentes e impostos à pesquisa, tais como hipótese, intuição, ideia, implicados na construção conceitual. Dito de outro modo, a teoria torna-se anterior ao objeto de estudo, na medida em que é vista como um fenômeno discursivo. A afirmação referente ao sonho e sua relação com uma certeza da dúvida pode ser estendida para os demais processos inconscientes, quais sejam, lapso, chiste, ato falho e sintoma.

Retomando a perspectiva de constante reelaboração, Lacan propõe um retorno à teoria freudiana, cuja consequência é o axioma do inconsciente estruturado como linguagem, também influenciado pelo diálogo com a linguística de sua época. Freud, a partir da teoria do inconsciente, questiona a concepção filosófica do sujeito de saber ocidental. Somemos a esses dois processos de rompimento com os saberes estabelecidos a proposta lacaniana de reposicionamento da causalidade psíquica quando movida pelo desejo, o desidero, ou seja, o desejo como causa. Desse feito, o estatuto da psicanálise diante da epistemologia deve ser visto como paradigmático justamente na medida em que implica numa concepção de sujeito diferenciada: a do sujeito do inconsciente como efeito do significante, o falante assujeitado e torturado pela linguagem, que aborda a verdade na fala a partir de seu lugar na hiância, tendo o desejo como causa. Portanto, em teoria psicanalítica, não se trata de buscar o real natural e externo à experiência, mas sim de construir os conceitos a partir da verdade da operação do desejo, já que o campo da verdade seria reestruturado de forma subversiva por meio dos sintomas, atos falhos, sonhos e chistes.

Assim, Lacan propõe que a forma de acesso à verdade seria pelo discurso e não a partir da razão e do pensamento necessariamente consciente. Assim, uma possibilidade de articulação entre as teorias de Freud e de Lacan sob o ponto de vista epistemológico reside na subversão do cogito cartesiano a partir da invenção do inconsciente. Tal posição lacaniana é afirmada no texto da seguinte forma: "função mais digna de ser enfatizada na fala que a de disfarçar o pensamento (quase sempre indefinível) do sujeito: a saber, a de indicar o lugar desse sujeito na busca da verdade" (p. 508), ou ainda, "é com o aparecimento da linguagem que emerge a dimensão da verdade" (p. 529). O fundamento disso é que Lacan sustenta o axioma do sujeito do inconsciente estruturado como uma linguagem, a qual aponta para a verdade peculiar do inconsciente. Surge, daí a questão, a saber, sobre o papel de imanência designado ao campo da linguagem nas obras de Freud e de Lacan. Nossa hipótese seria a de que tanto para Freud quanto para Lacan, a linguagem transcende tanto a possibilidade de redução a fatores materiais e exteriores ao campo em questão quanto a concepção simplista de ser apenas uma ferramenta na mediação entre o pensamento e os objetos do mundo. Se na obra do primeiro estão presentes os conceitos de representações e associação livre, e na do segundo temos uma preponderância dos conceitos de significante, linguagem, discurso e deslizamento dos significantes como articuladores e substratos da clínica, é igualmente fundamental afirmar que, em nenhum dos dois casos, a prática analítica se ordene em função de reduções biologizantes ou materializantes do psiquismo, às quais o conceito de observação serviria como fiador de sua existência objetificada. A partir de tal semelhança que é apontada em Garcia-Roza (2008) e na própria obra de Lacan (1957-58/1998), que a assume diversas vezes durante seu ensino, por exemplo, em "ainda que Freud, em seu tempo, está no ponto onde as coisas podiam se dizer em um discurso científico - esse Vorstellungsreprasentanz é estritamente equivalente à noção e ao termo significante" (p. 34). Nesse caso, o mais importante a ser ressaltado é que tanto na teoria freudiana quanto na lacaniana os conceitos respectivos de representação e significante levam ao questionamento radical da materialidade da coisa em si no psiquismo. Em ambos os casos, trata-se da autonomia do fenômeno de linguagem em detrimento da reprodução da realidade externa.

A partir da discussão sobre o escopo da ciência moderna, notamos que não se pode situar a psicanálise em nenhum campo preexistente, mas, em alguns aspectos, podemos encontrar algumas aproximações. Temos na dialética idealista hegeliana, por exemplo, a partir das contribuições de Lacan, uma possibilidade de releitura da epistemologia da psicanálise. Podemos citar o conceito de potência no sujeito hegeliano, na medida em que a potência é o que ainda se tornará, por isso o sujeito é visto como um vira-ser: ele é enquanto negatividade. Para Savioli e Zanotto (2007), a negatividade em Hegel "coloca em oposição aquilo que os seres são e suas potencialidades, sugerindo um estado de limitação, bem como a necessidade de superar tal estado em direção a outro" (p. 366-367). Esse conceito se aproxima da psicanálise pelo fato de que o sujeito desta também se constitui enquanto negatividade, ou seja, é a partir do que lhe falta que se constitui seu desejo, que o faz mover-se. A concepção estruturalista de Lacan permite justamente a suspensão do questionamento ontológico sobre a realidade positiva do ser em oposição a sua definição ética como sujeitos desejantes demarcados por uma verdade da ordem da falta: somos falta-a-ser.

A concepção filosófica hegeliana, assim como a psicanálise, caminhou na contramão das tentativas de estabelecimento de um "sujeito epistêmico ascético". Ambas subvertem a concepção de sujeito pleno. Segundo Garcia-Roza (2009), "o que a Fenomenologia do Espírito nos ensinou é que não é pela Razão que o indivíduo se tornou humano, mas pelo Desejo. [...] O homem seria, pois, esse efeito-desvio do Desejo" (p. 16). Temos aqui mais uma aproximação possível nas duas concepções de sujeito, pois em Hegel encontramos um sujeito cuja estruturação está calcada no desejo. No contexto em que surgiu, a teoria de Hegel também subverte a ideia da época: de que o desejo era da ordem do que deveria ser expurgável. Mas é importante ressaltar que, apesar da marca hegeliana da constituição de um sujeito a partir do desejo, Garcia-Roza (2009) afirma que "não há lugar para a Selbstbewusstsein toda consciente na teoria psicanalítica" (p. 23). A expressão Selbstbewusstsein significa autoconhecimento, a diferença está, portanto, no fato de que este não pode ser alcançado segundo a psicanálise. E sobre o selbstbewusstsein hegeliano, o autor afirma que "o fim da história é o saber absoluto" (p. 95), não há concordância desse aspecto da teoria com a psicanálise, pois nesta estamos no campo do inconsciente, daquilo que é unbewusste (não sabido), desconhecido pelo sujeito. Sobre esse aspecto, Freud afirma que o eu não é senhor em sua própria casa, isso quer dizer que existem conteúdos inconscientes que não são passíveis de serem observados em sua face positiva e material de objeto de uma existência plena.

Para Lacan, o corte é feito pela entrada do sujeito no discurso social. Essa entrada se dá com o advento de um significante paterno: o significante Nome-do-pai, que barra o desejo da mãe (mostrando a falta materna), permitindo à cria humana se constituir como sujeito desejante por si e não mais atado ao desejo da mãe. Conforme dito anteriormente, nós desejamos porque somos seres de falta, então, só podemos desejar depois que for inaugurada em nós uma falta. Isso ocorre no momento em que miramos no Outro uma falta também. Assim nos constituímos como sujeitos e, nessa experiência, a partir do corte radical feito pela linguagem, há algo que significamos como perdido (ao que Lacan chamou de objeto a). O objeto a é da ordem da miragem, já que na verdade nunca existiu, portanto, não temos como reencontrá-lo . Assim, o selbstbewusstsein hegeliano não tem correspondência na teoria psicanalítica porque nunca teremos acesso aos conteúdos inconscientes, ou a um autoconhecimento.

Cabe ressaltar que Lacan compartilha do entendimento de verdade para Hegel, no qual a verdade surge a partir da negação e não numa consciência ingênua e não crítica, mas, sim, a partir da dialética do desejo. Assim como pode ser destacado na obra freudiana (1925/1996), o acesso à verdade do sujeito pode se dar por meio do caráter performativo da negação. É a partir desse ponto que o filósofo hegeliano Jean Hyppolite, por ocasião de um debate com Lacan (1955) publicado nos Escritos, relaciona o conceito negação - Auphebung - para Hegel, com o conceito a Negativa, ou Denegação - Verneinung - para Freud, e resume:

Não se encontra na análise nenhum "não" vindo do inconsciente, mas o reconhecimento do inconsciente, pelo lado do eu, mostra que o eu é sempre desconhecimento; mesmo no conhecimento, sempre encontramos do lado do eu, numa fórmula negativa, a marca da possibilidade de deter o inconsciente, ao mesmo tempo recusando-o (Lacan, 1955/1998, p. 902)

O conceito de verdade para a teoria lacaniana é complexo, peculiar e ambíguo justamente por esta ser tributária da concepção estruturalista (a mesma que embasa os movimentos linguísticos de sua época) em sua principal proposta: a substituição das tentativas de redução aos objetos supostamente reais pelo estudo das relações ordenadas e encadeadas, como forma de suspensão da orientação direta da realidade, sendo essa perspectiva derivada diretamente da tese saussuriana da arbitrariedade do signo. Dessa forma, "no momento em que digo eu minto (da metalinguagem), digo-o a respeito do eu minto da linguagem-objeto: se minto, dizendo que minto, é que estou dizendo a verdade. Mas como digo não a estar dizendo, é que estou mentindo" (Arrivé, 1994, p. 120). No entanto, a verdade como busca do conhecimento tem seus limites apontados também na filosofia de Kant (1787) e em seu questionamento quanto à verdade: estaria ela relacionada com o conhecimento empírico ou com o conhecimento puro?

Cabe ressaltar que o conceito de verdade por nós aqui utilizado perpassa o caminho de Freud, sobretudo o fato de a psicanálise operar na realidade psíquica. No percurso freudiano, o autor conclui que os relatos de cenas supostamente de sedução de suas pacientes estariam atrelados ao desejo inconsciente delas, sendo que uma parcela considerável dos relatos indicaria acontecimentos ocorridos apenas no plano psíquico, porém, não menos reais de acordo com o peso dado à fantasia na consideração freudiana. Caberia à psicanálise, portanto, o trabalho diante do papel do inconsciente na relação com o desejo e com o princípio de prazer, sem colocar em evidência se determinada lembrança aludia ou não a acontecimentos reais na infância, o que Lacan (1964/2008) destaca:

Freud, em sua sede de verdade diz - O que quer que seja, é preciso chegar lá - porque, em alguma parte, esse inconsciente se mostra. É isso que ele diz dentro de sua experiência daquilo que era para o médico, até então, a realidade mais recusada, mais coberta, mais contida, mais rejeitada, a da histérica, no que ela é - de algum modo, de origem - marcada pelo signo do engano. (p. 40)

Primeiramente, tal citação nos remete às histéricas, começando por seu histórico em que por muitos anos foram consideradas pelos leigos e pela medicina como farsantes, fingidoras. Contudo, a fantasia ou realidade psíquica é formada inconscientemente com resquícios de realidade, o que a diferencia da mentira ou da invenção. Freud comenta sobre o período em que consideravam os neuróticos, principalmente as histéricas, como farsantes:

Mas nunca nos devemos permitir ser levados erradamente a aplicar aos padrões da realidade a estruturas psíquicas reprimidas e, talvez por causa disso, a menosprezar a importância das fantasias na formação dos sintomas, sob o pretexto de elas não serem realidade, ou a remontar um sentimento neurótico de culpa a alguma outra fonte, por não haver provas de que qualquer crime real tenha sido cometido. Somos obrigados a empregar a moeda-corrente do país que estamos explorando; em nosso caso uma moeda neurótica. (Freud, 1911/1996, p. 285)

Entretanto, Freud (1920/1996), apesar de sua sede de verdade, como aponta Lacan, apresenta-se antipragmático ao colocar em primeiro plano não o fato observável, mas uma condição ética de posicionamento diante do próprio descentramento. Contudo, o mote das ciências ditas modernas ainda é buscar uma resposta única que, tal qual um conhecimento religioso, apaziguaria nossas angústias. A psicanálise caminha, portanto, na contramão desta postura dos "sábios de laboratório", pois propõe como objeto de estudo justamente o rebotalho desta ciência "normal". Roudinesco (2000) conta a história de um psicólogo norteamericano que propôs a Freud medir a libido dando-lhe o nome de "um freud" (p. 34), no que o autor recusa e solicita "não dê meu nome a sua unidade. Espero poder morrer, um dia, com uma libido que não tenha sido medida" (p. 35). Destarte, fica claro que Freud não só desacreditava no homem como máquina, como também sabia que a pulsão, o desejo, o inconsciente, a angústia só são possíveis de se conhecer por seus efeitos, e isso é o que Lacan teorizou como metáfora, uma vez que os processos simbólicos funcionam à revelia dos sujeitos em relações de arbitrariedade com o que poderia vir a ser uma realidade natural e objetiva.

No entanto, seja como ciência material ou do espírito, é inegável que Freud não abandona o desejo de que a psicanálise fosse reconhecida como ciência: "não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos dá podemos conseguir em outro lugar" (Freud, 1927/1996, p. 63). Notório torna-se, então, o peso da revolução freudiana como forma de rompimento com os saberes estabelecidos pela racionalidade científica e filosófica, já que aponta para a racionalidade do desejo inconsciente em detrimento da razão da consciência. E ainda, permanece a suportar inúmeras tentativas de refutação:

É bem possível que esta primeira parte do nosso estudo psicológico dos sonhos nos deixe um sentimento de insatisfação. Mas podemos consolar-nos com a ideia de que fomos obrigados a construir nosso caminho nas trevas. Se não estamos inteiramente errados, outras linhas de abordagem hão de levar-nos aproximadamente a essa mesma região, e então poderá vir um tempo em que nos sintamos mais à vontade nela. (Freud, 1900/1996, p. 579)

Devemos levar em consideração que o abandono da pretensão, da parte de Freud, da instituição de uma ciência orientada pelo abarcamento da realidade e pela instituição de verdades paradigmáticas e invariáveis que pudessem orientar a práxis sem risco de erro seja muito provavelmente um traço de distinção da teoria psicanalítica. Vale ressaltar que, quando o autor diz da insatisfação dos estudos do sonho, não são apenas estes que estão em voga nessa problemática, mas sim toda formulação de sua teoria do inconsciente e, por consequência, o que viria a ser sua metapsicologia.

Pode-se considerar, então, que a abordagem psicanalítica se constitui a partir da dúvida como apoio da certeza na organização do campo da verdade. A psicanálise pode ser concebida, então, como instrumento ou até mesmo um método para se pensar a ciência e sobre sua busca de conhecimento, se convertendo em busca de uma verdade, enquanto ética (Silva, 2012). Esse aspecto metodológico da psicanálise culminou por atribuir-lhe um estatuto de inacabamento e de renovação constante ao seu corpo teórico, permitindo-nos questionar e defender a revisão acerca de seus princípios epistemológicos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se considerar que neste trabalho visamos questionar o modo como a teoria psicanalítica, a partir da tese freudiana do inconsciente e de sua releitura na obra de Lacan, propõe desafios próprios à epistemologia. Isso porque o seu surgimento, além de trazer uma revisão epistemológica, colocou em debate os requisitos de construção dos critérios epistemológicos das ciências de maneira geral ao questionar esse sujeito do saber e da lógica da razão. Mais que isso, procuramos apresentar aspectos que sustentassem nossa hipótese inicial de que o estatuto epistemológico da psicanálise deveria ser repensado em termos de um reposicionamento mais radical diante do campo da linguagem. Isso porque a releitura operada por Lacan nos possibilitaria pensar a ciência como estando na origem de uma ordem peculiar de regime de existência imanente ao desejo como estruturante do sujeito. Isto é, para a psicanálise, o sujeito do inconsciente é consequência do significante, aquele assujeitado pela linguagem, que diz a verdade, na medida em que toma-o por desejante. Ou seja, um sujeito que pensa onde não é e é onde não pensa. Desse modo, o acesso à verdade se daria por meio da fala e não necessariamente a partir da razão e do pensamento consciente. Trata-se, portanto, da defesa de uma abordagem inovadora da leitura freudiana, que se inicia na obra lacaniana, e que busca essa subversão do cogito cartesiano por meio de uma concepção de inconsciente que serve ao desejo e escapa à razão e à lógica da consciência.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 04/09/2013
Aceito em: 02/10/2016

 

 

(Endnotes)

1 Contato: tiagoravanello@yahoo.com.br
2 Essa leitura será aqui centrada nos seguintes textos: Lacan, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953/1998); A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957/1998); O seminário V: as formações do inconsciente (1957-1958/1998); O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais (1964/2008); A ciência e a verdade (1966/1998).
3 O nome do texto foi modificado do original Os instintos e suas vicissitudes por As pulsões e seus destinos, em função da ampla literatura na área que aponta para o erro de tradução de trieb por instinto.
4 Nesse contexto, até mesmo o texto Projeto para uma psicologia científica pode ter seu caráter reducionista e correlativo às teses naturalistas questionado, haja vista, por exemplo, a forma como Lacan encaminha a sua leitura no seminário sobre ética, retirando de lá o conceito de das ding como o grande articulador conceitual da desnaturalização do campo pulsional (Lacan, 1959-1960/1997).
5 É importante destacar que a metapsicologia como fundamento epistemológico da psicanálise freudiana não se restringe aos artigos sobre metapsicologia de 1915 contidos no volume XIV da Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Freud, mas abrange outros textos, tais como: A interpretação dos sonhos (1900), O Ego e o Id (1923), Além do princípio do prazer (1920), entre outros.

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