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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. v.3 n.2 Florianópolis dez. 2003

 

ARTIGOS

 

Condições de trabalho, vida e saúde de trabalhadores de comércio em shopping center

 

Working conditions, everyday life and health of shopping center's workers

 

 

Maria Marcela Fernández de ClaroI; Sílvio Paulo BotoméII; Olga Mitsue KuboIII

IMestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (marcela@cfh.ufsc.br)
IIDoutor em Psicologia, Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (botome@cfh.ufsc.hr)
IIIDoutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (ok@cfh.ufsc.br)

 

 


RESUMO

A "subproletarização" - trabalhos parciais, temporários, precários e sub-contratados - caracteriza as relações de trabalho encontradas principalmente em cidades turísticas. Com o objetivo de caracterizar alguns aspectos das condições de vida, trabalho e saúde de trabalhadores do comércio varejista e de comportamentos apresentados em local de trabalho, foram entrevistados 20 vendedores de lojas em um shopping center e realizadas observações direta de oito vendedores de lojas no mesmo local, durante o período de baixa estação. Percebeu-se que o predomínio é de mulheres, com média de idade de 26 anos, com participação na renda familiar de mais de 50%, baixo nível salarial e com pouco tempo de serviço no local. A maioria desses vendedores sentem-se satisfeitos com seu trabalho, e dizem ter boas condições de saúde, Os dados obtidos por meio da observação dos comportamentos de vendedores em seus locais de trabalho permitiu revelar que, entre os comportamentos quando da ausência de clientes, as categorias que apresentaram mais ocorrências foram as de distração (46%), de espera (44%) e de locomoção (43%); o comportamento relacionado a arrumar a loja teve menos ocorrências (15%). Dentre os comportamentos do vendedor em relação ao cliente, as categorias que mais aparecem foram as de pronto atendimento (28%) e, durante o atendimento ao cliente, as que mais ocorreram foram aquelas caracteristicamente de vender (19%) e de interação com o cliente (11%). Os dados permitem concluir que esses funcionários parecem possuir boas condições de vida e saúde, entretanto, no trabalho têm baixo nível salarial e pouco tempo de serviço no emprego. A partir dos dados obtidos na observação direta, foi possível concluir que a atividade primordial para a qual são contratados é a venda, e que não parece haver atividades substitutivas para eles em períodos de pouco movimento de clientes e durante a baixa estação.

Palavras-chave: condições de trabalho de trabalhadores de comércio; condições de vida de trabalhares de comércio; condições de saúde de trabalhadores de comércio


ABSTRACT

The partial, temporary, precarious, sub-contracted jobs characterize the work relationships found in tourist cities. With the objective of characterizing some aspects of the workers' condition, life, health and work and characterizing their behavior in their work places, the research studied 20 retail store salespeople from a shopping mail in a tourist city during the low season. From these 20 people, 8 were observed directly in the same place during the same period of time. It was noticed that most of them were women, with an average of 26 years old., with a participation of more than in the family income, low level salary, they had little stability, they felt satisfied with their work; they had good health conditions. The information obtained on the salespeolple's behavior in their work places, when there's clients'absence, revealed that the categories that presented more occurrences were the ones about amusement (46%), of waiting (44%) and of locomotion (43%); the behavior related to arrange the store had less occurrences (15%). When it comes to the salespeople's behavior in relation to the costumers, the categories that appeared most were the ready service (28%) and during the service to the costumer, the ones that appeared most were the selling (19%) and the interaction with the costumer (11%). It comes to the conclusion that those employees seem to have good life conditions and health. However, in their jobs they have low salary level and little stability in their jobs. The information of the worker's behavior ín their local work indicate that they don't have to replace activities for sales in the low season.

Keywords: salespeople's work conditions; salespeople's life conditions; salespeople's health conditions.


 

 

As mudanças ocorridas nas condições de trabalho, impulsionadas pelo fenômeno da globalização, foram tantas e tão rápidas que esse período vêm sendo chamado por alguns autores, como Matosso (1995), de terceira revolução industrial. O aumento do desemprego, as perdas de garantias sociais e o aumento dos níveis de trabalhos informais e temporários são algumas das características mais marcantes dessa época, trazendo como conseqüência o aumento da incerteza e a da imprevisibilidade na vida dos trabalhadores. O fazer humano, na forma de trabalho, tem sido objeto de interesse e de estudo de muitas disciplinas. No mundo globalizado, faz-se cada vez mais necessária a integração das diferentes contribuições dessas disciplinas para compreender o fenômeno do trabalho humano. Economia, sociologia, psicologia e medicina são algumas das disciplinas que têm contribuído para um melhor entendimento das relações do trabalho e da saúde dos trabalhadores de maneira geral. No interesse de contribuir para as investigações nessa área, é inequívoca a importância de produzir conhecimento sobre o que acontece com a vida, o trabalho e a saúde dos trabalhadores de comércio varejista, na baixa estação, em uma cidade turística.

O trabalho pode ser entendido como mediador importante entre as instâncias sociais e individuais, afetando, por meio de seus processos, as condições de saúde dos indivíduos. Nesse sentido, Seligmann-Silva (1997) indica que o trabalho pode ser fonte de fortalecimento ou de desgaste da saúde. Ao analisar as relações entre as diferentes variáveis que determinam as condições de vida e trabalho de uma parte específica da população, é possível entender melhor de que forma a saúde pode ser afetada pelos diferentes arranjos das condições que configuram a baixa estação em uma cidade turística.

 

1. O turismo e a sua relação com o trabalho

O turismo é uma das alternativas para enfrentar o desemprego estrutural, aquele que se origina de uma inadequação da estrutura da economia e que opera sem a utilização plena da força de trabalho existente. Esse tipo de desemprego vem acompanhado, como indica Matosso (1998), de um conjunto de inseguranças causadas pela perda do emprego industrial, de empregos estáveis e permanentes, levando a uma precarização do trabalho e das relações estabelecidas nesse contexto.

No panorama de incertezas do emprego, cidades ou mesmo países com potencial turístico têm encontrado na atividade do turismo uma das possibilidades viáveis para diminuir os altos índices de desocupação provocados pelo desemprego estrutural. O turismo vem sendo considerado como setar de importância estratégica para o desenvolvimento em alguns países, como indicam Hasin, Galiza & Medeiros (2002); a sua importância no tocante à geração de riquezas é menor apenas do que a da indústria de armamentos e do petróleo.

A importância do turismo para o desenvolvimento do sistema econômico de uma cidade ou país pode ser confirmada pela capacidade em gerar um alto crescimento do setor terciário e de serviços, no qual o comércio tem sido um dos maiores beneficiários. Hazin et alii(2002) indicam que em Porto de Galinhas, distrito de Ipojuca (Pernambuco), a partir de 1996, a comunidade que tinha como atividade principal a produção de cana de açúcar e que empregava duas mil pessoas em sistema temporário, passou a absorver quatro mil trabalhadores permanentemente para atender às redes hoteleira, de restaurantes e do comércio.

Junto com o aumento da oferta de emprego, podem aparecer também as características de subproletarização indicadas por Antunes (1997): diferentes tipos de relação de exploração, desigualdade de direitos, falta de garantias laborais e de benefícios sociais - sobretudo quando a oferta está associada ao movimento sazonal do turismo, ou seja, quando existem períodos de alta e baixa estação, como nos casos das cidades litorâneas, onde os níveis de insegurança e imprevisibilidade se apresentam de forma concreta. Como aponta Moura (1998), no passado a ansiedade era uma resposta apresentada frente à ameaça de perigo físico devido à ameaça de ataque de animais selvagens, ou ainda dos fenômenos da natureza que punham em perigo a sobrevivência dos seres vivos. Hoje em dia, as ameaças são de origem distinta, e afetam tanto mulheres quanto homens: o desemprego, a ruptura familiar, insegurança financeira, falta de alternativa, pouca perspectiva de crescimento, entre outros. Diante dessas características, os indivíduos sentem-se limitados para encontrar soluções. Moura (1998) afirma que, em estudos realizados na Universidade de Harvard, alcoolismo, isolamento emocional, trabalho em excesso, violência e problemas cardiovasculares são alguns dos sintomas apresentados pela população masculina em resposta à ansiedade relacionada com a insegurança sócio-econômica. As mulheres, por sua vez, diante desse mesmo tipo de insegurança manifestam baixa auto-estima, dependência emocional, desconfiança e conflitos destrutivos, entre outros sintomas físicos - como dores de cabeça, tensão pré-menstrual etc.

No comércio predominam tarefas de natureza simples, em que o grau de qualificação dos trabalhadores muitas vezes supera as exigências da tarefa (Almeida, 1997). Isso, a princípio, pode dar a impressão de que o comércio não oferece risco para a saúde dos seus trabalhadores, sobretudo se comparado com outras ocupações. Entretanto, a disparidade entre a capacitação individual e o nível de complexidade da tarefa, por exemplo, pode resultar para o trabalhador, segundo Seligmann-Silva (1994), em frustrações que diminuem as perspectivas quanto ao futuro: quando o trabalhador não se reconhece no seu trabalho, surgem frustrações e sentimentos de autodesvalorização.

Nas cidades turísticas onde o comércio sofre com os efeitos negativos da sazonalidade, os trabalhadores ficam, também, expostos a um movimento que interrompe o ritmo de trabalho, a regularidade dos ganhos, as possibilidades de emprego e, conseqüentemente, os modos de vida dos trabalhadores. Ora os trabalhadores estão sujeitos a longas jornadas de trabalho, estresse no atendimento aos clientes e pouco tempo com a família, de forma a obter uma melhoria dos ganhos, ora o trabalho e a renda diminuem, aumenta o tempo livre dentro e fora do trabalho, e bem assim a possibilidade de desemprego.

Seligmann-Silva (1986) lembra que foram realizadas pesquisas com o objetivo de identificar de que modo os determinantes econômicos, tanto em fases de crescimento como em épocas de recessão, afetavam a saúde humana. Essas permitiram concluir que os efeitos da recessão afetavam tanto os que trabalham quanto os que perdem o emprego, particularmente quando há uma elevação das taxas de desemprego. As afecções relacionadas com, e influenciadas pela tensão, hábitos de vida, alimentação e condições de trabalho foram as que mais apareceram. As pesquisas revelaram, também, que muitos efeitos da recessão são sentidos na sequência de períodos que variam de um a três anos, a partir dos quais aumentam os índices de mortalidade infantil e de mortalidade por doenças cardiovasculares vinculadas ao desemprego. Outro dado elucidativo da gravidade desse fenômeno refere-se ao aumento das taxas de suicídio e homicídio durante o primeiro ano de recessão.

Outro estudo apoiado em pesquisas experimentais é citado por Seligmann-Silva (1986) por sua importância em dar ênfase à necessidade de estudar, além dos fatores econômicos, os fatores sociais que atuam na etiologia das doenças crônicas. As pesquisas experimentais citadas permitiram concluir que as vivências prolongadas de tensão de origem social influenciam negativamente o sistema psiconeuroendócrino. A diminuição da capacidade imunológica do organismo reafirma as evidências da relação de determinação da tensão a qual trabalhadores são submetidos, na origem do câncer e das doenças cardiovasculares, ainda que os efeitos das crises não necessariamente se manifestem de imediato. É o caso do estresse e da fadiga, que enfraquecem o organismo aos poucos. Quando essa condição é aliada à exposição a carcinógenos, a probabilidade de resultar em câncer após quinze a vinte anos é alta.

A importância do turismo como gerador de emprego é uma realidade. Entretanto, o turismo apresenta características muitas vezes perversas e injustas que se mostram, por exemplo, por meio dos trabalhos temporários ou das desigualdades de direitos. A incerteza e a imprevisibilidade, resultado dessas características, são agravadas ainda mais pela sazonalidade do turismo. Tudo isso pode ter repercussões na saúde dos trabalhadores, considerando os efeitos da ansiedade prolongada a que os indivíduos estão sujeitos em períodos de recessão. Assim, os determinantes econômicos e sociais, entre outros, são considerados por pesquisadores como agentes de perturbações da saúde dos indivíduos, Por isso, a necessidade de se examinar as diferentes variáveis que se configuram a partir do trabalho das pessoas se faz cada vez mais urgente.

 

2. Saúde - um fenômeno multideterminado

Para compreender o que é a saúde dos trabalhadores, é preciso examinar cuidadosamente o significado do conceito de saúde. Uma das concepções sobre saúde, talvez a mais comum delas, apresenta a saúde como fenômeno oposto a outro, denominado "doença". O fenômeno saúde-doença, entendido como a dicotomia de dois polos em oposição, não se mostra suficientemente esclarecedor nem adequado para entender muitos dos fenômenos que ocorrem com as condições de saúde dos indivíduos. Essa forma simplista de entender saúde e doença reduzem o fenômeno a um estado momentâneo em que o organismo se encontra, e não o identifica como uma condição que apresenta diferentes graus que podem variar, dependendo dos fatores que se conjugam num determinado momento. No Quadro 1 é possível observar os diferentes valores que a "condição de saúde de um organismo" pode apresentar, variando num gradiente contínuo, onde num extremo se encontram plenas condições de saúde e, no outro, a morte.

 

 

A epidemiologia social permitiu evidenciar a pouca força explicativa das teorias unicausal e multicausais dos processos saúde-doença. Hoje, como indicam Rebelatto e Botomé (1999), a explicitação de múltiplas variáveis que interagem, determinando um fenômeno como a saúde, se mostra mais eficiente. São muitas as evidências mostrando que considerar a ocorrência de doenças apenas por determinantes biológicos, sem considerar as influências dos processos sociais, é ter um entendimento parcial sobre esses processos. Essa forma parcial de entender a doença fortalece a visão ideológica que valoriza a exploração do trabalho, a competição e a capacidade produtiva, aliviando o compromisso e a responsabilidade das instituições que cuidam da saúde da população. De acordo com essa concepção, a origem do adoecimento é sempre conseqüência de más condições ou de más formações biológicas. Dessa forma, não é possível responsabilizar as condições socioeconômicas oferecidas à população pelos órgãos públicos, instituições, organizações e pela própria sociedade, caracterizando um processo que pode ser chamado de naturalização da doença.

Apesar das importantes contribuições trazidas pela epidemiologia social para o entendimento do conceito de saúde, essa concepção não permite ainda visualizar com a clareza necessária de que forma os determinantes de saúde estão inter-relacionados. Nesse sentido, Rebelatto e Botomé (1999) propõem que se fale em "relações de determinação", ou em "determinismo probabilístico", ou seja, que dependendo da forma como se estruturam e arranjam os diferentes fatores, as condições de saúde podem variar de melhor a pior ou manter-se constantes. Dessa forma, é possível dizer que a saúde varia em maior ou menor grau dependendo das relações estabelecidas com outras variáveis e seus valores, fazendo com que uma condição de saúde seja, como analisa Stédile (1996), um fenômeno dinâmico, com múltiplas possibilidades de combinação, o que o torna um processo não somente dinâmico, mas também complexo.

Segundo Kubo e Botomé (2001), quando o objetivo é a melhoria da qualidade vida e, conseqüentemente, da saúde das comunidades, os fatores sociais, ambientais e genéticos devem ser considerados. Isto coincide como que diz Rouquayrol (1994): o resultado da sinergização ou estruturação dos fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, psicológicos, genéticos, biológicos, físicos e químicos é que pode provocar a doença, e não simplesmente a soma dos mesmos. Isso significa, portanto, que assim como só é possível determinar probabilisticamente e não com precisão absoluta o que acontece com os eventos, estados ou ocorrências da natureza, assim também ocorre em relação ao fenômeno saúde.

Entender a saúde do homem como um fenômeno dinâmico e complexo implica investigar, independentemente das circunstâncias em que esse se encontre, como as diferentes variáveis e seus valores se estruturam e se articulam para configurar a condição de saúde. Períodos de recessão prolongada, por exemplo, podem gerar inseguranças no mundo do trabalho provocadas pelas perdas das garantias laborais e de benefícios sociais. De acordo com resultados de diferentes pesquisas (Hasin e col., 2002; Moura, 1998; Seligmann-Silva, 1986; 1994) condições como essa podem estar diretamente relacionadas ao aumento de ansiedade, estresse, alcoolismo, problemas cardiovasculares, baixa auto-estima, conflitos, desconfianças, etc., nos trabalhadores. Nas cidades turísticas, o período de baixa estação está associado à diminuição da dinâmica econômica, o que por sua vez altera os fatores sociais, ambientais. Caracterizar as condições de trabalho, de vida e de saúde de trabalhadores do comércio varejista de uma cidade turística no período de baixa estação torna-se, dessa forma, relevante para aumentar a compreensão das relações entre trabalho e saúde.

 

3. Método

3.1 . Sujeitos

Foram entrevistados 20 funcionários de comércio varejista que trabalham com atendimento direto ao cliente em lojas que fazem parte de um shopping center.

Do total, 19 eram mulheres e um homem. A média de idade foi de 26 anos e seis meses, variando em uma faixa de 16 a 61 anos de idade. A maior incidência de sujeitos foi na faixa de 21 a 25 anos.

Quanto ao grau de escolaridade dos sujeitos, metade deles possuíam o 2º grau completo, três tinham 2º grau incompleto, quatro tinham 3º grau, sendo dois deles incompletos, e três possuíam, 1º grau completo, sendo um deles incompleto.

A grande maioria dos entrevistados era natural de outros estados: Mato Grosso (1), Minas Gerais (1), São Paulo (1), Paraná (7), Rio Grande do Sul (2). Do interior de Santa Catarina participaram cinco pessoas e três pessoas eram naturais da cidade onde a pesquisa foi realizada.

Em relação ao estado civil dos entrevistados, 14 eram solteiros, sendo que seis deles possuíam filhos e seis eram casados.

3.2. Situação e ambiente

As observações diretas e as entrevistas foram feitas nos locais de trabalho, no período de baixa estação, durante os meses de maio e junho. Esses meses são considerados os meses de menor movimento comercial em uma cidade litorânea que tem o turismo como principal fonte de recursos. Os locais onde foram feitas as pesquisas faziam parte das instalações concentradas em forma de shopping center.

3.3. Equipamento e material

Nas observações diretas foram utilizadas folhas de registro e relógio para controlar o tempo total de observação dos comportamentos dos sujeitos.

Para as entrevistas foi utilizado um roteiro contendo perguntas semi-estruturadas.

3.4. Procedimento

3.4.1. Escolha dos sujeitos.

Foram escolhidos como sujeitos vinte (20) funcionários de comércio varejista que trabalham com atendimento direto ao cliente. Os sujeitos foram selecionados considerando a diversidade de ramos dessa atividade: comércio de confecções, perfumaria, papelaria, CDs., calçados, moda praia, presentes, acessórios de couro e artigos de cozinha.

Os 10 trabalhadores varejistas cujos comportamentos na loja foram observados diretamente foram escolhidos por estarem na loja no horário das observações. Cada um dos sujeitos escolhidos pertencia a uma loja; dessa forma, os distintos segmentos comerciais foram representados.

 

4. Coleta de dados

4.1 Observação direta

A técnica de observação escolhida foi a de registro contínuo cursivo registrando o que ocorria na situação, obedecendo à seqüência temporal em que os fatos se davam, com o intuito de caracterizar os comportamentos apresentados por um trabalhador dentro da loja, nos períodos em que havia e não havia clientes para serem atendidos. O dia escolhido para fazer as observações foram sempre às segundas feiras no período da tarde, o tempo de cada observação teve uma variação de 30 a 40 minutos. Foram feitas 10 observações com todos 20 sujeitos.

4.2 Observação indireta

As entrevistas foram realizadas com posterioridade às observações direta, em diferentes dias da semana. Foi utilizado como instrumento, um conjunto de questões estandardizadas que obedeceram a uma ordem invariável à totalidade dos sujeitos e cuja natureza das questões dizia respeito à informação sobre condição de vida (moradia, quantidade de pessoas, etc.), de trabalho (horas de trabalho, folgas, etc.) e sobre condições de saúde (horas de sono diário, tipo de alimentos, etc.). Todos os sujeitos contatados para serem entrevistados aceitaram e se interessaram em responder às perguntas; apenas um (01) sujeito solicitou antes, permissão da gerente da loja.

 

5. Elaboração das categorias de comportamentos

Os diferentes tipos de comportamentos observados foram agrupados em categorias, obedecendo ao critério de funcionalidade. Dessa forma, cada categoria envolveu um grupo de comportamentos apresentados pelos funcionários de comércio:

5.1. Na ausência de clientes

Distrair-se
Ler revistas, desenhar, escrever, conversar por telefone.

Esperar
Ficar em pé, apoiar-se no balcão, sentar-se.

Locomover-se
Andar dentro da loja, sair da loja e andar no corredor, andar atrás do balcão.

Relacionar-se consigo mesmo
Pentear-se, olhar-se no espelho, experimentar brincos, maquiar-se, apertar espinhas no rosto.

Arrumar a loja
Dobrar mercadorias, retirar mercadorias da prateleira, limpar a loja, arrumar a vitrine, organizar os produtos expostos.

Alimentar-se
Comer atrás do balcão, beber dentro da loja.

5.2. Na presença de clientes

Atender prontamente
Ir ao encontro do cliente; levantar-se rapidamente para atender o cliente; cumprimentar, imediatamente, o cliente ao entrar na loja.

Não atender
Ficar sentado enquanto o cliente olha os produtos, continuar com outra atividade sem dar atenção ao cliente.

Vender
Mostrar mercadoria; procurar outras mercadorias, ver o preço dos produtos, cobrar, embrulhar o produto.

Interagir com o cliente
Conversar com o cliente de assuntos não relacionados com a venda, rir junto com o cliente.

 

6. Resultados e discussão

Os dados obtidos por meio de entrevistas realizadas com 20 funcionários de comércio de um shopping center,e de observações diretas de comportamentos de funcionários desse mesmo local, serão apresentados organizados em conjuntos: 1. características das condições familiares, de moradia e participação na renda familiar, 2. características das condições de trabalho, 3. características das condições de saúde e 4. tipos e freqüência dos comportamentos apresentados por funcionários no local de trabalho.

6.1. Características das condições familiares, de moradia e participação na renda familiar

Na Tabela 1, estão apresentados dados sobre a quantidade de pessoas com que os entrevistados moram, a situação de moradia e a quantidade de cômodos do imóvel em que residem. É possível notar que 65% dos entrevistados vivem em família com até três pessoas, e os restantes constituem famílias de quatro a cinco pessoas. 65% dos entrevistados informaram que possuíam casa própria. A situação de moradia dos restantes 35% era de residir em casas alugadas. O número de cômodos que constituem as residências varia de um quarto a mais de três. 60% dos entrevistados informaram que residem em casas com até dois quartos e 30% em casas com três quartos.

 

 

A proporção de tempo compartilhado com a família e o grau de disposição diária para realizar tarefas de casa estão apresentados na Tabela 2. Em relação ao tempo compartilhado com a família, 45% dos entrevistados dedicam de quatro a seis horas, 20% mais de seis horas e 25% entre duas a quatro horas diárias. A proporção de pessoas que dedicam menos de duas horas diárias com a família é de 10% da amostra. A categoria que obteve maior proporção de indicação em relação à informação sobre a disposição dos funcionários depois de um dia de trabalho foi de "cansada e satisfeita" (80%), e 55% deles relatam ter disposição (grau médio de disposição) para tarefas de casa depois de chegar do trabalho. Proporção menor (10%) relata indisposição para tarefas domésticas.

 

 

Na Tabela 3, estão apresentadas as proporções sobre participação dos entrevistados no orçamento familiar. 65% disseram ser responsáveis, ou pela metade da renda total familiar, ou pela totalidade dela, sendo que a renda de 35% desses é a única fonte de renda familiar.

 

 

Por meio dos dados coletados foi possível verificar que a maioria dos pesquisados possui boas condições de moradia, tanto relativamente às acomodações quanto por serem proprietários dos imóveis. Existe pouca probabilidade de que os trabalhadores possuam boas condições de moradia como conseqüência direta do nível salarial. É possível conjecturar que o acesso à casa própria está mais relacionado com as características da região onde os valores dos imóveis são mais baixos comparados a outras regiões do país, como São Paulo, Minas Gerais ou Rio Grande do Sul, possibilitando às pessoas oriundas dessas regiões que adquiram imóveis com maior facilidade.

Pode-se notar, também, que os trabalhadores se dedicam às suas famílias e compartilham com elas boa parte do dia, já que na baixa estação turística as horas de jornada de trabalho diminuem. Apesar de cansados, os sujeitos entrevistados dizem sentir-se satisfeitos com seu trabalho, mesmo que o trabalhar fora signifique um acúmulo de papéis e tarefas. A boa disposição para enfrentar uma dupla jornada de trabalho pode ser resultado de pouco desgaste físico, pela falta de atividade no comércio na baixa estação. Já a satisfação com o trabalho pode ter relação com a assimilação de que o fato de estar empregado é, em si mesmo, um benefício, independentemente do conteúdo e das condições do mesmo.

6.2. Características das condições de saúde

As condições de saúde dos trabalhadores entrevistados foram caracterizadas segundo informações fornecidas em relação a horas de sono diárias, qualidade do sono (freqüência com que acordam durante a noite), quantidade de refeições e tipos de alimentos consumidos, atividades que realizam em dias de folga, freqüência de prática desportiva e em relação a tipos e freqüência de problemas ou desconfortos de saúde.

A Tabela 4 apresenta a quantidade de horas de sono relatada pelos trabalhadores, bem como a qualidade do sono, avaliada pela freqüência com que acordam durante a noite. 50% deles costumam ter oito horas diárias de sono, 15% nove horas e 5% mais de dez horas de sono. As indicações de seis horas de sono foram feitas por 15% dos entrevistados, e de sete horas igualmente por 15%. Em relação à freqüência com que acordam durante a noite, 45% relatam que nunca acordam, 30% relatam que acorda com freqüência e 25% indicam que acordam pouco.

 

 

Na Tabela 5, estão apresentadas as percentagens de indicações relacionadas à quantidade de refeições diárias e aos tipos de alimentos consumidos pelos entrevistados. A maior proporção de indicações (45%) é feita para duas refeições, seguida por indicações para três refeições (30%) e por quatro refeições (20%). O tipo de alimentos consumido mais indicado (75%) foi alimentos do tipo caseiro. Lanches e outros tipos de alimentos foram indicados por 20% e 5% dos entrevistados, respectivamente.

 

 

As percentagens de indicações relativas à freqüência de práticas desportivas, aos tipos de atividades realizadas em dias de folga e à freqüência de problemas ou desconfortos de saúde estão apresentadas na Tabela 6. 30% das indicações se referem a prática de esporte freqüente (sempre), ao passo que a mesma proporção de indicações é feita em relação a nunca realizar uma prática desportiva. 40% das indicações se referem a pouca prática desportiva. As percentagens de indicações relacionadas às atividades que os entrevistados realizam em dias de folga apresentam as seguintes distribuições: 30% das indicações dizem respeito à prática de esporte, 20% às atividades de limpeza da casa, 15% a passeios, 5% a atividades de cuidados com filhos e 30% a outros tipos de atividades. Irritação é o tipo de desconforto que recebeu 40% das indicações como sendo freqüente nos entrevistados, seguido por relatos de dores de cabeça (30%) e cansaço (20%). Desânimo aparece com 70% das indicações como o desconforto de pouca freqüência, cansaço recebeu 60% das indicações para a mesma categoria de pouca freqüência, seguido de irritação (40%), dores de cabeça (35%) e hipertensão (10%). 90% das indicações são para nunca terem tido hipertensão, 35% nunca terem tido dores de cabeça, 30% para desânimo, 20% cansaço e a mesma percentagem para irritação.

 

 

A saúde dos funcionários de comércio, como indicam os dados, é boa: tanto o sono, quanto a alimentação possuem qualidade e quantidade satisfatórias. A prática esportiva faz parte das atividades da maioria dos pesquisados; somente 30% afirmaram que nunca praticam esse tipo de atividade, o que mostra que os pesquisados se preocupam em manter hábitos saudáveis. Dentre os sintomas apresentados pelos entrevistados, é notável o percentual de irritação, indicado por 80% como sensação percebida freqüentemente ou algumas vezes. Dor de cabeça, também na mesma freqüência, é um sintoma percebido por 65% dos pesquisados. Os sintomas podem ser resultado do aumento da ansiedade, como indica Moura (1998): frente a Instabilidade financeira ou à pouca perspectiva de crescimento, o nível de ansiedade aumenta, provocando sintomas como dores de cabeça, excesso de trabalho e isolamento social, entre outros.

6.3. Características das condições de trabalho

O tempo de emprego no local, tempo de jornada de trabalho, comissões sobre as vendas realizadas e o nível salarial dos entrevistados estão apresentados na Tabela 7. Em termos de tempo, a maior proporção (45%) dos entrevistados está empregada entre seis meses a um ano, 20% está de um a dois anos no emprego, uma proporção menor (10%) está de três a quatro anos. 25% do total dos entrevistados está empregada há menos de seis meses.

 

 

Em relação à quantidade de horas dedicadas ao trabalho, grande parte (65%) dos entrevistados dedica seis horas, 30% relatam dedicar entre sete e oito horas de trabalho e uma proporção menor (5%) dedica dez horas no trabalho. Do total de pessoas entrevistadas, 60% relatam receber comissões sobre as vendas.

Quanto aos níveis salariais auferidos pelos entrevistados, conforme os seus relatos, 90% recebem entre um a três salários mínimos, e 10% auferem entre três a seis salários.

Na Tabela 8 estão apresentados dados relativos à freqüência com que o chefe das pessoas entrevistadas solicita a opinião deles no e sobre o trabalho, a freqüência com que se reúne com colegas do trabalho fora desse ambiente e o grau de satisfação com o seu trabalho. Em relação à freqüência com que o chefe no trabalho solicita a opinião do entrevistado, 40% dos relatos mostram que sempre o chefe solicita a opinião do entrevistado, 25% relatam que são solicitados freqüentemente (medianamente), 40% relatam que são pouco solicitados por seus chefes e 5% dizem nunca serem solicitados pelos seus chefes.

 

 

Em termos da freqüência com que os entrevistados se reúnem com colegas fora do ambiente do trabalho, 50% relatam que nunca se reúnem, 40% que se reúnem pouco e 10% que se reúnem com mais freqüência. E alto o grau de satisfação com seu trabalho indicado pelos entrevistados. 55% deles indicam estar muitos satisfeitos, e o restante indica estarem satisfeitos com seu trabalho.

Sobre a situação de trabalho, a maioria tem curto período de duração no emprego. As horas diárias dedicadas ao trabalho, na baixa estação, são para a maioria dos pesquisados de seis horas; muito poucos superam as oito horas diárias, indicando um tempo considerado adequado para dedicar ao trabalho. O nível salarial é baixo, considerando que 90% ganha entre um a três salários, aí se incluindo os ganhos por comissões indicados por 60% do total. O baixo nível salarial fica ainda mais evidente se comparado com as exigências, tanto no que se refere à escolaridade, experiência e apresentação pessoal, quanto à responsabilidade que é conferida a muitos deles. Por se tratar de comércio em shopping center,é necessário lembrar que esses possuem, como diz Frúgoli (1990), um sistema simbólico que cria uma identidade coletiva que tem por objetivo manter um pacto seletivo-excludente. Essa identidade se traduz nas roupas, no vocabulário e no comportamento; isso pode fazer com que muitos trabalhadores dediquem grande parte do seu salário a gastos que visam acompanhar, sobretudo na aparência, esse sistema simbólico.

Em relação à participação direta na tomada de decisões no trabalho, apenas 40% são sempre solicitados por seus chefes a darem opinião. Para pelo menos 60% dos entrevistados a não participação nos processos de decisões dos assuntos referentes ao seu trabalho pode aumentar a frustração e auto-desvalorização. A não participação pode fazer com que o trabalho perca o significado para o trabalhador, pois, como indica Seligmann-Silva (1994), o trabalhador não se reconhece nele. O convívio social com os colegas de trabalho é pouco freqüente, o que pode demonstrar que os pesquisados não estabelecem relações muito significativas no ambiente de trabalho. Apesar das condições de trabalho não oferecerem muitos pontos positivos, a grande maioria diz estar satisfeita com o seu trabalho, o que pode significar uma assimilação do fato de que estar empregado, em qualquer circunstância representa um benefício - como já foi referido. As condições de trabalho evidenciadas pelos dados revelam muitas das características indicadas por Antunes (1997) como sendo de subproletarização, pela falta de garantias laborais ou benefícios sociais ou mesmo pelo modelo de exploração refletido pelos baixos salários.

6.4. Tipos de comportamentos apresentados por funcionários nos locais de venda

Os comportamentos observados apresentados por funcionários em lojas de um shopping center foram organizados em três conjuntos: a) aqueles apresentados na ausência de clientes, b) quando o cliente entra na loja e c) durante o atendimento ao cliente.

Na Tabela 9 estão apresentados os tipos de comportamentos observados organizados em categorias. As três categorias que aparecem com maior freqüência e com valores próximos são: distrair-se (26,4%), esperar (25,3%) e locomover-se (24,7%). A categoria "relacionar-se consigo mesmo" aparece com uma freqüência de 12%, seguida de "arrumar a loja" (8,6%) e, por último, "alimentar-se" (2,8%).

 

 

Os tipos de comportamentos observados apresentados por funcionários quando o cliente entra na loja e durante o atendimento estão organizados na Tabela 10. Quando o cliente entra na loja, 77,7% dos comportamentos dos funcionários são de atender prontamente, 16,6% são de não atender e 5,5% de ficar aguardando a manifestação do cliente. Durante o atendimento ao cliente, o comportamento que aparece com maior freqüência diz respeito a vender (54,2%), 31,4% de interagir excetuando os comportamentos de vender propriamente ditos, e 14,2% se referem a esperar (aguardar a manifestação do cliente).

 

 

Por meio das observações diretas, foi possível identificar que na ausência do cliente o comportamento de arrumar a loja , tem uma baixa freqüência - 8,6% do total. Isso significa que os funcionários permanecem nos locais de trabalho, sem realizar tarefas inerentes ao trabalho no comércio, o que pode ser relacionado a uma perda do significado do trabalho e à conseqüente desvalorização da própria atividade. Comportamentos como se distrair, esperar, locomover-se e relacionar-se consigo mesmo, que somados representam 88,5% do total, podem estar relacionados à necessidade dos trabalhadores realizarem atividades que simplesmente tenham o objetivo de passar o tempo. A monotonia no ambiente de trabalho também pode ser considerada como uni dos fatores que aumentam o risco de adoecimento dos trabalhadores. Quando o cliente entra na loja, o funcionário atende prontamente na maioria das vezes, como foi indicado na Tabela 10. Isso demonstra que, apesar das atividades de não trabalho, o atendimento ao cliente é considerado por eles como prioridade. O comportamento de não atendimento ao cliente, quando esse entra na loja, é indicado com uma freqüência de 16,7% do total de comportamentos apresentados por funcionários. Esse dado parece ser significativo, podendo ser atribuído ao desinteresse e apatia provocados pela ausência de atividade. Outro dado que chama a atenção é o comportamento de venda (54,3%) como finalização de uma tarefa. Essa freqüência pode significar que, além dos longos períodos de ausência de clientes, quando esses ingressam na loja isto não significa que efetivarão a compra, provocando novamente a frustração do vendedor.

 

7. Trabalhador de comércio em shopping centerem uma cidade turística: quem é ele?

A maioria dos sujeitos são mulheres, jovens, solteiras, muitas delas com filhos, originárias de outras cidades do interior ou de outros estados. 70% dos trabalhadores entrevistados relataram ter entre menos de 6 meses até a um ano de trabalho no local, o que indica se tratar dum cargo de alta rotatividade no comércio varejista. Essa alta rotatividade pode ter relação com o baixo nível salarial auferido pelos vendedores (90% dos entrevistados relataram receber entre 1 a 3 salários mínimos), embora alguns deles pudessem complementá-lo com comissões sobre as vendas. De qualquer forma, durante o período da baixa estação essa complementação também sofreria os efeitos da redução de vendas. Estes dados poderiam indicar um descontentamento dos funcionários; no entanto, a maioria declarou estar satisfeita com o seu trabalho. Apesar de terem uma dupla jornada de trabalho, o que gera um acúmulo de papéis e tarefas, dizem sentir-se dispostos para realizar trabalhos domésticos. Isso pode ser conseqüência da redução da jornada de trabalho e do ritmo do mesmo, durante a baixa temporada turística, ocasionando pouco desgaste físico.

Diante disso, algumas perguntas emergem: o que faz com que mulheres jovens, com nível médio de escolaridade, muitas delas chefes de família, estejam satisfeitas com um trabalho, às vezes desinteressante, monótono ou frustrante? Por que estão satisfeitas, apesar dos baixos salários? Há que convir que foi formulada somente uma questão acerca do grau de satisfação que esses trabalhadores têm. Não foram investigadas, em minúcia, todas as dimensões que envolvem o que está sendo chamado de "satisfação com o trabalho". Além disso, os dados sobre as observações que foram feitas durante períodos de trabalho de 10 desses entrevistados mostraram que a atividade primordial para a qual foram contratados é a venda. Na ausência de clientes, uma boa proporção dos comportamentos apresentados pelos trabalhadores foi a de "matar o tempo" em atividades sem nenhuma funcionalidade profissional aparente (menos de 10% desses comportamentos estavam relacionados a arrumação da loja ou atividades correlatas). Mesmo na presença do cliente, comportamentos de esperar a solicitação do cliente para ser atendido, ou mesmo o não atendimento, que juntos representaram 22% dos comportamentos apresentados pelos vendedores, podem ser considerados como indícios de baixa expectativa por parte desses vendedores de realização de uma venda. Apesar disso, é possível conjecturar que sentimentos de frustração, ou de autodesvalorização advindos de uma condição em que o grau de qualificação supera o de exigência da tarefa (70% dos entrevistados tinham 2º grau completo ou 3º grau incompleto), como bem mostrados por Seligmann-Silva (1994), podem estar sendo minimizados pelo pouco tempo de emprego que a maioria tem, pelo fato de serem, na sua grande maioria, mulheres (é sabido que no mercado o nível salarial para as mulheres é mais baixo do que para os homens nas mesmas ocupações) e jovens (a probabilidade de ser um dos primeiros empregos para muitos deles é alta), e ainda pelo fato da percepção de que um trabalho em um shopping centertem mais "glamour"do que no comércio aberto (nas ruas).

Uma outra questão, que revela um paradoxo na resposta da maioria dos entrevistados de que estavam satisfeitos com seu trabalho, diz respeito ao fato de se sentirem irritados e com freqüentes dores de cabeça. Evidentemente, há mais perguntas do que respostas, já que este estudo é mais uma aproximação ao fenômeno do que uma investigação do mesmo. Mas há algumas considerações que podem ser relevantes para tentar entender essas características. A cultura de shopping centerpode ser uma das explicações para o alto índice de satisfação indicado pelos sujeitos. Frúgoli (1990) indica que os shoppings center estão perpassados por significados e relaciona a sociabilidade que ali se estabelece com um jogo simbólico, ou uma forma lúdica de interação e associação, onde as diferenças sociais são reelaboradas.

É comum, entre os funcionários de comércio, gastarem grande parte de seus salários em mercadorias da loja em que trabalham. Algumas lojas têm como norma que seus funcionários usem somente roupas da própria griffe,obrigando-os a renovar o guarda-roupa a cada estação. Para isso, são concedidos descontos para a compra do vestuário; ainda assim, muitas vezes os valores das compras superam o valor do salário mensal. Dessa forma, as vendedoras têm a aparência de sofisticação necessária para manter uma identidade coletiva configurada pela seletividade e pela sofisticação. Por se tratar de mulheres jovens, que sabidamente respondem de forma eficaz ao apelo do consumo sofisticado, sentem-se atraídas, sobretudo, pelo consumo da imagem do shopping.Isso lhes permitiria participar das redes de sociabilidade formadas por camadas sociais mais favorecidas. A importância deste estudo reside, principalmente, em indicar as características principais de um tipo de trabalho, pouco pesquisado, e ser fonte de questionamentos sobre a sua relação com a saúde. Fica como sugestão a necessidade de realizar mais estudos que focalizem o trabalho no comércio e as suas implicações para a saúde dos o trabalhadores de maneira mais aprofundada.

 

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Recebido: 17/12/02
Revisado: 28/04/03
Aceito: 30/09/03

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