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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.18 no.3 Brasília jul./set. 2018

https://doi.org/10.17652/rpot/2018.3.13870 

Atravessamentos políticos: a cultura organizacional e o sofrimento moral no serviço público

 

Political crossing: organizational culture and moral suffering in public service

 

Gestiones políticas: la cultura organizacional y el sufrimiento moral en el servicio público

 

 

Lídia Käfer Schünke; Carmem Regina Giongo

Universidade Feevale, Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A atividade profissional e a organização do trabalho possuem lugar fundamental na relação entre os processos de saúde e doença mental. Esta pesquisa busca compreender a relação entre as práticas de gestão nas instituições públicas e a saúde mental de servidores públicos municipais da região do Vale do Sinos, Rio Grande do Sul, através de um delineamento exploratório-descritivo, seguindo metodologia qualitativa. Participaram da pesquisa seis servidores públicos. Foi utilizado um questionário e uma entrevista semiestruturada, cujo material foi submetido à análise de conteúdo, resultando duas categorias: Práticas de gestão, cultura e trabalho; efeitos das práticas de gestão e cultura na saúde do trabalhador. Verificou-se a existência de uma cultura organizacional pautada em valores políticos e clientelistas, servindo a máquina pública de meio para a manutenção do poder político. Este cenário provoca falta de reconhecimento, sofrimento moral e desinvestimento subjetivo, propiciando um quadro de risco para a saúde mental dos trabalhadores.

Palavras-chave: saúde mental, serviço público, sofrimento moral.


ABSTRACT

Professional activity and work organization have a fundamental place in the relationship between the mental health and illness processes. This research aims to understand the relationship between management practices in public institutions and the mental health of municipal public servants in the region of Vale do Sinos, Rio Grande do Sul, through an exploratory-descriptive design, following a qualitative methodology. Six municipal public servants participated in the research. A questionnaire and a semi-structured interview were used. The material collected was submitted to content analysis, resulting in two categories: Management practices, culture, and work; effects of management practices and culture on worker health. The existence of an organizational culture based on political and clientelist values was verified, where the public machine is used as a means for maintaining political power. This scenario leads to lack of recognition, moral suffering, and subjective disinvestment, promoting a scenario of risk to workers' mental health.

Keywords: mental health, public service, moral suffering.


RESUMEN

La actividad profesional y la organización del trabajo poseen lugar fundamental en la relación entre los procesos de salud y enfermedad mental. Esta investigación busca comprender la relación entre las prácticas de gestión en las instituciones públicas y la salud mental de los funcionarios municipales de la región de Vale do Sinos, Rio Grande do Sul. Se trata de un estudio con delineamiento exploratorio-descriptivo de metodología cualitativa. Participaron de esta investigación seis empleados públicos. Fueron utilizados un cuestionario y una entrevista semiestructurada, cuyo material fue sometido al análisis de contenido, resultando en dos categorías: Prácticas de gestión, cultura y trabajo; efectos de las prácticas de gestión y cultura en la salud del trabajador. Se verificó la existencia de una cultura organizacional pautada en valores políticos y clientelistas, donde la maquinaria pública sirve para mantener el poder político. Este escenario conlleva falta de reconocimiento, sufrimiento moral y desinversión subjetiva, lo que trae riesgo para la salud mental de los trabajadores.

Palavras-claves: salud mental, empleo público, sufrimiento moral.


 

 

A atividade laboral tem lugar central na construção da identidade, na realização e nos processos de saúde/doença mental (Dejours, 2011). Entre os inúmeros segmentos de trabalhadores estão os servidores públicos: aqueles que atuam na administração pública em caráter profissional, sob vínculo de subordinação, recebendo remuneração paga diretamente pelos cofres públicos (Carneiro, 2011).

Do ponto de vista da organização e dos processos de trabalho neste segmento, a administração pública no Brasil passou por três diferentes modelos de gestão desde a República Velha até a contemporaneidade: o patrimonialista, o burocrático e o gerencial, ou pós-burocrático. Cada um desses modelos tem características e impactos específicos nos modelos da administração (Paes de Paula, 2012). Na gestão patrimonialista, que vigorou com o paradigma oficial da República Velha até a década de 1930, os aparelhos do Estado funcionavam como uma extensão do mundo privado, onde todas as ferramentas da estrutura pública serviam aos interesses privados do monarca, que detinha o poder. As relações clientelísticas estavam no escopo das práticas políticas e baseavam-se na troca de favores entre indivíduos, onde ambos eram beneficiados, porém de maneiras diferentes (Nunes, 2010). O clientelismo foi uma prática marcante durante a República Velha, como forma de articulação entre o sistema político e a sociedade. Atualmente, ele permanece como um padrão cultural de comportamento (Silva, 2007).

A partir da década de 1930, na chamada "Era Vargas", entrou em vigor uma gestão denominada burocrática, na qual o Estado constitui-se de uma estrutura autoritária e centralizadora, de trabalho disciplinado, seguindo regras claras e legalmente definidas com respeito à hierarquização. A preocupação excessiva com processos e eficácia acabou por transformar a administração pública em algo voltado a si mesmo (Paludo, 2010).

Com a ascensão das ideias neoliberais, a partir de 1990 entrou em vigor uma lógica gerencialista dentro da administração pública, com discursos e práticas do setor privado: foco no controle de resultados e primazia pela eficiência e efetividade dos serviços prestados, assim como nos modos de remuneração dos servidores. O princípio básico da implantação dessa reforma foi tornar a administração pública no país mais flexível e eficiente (Matias-Pereira, 2010). Estudos de Brulon, Ohayon e Rosenberg (2012) e Paes de Paula (2012) apontam que, apesar de a administração pública brasileira seguir um modelo gerencial, o que ocorre na prática contemporânea é a coexistência de três modelos de gestão: patrimonial, burocrático e gerencial.

É dentro do contexto apresentado que atua o servidor público. O sofrimento dos servidores públicos advém das condições de trabalho, mas está pautado principalmente na forma como este é organizado (Carneiro, 2011). Por meio deste estudo, busca-se responder o seguinte problema de pesquisa: como se dá a relação entre as práticas de gestão nas instituições públicas e a saúde mental no trabalho de servidores públicos estatutários da esfera municipal na região do Vale do Sinos, Rio Grande do Sul. Além disso, busca-se compreender as interfaces entre a prática de clientelismo nas instituições públicas e a saúde mental no trabalho de servidores públicos municipais estatutários inseridos neste contexto. Existem distanciamentos entre abordagens sobre saúde mental e trabalho e para discussão serão utilizados diferentes autores que abordam assuntos pertinentes à temática (Clot, 2010; Dejours, 2011; Dejours, 2012; Lunardi et al., 2009; McCarthy & Gastmans, 2015). Esta temática justifica-se pela sua relevância social, haja vista que os servidores públicos municipais perfazem um total de 6,49 milhões de pessoas segundo o Perfil dos Estados e Municípios Brasileiros. Os servidores estatutários predominam no serviço público municipal, significando uma parcela de 61,1% do total de servidores (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2014). Estudos apontam alta prevalência de afastamento de servidores públicos por transtornos mentais (Leão, Barbosa-Branco, Neto, Ribeiro, & Turchi, 2015; Oliveira, Baldaçara, & Maia, 2015). Além disso, ressalta-se a ausência de ações de promoção à saúde do servidor público, bem como de políticas públicas específicas para esta classe de trabalhadores (Fonseca, Tolfo, Santos, & Martins, 2015).

 

Método

Este estudo possui caráter exploratório-descritivo, pois busca proporcionar maior familiaridade com o assunto investigado, a fim de possibilitar sua definição e delineamento (Prodanov & Freitas, 2013). Do ponto de vista metodológico, trata-se de uma pesquisa qualitativa que se baseia, segundo Prodanov e Freitas (2013), na premissa de que há uma relação bilateral entre o mundo real e o sujeito, de forma que a subjetividade não pode ser transcrita em números.

Os participantes desta pesquisa integraram uma amostra não probabilista, tipo de amostragem utilizada em estudos qualitativos de cunho exploratório (Prodanov & Freitas, 2013). Para a seleção dos participantes, foi utilizado o método snowball sampling, onde os participantes iniciais de um estudo indicam novos participantes que, por sua vez, indicam outros e assim sucessivamente, até que se atinja o objetivo proposto ou o ponto de saturação (Baldin & Munhoz, 2011), com o primeiro participante selecionado por critério de conveniência. Participaram do estudo seis sujeitos, homens e mulheres maiores de 18 anos, servidores públicos do poder municipal da região do Vale do Sinos, Rio Grande do Sul. Os critérios de inclusão foram: ser servidor público estatutário de um município na região do Vale do Sinos; e atuar dentro da estrutura de prefeituras da referida região há pelo menos três anos. Foram critérios para exclusão do sujeito: ainda não possuir estabilidade no serviço público; e não atuar dentro da estrutura de prefeituras da região do Vale do Sinos. A amostra foi composta por cinco pessoas do sexo feminino e uma pessoa do sexo masculino, todas de raça branca, com idades entre 30 e 52 anos (M = 39,3 DP = 7,3), três casadas, duas solteiras e uma divorciada. No que tange à escolaridade, quatro delas possuem formação superior, e duas, formação no ensino médio. O tempo de serviço na administração municipal varia de cinco anos até 30 anos (M = 14,7 DP = 8,7).

Foram empregados dois instrumentos de pesquisa: um questionário biosociodemográfico elaborado exclusivamente para esta pesquisa a fim de caracterizar a população, mapeando e compreendendo o contexto social dos respondentes; e uma entrevista individual semiestruturada com os servidores, que seguiu os seguintes tópicos do roteiro: organização e processos do trabalho, significado do trabalho, sentimentos em relação ao trabalho, autonomia, autenticidade e reconhecimento no trabalho, cenário político no ambiente de trabalho.

Para o procedimento de coleta de dados, foram expostos aos participantes a natureza e os objetivos da pesquisa, bem como todos os aspectos éticos - sigilo da identidade e gravação, possibilidade de desistência e ausência de riscos. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE foi lido e assinado, ficando uma via em poder da pesquisadora e outra via em poder do entrevistado. Com todos os aspectos éticos esclarecidos e havendo o aceite dos termos, seguiu-se com a aplicação do questionário e posteriormente ocorreu a condução da entrevista semiestruturada, gravada para posterior transcrição. A coleta de dados não foi realizada em local de trabalho, uma vez que esta pesquisa não tem nenhum vínculo institucional. Por se tratar de uma seleção de população através do método snowball, ao final do processo foi solicitado a cada um dos participantes que indicasse outro sujeito para participar.

Este projeto foi submetido ao Conselho de Ética em Pesquisa da Universidade Feevale (CEP), obtendo parecer de aprovação através do número 1.669.823, de acordo com a Resolução nº 510 de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2016) e com as normas internas do CEP. A todos os participantes foram esclarecidos a natureza e os objetivos da pesquisa, não oferecendo ônus algum. Para resguardar as identidades, foram atribuídos nomes fictícios aos participantes.

O material oriundo das entrevistas realizadas com os servidores públicos municipais, obtido por meio de gravação autorizada pelos participantes, foi transcrito em sua integralidade e analisado primariamente pela pesquisadora. Em seguida, este material foi submetido à análise de conteúdo segundo postulado por Laville e Dionne (1999). O primeiro passo da análise consistiu em efetuar um recorte dos conteúdos, os quais foram organizados em duas categorias analíticas. A definição das categorias se deu conforme um modelo misto, no qual categorias são selecionadas a priori, mas podem ser modificadas e/ou acrescidas pelo pesquisador após a coleta. As diversas unidades de conteúdo foram agrupadas inicialmente em categorias fixadas e, após revisões críticas, ocorreu a ampliação e subdivisão das categorias.

 

Resultados e discussão

Nesta seção serão apresentados e discutidos os resultados encontrados por meio da coleta de dados. Para isso, os dados estão dispostos em duas grandes categorias: 1) práticas de gestão, cultura e trabalho; e 2) efeitos das práticas de gestão e cultura na saúde do trabalhador.

Práticas de gestão, cultura e trabalho

Nesta categoria serão apresentados os aspectos relacionados às práticas de gestão, à cultura organizacional e ao trabalho. Abordar-se-á como se dá o trabalho e como ele é organizado, uma vez que a organização do trabalho exerce influência sobre o funcionamento e a vida psíquica do indivíduo, sendo um fator importante no desenvolvimento de problemas psíquicos (Carneiro, 2011). As subcategorias que integram as práticas de gestão, cultura e trabalho são: atividades e processos de trabalho; processos de comunicação; cultura política e clientelista na organização. Tais subcategorias vão ao encontro do apresentado por Seligmann-Silva (1995) no que tange a aspectos a serem considerados na análise da organização do trabalho.

No que se refere às atividades e processos de trabalho, pode-se verificar que as atividades dos entrevistados, apesar de divergirem entre si, obedecem a uma lógica burocrática, pautada em processos e em normas pré-estabelecidas. Com exceção de uma entrevista, onde a pessoa informou que não poderia discorrer mais detalhadamente sobre suas atividades por questões de sigilo, os demais trouxeram relatos de afazeres rotineiros e repetitivos. Todos precisam prestar contas de suas tarefas, seja por meio da elaboração de relatórios, de alimentação de banco de dados ou de monitoramento por sistema da gestão. Algumas falas demonstram isso:

A gente trabalha com um sistema do estado que é muito rígido, não pode ter um erro. (Nêmesis [nome fictício], comunicação pessoal, 06 de setembro de 2016)

Tem que seguir, é tudo, sempre tem um fluxo de que tem que ser registrado tudo porque vão para documentos oficiais e a gente tem que ser extremamente cauteloso, tanto pra liberar informações quanto pra enviar informações de um lugar pra outro. (Atena [nome fictício], comunicação pessoal, 12 de agosto de 2016)

De modo geral, todos os entrevistados caracterizaram o desenvolvimento de suas atividades como pautado em uma lógica burocrática, mas, ao mesmo tempo, alguns relatos indicaram que os processos de trabalho também são balizados por uma lógica gerencialista. Há controle de indicadores, resultados e metas a serem atingidas pelos serviços:

Relatório dos indicadores, assim, indicadores de saúde, produção de consultas, de cirurgias, de terminologia, vigilância sanitária. Então eu agrego todas as produções dos setores e mantenho um relatório que é feito quadrimestralmente [...] quando complica é quando as informações não estão adequadas com os indicadores que a gente tem que chegar, com as metas que a gente tem que bater. (Láquesis [nome fictício], comunicação pessoal, 19 de agosto de 2016)

Os meios de realização das atividades obedecem à lógica de um modelo de gestão burocrática, mas ali coexistem com uma lógica de modelo de gestão gerencialista no que concerne verificar a eficiência do serviço por meio do controle de resultados. Esta realidade converge ao que já foi apresentado por Paes de Paula (2012), uma vez que hoje não existe um paradigma para a administração pública, mas sim a coexistência de características de cada um dos modelos de gestão, atendendo a diferentes fins.

Outra categoria identificada está relacionada à comunicação no local de trabalho. A comunicação atravessa todo o funcionamento de uma organização, sendo relatada como componente fundamental para que seja possível o desenvolvimento das atividades dentro deste contexto (Santos & Valentim, 2013). Os servidores entrevistados trouxeram, em suas falas, que os processos de comunicação são deficientes, as informações não circulam de forma adequada e estes fatores acabam prejudicando o andamento do trabalho. Foram citados a falta de reuniões entre a equipe para socializar e integrar as informações, o desconhecimento por parte das chefias em relação às atividades e processos desenvolvidos pelos trabalhadores, o desconhecimento por parte dos trabalhadores em relação às demais atividades e atribuição do próprio setor ou setores interligados, a centralização de determinados conhecimentos em uma só pessoa e demandas inadequadas que chegam aos setores. Estas constatações podem ser verificadas por meio de alguns trechos:

Ele chegou lá quando foi nomeado e não sabia nada de ninguém, não fez questão de saber quem é quem, nem pra lembrar o nome meu. Como ele não fazia ideia do que era, de como era o meu trabalho, entendeu? (Láquesis [nome fictício], comunicação pessoal, 19 de agosto de 2016)

Assumiram chefias novas e até hoje não ocorreu nenhuma reunião de equipe com toda a secretaria, com o pessoal. Acontecem reuniões pontuais no setor, mas com o diretor, com os secretários, não foi feito nenhuma [...] às vezes dá a impressão de que eles não sabem o que que tu faz [sic]. (Atena [nome fictício], comunicação pessoal, 12 de agosto de 2016)

Sendo a comunicação um processo unilateral, as deficiências apontadas interferem na organização do trabalho, uma vez que não existe um fluxo de informações linear e universal. Tal constatação é corroborada por Santos e Valentim (2013), quando colocam que a comunicação organizacional é o que vai viabilizar interações, aprendizados e trocas. Ela se faz elemento imprescindível para que os sujeitos compreendam as transformações ocorridas no ambiente, proporcionando apropriação do seu contexto e atividades laborais.

Dentro das práticas de gestão, cultura e trabalho, além das temáticas já citadas, foi identificada a existência de uma cultura política e clientelista dentro da organização. Todos os entrevistados trouxeram em suas falas que a política faz parte do funcionamento do serviço público, que toda gestão pública é calcada na política. A cultura organizacional é o que influi sobre as relações construídas no dia a dia organizacional. Ela representa o alicerce mais significativo do ambiente, sendo composta por diferentes elementos, entre os quais podem ser citados valores, crenças, mitos e normas, entre outros. É a cultura que exercerá influência no comportamento dos sujeitos organizacionais (Santos & Valentim, 2013).

Assim, entende-se que a cultura organizacional que rege o funcionamento do contexto laboral aqui investigado é uma cultura pautada em valores políticos, onde residem as práticas clientelistas. Dois entrevistados relataram terem presenciado interferências diretas para a prestação de determinado serviço ou facilitação por meio de ingerências políticas:

Mas a medicação, só era autorizado o valor pra pegar na farmácia, era só quem, vamos dizer, do partido, que era 'a mando do', não era tipo assim pela tua condição social, era por indicação, vamos dizer assim. (Atena [nome fictício], comunicação pessoal, 12 de agosto de 2016)

Aí eu tô tentando marcar um paciente que eu sei pelos exames que vai perder a perna, aí chega um lá que 'ah, eu preciso da avaliação porque é amigo do fulano', poxa, esse outro paciente que eu tô tentando marcar vai ter que esperar um ou dois meses enquanto o outro não precisava, né. (Perséfone [nome fictício], comunicação pessoal, 19 de agosto de 2016)

Todos os participantes da pesquisa, porém, relataram perceber interferências no que diz respeito à manutenção de cargos dentro do setor público devido a motivações político-partidárias. Todos os cargos de gestão são ocupados por agentes políticos e essas nomeações estão a serviço de coligações e acordos partidários. Essas práticas replicam-se dentro dos setores, uma vez que os servidores trazem em seu discurso que avanços e promoções no serviço público só ocorrem em caso de envolvimentos políticos, conforme ilustrado por algumas falas:

Não vou crescer, né, não vou chegar, a não ser que eu faça política, a um cargo maior. (Láquesis [nome fictício], comunicação pessoal, 19 de agosto de 2016)

Eu queria a coordenação, mas eu acredito que seja um cargo que seja político. Mas eu queria. (Perséfone [nome fictício], comunicação pessoal, 19 de agosto de 2016)

Ou pra ter algum reconhecimento vamos dizer financeiro tu tem [sic] que te envolver com alguma coisa [...] eu queria um ADP,1 mas se for pra chacoalhar bandeira não. Porque eu não, não é o que eu acredito, entende? (Nêmesis [nome fictício], comunicação pessoal, 06 de setembro de 2016)

Conforme López, Bugarin e Bugarin (2014), funcionários que ocupam um cargo de confiança são aqueles nomeados pela administração pública. Tais cargos são de livre provimento, ou seja, livre nomeação e exoneração de funcionários, sendo referidos como "CC" (SIC) pelos entrevistados. Apesar de quatro participantes da pesquisa terem relatado no questionário biosociodemográfico que recebem uma gratificação salarial devido à função que exercem, isso não é entendido como reconhecimento pelos serviços prestados.

Ao serem questionados sobre o assunto, foi trazido que todo e qualquer processo de reconhecimento está balizado pelo interesse político-partidário envolvido, inclusive em detrimento da qualidade do serviço prestado, como verifica-se através das seguintes falas:

Coordenadores são CC, entra e sai, que nem a nossa agora, se o partido que ela tá não ganhar, ela vai sair, fazendo ou não um trabalho bom. Sabe? (Nêmesis [nome fictício], comunicação pessoal, 06 de setembro de 2016)

Quando sai alguém que tenha um cargo, se espera que politicamente se coloque outra pessoa que vá assumir aquele cargo, entendeu? Ainda mais nessa época eleitoral, né, que eles adoram um cabidinho. (Láquesis [nome fictício], comunicação pessoal, 19 de agosto de 2016)

Ali no meu setor não são muitos CCs, mas os que trabalham ali recebem bastante. Tem uma menina nova que eu fiquei sabendo que recebe três mil e meio, e a menina nem atender o telefone ela não atende, tu entra [sic] na sala e ela tá no celular dela. (Perséfone [nome fictício], comunicação pessoal, 19 de agosto de 2016)

Uma colega que saiu dali que era CC e fez umas coisas ali contra [...], tiraram ela dali, colocaram ela num outro lugar e ela entrou lá naquele local como gerente. Essa pessoa que saiu dali da secretaria, ela fazia tudo errado, né, e aí ela foi lá pro outro com um cargo lá em cima. [...] Teve pessoas ali boas, profissionais bons que mereciam ter um cargo melhor e por causa da política saíram e colocaram outra pessoa. (Nêmesis [nome fictício], comunicação pessoal, 06 de setembro de 2016)

Dentro do contexto deste estudo, o clientelismo evidencia-se na relação entre a gestão municipal e os funcionários que possuem um cargo de confiança. Nessa relação, a manutenção do cargo depende da prestação de determinados favores ao ente político - neste caso ao gestor municipal e demais possíveis coligações partidárias envolvidas na relação. Tais favores têm motivações eleitoreiras e de manutenção do poder. Estes fatores são evidenciados nos seguintes trechos:

A gente tem 3.600 servidores, onde, sei lá, 200 ou 300 são CCs e são cargos políticos, então automaticamente eles estão ali por causa da política, então uma vez que eles não estejam envolvidos com a política eles não estariam ali, entendeu? (Hermes [nome fictício], comunicação pessoal, 25 de agosto de 2016)

Então elas vão lá, fazem suas bandeirolas, e na época política elas tem o seu dízimo, que eu digo, porcentagem que elas pagam pro partido, do salário delas [...] é mais assim, a pessoa vai lá e passa horas bandeirando na parte política, daí mantem o emprego dela se o político dela ganhar [...] Pra mim isso é uma troca de emprego, mas tu faz política pra mim, tu faz propaganda pra minha pessoa. (Láquesis [nome fictício], comunicação pessoal, 19 de agosto de 2016)

Os relatos evidenciam a existência de práticas de patronagem - uma conduta clientelista - dentro da organização (Linhares, 2016). O emprego público é utilizado como moeda de troca por favores políticos, e no meio deste contexto está o servidor público estatutário. Esta dinâmica de funcionamento já está estabelecida:

Claro que existem nomeações, tudo, o setor, infelizmente, o setor público é isso, tem muita coisa partidária [...] A política? sim, infelizmente sim, infelizmente sim (faz parte do serviço público). (Hermes [nome fictício], comunicação pessoal, 25 de agosto de 2016)

Dentro dessa realidade, onde se evidencia uma cultura organizacional orientada pelas relações políticas e clientelistas, as ações da gestão exercem um papel de manutenção cultural dentro da organização, uma vez que, conforme Pires e Macedo (2006), a cultura organizacional implica em estabilidade da organização. Assim como dentro da lógica burocrática, onde a manutenção do funcionamento atual acaba sendo a finalidade do serviço, da mesma forma é percebido nesta lógica política e clientelista, onde a gestão atua em prol da continuidade e perpetuação dos padrões já estabelecidos. Faz-se necessário ressaltar que a cultura organizacional não existiria sem as pessoas (Pires & Macedo, 2006), ou seja, os trabalhadores também acabam se tornando responsáveis pela continuidade desta cultura de funcionamento - ponto este que será abordado na categoria "efeitos das práticas de gestão e cultura na saúde do trabalhador". O seguinte recorte, de um trecho de entrevista onde o servidor foi questionado sobre a inexistência de programas de promoção de saúde do servidor, explicita a lógica de funcionamento da gestão:

Prioridades. Acho que não é uma prioridade, não é algo que alavanque votos, por exemplo. Daqui a pouco vale mais a pena tu investir em alguma outra propaganda, em algo publicitário, investir em determinado programa que tu acha [sic] que vai ficar mais visível pra população do que propriamente investir na saúde do servidor público. Acho que é uma questão de prioridades. Eu não vejo como sendo algo tão que se gaste tanto pra se ter um programa, acho que a falta mesmo, acho que é questão de priorizar aquilo ali. (Hermes [nome fictício], comunicação pessoal, 25 de agosto de 2016)

Essa lógica de funcionamento percebida faz com que a administração pública acabe se perdendo em seu fim. Matias-Pereira (2010) e Nascimento (2010) discutem os propósitos da administração pública, sendo eles a gestão de bens e interesses da comunidade, visando o bem comum e balizados por preceitos de direito e moral. Pires e Macedo (2006) defendem que as características patrimonialistas do funcionamento da administração pública, e dentro delas as práticas clientelistas, geram um desacordo entre os motivadores políticos e a missão pública. Logo, os interesses partidários voltam o funcionamento da organização em direção oposta à missão pública, esvaziando o sentido do trabalho público e gerando sofrimento moral.

Efeitos das práticas de gestão e cultura na saúde do trabalhador

As práticas de gestão definem o modo como o trabalho é organizado, gerando efeitos para a saúde psíquica do trabalhador (Carneiro, 2011). Diante desse pressuposto, esta categoria discutirá as interfaces entre as práticas de gestão e cultura e a saúde mental dos servidores entrevistados. Os efeitos das práticas de gestão sobre a saúde mental foram identificados como: dilemas morais, postura resignada, falta de reconhecimento, instabilidade e descontinuidade, desinvestimento subjetivo do trabalhador e sintomatologia.

O sofrimento moral decorre do sofrimento causado por dilemas morais nos quais é rompida a integridade moral do indivíduo (Lunardi et al., 2009). McCarthy e Gastmans (2015) definem que o sofrimento moral ocorre quando se tem ciência da conduta correta a ser tomada, mas restrições institucionais impossibilitam a realização da ação. As práticas que advêm da cultura organizacional pautada nas relações políticas e clientelistas provocam uma relação de conflito entre os valores morais dos servidores e as demandas às quais os mesmos precisam responder no exercício da função.

Essa constatação pode ser evidenciada por meio das falas:

É horrível. Tem vezes que 'ah, me dá aqui que eu vou fazer' porque não adianta ficar brigando, sabe? Mas tu sabe [sic] que tu tá fazendo muito errado. (Perséfone [nome fictício], comunicação pessoal, 19 de agosto de 2016)

É de política. Só. Tem coisas que eu não concordo, que eu não aceito, que é a dos cargos e de querer tentar marcar uma consulta porque a política está pedindo. Isso são coisas que me incomodam muito. Eu não gosto disso. (Nêmesis [nome fictício], comunicação pessoal, 06 de setembro de 2016)

Quando ocorre este prejuízo à integridade moral do sujeito, há o sofrimento moral - quadro que pode levar até ao abandono da profissão (Lunardi et al., 2009). Ao depararem-se com obstáculos para desenvolver uma prática considerada mais adequada e eticamente fundada, os sujeitos sentem-se coagidos a comprometer seus valores morais, pessoais e profissionais. Esse quadro de sofrimento moral pode acarretar sentimentos de frustração, angústia, raiva, ansiedade, culpa e outros comprometimentos físicos e orgânicos, gerando baixa autoestima e culminando em insatisfação com o trabalho (Dalmolin, Lunardi, Barlem, & Silveira, 2012).

O trabalho adoecedor é aquele no qual o trabalhador não é capaz de realizar suas aspirações, ideais, imaginação e desejo (Dejours, 2012). Já a saúde mental não é a ausência de sofrimento ou um estado de bem-estar pleno, mas sim a habilidade de transformar as fontes que são produtoras de sofrimento ou adoecimento sem destruir, mas não sem se revoltar (Furtos, 2007). Nesta pesquisa, os trabalhadores demonstraram uma postura de resignação frente às práticas de gestão e cultura organizacional, uma postura de aceitação, de não questionamento e impotência em relação às situações de sofrimento, como se as mesmas já estivessem dadas e não houvesse nada mais a ser feito. Apesar de haver uma revolta ou uma insatisfação quanto ao que está dado, a posição é de inércia e de impossibilidade de ação, o que resulta em uma sujeição ao sistema ali instituído. Mesmo ocorrendo o questionamento e o incômodo, existe um descrédito na possibilidade de transformação por meio da ação do servidor:

Não vai adiantar eu falar nada ou levantar bandeira que não vai surtir efeito nenhum e por um lado acaba criando um certo conformismo que é o que me incomoda sabe, porque a gente tem que se acostumar, mas quando vê tu não te acostuma [sic] né, daí tu acaba [sic] repetindo, tu vê, é um período agora de quatro em quatro anos que eu fico mal né, porque justamente tu vê [sic]se repetindo tudo, tu acha [sic] que vai mudar, vai melhorar e no fim acaba repetindo tudo né. (Atena [nome fictício], comunicação pessoal, 12 de agosto de 2016)

Com o tempo tu acaba [sic] se, acaba acostumando a ver isso, sabe? Essas trocas serem... que nem, vai trocar, ter eleição no final do ano, vai trocar, vai ter mudanças entre todo mundo, vai ser absolutamente normal isso sabe? As chefias vão ser trocadas e tu tem [sic] que meio que te adaptar aquilo ali. (Hermes [nome fictício], comunicação verbal, 25 de agosto de 2016)

Percebe-se a fragilidade da saúde mental dentro deste contexto. A atitude resignada dos servidores aponta que os mesmos não se percebem enquanto sujeitos capazes ou instrumentalizados para intervir neste cenário. Além da capacidade de transformação do meio, o reconhecimento no trabalho é um tema fundamental na interação entre sujeito e trabalho, pois é através dele que se evidenciará a relevância do trabalho na construção da identidade pessoal (Bendassoli, 2012). Os discursos dos sujeitos da pesquisa apontam que a falta de reconhecimento e de olhar para a subjetividade do trabalhador também são fatores que causam sofrimento:

Daí a impressão que tu tem [sic] é que tu trabalha, trabalha [sic], e tu não é [sic] visto nem lembrado. Só quando acontece alguma coisa errada é que tu acaba [sic] aparecendo. (Atena [nome fictício], comunicação verbal, 12 de agosto de 2016)

Conforme já apontado na categoria anterior, a cultura organizacional pautada nas relações políticas e clientelistas origina essa falta de reconhecimento por parte da gestão. Mesmo ocorrendo gratificações financeiras em alguns casos, o reconhecimento não é percebido. Além da falta de reconhecimento por parte da gestão, os servidores também percebem falta de reconhecimento e desvalorização do servidor por parte da sociedade:

A gente sempre trabalhou e trabalha bem,né, que não é justo generalizar isso. Daí é nesse sentido daí que é triste em saber que tu trabalha [sic] com vontade, com dedicação e que tu acaba [sic] sendo visto como que tu não tem [sic] responsabilidade, né. (Atena [nome fictício], comunicação verbal, 12 de agosto de 2016)

Tu trabalha, trabalha, trabalha, trabalha [sic], aí lá no final tu é [sic] um bandido, entende? Tu tira [sic] a cidade do zero, mas depois de quatro anos tu continua [sic] sendo, tu vira [sic] um bandido. (Artemisa [nome fictício], comunicação verbal, 19 de agosto de 2016).

Esta realidade vai ao encontro do que Bendassoli (2012) apresenta: quando se oferece uma contribuição à atividade, o trabalhador espera retribuição. Mas esta retribuição não se dá essencialmente na esfera financeira, ela precisa ocorrer também na esfera simbólica, que é quando a retribuição assume a forma do reconhecimento. Existe uma relação intrínseca entre a falta de reconhecimento e os processos de sofrimento, adoecimento e despersonalização, uma vez que ele é nuclear na construção da identidade e saúde no trabalho (Dejours, 2011). A falta de reconhecimento social intensifica os efeitos para a saúde do servidor.

Esses resultados corroboram achados da literatura (Carneiro, 2011) que evidenciam a falta de reconhecimento no trabalho, tanto por parte da gestão quanto por parte da sociedade, como uma das principais queixas de servidores públicos. Este quadro proporciona o desenvolvimento de sensação de desvalorização com sinais e sintomas de falência.

A falta de clareza nos processos de comunicação e os critérios de reconhecimento, aspectos já verificados entre as práticas de gestão, cultura e trabalho, são elementos que promovem efeitos na subjetividade do funcionário:

(Sentimento de) impotência, aquela coisa de 'ah, o que eu tô fazendo aqui? Por que eu me empenho tanto se acaba tudo sendo igual depois? Por que eu trago ideias, porque eu penso? Por que eu me importo, se ninguém se importa? (Perséfone [nome fictício], comunicação verbal, 19 de agosto de 2016)

A falta de clareza que permeia o contexto, aliada à falta de continuidade da gestão, geram uma sensação de instabilidade no servidor em relação ao trabalho e aos vínculos construídos dentro deste contexto. Esta realidade pode ser percebida por meio da fala dos entrevistados:

Agora que é período em que as coligações trocam já houve uma troca enorme de colegas e a gente acaba sofrendo porque tu te apega [sic] às pessoas, não tem como tu trabalhar [sic] seja um ano ou dois e ficar indiferente. (Atena [nome fictício], comunicação verbal, 12 de agosto de 2016)

Se o partido dela não ganhar, dependendo se ela tá fazendo um bom trabalho ou não, vai sair, agora no final do ano [...] o partido não ganha e ela vai embora, e aí vem outro, aí tu tem [sic] que começar todo o processo de novo e daí tu não sabe [sic] como é que, essa parte aí isso influencia um pouco no nosso psicológico pra quem fica. (Nêmesis [nome fictício], comunicação verbal, 06 de setembro de 2016)

Um ambiente permeado pela falta de clareza na comunicação e instabilidade nas relações, sejam humanas ou profissionais, pode vir a ser considerado um terreno fértil para o surgimento de assédio moral (Teixeira, Reis & Santos, 2013). O assédio moral traz consequências à saúde física e psíquica, interferindo no desempenho de atividades, na vida pessoal e na organização onde os trabalhadores estão inseridos. Conforme indicam Nunes e Tolfo (2015), uma organização que não previne nem combate a incidência de assédio moral acaba por se tornar ainda mais violenta. Merlo e Lapis (2007) apontam que, em vista da necessidade de manutenção do emprego, o medo e a tensão acabam fazendo parte do dia a dia do trabalhador. Um ambiente instável, que causa medo, pode vir a reforçar condutas de obediência e submissão. Esse quadro pode quebrar a reciprocidade e a solidariedade entre os colegas de trabalho, reproduzindo a lógica do individualismo e da individualização do sofrimento. Problematiza-se a estabilidade presumida dentro do serviço público, pois mesmo que ela exista no que diz respeito à vida financeira, vê-se que ela não se mantém no campo das relações.

Além disso, esse cenário gera um desinvestimento subjetivo do servidor frente ao seu trabalho, bem como uma mecanização e despersonalização dele mesmo. O trabalho tem papel transformador da realidade humana, possibilitando a sobrevivência e a realização do homem. É por meio da ação e do resultado que se percebe a vida como uma concepção autônoma (Malvezzi, 2014). A atividade laboral ocupa um lugar fundamental na relação entre saúde e doença mental. Como tentativa de proteger sua saúde mental, os trabalhadores aqui identificados buscam distanciar-se de suas atividades, suspendendo sua subjetividade no ambiente de trabalho, uma vez que lá não se tem espaço para este investimento. Clot (2010) afirma que a diminuição e a destruição da capacidade de agir, do ser-capaz-de-fazer, são um ataque à integridade do sujeito, acarretando em muito sofrimento e trazendo riscos para a saúde.

É possível observar este fenômeno desde a realização das funções de forma mecânica, da dificuldade de relacionar sentimentos às atividades laborais, até a apropriação de uma postura racionalizada e incorporada ao funcionamento do sistema sem crítica, o que faz os servidores se verem apenas como uma peça de engrenagem:

É muito difícil tu pensar [sic] em sentimentos quando tu faz [sic] as coisas no automático. (Láquesis [nome fictício], comunicação verbal, 19 de agosto de 2016)

Eu, vamos dizer assim, hoje, após 22 anos eu já não consigo imaginar sem isso estar funcionando desta forma. Eu não me coloco contra o sistema [...] procuro ser uma peça do sistema que faça com que ele funcione. (Artemisa [nome fictício], comunicação verbal, 19 de agosto de 2016)

O contexto gera uma separação entre a subjetividade do servidor e o mundo do trabalho, como se precisasse existir uma cisão entre o mundo pessoal e interno de cada um e o mundo do trabalho. Esse fator fica elucidado através do seguinte recorte:

Eu posso falar como pessoa e não como profissional? (Nêmesis [nome fictício], comunicação verbal, 06 de setembro de 2016)

O sentido que o sujeito dará para o seu trabalho está intrinsecamente relacionado à sua saúde mental. Em um contexto onde há a despersonalização, suspensão da subjetividade e mecanização das atividades, não existe sentido para o trabalho e, dentro deste quadro, constata-se adoecimento (Jackson Filho, 2015). A ausência de afeto e subjetividade não coexiste com a saúde mental.

Todos os efeitos das práticas de gestão e da cultura organizacional apresentados compõem um quadro de risco para a saúde do trabalhador. Neste cenário, eles geram o aparecimento de sintomas físicos e mentais. Complicações como obesidade, doenças gástricas, esgotamento mental, afastamentos e licenças-saúde foram verificados no decorrer das entrevistas. Dessa forma, verifica-se relação entre os efeitos das práticas, a sintomatologia apresentada e a organização do trabalho, temática que vem sendo frequentemente reiterada no decorrer desta pesquisa (Carneiro, 2011).

O contexto estudado gera sofrimento moral, perda de sentido do trabalho e falta de reconhecimento. Esses fatores afetam diretamente a saúde mental dos sujeitos, o que agrava ainda mais a sintomatologia física que eles possam vir a desenvolver em decorrência de suas vivências no trabalho.

 

Considerações finais

Por meio das entrevistas conduzidas percebeu-se que, sob a ótica dos entrevistados, as práticas de gestão em voga dentro deste contexto vão ao encontro do que é apontado pela teoria (Paes de Paula, 2012): não existe um paradigma único dentro das práticas de gestão da administração pública, o que se tem hoje é uma coexistência dos três modelos de gestão. As atividades obedecem a uma lógica de funcionamento burocrática, com processos e normas pré-estabelecidos, bem como preceitos de parâmetros gerencialistas, com controle de resultados, metas e diferenciação de salários. Dentro disso, ainda, constatou-se a existência de uma cultura organizacional pautada em valores políticos e clientelistas que reproduz as práticas de gestão patrimonialistas, na qual os interesses que estão em jogo não são os públicos, mas sim os individuais. Nesse caso, a máquina pública é utilizada como meio para a manutenção e a perpetuação do poder político. Esse paradigma destoa da missão pública, fazendo com que a administração se perca em seu fim.

A existência dessa cultura organizacional possibilita práticas clientelistas, por meio da concessão de favores e da manutenção de cargos públicos em troca de apoio político. Essa lógica de funcionamento acarreta sofrimento moral, fragilizando os servidores que acabam por resignar-se sem perceber possibilidades de intervenção. A resignação, conforme apontado por Furtos (2007), opõe-se ao conceito de saúde mental, na medida em que impede a transformação dos fatores produtores de sofrimento. Além disso, a falta de clareza em processos de reconhecimento e comunicação que advém destas relações políticas e das práticas clientelistas fomenta um ambiente de instabilidade. Dessa forma, verificou-se que a cultura organizacional política e clientelista produz a falta de reconhecimento. A instabilidade gera insegurança e medo, o que pode quebrar a solidariedade entre colegas (Merlo & Lapis, 2007) e reproduzir a lógica de individualismo e submissão. Tal contexto acarreta despersonalização e mecanização das atividades, como uma estratégia dos servidores que visam proteger sua saúde mental.

Todo esse cenário produz um desinvestimento subjetivo dos servidores. Jackson Filho (2015) aponta que o sentido do trabalho e a saúde mental estão intrinsecamente relacionados. A despersonalização, a suspensão da subjetividade e a mecanização das atividades produzem um trabalho sem sentido, o que é terreno fértil para o adoecimento do trabalhador. Sem mobilização e engajamento subjetivo não se enfrentam os limites e as condições de trabalho (Traesel & Merlo, 2014). Dessa forma, entende-se que todos os efeitos das práticas de gestão aqui instituídas representam um quadro de risco para a saúde mental do trabalhador. Nesse cenário, cabe à psicologia e aos outros campos das ciências humanas e sociais buscar o desenvolvimento de políticas públicas de proteção à saúde do servidor, combatendo o cenário de precarização do trabalho e promovendo ações que modifiquem o quadro de vulnerabilidade ao qual essa classe de trabalhadores está hoje exposta.

Uma das possíveis limitações para este estudo é o tamanho da população pesquisada, bem como o período no qual esta pesquisa foi conduzida, uma vez que a realização das entrevistas se deu nos meses de agosto e setembro de 2016, antecedendo as eleições municipais e perpassando a época de campanha política. É oportuno ponderar a respeito disso, pois não se descarta a possibilidade de que questões políticas e partidárias mantenham-se latentes em outros períodos.

Sugere-se o desenvolvimento de estudos futuros abrangendo uma variedade maior de contextos dentro da administração pública, bem como com diferentes populações e em diferentes períodos. Somente por meio da pesquisa e dos resultados obtidos através dela poderemos, enquanto ciência, atribuir visibilidade a esta realidade, propondo intervenções adequadas e políticas públicas que visam promover a saúde mental dentro da realidade do trabalho de servidores públicos.

 

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Endereço para correspondência:
Lídia Käfer Schünke
Universidade Feevale
93525-075, Novo Hamburgo, RS - Brasil
E-mail: lidia.kafer@gmail.com

Recebido em: 29/05/2017
Primeira decisão editorial em: 05/10/2017
Versão final em: 07/03/2018
Aceito em: 07/03/2018

 

 

1 Adicional por Dedicação Plena.

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