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Revista de Psicologia da UNESP
versão On-line ISSN 1984-9044
Rev. Psicol. UNESP vol.17 no.1 Assis jan./jun. 2018
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Entrevista com Pascale Molinier
Fernanda Banhos Velloso
Apresentação
A Prof. Dra. Pascale Molinier, psicóloga e pesquisadora na área de Psicodinâmica do Trabalho, é reconhecida por sua contribuição para os estudos dos trabalhos femininos, especialmente do trabalho de cuidar. Estudou Psicopatologia e Psiquiatria Social na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Ela foi editora-chefe da revista Travail. Revista Internacional de Psicodinâmica e Psicopatologia do Trabalho. Desde 2009, é professora de psicologia social na Universidade Paris 13 Nord (Sorbonne Paris Cité) e, desde 2014, diretora do laboratório da UTRPP (unidade de pesquisa transversal em psicogênese e psicopatologia, EA 44032).
Nesta entrevista, concedida à Fernanda Banhos Velloso, participante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicodinâmica do Trabalho Feminino - Psitrafem/UnB, a pesquisadora fala sobre sua história profissional, seus estudos, trabalho imigrante feminino e solidariedade entre mulheres. A entrevista foi realizada na casa da professora, em Paris, onde ela generosamente recebeu a entrevistadora.
Entrevista
Boa tarde, muito obrigada por ter aceitado o convite de entrevista. Eu me chamo Fernanda Banhos Velloso, e faço parte de um grupo de pesquisa "Psicodinâmica do trabalho feminino", coordenado pela professora Carla Antloga, na Universidade de Brasília (UnB).
É uma honra para mim e para o grupo de pesquisa termos a oportunidade de entrevistá-la e poder dialogar com um nome referência na área da Psicodinâmica do trabalho.
Sabemos um pouco do seu percurso acadêmico, bem como do seu contato inicial com a literatura. Gostaria de saber como se deu a sua aproximação com a Psicologia e, posteriormente, com a psicodinâmica do trabalho e com a relação de gênero.
Em seguida, gostaria de dar início às perguntas.
P - Por que a Psicologia? Você sempre soube que gostaria de estudar a Psicodinâmica do trabalho? Como você chegou até ela?
Na verdade, eu entrei na École des hautes études en Science Sociale para estudar, com Claude Veil, um tema - relativo à violência dentro das instituições de cuidado geriátrico - que na época era, ainda, pouco pesquisado. Claude Veil, que é um dos pioneiros da Psicopatologia do trabalho, convidou Christophe Dejours para o seu seminário. Quando escuteiChristophe Dejours falar pela primeira vez, eu acredito que em 1988, eu achei suas ideias muito interessantes. Isto fez com que eu lesse as suas obras, e que eu tomasse como base as suas ideias para o meu memorial, [equivalente a um projeto de mestrado] na École des hautes études en Science Sociale. Quando terminei, Claude Veil me disse:"Isso é interessante, está muito bom, mas eu vou me aposentar". Então, eu precisava fazer uma tese. Mas, com quem, com qual orientador? E sobre qual assunto? Então, eu comecei fazendo um Master Recherche [mestrado pesquisa] na Paris 7 [Universidade Sorbonne Paris 7] sob a orientação de Christophe Dejours. Depois, eu desenvolvi uma tese no Conservatoire National des arts et métiers, sempre sob a orientação de Christophe Dejours. Desde o início, eu trabalhei com enfermeiras. Eu sabia que as enfermeiras eram mulheres [risos], mas não tinha muito subsídio, ainda, na área a respeito do assunto. Digamos que eu tinha desenvolvido um pouco meus conhecimentos históricos com base no que se passou na Salpêtrière no século XIX. O fato é que as cuidadoras e as histéricas eram, frequentemente, originárias da mesma população, até mesmo uma mesma mulher ocupando os dois papéis. Isso revelava bem a iconografia da Salpêtrière no século XIX. Mas até aquele momento eu ainda não tinha entrado na questão de gênero. Tive esse insight, apenas, no momento de redação da tese. E a psicologia porque ela tem consequências clínicas e práticas muito mais evidentes do que a literatura, que amo muito. Mas eu me dizia que sempre conversei bastante com meus professores de literatura. Era bom, mas eu não me sentia útil, e eu não me imaginava como Professora de Literatura em um Ensino Médio.
P - E os estudos com as enfermeiras, qual a relação entre as enfermeiras e a Psicodinâmica do trabalho?
Eu tenho um interesse particular para os soins [cuidados] e em particular para os soins medicalisés [cuidados medicalizados], mas sobretudo para o soin psiquiátrico, em gerontologia. Então, era mais um interesse pelo soin, pelo "que significa soigner (cuidar)?". Inicialmente, tive maior interesse pelo soin do que pelo trabalho propriamente dito. No começo, eu queria compreender os processos de violência no âmbito do soin. Depois eu encontrei Christophe Dejours e descobri sua teoria sobre o trabalho, sobre a organização do trabalho e suas restrições. Então eu me disse "realmente quando se faz 14 toilettes [higienizações nos pacientes] todas as manhãs não é mais a violência que é difícil de explicar." Compreende-se muito bem como as cuidadoras podem não aguentar mais em determinado momento e assim desencadear comportamentos de violência direcionados aos doentes. Então, finalmente percebi que o misterioso não é a violência, mas o fato de que, na maior parte do tempo, as pessoas [auxiliares de enfermagem] não são violentas. Foi isso que me levou a fazer uma reviravolta e a me interessar não mais somente pelas situações de violência, mas sim a respeito das razões pelas quais essas violências são expressadas em condições de trabalho, que, apesar de extremamente limitantes, têm por objetivo construir uma relação de humanidade com o paciente. Eu não me interessei pela área técnica do soin, mesmo sendo algo super importante. Mas eu me interessei sobretudo pela capacidade de escuta, e, principalmente, pela capacidade de ser tornar sensível ao sofrimento do outro.
P - Você sempre pensou em ficar na academia? Ou você também pensou em se instalar em uma clínica?
Isso são as circunstâncias da vida. Sim, era o que eu queria, eu creio, mesmo se não era uma coisa formulada claramente. Eu queria mais uma carreira acadêmica. Penso que a escolha pela carreira acadêmica reflete o verdadeiro querer de alguém, pois é um caminho, digamos, difícil. É necessário realmente investir, na carreira acadêmica, e eu penso que é possível, sim, dizer isso. Enfim, desde o momento em que eu estava na école de hautes études, eu já tinha essa ideia de tentar seguir carreira acadêmica.
P - E a Psicologia Clínica?
A Psicologia Clínica é para mim um fundamento. Para mim, a psicodinâmica do trabalho é uma psicologia clínica. É tanto uma psicologia social quanto uma psicologia clínica. Isso implica ter uma capacidade de escutar o outro, que é propriamente clínica. Eu fiz um pouco de terapia com os idosos, porque eu trabalhei no campo da gerontologia. Às vezes me faz falta [clínica], mais enfim...eu já faço bastante coisa... então, tudo bem.
P - Há psicólogos especializados em psicodinâmica do trabalho que trabalham, exclusivamente, na clínica (consultório)?
Sim, há. Eu mesma formei um número significativo no Conservatoire national des arts et métiers. Houve um momento em que nós éramos uma equipe bastante forte: tinha Christophe Dejours, Dominique Dessort, Yves Clot, entre outros… Nós formamos muitos psicólogos. Também formamos muitas pessoas que agora trabalham no campo da psicodinâmica do trabalho. Eles não fazem pesquisa, mas fazem intervenções no campo e eles utilizam seus conhecimentos em psicodinâmica do trabalho para receber pessoas que não estão bem. E eles formam outros profissionais.
P - Tais profissionais são conhecidos por serem psicólogos ou psicanalistas especializados em psicodinâmica do trabalho?
Psicólogos Sociais ou Psicólogos do trabalho. Como eles preferirem, mas, na maioria dos casos, psicólogos do trabalho. Isso depende de como eles preferem ser chamados.
P - Então, alguém que procura esse serviço ou esse profissional o faz, pois tem um problema no trabalho?
Isso depende. Pode ser uma empresa, quer dizer, pessoas dentro de uma empresa que procuram resolver um problema. Mas podem ser também pessoas que, individualmente, procuram encontrar um psicólogo ou uma psicóloga que será apta a escutar algo a respeito de seus sofrimentos no trabalho.
P - Então, há situações em que a pessoa procura, apenas, um psicólogo, e o psicólogo (com essa especialização) por sua vez tenta encontrar uma relação entre o sofrimento e o trabalho?
Isso acontece também, porém, é mais raro.
P - Em geral, é a organização empregadora ou seus funcionários que procuram pela intervenção?
É bem variado. Eu não poderia dizer, de maneira geral, por que há, por exemplo, pessoas que são psicólogas do trabalho em uma organização e que serão levadas a ver pessoas, coletivamente (o que não é tão complicado), ou individualmente (o que já é bem mais delicado). Há profissionais que veem o mesmo trabalhador no consultório e, no âmbito da empresa, nesses casos, são primordialmente casos endereçados por um médico ou pelo serviço de saúde no trabalho. É... existem realmente diferentes configurações.
P - E, por curiosidade, desde o começo você sabia que gostava do soin? Mesmo quando você estudava literatura?
Sim, é um assunto que sempre me interessou.
P - Tem algo na literatura que te remete aos temas estudados por você?
Sim. Há um livro, que também originou um filme, chamado Johnny got his Gun, que nos permite compreender essa relação. O autor, Dalton Trumbo, tem um único livro, que depois foi realizado em filme por ele mesmo. Trata-se de uma história de um jovem homem que tropeça em uma mina durante a guerra de 1914, e, depois disso, não resta nada fora seu tronco. Não possui mais nem rosto. Simplesmente seu tronco: sem rosto e sem membros. E ele está lá...O filme é bem forte. Se você tiver a oportunidade de assistir, verá que o filme mostra uma sucessão de três enfermeiras, com três posturas completamente diferentes, e apenas a última compreende que há ali uma pessoa, com quem, então, entra em comunicação, independentemente de arriscar a si própria.
P - Parece mesmo muito interessante, e me faz pensar em um filme chamado "O paciente Inglês".
Ah, sim... mas este é bem menos impactante. Eu acredito que Jhonny Got his Gun é o filme mais comovente, sobre o universo do soin, que eu conheço. E ele é realmente de uma delicadeza e de uma compreensão dentro do contexto do soin, que é totalmente surpreendente. Então, sim, a literatura pode trazer insights de leitura sobre situações da realidade.
P - Nesse último semestre, eu fiz com o meu grupo uma Revisão Sistemática sobre Psicodinâmica do trabalho relacionada às mulheres, e no Brasil não encontramos muita coisa. Não encontramos muitas coisas sobre esses dois temas relacionados. Nas bases de dados em que procuramos, encontramos 5 ou 6 artigos.
Isso não é verdade.
P - Em relação a mulheres.
Ah!! Em relação a mulheres...Sim, sim.. bem possível.
P - Existem três brasileiras que não são todas psicólogas (Helena Hirata, Daniela Kergoàt e Francilene de Melo) que escrevem sobre esse assunto. Acredito eu que mais em Língua Francesa do que em Língua Portuguesa.
Eu acho que, em relação a outros idiomas, a Língua Portuguesa é, com certeza, mais presente, em Língua Inglesa mesmo há menos produção.
P - Sim, realmente não encontramos nada em inglês sobre o assunto.
Em Língua Espanhola, há, talvez, mais obras que tratem sobre gênero, em Espanhol. Porque, por experiência, as espanholas traduzem mais os meus artigos sobre gênero que as lusófonas. Acredito que isso ocorre porque as mulheres lusófonas que se interessam pela psicodinâmica do trabalho não se interessam muito pela questão de gênero.
P - Sim, essa foi a dificuldade que a minha professora encontrou. Foi difícil para ela, quando fez seu mestrado e doutorado, encontrar alguém que a orientasse sobre esse assunto (pdt e o feminino).
Sim, mas já publicaram em Brasília, justamente, o meu livro Les Enjeux Psychiques du travail, em que há um capítulo inteiro que trata sobre mulheres. Tenho outros artigos publicados em Língua Portuguesa, mas é verdade que eles, talvez, sejam mais sobre c are do que sobre a PDT.
P - Há artigos seus, sim, traduzidos, mas, em comparação ao que existe em Francês, não é muito. Mas já é melhor que em Língua Inglesa. É bem interessante, porque há um grupo da faculdade de Administração que começou a estudar a PDT em relação às mulheres. Eles publicaram um livro. Até interessante… Eu tenho duas questões que gostaria de lhe fazer para saber sua opinião: na França, como você enxerga o trabalho das mulheres imigrantes? As mulheres que vêm da Síria, por exemplo?
Não há mulheres que tenham vindo da Síria e trabalhem, no momento.
P - Talvez não legalmente... Mas, talvez, tenham mulheres capacitadas. Mulheres que estudaram, que fizeram ensino superior, mas aqui... o que elas fazem?
Na Síria, houve a terrível crise do desemprego antes de tais acontecimentos. Eu conheço um pouco a situação da Síria. Eu tive um estudante sírio que fez uma tese sobre o desemprego na Síria. Ele relatou que havia muito desemprego de diplomados e de não diplomados na Síria antes da guerra. Foi uma das razões do conjunto de revoltas que então começaram. Primeiramente uma revolta de origem política de esquerda, antes mesmo de os islâmicos recuperarem o movimento. Começou justamente porque o governo sírio colocava quase todo o dinheiro na luta contra Israel, e muito pouco era colocado para alimentar a economia, a infraestrutura etc… Logo, as pessoas, tanto diplomadas quanto não diplomadas, já se encontravam sem emprego. Foi isso que meu estudante demonstrou. Os dados encontrados por ele foram super interessantes, mesmo a enquete tendo sido super perturbada pela guerra. Logo, sob o plano científico, não foi bem uma boa enquete, mas ao menos os resultados foram interessantes… sobre o teste avaliando a escala de depressão. Esta não é a minha maneira de trabalhar, mas é a dele. Ele fez escalas de depressão e entrevistas qualitativas em seguida, mostrando que o desemprego foi mal vivenciado tanto pelos homens quanto pelas mulheres. Mesmo se tratando de uma sociedade conhecida por ser muito mais hierarquizada que a nossa do ponto de vista do gênero. Os trabalhadores, de maneira geral, os homens e as mulheres imigrantes, quando eles chegam aqui, trabalham sempre abaixo de seus níveis de diplomação. Isso é normal! E, evidentemente, isso gera efeitos porque, na maioria das vezes, os homens trabalham em empregos de força e as mulheres trabalham em empregos de soin non professionalisé [cuidado não profissionalizado]. Mas, de fato, como elas têm níveis de qualificação bastante elevados, há uma forma de desonestidade social, que faz com que se paguem funcionários qualificados ao preço de funcionários não qualificados. Isso é clássico. Essa é a situação das mulheres que vêm aqui, em particular aquelas que migram por razões econômicas. Vindas muitas vezes da África (oeste) em direção à França, elas falam, frequentemente, o Francês, e são bilíngues. Em geral as pessoas originárias da África francófona costumam falar outras línguas. São mulheres que têm competência linguística e que em geral fizeram muitos anos de estudo superior.
P - Em geral, as mulheres migrantes são mais "bem vistas" para esse tipo de trabalho?
Sim, essa é realmente uma característica das mulheres migrantes. Elas vêm alimentar um mercado na área do soin, em especial o soin de crianças e dos idosos, embasado em um soin que se diz não competente e sem qualificação. A ideia é que sejam mulheres vindas de países onde os europeus qualificam a cultura dizendo serem mulheres calorosas, maternais... o que é, ainda, uma maneira de negar suas competências. É realmente aquela imagem da mulher migrante na sociedade ocidental atual. É realmente a imagem do proletariado. É essa que se tornou a imagem do proletariado hoje.
P - E eu me lembro bem de ter lido em um de seus livros que, em geral, as mulheres migrantes, que acabam de chegar, são mais bem vistas por esse tipo de trabalho do que as mulheres que migraram há mais tempo, que conhecem a França e, consequentemente, seus direitos...
Exato. Um exemplo são as mulheres magrebinas ([de origem marroquina, tunisiana ou algeriana] que são raramente fruto de uma migração recente, diferentemente das mulheres vindas da África subsaariana. E, em relação às mulheres da África do norte [magrebinas], podemos dizer que são frequentemente mulheres que estão instaladas na França desde muitas gerações. E evidentemente elas conhecem perfeitamente seus direitos, e não se deixam enganar. Então, o que se diz delas é que são indisciplinadas, rebeldes, manipuladoras. Encontram-se muitas qualificações pejorativas. Mas não… não é verdade. É justamente por que elas são francesas. Logo, elas conhecem bem seus direitos. Enquanto as outras que acabaram de chegar pouco conhecem sobre seus direitos e, psicologicamente falando, elas têm pouco interesse em conhecê-los. Elas sabem que têm direitos, mas elas sabem, também, que, dentro da situação de precariedade em que se encontram, elas têm interesse em aceitar qualquer coisa sem contestar.
P - Justamente porque elas estão em uma situação de vulnerabilidade…
É exatamente isso. Enquanto as mulheres que estão instaladas aqui, depois de muito tempo, têm esposos, por exemplo, que também estão instalados... E, apesar de esses maridos se encontrarem no mesmo meio social, elas têm uma maior estabilidade. E as pessoas têm dificuldade de entender isso, porque, às vezes, as pessoas não querem saber se elas têm direitos. Já as outras [recém chegadas], o que estão fazendo é, simplesmente, um processo de sobrevivência. Não é porque elas sejam ignorantes.
P - Há conflitos entre as imigrantes que estão na França há mais tempo e aquelas que acabaram de chegar?
Há conflitos com todo mundo! O ser humano, raramente, não entra em conflito com seu próximo. Há conflitos entre todo mundo, e há a mesma quantidade de conflitos entre mulheres e entre homens. Enfim, o que eu quero dizer é que os conflitos derivam de diversas razões. E, principalmente, derivam do fato de estarem em zonas de trabalho desagradáveis, o que é conhecido como ''dirty work'' [trabalho sujo, na tradução literal]. Então, simplesmente há conflitos, por exemplo, com a última que chegou, que será incumbida dos serviços mais desagradáveis. Nesse aspecto, não há solidariedade. E, claramente, acontece nas classes populares, em que o trabalho é mais duro. Isso eu presenciei. Eu vi isso muito nos asilos com as aides soignantes [auxiliares de enfermagem]… as auxiliares e as mulheres que são um pouco menos qualificadas do que as enfermeiras, ou seja, que carregam as bandejas, as roupas sujas...então elas não gostam das mulheres que não têm uma saúde forte, que são frágeis, pequenas, quando não são robustas... Elas são realmente olhadas com desconfiança, dizem delas: "Elas não vão conseguir, não vão dar conta". Estas não vão ser ajudadas pelas colegas, porque há uma crença de que, se forem ajudadas, elas não vão jamais conseguir fazer sozinhas. São relações difíceis, e estão ligadas ao fato de que o trabalho é muito difícil. Não são relações que são necessariamente solidárias. Ao mesmo tempo, essas relações podem, sim, vir acompanhadas, em algumas situações, de fortes momentos de solidariedade.
Aconteceu a greve das mulheres da limpeza nos hotéis, entre outras... Foram greves extremamente impressionantes, feitas pelas mulheres de origem africana, principalmente mulheres negras que suportaram injustiças por muito tempo, e que têm uma relação de solidariedade forte. Não se pode fazer generalizações sobre as mulheres migrantes, nem mesmo sobre outras categorias. Mas podemos fazer generalizações quando falamos sobre a desvalorização de seus trabalhos, de suas contribuições para o plano, ao mesmo tempo material e econômica. O trabalho exercido por eles é muito mal pago e simbolicamente mal reconhecido. Mesmo não podendo generalizar, essas mulheres se viram com estratégias extremamente diversas.
P - E, em relação ao Brasil, tem uma coisa que eu gostaria de perguntar. Existe o problema racial, de cor, e agora se tem um conflito político que torna as coisas ainda mais complicadas. Acredita-se que tenha ocorrido um retrocesso social. E, eu não sei se a situação é muito discutida na França. Qual a sua opinião?
Sim, com certeza. Talvez não em todos os meios, mas globalmente sim, nós nos interessamos na França pela história do golpe de Estado.
P - De uma maneira geral, no Brasil, se vê um grande retrocesso das conquistas sociais. Você tem uma opinião sobre as implicações disso no mercado de trabalho, no trabalho precário, no trabalho de gênero, enfim no "sale boulot" (dirty work, trabalho sujo) em relação ao Brasil? Em quais aspectos essa relação se diferencia do que é vivenciado na França?
Bem, isso é preciso perguntar para a Helena Hirata, especialista das comparações internacionais na França, no Japão e no Brasil. Ela vai poder responder melhor do que eu. Eu conheço melhor outras zonas geográficas, como a Colômbia, em que já trabalhei, ou, então, a Argentina. Eu sou mais hispanófona, não sou lusófona.
O que nós vemos são coisas ao mesmo tempo iguais e diferentes. Mas o que se vê muito bem é o movimento de migração de mulheres. Vê-se a migração interna em um país como a Colômbia onde as pessoas deixam o litoral e as áreas pobres para se dirigirem ao centro do país, onde se encontra a riqueza da população branca.
Existe, também, uma migração racial que impulsiona a população que tem a cor da pele mais escura a migrar para o centro do país. Mas, se observarmos o que se passa na Argentina, encontramos peruanas. Se observarmos o Chile, encontramos bolivianas. Pode-se ver esses procedimentos de migração como nós vemos no nordeste do Brasil, em que a população deixa o estado em direção às zonas mais ricas. Nós vamos sempre encontrar essa figura da mulher migrante que vai cuidar dos outros, na casa dos outros, quer ela seja faxineira, quer ela seja babá, ou cuidadora de idosos. Evidentemente, o que faz uma enorme diferença é o lugar do Estado por trás da situação. Na América latina, em geral, os Estados são muito fracos e se encarregam muito pouco dessa situação toda. Então, as relações entre essas mulheres e as famílias com que trabalham ultrapassam o âmbito somente econômico e trabalhista. Já na França, se vê muito mais uma tendência aos recursos mediadores. Idosos são acomodados em Maison de retraite [asilos], e, mesmo se continuam em casa, têm uma mediação. Existem vários organismos que podem fazer uma mediação. Logo, a relação de subordinação vai ser construída de uma maneira muito diferente.
P - Sim, no Brasil não temos esse tipo de estrutura, é isso é um grande problema.
Sim, é o que chamamos de Grès a Grès [acordo verbal], sem intermediário. O que quer dizer entre o patrão e o empregado, sem intermediário.
P- Gostaria de fazer uma perguntar em relação a outro assunto: o feminismo. No Brasil temos os chamados feminismos, o que quer dizer que não existe uma única configuração do feminismo mas, sim, várias, vários feminismos. É muitas vezes bastante dividido, o feminismo de mulheres negras... por exemplo. Como você vê isso?
Na última primavera, ocorreu um grande escândalo. Houve um colóquio sobre a africanidade na França. Eu não sei bem como foi formulado. Foi alguma coisa feita por pessoas de pele escura. Um grupo de mulheres pediu que fosse um grupo não misto [elas queriam que fosse um grupo composto, unicamente, por mulheres negras, sem mulheres brancas]. A prefeita de Paris fez um verdadeiro escândalo, e proibiu a formação desse grupo, alegando que era um grupo contrário a lei francesa, com o argumento de que a discriminação é proibida. Então, o pedido foi percebido como uma discriminação para as mulheres brancas. O que não foi o caso. E o que mostra bem que se têm grandes dificuldades para pensar uma situação e seu contrário. Um grupo de brancas que excluísse um grupo de mulheres negras seria discriminante. Mas um grupo de mulheres negras que exclui mulheres brancas ocorre, simplesmente, pelo fato de elas necessitarem de se encontrar dentro de um grupo homogêneo para abordar questões que dizem respeito a suas cores de pele. Sem dividirem experiências, elas não podem tirar conclusões, nem ter a certeza se há de fato uma ligação com a cor da pele. E isso não quer dizer que não possa haver espaço para eventuais alianças entre brancas e negras. Mas é como as mulheres que têm a necessidade de criar grupos não mistos: no começo eram, principalmente, grupos de mulheres brancas, para ter um grupo de mulheres separadas dos homens... Disso, não podemos fugir. O problema... depois, é, justamente: como construir essas alianças? E isso é bem difícil, porque, no fundo, não somos só mulheres. Nos lembram bem que nós somos, também, categorizadas, racializadas, não racializadas, de classe popular, de classe média. Enfim, todos esses elementos entram em conta e criam antagonismos, verdadeiros antagonismos com movimentos com pessoas que têm dificuldade de fazer alianças - por quê ? -, porque as pessoas estão indignadas umas contra as outras. E isso, nós vemos bem, nós vemos muito no feminismo. Eu acho que o que se enuncia como feminismo hoje na França é, principalmente, um feminismo de mulheres brancas e de classe média, ousando, um feminismo light, em todas essas categorias. Quero dizer, são, em geral, mulheres brancas de classe média. E, portanto, têm movimentos bem interessantes e possíveis de mulheres racializadas, de mulheres que usam o véu. Houve um movimento, que eu esqueci o nome, muito interessante. Eu o encontrei por meio de meus estudantes, porque como o véu é proibido nas escolas, as mães que usam o véu, em algumas escolas, foram excluídas das saídas escolares. As crianças, quando vão fazer um passeio, em geral, os pais e as mães são convidados para irem como voluntários, e, de repente, essas mulheres não tinham mais o direito de ir acompanhar a turma sob o pretexto de que elas usavam o véu. Houve, então, um chega, e essas mulheres deram uma basta, e elas disseram argumentos bem fortes como: "quando é para fazer doces ou produtos de alimentação, nós somos bem vindas, todos ficam bem contentes de nos encontrar, mas a gente não pode aparecer''. "Não podem nos ver", "Não podemos ser visíveis". Então, foi um movimento na periferia muçulmana de Paris e foi um movimento super interessante de mulheres com reivindicações feministas: "tenho o direito de me vestir como eu quero, de ser quem eu quero", ''não devo ter vergonha da minha cultura, da minha religião etc...". Foi um golpe baixo desses franceses... sobretudo a questão sobre o véu. É uma questão que divide muito o mundo no interior do feminismo. É muito violento.
P - Sim. É um assunto delicado porque é preciso saber o bom momento para fazer as alianças. Há momentos que são sagrados, em relação às mulheres negras, por exemplo, é importante que elas tenham momentos juntas para discutir… Quando saber o bom momento?
Mas é sobre bandeiras muito concretas que se pode fazer isso, eu acredito. Eu acredito que isso possa ser feito em torno de problemas de coletividade, de ecologia, ambientais, ou de assuntos em torno de direitos de reprodução... Isso não se pode fazer de qualquer jeito, sem contexto, solto no ar. Em geral, isso só pode se discutir em torno de questões mais concretas.
P - Talvez se tenha sempre um sentimento ambíguo, por ser muitas vezes um assunto pessoal, sensível… No grupo de Psicodinâmica e trabalho feminino, há mulheres negras que estudam "mulheres negras". É bem específico. Quando elas falam, algumas vezes, tenho dificuldade em me expressar, algumas vezes, eu não falo, pois tenho sentimento de invadir o espaço delas. Eu não me sinto muito bem aceita em participar de algumas situações... "porque ela, no lugar de mulher branca, está dando a sua opinião?". Mesmo se pessoalmente eu aprecie o meu grupo e me sinta à vontade nele, nesse espaço e momento, eu presto muita atenção, eu não me sinto especialmente à vontade para dizer o que eu penso.
Mas não é ruim se sentir desconfortável. Eu acho que é bom o sentimento de constrangimento. Eu creio que só se pode abordar o tema, sendo branca, estando realmente muito constrangida. É complicado... Se os homens se sentissem constrangidos dessa mesma maneira por suas posições em relação às mulheres, e se as mulheres se sentissem constrangidas em relação a outras, sendo um pouco mais honestas em relação às mulheres negras, avançaríamos sem dúvida um pouco mais rápido... Porque ter um privilégio, ou seja, estar em uma situação de privilégio, é uma coisa constrangedora, porque não se fez nada por isso, mas se tem. Então, é bom assumir essa responsabilidade. Encontrar um meio de assumir essa responsabilidade, é isso.
P - Então é bom se sentir desconfortável...
Assim eu penso... É a posição mais responsável.
P - Sim, porque algumas vezes você quer dar uma opinião, mas ela pode ser muito mal interpretada, talvez muito mal vista, "porque ela acha que a opinião dela vai acrescentar algo? E sim, se os homens se sentissem um pouco mais desconfortáveis... [risos]
Eu acredito que isso mudaria alguma coisa. Eu acredito que os homens não se sentem suficientemente desconfortáveis... [risos]. As mulheres brancas feministas frequentemente ficam desconfortáveis com essas questões. A mulheres brancas em geral, que são na maioria das vezes as patroas das mulheres negras, em países como o seu, se sentem, em geral, muito confortáveis. Porque elas têm uma posição dominante. E é por isso, também, que as mulheres negras assumem uma posição muitas vezes reivindicativa, agressiva... É importante não esquecer jamais que a percepção do racismo pelos racializados é muito mais precisa, muito mais extensa do que a percepção que os brancos podem ter do racismo. Isso é um ponto de partida. Uma vez que se tenha isso em mente, já muda tudo. Eu constatei isso nas pesquisas que eu fiz com as mulheres racializadas. Não apenas elas sabem muito bem que elas são racializadas, mas elas têm, ainda, uma leitura de uma precisão e de uma acuidade impressionante. Elas vêm, elas entendem e elas sentem coisas que nós não enxergamos, não escutamos, não sentimos, porque a nossa posição como brancas não nos permite, mesmo não sendo racistas. Não é de maneira alguma o mesmo problema.
P - É algo muito subjetivo, muito pessoal para quem sente. É necessário encontrar um equilíbrio, entre querer ser sensível e compreensivo, mas sabendo que, como pessoa branca, não vou nunca realmente compreender. Mesmo que eu me esforce.
Depois, você verá, após elas terem te explicado, elas mostram, elas educam. No meu caso, eu fui educada pelas aides soignantes [auxiliares de enfermagem] magrebinas, que me fizeram compreender certas coisas. Agora, há muita coisa que eu vejo, mas que eu não via antes. E eu não poderia ter visto sozinha. Como mulher branca eu não poderia ver. É preciso que elas mostrem. E, sim... depois de elas mostraram eu pude ver. Não sentir, mas ver. E perceber… Sim, sim... disso eu estou convencida. Eu estou convencida, porque é algo que já aconteceu quando eu estava com uma colega minha antropóloga colombiana que é negra. Ela é mestiça, mas é categorizada negra em uma sociedade branca.
Eu me lembro de uma entrevista que nós fizemos juntas para conseguir um pequeno contrato que queríamos para organizar uma exposição artística (que nós fizemos em Bogotá há dez anos). Durante toda a entrevista, eu percebi que a moça que estava em nossa frente (que era uma francesa, aliás) olhava somente para mim. Eu acredito que o fato de ter discutido bastante o assunto com a Mara [colega colombiana] sobre o que é ser uma mulher negra, me fez perceber que a interlocutora só olhava para mim. E eu fiquei constrangida. Talvez, sozinhas, sem todas as discussões que eu havia tido com a Mara, eu não teria visto, eu não teria percebido.
P - Então, isso funciona também para os homens. Os homens podem se tornar um dia totalmente sensíveis... eles não poderão sentir, mas eles poderão realmente ver, e compreender.
Sim, eu acredito que sim. Mas eles, também, não podem fazer isso sozinhos. Então, é necessário que eles aceitem ficar constrangidos, em um dado momento, pelo que as mulheres falam. Em um dado momento há, talvez, homens que aceitam ficar desconfortáveis.
P - Sem discussão... porque a raiva acaba por afastá-los do nosso objetivo que é de sensibilizá-los.
Mas é preciso que elas sejam um pouco sensíveis por eles mesmos. Eu penso em alguns homens jovens. Eu penso em estudantes que já são sensibilizados com o tema. Isso porque eles refletiram sobre o tema da desigualdade. Mas eu acho que é parecido com o racismo, é preciso ter refletido um pouquinho por si só... mas só isso não é suficiente. Eu acredito que, efetivamente, é preciso aceitar o diálogo com o outro e se deixar educar pelo outro.
P - Como sensibilizar o outro?
Isso não é complicado, não é complicado... Se o outro sente que você está pronto para escutar, ele vai abrir o jogo. Eu, se vou a um grupo das aides soignantes [auxiliares de enfermagem] racializadas, e eu estou pronta para escutá-las, funciona.
P - Mas como sensibilizar os homens para que eles tenham desejo de ser sensibilizados... [risos]?
Há várias estratégias, isso depende da pessoa. Isso depende realmente da pessoa. Eu acredito que, quando há relações de confiança que se estabelecem, há muita coisa que pode ser dita. Talvez, seja necessário que se estabeleçam relações de confiança, apesar de tudo.
P - Então, é uma coisa pessoal, mas existe algo que possa tocar um público extenso?
Você nunca alcançará todo mundo. Nós vemos bem com a discussão na França atualmente em torno do assédio sexual. Nós vemos isso bem. Há posições tanto masculinas quanto femininas que são contra e a favor. Mas, há, também, homens que não aceitam, de maneira alguma, o assédio e o estupro. E que estão dispostos a dizer isso publicamente. E, também, mulheres que são, como nós vemos bem atualmente, que defendem esse negócio, no Le Monde, inacreditável: o direito de importunar...
Ontem eu li que a atriz se desculpou...
Sim, porque uma das signatárias que disse em uma transmissão que se podia ter prazer em um estupro. Claramente, ela confundiu os filmes com a realidade… Catherine Deneuve disse: "é inadmissível." É interessante esse debate. Seria necessário argumentar em relação ao que elas falam. E, depois, há argumentos fortíssimos. O fato de que seja o jogo do integrista é ridículo para os integristas. "Todos são culpados, menos eles." Independentemente do que faça, é necessário que você exista, que você não adira ao seu sistema, pouco importa a sua sexualidade... isso é completamente aberrante. Eu não acredito que a gente possa ter esperança por todo mundo! É bom o discurso sobre a prevenção. É necessário ter, mas isso vai obviamente despertar as oposições, e isso cria conflitos. É preciso aceitar! Nós aceitamos muito tarde o casamento para todos na França. E isso despertou um monte de católicos que nem se pensava que ainda existisse. Eles tiveram filhos... e há vários jovens... católicos… A gente vai ter que aguentá-los durante um bom momento, uma vez que eles têm a sua idade... Mas foi necessário que houvesse o casamento para todos, para que a gente os visse aparecer... Isso criou uma dinâmica... e conflitos…
Porque nunca estamos todos de acordo, logo, sempre há conflitos...
Há homens que acreditam que está tudo bem beliscar o bumbum das mulheres no metrô, e continuarão a fazer... Eles continuarão a achar que é realmente engraçado. Ou assobiar para as meninas na rua. Você poderá lhes dizer que isso é assédio de rua, eles vão debochar, é preciso saber disso. E é verdade que eu, por exemplo, acho que vale mais levar as coisas no humor do que na raiva, quando queremos trazer um impacto. Houve coisas muito engraçadas que foram feitas, você talvez já tenha visto. Há um videozinho que viralizou, que alcançou muitas visualizações. É sobre o dia de um cara, mas ele está no lugar de uma mulher. A gente vê como ele é tratado pelas garotas, como ele ficou encurralado com a sua moto. É engraçado, e é bem mais inteligente...
Eu acho que é uma estratégia para alcançar os homens, e, de uma maneira sem raiva. Porque se não as pessoas se fecham. Enquanto, no caso do vídeo, eles riem, mas alguma coisa fica retida. Eles acabam percebendo que "é verdade isso..."
Eles se defendem. E esse vídeo desarma muito mais... enfim, existem estratégias sim para fazer as coisas.
Muito obrigada pela entrevista.