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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.4 no.1 São Paulo jun. 2012

 

ARTIGO

 

 

Entretecendo diálogo entre homossexualidade e velhice: notas analítico-interpretativas acerca do envelhecimento gay

 

Interweaving dialogue between homosexuality and aging: analytical-interpretative notes about older gays

 

 

Wladirson Cardoso; Ernani Chaves

Universidade Federal do Pará.

 

 


RESUMO

O presente artigo constitui um breve apontamento teórico acerca das práticas e do modo de vida gay e objetiva discutir, em particular, a interface entre os temas do envelhecimento e da homossexualidade masculina. Neste aspecto, é importante salientar que o presente texto se inscreve, ainda, naquele horizonte que entrecruza as diversas sexualidades ou sexualidades divergentes e as masculinidades num sentido hipermoderno e plural. Destarte, a consignação do tema do envelhecimento – compreendido enquanto processo circunscrito à existência humana –, no que diz respeito à análise e interpretação acerca do modo de vida de homossexuais masculinos, é, por si mesmo, bastante amplo e, por isso, não se levará em conta, ao menos diretamente, as experiências de mulheres lésbicas e sua compreensão da velhice, o que exigiria, porquanto, uma observação específica, das perspectivas de cada grupo, respeitando-se as suas singularidades.

Palavras-chave: envelhecimento; homossexualidade masculina; modo de vida gay.


ABSTRACT

This article is a brief note about the theory and practice of the gay lifestyle and discusses, in particular, the interface between the themes of aging and male homosexuality. In this respect, it is important to note that this text is included, even at that horizon that intertwines the diverse sexualities or differing sexualities and masculinities in a plural sense and hypermodern. Thus, the assignment of the subject of aging - understood as a process confined to human existence - with regard to the analysis and interpretation about the way of life of gay men, is, in itself, quite wide and therefore not take into account, at least directly, the experiences of lesbian women and their understanding of old age, which would require, for a specific observation, the perspectives of each group, respecting its singularities.

Keywords: aging; male homosexuality, gay lifestyle.


Resumen

Este artículo es una breve nota sobre la teoría y la práctica de un estilo de vida gay y discute, en particular, la relación entre los temas de envejecimiento y la homosexualidad masculina. A este respecto, es importante señalar que este texto se incluye, incluso en ese horizonte que entrelaza las diversas sexualidades o sexualidades diferentes y masculinidades en un sentido plural y hipermoderna. Por lo tanto, la asignación del tema del envejecimiento - entendida como un proceso confinado a la existencia humana - en relación con el análisis y la interpretación de la forma de vida de los hombres gays, es de por sí bastante amplia y por lo tanto no tener en cuenta, al menos directamente, las experiencias de las mujeres lesbianas y su comprensión de la vejez, lo que requeriría, para una observación específica, las perspectivas de cada grupo, respetando sus singularidades.

Palabras clave: envejecimiento; homosexualidad masculina; estilo de vida gay.


 

 

1. Da proposição do tema ou interfaces entre velhice e homossexualidade

O presente artigo constitui um breve apontamento teórico acerca das práticas e do modo de vida gay e objetiva discutir, em particular, a interface entre os temas do envelhecimento e da homossexualidade masculina. Neste aspecto, é importante salientar que o presente texto se inscreve, ainda, naquele horizonte que entrecruza as diversas sexualidades ou sexualidades divergentes e as masculinidades num sentido hipermoderno e plural. Destarte, a consignação do tema do envelhecimento – compreendido enquanto processo circunscrito à existência humana –, no que diz respeito à análise e interpretação acerca do modo de vida de homossexuais masculinos, é, por si mesmo, bastante amplo e, por isso, não se levará em conta, ao menos diretamente, as experiências de mulheres lésbicas e sua compreensão da velhice, o que exigiria, porquanto, uma observação específica, das perspectivas de cada grupo, respeitando-se as suas singularidades.

Todavia, como o debate acerca do envelhecimento de homossexuais masculinos só pode realizar-se ao nível da experiência1, qual seja, de ser um homossexual em idade madura adiantada, procurou-se, aqui, abordar o assunto em vista da resposta à pergunta o que é ser velho e homossexual? Compreendemos que esta questão está imediatamente relacionada à necessidade de se investigar uma realidade específica e determinada; porém, não em termos lógicos, de antecedência e consequência, mas sim em termos da crítica de um discurso acerca da orientação sexual gay, que, por sua vez, carregaria em si o duplo estigma social da velhice e da homossexualidade.

Em seu texto Corpo e sexualidade nas experiências de envelhecimento de homens gays em São Paulo, Júlio Assis Simões (2010) destaca que os homossexuais não se relacionam com a velhice da mesma maneira que os heterossexuais. Portanto, descaracterizando aquela representação sócio-cultural da "terceira idade" como um momento de recolha e isolamento, o autor nos mostra que seus entrevistados encaram a velhice de modo ativo, pois, continuam transitando pelos espaços de homossocialidade, mantendo os cuidados com o corpo, donde poderem ser chamados de envelhecentes. 2

Considerando, então, que os homossexuais correspondem histórica e politicamente ao grupo que mais sofre preconceitos e discriminações na sociedade brasileira3, encontrar-se-á, no interior desta discussão, argumento suficiente que justifique uma reflexão e que, também, proponha um debate acerca do processo de envelhecimento de homossexuais masculinos, enquanto um processo sócio-antropológico que merece, portanto, considerável destaque. Todavia, em artigo sobre a temática do envelhecimento de homens maduros com práticas homoeróticas, Murilo Peixoto Mota (2009) adverte que:

"(...) nos últimos anos o estudos sobre velhice no Brasil tem ganhado amplitude nas ciências sociais. Contudo, pesquisas sobre a homossexualidade e o envelhecimento no âmbito das experiências cotidianas são ainda incipientes, aspecto que revela certo silêncio a respeito da extensão e complexidade que envolve o tema". (p. 26)

Isto significa que, no campo das Ciências Humanas, particularmente da Antropologia Social, não existem muitos arquivos4, ou melhor, outros arquivos, novos arquivos, arquivos marginais, dissonantes, que auxiliem na compreensão do assunto, possibilitando abordar o tema com alguma novidade, porquanto não se trata apenas de reposicionar a questão da sexualidade gay ou de, simplesmente, pensar a velhice enquanto "fase" ou "período" do desenvolvimento humano. Assim, envelhecimento e homossexualidade se encontram numa linha cruzada, quanto às representações sociais e culturais acerca da produção do corpo, da beleza e da masculinidade, sinalizando, estratégias de sobrevivência e resistência, seja no que respeita à convivência em uma rede social que, ao passar dos anos, tenderia, supostamente, a restringir-se, cada vez mais, ao espaço do lar5; seja mesmo utilizando-se de artifícios para o uso e gozo dos prazeres.

A problematização da vida de homens maduros em idade avançada com práticas homoeróticas aponta, então, para um conjunto de singularidades que tem de ser, necessariamente, encaradas como dispositivos analíticos no interior da presente análise. No entanto, para se abordar sócioanaliticamente o tema da "velhice de homens gays", deve-se partir do mundo heterossexista que, por sua vez, define práticas, saberes e valores de caráter pedagógico e moral, instituindo um tipo altivo e definidamente jovem. Ademais, deve-se compreender o envelhecimento e a velhice como um processo sócio-político, marcado pelos discursos que visam essencializar e naturalizar comportamentos acerca do papel e do lugar do "idoso" na cultura brasileira e ocidental, atribuindo-lhe, pois, os apanágios da "ternura" e da "bondade", fundados nas representações de "velho" como um tipo universal e generalizante, "(...) determinado pela idade ou pela identidade social de aposentado circunscrito à moral heterossexual." (MOTA. 2009:28) Finalmente, é preciso considerar a sexualidade, não como organização biológica do corpo e, tampouco, como comportamento sexual pura e simplesmente.

Entendemos sexualidade como um "(...) prolongamento de uma analítica do poder". (REVEL. 2011:136)6 Isto quer dizer que a sexualidade é questão política, de subjetivação e controle dos indivíduos em suas relações cotidianas, mediante aplicação de noções e prescrições de uma "medicina social" que define o "normal", o "saudável" e o "aceitável". Neste sentido, portanto, a sexualidade torna-se vetor de investigação, uma vez que os "jogos de verdade" e o poder se articulam de tal modo que a nossa "(...) civilização [exige] dos homens dizer a verdade a respeito de sua sexualidade para poder dizer a verdade sobre si mesmos." (Idem) De acordo com Mota (2009), porém, o estudo acerca do envelhecimento de homossexuais masculinos não pode desconsiderar as mudanças e as variações de sentimentos e significados acerca da questão da homossexualidade de um certo número de indivíduos que vivenciaram transformações históricas no estilo de vida das experiências gays.

Deste modo, o envelhecimento gay não será analisado como um simples fato. É preciso avançar e, de uma vez por todas, operar uma genealogia da sentença – a condição de velho e gay – para que se consiga, então, descrever esta ontologia em sua manifestação presente. É assim, por exemplo, que Mota (2009) propõe que se estabeleçam "recortes" no tempo, para a investigação da temática, destacando, pois, a luta pela defesa da identidade e dos direitos políticos e civis da população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Trangêneros).

 

2. As liminaridades do debate entre homossexualidade e envelhecimento

Existiriam três questões importantes que devem ser apreciadas, relativamente às categorias envelhecimento e homossexualidade, quais sejam: 1) a noção sociológica de geração, que "(...) se opõe à noção de um tempo linear, padronizado e fixado em etapas, tornando-se um campo para amplas possibilidades de experiências" (p. 34), uma vez que a participação em momentos determinados da vida social estabelece um conjunto de práticas relevantes e comuns; 2) a própria noção de experiência como algo vivido, como subjetividade construída "(...) a partir de ações sociais heterogêneas, com intensa diversidade, pluralidade de estilos de vida e comportamentos implicados na ação do indivíduo" (p. 35), de modo que se pode acertar que cada agente social é capaz de interpretar e explicar sua interação com o mundo, visto que participa de um domínio público e racional compartilhado, que, a partir da linguagem, enseja uma auto representação histórica subjetiva, mas que só tem sentido quando comunicada; e, por fim, 3) o pensamento de Foucault que é paradigmático no que concerne à percepção da sexualidade como algo que extrapola as "ciências biomédicas", pois, enquanto tema "(...) não é dispensado somente a médicos e sexólogos, mas absorvido por todo um aparato de produção de conhecimento. Daí surge um critério de valorização do orgasmo, do gozo não como arte erótica, mas como ciência." (p. 38)

Para Edgardo Castro (2009)7, importante comentador de Foucault, o desenvolvimento histórico da sexualidade nas chamadas sociedades modernas ocidentais, em especial, "(...) a partir dos séculos XVII e XVIII, não é a história de uma repressão contínua, mas, antes, da incitação constante e crescente a falar do sexo, a verter nossa sexualidade no discurso." (p. 398) Todavia, para descortinar essa história é necessário realizar uma "analítica do poder", cuja finalidade seria desprender-se das categorias jurídico-discursivas que supõem a continência do desejo pela lei. Castro (2009), então, destaca cinco princípios comuns que se achariam na raiz desta "castidade": 1) a negação do sexo pelo poder; 2) a prescrição da licitude ou da ilicitude, segundo o regime binário do permitido e do proibido; 3) a não experimentação do prazer; 4) a afirmação de que algo proibido, não pode ser discutido, negando-se sua existência & 5) a observação vigilante (controle) sobre o sexo, operada da mesma maneira em todos os níveis. É por isso que Mota (2009), por exemplo, reitera que se desenvolveu, na modernidade, no "(...) campo da sexualidade [...] um saber excessivo, não para a intensificação do prazer sexual" (p. 38), mas para a internalização da vida e das práticas sexuais na clandestinidade.

Quanto ao envelhecimento de homossexuais masculinos, o tabu do silêncio parece ser uma norma rompida somente ao nível do senso comum pelas representações pejorativas que cercam a idade e, também, a sexualidade "em desvio" para manifestar preconceitos estereotipados através de chistes e piadas. Todavia, de acordo com a síntese dos indicadores sociais de 2008 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), baseada nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada em 2007, enquanto a população brasileira cresceu 21,6%, entre os anos 1997 e de 2007, os idosos aumentaram 47,8%. Em termos absolutos, o número de idosos hoje no Brasil é de 19,5 milhões, o que representa, percentualmente, cerca de 32,1% da população do continente.8 O decréscimo da fecundidade, provocado pela maior participação da mulher no mercado de trabalho e pela difusão de métodos anticoncepcionais, e, ainda, o aumento da esperança de vida tem contribuído para o envelhecimento no país. Entretanto, como subscrever estas informações e, assim, refletir o modo de vida e as práticas de si de homossexuais masculinos? Ora, apenas uma etnografia das experiências subjetivas, histórica e antropologicamente contextualizadas, pode oferecer uma resposta a esta questão. De todo modo, é imprescindível ressaltar que:

"[o]bter dados exatos sobre o número de homossexuais no Brasil e conhecer suas dificuldades e aspirações era quase impossível décadas atrás; mesmo hoje, com todos os avanços comportamentais na sociedade, ainda continua uma tarefa difícil. Não é a toa que em qualquer parte do mundo, a luta por visibilidade é um dos eixos centrais do movimento de lésbicas, gays, travestis e transexuais" (p. 103)

Estes dados e informações tornam-se mais escassos, na medida em que se busca identificar a realidade concreta de um segmento específico no conjunto da diversidade LGBT. Porém, o texto de Júlio Assis Simões (2011)9 observa que, nas grandes metrópoles brasileiras a presença de homossexuais masculinos em idade madura nos espaços de sociabilidade gay ou homoerótica é bastante comum e visível.10 Simões (2011) diz que estes homens mais velhos com práticas homossexuais corporificam "(...) um tipo de personagem que remetem aos "entendidos" dos anos 1970" (p. 09) e que, portanto, são homens que, no geral, valorizavam a aparência masculina e procuram desvincular "(...) suas vivências de homossexualidade das convenções de afetação, afeminação e papel exclusivamente "passivo" no ato sexual." (idem)

Os "coroas", "tiozinhos" ou "tiozões" como são usualmente chamados encarnam "(...) uma série de disposições associadas a representações modernas de envelhecimento ativo." (SIMÕES. 2011:09) É claro que este segmento é apenas um estrato de um conjunto muito maior. Em sua pesquisa Simões (2011) entrevistou, profundamente, "(...) homens homossexuais de camadas médias em São Paulo, na maioria brancos, com idades variando entre 59 e 70 anos" (idem), o que demostra que, no cruzamento das categorias envelhecimento e homossexualidade, marcadores como "gênero", "idade", "raça/etnia" e "classe social" apresentam-se indispensáveis. (MOTA. 2009:32) Ademais, como já mencionei anteriormente, não se deve perder de vista que a tessitura das representações do masculino/feminino estruturam-se a partir de uma lógica heterossexista que deve ser homens gays em São Paulo" In: A Terceira Idade – Estudos sobre Envelhecimento – Revista Eletrônica – Serviço Social do Comércio (SESC). São Paulo: Edubase (Faculdade de Educação/UNICAMP), Edição n. 50, v. 22, Jul. 2011, pp. 07-19. 10 De acordo com Simões (2011): "[n]a cidade de São Paulo, um ponto especial de concentração de homens mais velhos está no Centro, na avenida Vieira de Carvalho, no quarteirão entre a Praça da República e a Rua Aurora, especialmente na calçada do lado esquerdo de quem segue na direção ao Largo do Arouche. Os mais velhos também estão em algumas boates da região, notadamente "ABC Bailão", que já teve os antigos apelidos de "desmanche", "festa baile" e "INPS"." (p. 08) contraposta à noção de sexualidade presente em Foucault, objetivando-se, destarte, compreender as experiências subjetivas do envelhecimento por homens maduros em idade avançada com práticas homoeróticas.

O estudo de Simões (2011) demonstra que a visão que os "coroas" tem do envelhecimento é diametralmente oposta àquela imagem do homossexual velho, solitário, isolado, deprimido, emocionalmente perturbado, desde a meia-idade crescente até seu ocado. Nesta perspectiva, os entrevistados encarnam uma "(...) velhice não-vitimizada, sexualizada, orgulhosa, com disposição para a vida pública noturna e, ainda por cima, associada à homossexualidade" (p. 09), podendo-se dizer que são muito mais envelhecentes do que propriamente velhos. Essa imagem do envelhecimento é, para o autor, positivada, uma vez que tenta destacar os enriquecimentos e vantagens provenientes da maturidade, reinventando e reconstruindo o corpo (sexualidade) e a própria velhice. A reconfiguração das experiências da velhice na contemporaneidade é atravessada pela:

"(...) capacidade de conservar o controle sobre movimentos e funções corporais, sobre as emoções e as faculdades cognitivas – atributos básicos que permitem que uma pessoa seja reconhecida, valorizada, levada em conta em qualquer relação social." (SIMÕES. 2011:10)

Simões (2011) afirma que o encontro da gerontologia com a sexologia vem possibilitando a desconstrução do "mito da velhice assexuada", entendida como um constructo sócio-cultural, porquanto "(...) o declínio da atividade sexual, relacionado à idade, tende a ser cada vez menos tolerado, sendo visto como uma alteração do bem-estar corporal passível de tratamento médico" (p. 10), permitindo, assim, o "manejo do envelhecimento". Nos depoimentos apresentados pelo autor, é possível salientar tanto um reposicionamento da imagem que incide sobre a velhice, quanto uma recusa em abandonar das práticas sexuais e, consequentemente, a experimentação do gozo e do prazer. No entanto, as preocupações mais gerais não são nem tanto com a busca de parceiros, mas sim com os "cuidados de si", relativamente ao corpo e à saúde:

"[a]s referências ao corpo, e às mudanças do corpo, são muito marcantes nas entrevistas. Estamos diante de um conjunto de pessoas que demonstra um grande senso de observação do próprio corpo e do impacto que o corpo tem na sociabilidade e nos encontros sociais em diversos planos. Os sinais de envelhecimento corporal são meticulosamente investigados, reconhecidos e elaborados. Todos se assumem como vaidosos, ainda que com modulações e matizes. Rugas, queda de cabelos, bolsas nos olhos, flacidez nos membros, gordura, barriga, nádegas murchas, dificuldades de manter ereção são todos motivos de lamento, preocupação, alguma depressão, mas não conformismo. (...) O cuidado e a atenção com que vigiam e verificam seus corpos é, em parte, correlato ao recurso regular que fazem dos especialistas médicos. Consultam médicos regularmente e adotam, de modo geral, as prescrições destes com vistas a lidar com a saúde. Adoção de dietas, com diminuição ou eliminação do consumo de café, cigarro, álcool, refrigerantes, gorduras, carne vermelha foram frequentemente mencionadas nas entrevistas. Mas os entrevistados não revelam a mesma disposição para aderir à prática de atividades físicas. Todos mencionam recomendações médicas nesse sentido, mas só aderem efetivamente à ginástica aqueles que foram completamente convencidos de que terão comprometimentos físicos sérios se não o fizerem. Todos dizem ter preguiça para ir à academia, ou mesmo para recorrer a aparelhos de ginástica de que podem eventualmente dispor em suas moradias ou condomínios." (SIMÕES. 2011:14 -15)

Neste sentido, reitero que a compreensão do tema do envelhecimento de homossexuais masculinos em idade madura adiantada possa ser contrastada à mentalidade heterossexista de nossa sociedade que estabelece, a partir do "dispositivo da sexualidade"11 performances de gênero, calcadas nos binarismos (homem/mulher) que, por sua vez, essencializam identidades sociais, implicando em "violência simbólica"12, própria do universo sócio-político machista, que desconsidera, ou melhor, descaracteriza a homossexualidade em sua potência estética ou estilística como expressão de uma existência não-codificada, contra uma vida unitária/totalitária e fascista13. Aliás, é justamente desta maneira que compreendemos as experiências de ser-estar gay, que descrevem as "subjetividades performáticas"14 homossexuais. E é precisamente isto que norteia, enquanto problema gerador, a questão "o que é ser um homossexual em processo de envelhecimento?".

 

3. Para não se esgotar esta questão...

Em Reservados e Invisíveis – o ethos íntimo das parcerias homoeróticas, Paiva (2007) mostra que, a despeito da luta do movimento LGBT em prol de visibilidade, direitos e respeito – assim como de todas as conquistas políticas decorrentes disso –, a questão da homossexualidade permanece, ainda, uma "violência arquival" instituída pelo saber-poder dominante. O "tipo" homossexual permanece um rótulo, uma marca, ou melhor, um estigma que cruza vidas, atravessa existências, classificando os same-sex lovers, isto é, os amantes do mesmo sexo em esquemas complexos próprios da scientia sexualis que é, portanto, "(...) o conjunto de discursos, práticas, instituições e agenciamentos disciplinares das individualidades em torno da ‘sexualidade'" (PAIVA. 2007: 27), localizando em seu interior, também ou principalmente, os destinos das vivências/experiências homoeróticas.

De acordo com Paiva (2007), na medida em que a scientia sexualis impõem interditos e silenciamentos, procurando disciplinar, ou seja, regular (conter/controlar), normalizar, em uma palavra, agenciar a sexualidade; ela também procura arrancar declarações, confissões, obrigando a pessoa do homossexual, por exemplo, a tornar pública a cena íntima de sua vida erótica. O movimento aparentemente contraditório instaurado pelo "sexo rei", para usar uma expressão de Michel Foucault, encontra motivos na "lógica do assujeitamento", característica do mundo moderno que enquadra a vida a partir de binarismos que prescrevem identidades sexuais (homem/mulher), à margem das quais os indivíduos gays teceriam biografias de "homens infames". Paiva (2007), então, pergunta-se: "(...) quem pode falar sobre a homossexualidade, sobre o devirhomossexual? Quem teria os títulos de "distinção" para fazer-se valer como voz autorizada?" (p. 39)

Paiva (2007) orienta que, diante dos arquivos discursivos do "olhar especializado" que subscreve o homossexual como uma "identidade murada", é preciso considerar uma "ascese gay", isto é, um corolário/programa que demanda, recursivamente, um modo de ser, uma maneira de viver, uma estilística da existência, indicativa de uma pragmática de si, a qual só se observa na concretude poética do dia-adia, em seu acontecimento micropolítico, único e singular. (PAIVA. 2007:21-47) Em vez de uma pesquisa inquisidora que assome objetalmente os atores/agentes sociais – à moda de um juiz ou de algum outro técnicooperador de normas (médicos, psicólogos, psiquiatras, cientistas sociais, antropólogos, etc.) – para "desvelar a realidade" e, com isso, "legislar acerca da verdade", supostamente oculta nos enunciados declarativos, deve-se, antes, mergulhar, intensivamente, no cotidiano dos interlocutores, e deixar-se tomar pela multidimensionalidade dos encontros que se dão a partir de chegadas, reconhecimentos, escolhas, numa economia pulsional de afetos que conversam, dialogam, trocam segredos, confidências. (PAIVA. 2007:21-47)

Portanto, as margens de visibilidade/luz (ver) e de dizibilidade/escrever encontram-se mediadas por uma "topologia da intimidade" que consubstancia significativamente a micropolítica estética das vidas de sujeitos que, por exemplo, não se apresentam de acordo com as normativas reguladoras da conduta e que, por isso, inscrevem-se no rol dos desviantes ou, mesmo, dos anormais. (FOUCAULT. 2001:211-254) Assim, reconstruindo os argumentos de Antonio Crístian Saraiva Paiva (2007), observa-se que a intimidade do modo de vida e das práticas e cuidados de si que serão tangenciados neste "contra-arquivo" acerca de homens gays em processo de envelhecimento na cidade de Soure deve possibilitar uma escuta-olhar que resguarde as ambiguidades e tensões da existência em sua "política do silencio" e "gestão do segredo" (p. 72), desterritorializando a pretensão científicoepistemológica de tudo dizer, tudo revelar.

Pressupondo-se, então, uma antropologia do envelhecimento, intentamos que as experiências subjetivas de homossexuais masculinos em idade declaradamente adiantada podem indicar a maneira como velhos gays se percebem enquanto velhos propriamente; acreditamos, pois, que os relatos de indivíduos que se encontram neste momento de suas trajetórias ôntico-existenciais não poderão ser desconectados daquele trânsito, daquela troca, ou melhor, daquele comércio (simbólico/material) que recorta as dimensões pública e privada da vida e que denotam estratégias de sobrevivência/resistência na micrologia da intimidade, consubstanciando, tanto uma homossocialidade, quanto uma série de técnicas (corporais) de prazer e cuidado de si. Paiva (2007) mostra que o tema da intimidade é substantivo neste aspecto e, destacando a perspectiva sócio-analítica de Anthony Giddens, ilustra que:

"[a] alteração de alguns mecanismos sociais fundamentais engendrada pelo desenvolvimento do modelo societal da modernidade (culminada no que [Giddens] chama de alta modernidade, ou como preferem outros, pós-modernidade)", [está localizada na] origem das transformações da natureza do eu e da intimidade: os mecanismos de desencaixe dos sistemas sociais (1991:25) a partir da separação tempo-espaço radicalizados em termos de ritmo e escopo de mudança (Idem: 15), de formas que passamos a viver num mundo em que as relações (intersubjetivas e outras) se dão independentemente dos mecanismos e das tradições locais. Passa-se, no que se refere aos relacionamentos sociais, dos compromissos com rosto (facework commitments) aos compromissos sem rosto (faceless commitments), ou seja, passa-se da confiança em pessoas à confiança em sistemas abstratos (Idem: 84, 91), o que evidentemente vai alterar as matrizes nutridoras daquilo que Giddens chama "segurança ontológica" (Idem: 95) dos indivíduos e das coletividades. Seriam aqueles sistemas abstratos (ciências, mídias, tecnologias, etc.) que passariam a alimentar aquela segurança na medida em que passam a merecer a confiança ativa dos indivíduos e das coletividades." (pp. 57-58)

O comentário de Paiva (2007), demostra, a partir de Giddens, a "transformação da intimidade", mediante a "desterritorialização da sociedade moderna global", inaugurando, assim, um "projeto reflexivo de eu" que seria, portanto, muito mais aberto, crítico, com muitas "(...) possibilidades de transformação da vida interpessoal e mesmo dos contextos mais amplos" (p. 58). Deste ponto de vista, os dilemas particulares, as questões de foro íntimo, não escapariam a uma tendência generalizadora de "auto-reflexão" (da experiência e da ação). Por isso, sustentamos que a proposta de uma antropologia do envelhecimento não se possa realizar sem uma etnografia do envelhecer, que, na economia argumentativa deste texto, adquirem um valor heurístico correlato, na medida em que considera uma determinada coorte geracional em sua trajetória de experiências e vida.

 

Referências

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Sobre obre os autores:

Wladirson Cardoso
Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós- Graduação em Antropologia
da Universidade Federal do Pará,
Mestre em Direitos Humanos e Inclusão Social (PPGD/UFPA)
e Bacharel/Licenciado em Filosofia (IFCH/UFPA).

Ernani Pinheiro Chaves
PHD em Filosofia, também, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia e Colaborador no Programa de Pós- Graduação em Psicologia,
ambos na Universidade Federal do Pará (UFPA).

Recebido em: 05/02/2012
Aceito para publicação: 27/08/2012

 

 

1.Cf. MOTA, Murilo Peixoto. "Homossexualidade e Envelhecimento: algumas reflexões no campo da experiência" In: SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.06, v.1, Dez. 2009. pp. 26-51.
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. Cf. SIMÕES, Júlio Assis. "Corpo e sexualidade nas experiências de envelhecimento de homens gays em São Paulo" In: A Terceira Idade – Estudos sobre Envelhecimento – Revista Eletrônica – Serviço Social do Comércio (SESC). São Paulo: Edubase (Faculdade de Educação/UNICAMP), Edição n. 50, v. 22, Jul. 2011, pp. 07-19.
3
. Cf. Brasil Direitos Humanos, 2008: A realidade do país aos 60 anos da Declaração Universal. – Brasília: SEDH, c. 2008. 285p.: il. color.
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Tomamos de empréstimo aqui a terminologia de M. Foucault com respeito à compreensão de "arquivo" que não está sendo utilizado, porém, em um sentido comum, da linguagem corrente; pois, não se trata nem de documentos guardados como memória ou testemunho do passado e nem, tampouco, significa qualquer instituição ou prática responsável pela conservação documental. Trata-se, isto sim, de um conjunto de normas que sustentam os enunciados em sua discursividade, regulando o aparecimento histórico dos acontecimentos, observados em sua singularidade. Neste sentido, arquivo não significa nem a transcrição de pensamentos ou atos de fala e nem o jogo linguístico das circunstâncias, mas discurso efetivamente pronunciado, segundo as regras (limites e determinações) da decidibilidade, da conservação, da "memorialidade"/legitimidade, da reativação e da apropriação. Cf. verbete "Arquivo" In: EDGARDO, Castro. Vocabulário de Foucault – um percurso pelos seus temas, conceitos e autores / Edgardo Castro; tradução Ingrid Müller Xavier; revisão técnica Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
5 Para um reposicionamento deste imaginário, conferir: SIMÕES, Júlio Assis. "Corpo e sexualidade nas experiências de envelhecimento de homens gays em São Paulo" In: A Terceira Idade – Estudos sobre Envelhecimento – Revista Eletrônica – Serviço Social do Comércio (SESC). São Paulo: Edubase (Faculdade de Educação/UNICAMP), Edição n. 50, v. 22, Jul. 2011, pp. 07-19.
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Cf. verbete "Sexualidade" In: REVEL, Judith. Dicionário Foucault/Judith Revel; tradução de Anderson Alexandre da Silva; revisão técnica Michel Jean Maurice Vincent. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
7 Cf. verbete "Sexualidade" In: EDGARDO, Castro. Vocabulário de Foucault – um percurso pelos seus temas, conceitos e autores / Edgardo Castro; tradução Ingrid Müller Xavier; revisão técnica Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
8 Cf. Brasil Direitos Humanos, 2008: A realidade do país aos 60 anos da Declaração Universal. – Brasília: SEDH, c. 2008. 285p.: il. color.
9 O texto de Simões (2011) é paradigmático e levanta, mesmo que de modo pontual, algumas das principais ideias que procuro desenvolver aqui, tais como a de "envelhecimento ativo" e, também, a de "homens envelhecentes". Cf. SIMÕES, Júlio Assis. "Corpo e sexualidade nas experiências de envelhecimento de homens gays em São Paulo" In: A Terceira Idade – Estudos sobre Envelhecimento – Revista Eletrônica – Serviço Social do Comércio (SESC). São Paulo: Edubase (Faculdade de Educação/UNICAMP), Edição n. 50, v. 22, Jul. 2011, pp. 07-19.
10 De acordo com Simões (2011): "[n]a cidade de São Paulo, um ponto especial de concentração de homens mais velhos está no Centro, na avenida Vieira de Carvalho, no quarteirão entre a Praça da República e a Rua Aurora, especialmente na calçada do lado esquerdo de quem segue na direção ao Largo do Arouche. Os mais velhos também estão em algumas boates da região, notadamente "ABC Bailão", que já teve os antigos apelidos de "desmanche", "festa baile" e "INPS"." (p. 08)
11 Cf. Verbete "Sexualidade" In: EDGARDO, Castro. Vocabulário de Foucault – um percurso pelos seus temas, conceitos e autores / Edgardo Castro; tradução Ingrid Müller Xavier; revisão técnica Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
12 Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
13 Cf. PAIVA, Antonio Crístian Saraiva. "Amizades e modos de vida gay: por uma vida não fascista" In: JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque; VEIGA-NETO, Alfredo; FILHO, Alípio de Souza (orgs.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2 ed., 2011. pp. 41-51.
14 Cf. OLIVEIRA, Antônio Eduardo de. "Cartografias homoafetivas na espacialidade da urbe: percursos na obra de Caio Fernando Abreu" In: JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque; VEIGA-NETO, Alfredo; FILHO, Alípio de Souza (orgs.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2 ed., 2011. pp. 53-67.