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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.4 no.1 São Paulo jun. 2012
ARTIGO
"Eu tenho medo de ficar afeminado": performances e convenções corporais de gênero em espaços de sociabilidade homossexual
"I'm afraid of being effeminate": performances and bodily gender conventions in homossexual sociability spaces
Ramon Pereira dos Reis
Universidade de São Paulo
RESUMO
Trata-se de um investimento analítico sobre performances e convenções corporais de gênero de homens homossexuais frequentadores de dois espaços de sociabilidade homossexual – Lux e Malícia – em Belém, Pará. Alargando as análises para além dos espaços referidos, interessa-me perscrutar situações em que os entrevistados expuseram falas de constrangimento ou medo de se efeminarem e, de que a presença em algum dos lugares supracitados pudesse trazer feminilização na constituição de si. Para tanto, realizei observações diretas nos espaços e entrevistei nove homens homossexuais, com aplicação de questionário semiestruturado, entre agosto de 2010 a agosto de 2011. Pude constatar que Lux e Malícia retratam, através dos seus frequentadores e dos equipamentos disponíveis, a produção de performances corporais e de gênero distintas: representadas pela repulsa e recusa à uma feminilidade espalhafatosa que é "produzida" pela Lux, em contraponto à uma masculinidade respeitável "produzida" pelo Malícia.
Palavras-chave: convenções corporais de gênero; espaços de sociabilidade homossexual; homens homossexuais; performances;
ABSTRACT
This is an investment analytical on performances and bodily gender conventions of male homosexuals frequenting of two homosexual sociability spaces - Lux and Malícia - in Belém, Pará. Extending the analysis beyond those spaces, I am interested in peer situations where respondents exposed lines of embarrassment or fear of effeminate and that the presence at some places above could bring feminization of the constitution itself. Therefore, I direct observations in the spaces and interviewed nine male homosexuals, applying semi-structured questionnaire, from August 2010 to August 2011. I could see that Lux and Malícia portray, through their regulars and equipment available, the "production" of body performances and gender distinct: represented by revulsion and rejection of femininity blatant that is "produced" by Lux, as opposed to a respectable masculinity "produced" by Malícia.
Keywords: bodily gender convention; homosexual sociability spaces; male homosexuals; performances;
Resumen
Este es una análisis de las actuaciones y convenciones corporales de género de hombres homosexuales que frecuentan dos espacios de sociabilidad homosexual en la ciudad de Belém (Pará/Brasil): Lux y Malícia. Más allá de pensar esos espacios en específico, estoy interesado en las situaciones en las cuales los entrevistados mencionaron el miedo de afeminarse o de que su presencia en algunos de esos lugares pudiera traerles características femeninas. Con ese objetivo, realisé observaciones directas en los dos espacios y entrevisté nueve hombres homosexuales, con cuestionarios semi-estructurados, entre agosto de 2010 y agosto de 2011. Pude constatar que Lux y Malícia retratan, a través de sus clientes habituales y de los equipos disponibles, la producción de representaciones corporales y de género distintos: Lux se caracteriza por la "producción" de una feminilidad extravagante que es motivo de rechazo por parte de unos, constituyendo-se como contrapunto a una masculinidad respetable "produzida" por Malícia.
Palabras clave: convenios corporais de género, espacios de sociabilidad, gay, actuaciones.
O corpo não pode ser visto como uma tela neutra, uma
tabula rasa biológica na
qual masculino e feminino possam ser
projetados de modo indiferenciado.
Elizabeth Grosz (2000 [1994])
Apresentando o campo...
Neste artigo procuro recuperar o debate sobre perfomances e convenções corporais de gênero presente em minha pesquisa de mestrado (Reis, 2012). Para a dissertação, a ideia foi compreender como se estabeleciam as relações afetivo-sexuais entre homens homossexuais1 num estudo comparativo em dois espaços de sociabilidade homossexual de Belém, Lux2 e Malícia.3 Minha proposta aqui é trazer à baila questões que envolvem negociações estabelecidas em torno do termo "masculinidade",4 a partir da análise das posturas corporais e falas dos entrevistados.
Alargando as análises para além dos espaços referidos, interessa-me perscrutar situações em que os entrevistados expuseram falas de constrangimento ou medo de se efeminarem e, de que a presença em algum dos lugares supracitados pudesse trazer feminilização na constituição de si. Para tanto, realizei observações diretas na Lux e no Malícia e entrevistei nove homens homossexuais, com aplicação de questionário semiestruturado, entre agosto de 2010 a agosto de 2011.
Em se tratando do período da pesquisa de campo, notei que a presença da Lux, no cenário GLS5 da capital paraense, funcionava como espaço, majoritariamente, frequentado por homossexuais mais novos (bichas new generation), efeminados (bichas pintosas) e de classe social baixa (bichas pererecas), que estariam começando a adentrar nesse universo de casa noturna, (homo) sociabilidades, posturas e linguagens específicas; bem como daqueles que são, constantemente, alijados do convívio social, a exemplo de travestis, transexuais, transgêneros (homens homossexuais que praticam cross-dressing e, Drag Queens6).
Os homens homossexuais frequentadores da Lux comentavam que lá não tem frescura, não tem bicha que faz carão, há uma liberdade maior na Lux, tem shows de Drag's. Acrescenta-se a tais colocações dois fatores: distribuição de flyers (papel informativo sobre a casa noturna e os eventos) que funcionam como cortesias, e, as constantes promoções de bebidas. O dia de maior público é o sábado, onde, pode-se ver de forma expressiva: Drag's, bichas pintosas e new generation, vindas especialmente pelas apresentações de Drag Queens, que mobilizam torcidas organizadas, em semifinais e finais de concursos (Drag Number One, Top Blond, Miss Pará Gay).
O Malícia era uma residência que foi reformada com a intenção de abrigar um casa noturna. As atrações se revezavam entre festas temáticas (Festas de ano novo, Natal, Festas juninas, Eróticas, Divas, etc.) e a presença de DJs, principalmente, de São Paulo. De 2008 para 2011 ela passou por algumas reformas: havia uma loja de roupas que foi retirada, o número de bares aumentou, adaptaram uma sala para exibição de filmes pornô gay e na parte de cima onde era uma cozinha transformaram em um bar e um lounge com sofás e tela LCD. Mudanças a parte, é perceptível como a sustentação do espaço é dada pela constante transformação, caso contrário a tendência ao fracasso e perda de público é grande, de acordo com os comentários dos frequentadores e dos proprietários.
Ao longo de quase cincos anos de existência, várias festas temáticas e vindas de DJs, principalmente de São Paulo, foram mola propulsora para o reconhecimento do Malícia no cenário GLS paraense. Nesse sentido, aos poucos a Lux foi "trocada" pelo Malícia, para um determinado público de homens homossexuais mais velhos (bichas barrocas), mais masculinos (monas ocó) e de classe média / média alta (bichas finas). Apesar de uma grande parte do público de homens homossexuais de Belém serem de classe social baixa, há um pequeno grupo de homens homossexuais de classe média / média alta, porém não tive acesso a esse grupo, apesar das tentativas em me parecer pertencente a eles, eu não consegui. Minha hipótese é que meu porte físico, magro, meus traços faciais indígenas e minha performance corporal efeminada, afastavam-me deles.
Não há competição declarada entre proprietários e públicos da Lux e do Malícia, o que ocorrem são marcações simbólicas e materiais, principalmente de classe (aparecendo aqui como indicador de desigualdade socioeconômica). Para os frequentadores do Malícia, não basta apenas ter um carro, um celular de última geração, usar roupa de grife; é preciso saber manejar tais bens (Bourdieu, 1983), é preciso ter uma performance de classe que convença os pares e, em se tratando da busca por parceiros isso é aspecto fundamental.
Sobre a busca por parceiros e a circulação entre os espaços, nos primeiros seis meses de incursão pouco notei o trânsito de pessoas entre os dois lugares; conforme a intensidade no campo algumas coisas foram ficando mais claras. Percebi, aos poucos, que precisaria aprender a jogar com o espaço, produzir minha performance corporal de acordo com o que o ambiente e as pessoas queriam, usei esta tática como forma de atrair colaboradores para a pesquisa.
A partir do exposto acima pensei: comportamentos e vestimentas diferenciadas, de um lugar para o outro, geram diferentes olhares e investidas; ou seja, para uma maior aceitação e maior simpatia dos frequentadores, no Malícia, eu usava uma roupa "da moda", fazia uma make-up (maquiagem) babado,7 mantinha um comportamento de discrição, gastava mais dinheiro com bebidas e, como não podia faltar, fazia um pouco de "carão"8, porém no momento em que os meus movimentos de dança começavam a ficar mais "feminilizados" (rebolar, desmunhecar, "bater cabelo"9), automaticamente, eu passava de parceiro em potencial (Meinerz, 2011 [2005]; Facchini, 2008) para parceiro recusado.
Durante as incursões na Lux sempre houve a preocupação com a vestimenta, a diferença é que eu dava menor atenção ao uso de roupas de grife e tinha uma liberdade maior para compor um visual mais "transgressor" e menos padronizado que no Malícia: usava bermudinhas, make up carregada, camisetas com decote maior. Eu percebia que naquele espaço as pessoas se sentiam mais livres para dançar, comprar bebida barata, mostrar o celular que não é de última geração; não havia a preocupação exagerada com a imagem e com os comentários a posteriori.
Quando comecei a entender como se dava a circulação, dos homens homossexuais, entre tais espaços de sociabilidade homossexual, compreendi que além da busca por parceiros, havia uma complexa rede de relações repleta de tensões e conflitos. No Malícia, por exemplo, os gestos corporais espalhafatosos tinham que ser contidos, bater cabelo nem pensar!; Nada de uso de roupas do vestuário feminino. Lembro, como se fosse hoje, quando fui ao Malícia usando uma bermudinha. Um dos colaboradores da pesquisa viu e veio falar comigo: Que roupa é essa?... Eu ri e, em seguida retruquei: Olha! As pessoas não são somente as roupas que vestem, são muito mais que isso. Naquele momento, entendi, claramente, como o vestuário destacava e demarcava pessoas naquele contexto.
Desde a mais tenra infância meninos e meninas vão sendo diferenciados pelo artifício das roupas e sendo ensinados sobre a forma adequada como cada sexo deve se vestir. As meninas são vestidas com roupas em tons rosa ou amarelo, com estampas florais ou de animais domésticos, podendo ter enfeites colocados na cabeça (laços) ou nas orelhas (brincos). Já os meninos são vestidos de azul, com estampas de bolas de futebol ou de animais selvagens, como leões ou tigres. Enfeites são impensáveis. Esse processo se estende por toda a infância e adolescência e os desajustes no seu desenvolvimento podem gerar sérios transtornos (Dutra, 2002, p.362).
Além da roupa, as performances corporais mais masculinas ditam o estilo do lugar.10 Para atrair parceiros não se deve bater cabelo de forma exagerada, por exemplo. O que, a meu ver, contribui para esse tipo de postura corporal, é a ausência de shows de Drag Queens e, apenas a apresentação de DJs e de GO GO boys, no caso do Malícia. Durante a pesquisa não vi nenhuma travesti, transexual ou transgênero (homens homossexuais praticantes de crossdressing, Drag Queens) circulando pelas dependências do Malícia. Vi majoritariamente homens homossexuais, mulheres homossexuais e alguns casais heterossexuais. É importante frisar que de 2010 a 2011 houve um aumento do público de casais heterossexuais nos dois espaços, os casais justificam a maior frequência nos espaços de sociabilidade homossexual pelos poucos índices de violência e, porque a música é melhor do que nas baladas hétero.
No universo de tais conflitos e tensões levantados, é imprescindível que se tenha em mente as contribuições tanto dos sujeitos quanto dos espaços. Se nos primeiros meses tive dificuldades em lidar com esta pesquisa, em todos os sentidos, tenho plena convicção de que quando consegui dosar a figura do telespectador com a de pesquisador, não pude deixar de compreender como este estudo é um empenho em contribuir para a investigação de processos de subjetivação. Tentei, inicialmente, me focar nos trajetos e trajetórias individuais, porém fui sendo levado a perceber a relação entre espaço e público e, se isso influenciava na dinâmica das relações entre homens homossexuais. Finalizo, chamando atenção para a importância em investigar as performances e convenções corporais de gênero, na Lux e no Malícia, pela atmosfera de tensão existente entre homossexuais mais femininos e homossexuais mais masculinos, leia-se: estigmatizados versus aceitáveis; espalhafatosos versus respeitáveis; consequentemente.
"Masculinidades"... alguns apontamentos
Embora o caráter interrelacional do gênero dialogue com os mais variados contextos e nos faça pensar que deva haver formas variadas de se pensar a masculinidade, para a maioria da população, "ser homem significaria fundamentalmente duas coisas: não ser mulher, e ter um corpo que apresenta órgãos genitais masculinos" (Vale de Almeida, 2000, p. 127). Nesse caso, ao propormos uma análise dessa natureza corremos o risco de restringir nosso campo argumentativo ao simples fato de colocações refletidas na figura do pênis. Nosso ponto de partida fundamental para investigar a masculinidade deve ser a distinção entre sexo e gênero (Rubin, 1986).
O antropólogo Miguel Vale de Almeida (2000) em sua clássica etnografia portuguesa sobre uma interpretação antropológica da masculinidade na comunidade alentejana de Pardais, o que fez surgir o livro – Senhores de si – o autor fornece uma valiosa interpretação sobre o discurso e práticas da masculinidade, dando ênfase aos aspectos discursivos e performativos; nestas análises o "ser homem" seria uma construção diária, dada na
Na interação social, nas construções ideológicas, nunca se reduz aos caracteres sexuais, mas sim a um conjunto de atributos morais de comportamento, socialmente sancionados e constantemente reavaliados, negociados, relembrados. Em suma, em constante processo de construção (idem, p. 128).
Fazendo analogia ao pensamento de Simone de Beauvoir (1967), poderíamos dizer então que "não se nasce homem: torna-se homem"? Tomando como ponto de partida o contexto da pesquisa e os sujeitos que estão inseridos nos espaços de sociabilidade homossexual, a construção de uma identidade homossexual masculina,11 levaria em conta o ato performativo em si, aquilo que é percebido ao movimento do olhar e que, é positivado ou negativado dependendo de: gosto, conveniência, aceitação pelo grupo. Lux e Malícia são espaços onde não há um comportamento homossexual único, o homem homossexual ao interagir com os demais, no ambiente interno, estabeleceria para si conjuntos de atributos morais de comportamento que validariam ou invalidariam a busca por parceiros.
Em História da Sexualidade – a vontade de saber – Foucault (2007 [1988]) traz à baila, através do método genealógico de poder e das arqueologias do saber, um minucioso estudo sobre o aspecto discursivo da sexualidade, campo que para muitos estaria ligado ao âmbito individual e, que, portanto não deveria ser publicizado. O sistema de poder ditaria as leis. O que significa, em primeiro lugar, que o sexo fica reduzido, por ele, a regime binário: lícito e ilícito, permitido e proibido (idem, p. 93).
A partir da leitura da obra acima, foi possível perceber que a sexualidade é composta por meio de um sistema analítico de discurso-corpo, que grafa nestes a constituição de formas e subjetividades, tal pensamento foi certamente de grande impacto na formatação de uma visão dessencializante sobre a sexualidade (Weeks, 2000; Carrara e Simões, 2007). Foucault faz uma crítica aos sexólogos, quando mostra que a especialização de uma ciência da sexualidade não foi, de todo modo, exitosa, acarretando à sociedade uma área de conhecimentos específicos que buscaria, de todas as maneiras, ser detentora e propiciadora de "verdades absolutas". De um lado, os cientistas tentando encontrar respostas para a sexualidade, dizendo o que é certo e errado; do outro lado avistamos sujeitos, por exemplo, homossexuais que cotidianamente eram atacados e criticados por manifestarem comportamentos dissidentes, indivíduos homossexuais e sociedade se movimentavam de maneira crítica e política, os primeiros lutariam para que a subjetividade individual fosse respeitada e encarada como mais uma forma de sexualidade e, a sociedade estaria encarregada de corrigir os "anormais", higienizando-os e exterminando qualquer comportamento fora do padrão heterossexual.
Na construção histórica da homossexualidade brasileira descrita por Peter Fry (1982) três sistemas distintos regulariam o pensamento sobre a homossexualidade a partir da visão de classes sociais distintas. O primeiro diria respeito aos pólos masculinidade / atividade sexual versus feminilidade / passividade sexual; o segundo distinguiria orientação sexual de gênero, isto é, todos os indivíduos que mantivessem relações sexuais com pessoas do mesmo sexo seriam considerados homossexuais, não importando mais a posição "ativa" ou "passiva"; e, por fim os sujeitos procurariam se diferenciar um do outro a partir da disjunção entre orientação sexual e gênero, eles afirmariam sua subjetividade homossexual a diferenciado daquelas heterossexuais (Carrara e Simões, 2007).
Em Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade (2003) Judith Butler mostra que a matriz heterossexual na qual estamos acostumados a perceber não corresponde à realidade, quando voltamos esta discussão aos homossexuais, por exemplo. Para Butler, pensar sexo-gênero desejo numa linha horizontal e seqüencial de nenhum modo permitiria aos sujeitos dissidentes exercerem suas liberdades corporais, pois se tomarmos como verdade a premissa de que: pênis = masculino = heterossexual = relacionamento afetivosexual com mulheres / mulheres = vagina = feminino = heterossexual = relacionamento afetivo-sexual com homens, desta forma não estaríamos aptos a encarar o gênero enquanto um efeito performativo.
El género es una complejida cuya totalidad se posterga de manera permanente, nunca aparece completa en una determinada coyuntura en el tiempo. Así, una coalición abierta creará identidades que alternadamente se instauren y se abandonen en función de los objetivos del momento; se tratará de un conjunto abierto que permita múltiples coincidências y discrepancias sin obediencia a um telos normativo de definición cerrada (Butler, 2007, p. 70).
Butler (2003) critica a noção das feministas humanistas, como Simone de Beauvoir (1967) que coloca a posição da mulher de forma hierárquica e inferior ao homem, construindo a noção de mulher una. A crítica de Butler é que essa noção seria boa para pensar, porém não dá conta de entender o gênero como um processo relacional, produtor de subjetividades, deixando de compreender que a mulher se constitui como processo, com articulações entre gênero, classe e "raça", por exemplo. Mulher e homem seriam termos em processos; um devir.
A contribuição de Tom Boellstorff (2007) é significante para situarmos a discussão, sobre os estudos queer, no campo da antropologia, em seu artigo intitulado – Queer Studies in the House of Anthropology – ele analisa as pesquisas sobre sexualidades publicadas, em Inglês, desde 1993, focando sobre o trabalho direcionado às mulheres lésbicas, homens gays, e pessoas transgêneros, bem como ao uso da história, lingüística e geografia. Boellstorff nos mostra como, por meio de questionamentos, como as questões de interseccionalidade, inclusão, e diferença tem propriciado a emergência de uma antropologia queer ou uma antropologia crítica da sexualidade, com especial referência às relações entre sexualidade e gênero. Este autor nos mostra que a utilização do termo queer não pode ser vulgarizada a ponto de ser utilizada em qualquer contexto, pois as preocupações sobre a validade e a inclusão do termo queer reflete não apenas os conflitos sobre como interpretar este ou aquele dado etnográfico, mas se aproxima das políticas de reconhecimento na academia americana e no resto do mundo (idem).
De alguma forma, as percepções a respeito de um quadro conceitual do que seria: ser e / ou se comportar como homem / mulher / gay / lésbica / travesti / transexual / bissexual, vai muito além do simples fato de dizermos que somos isso ou aquilo, nosso discurso se torna conveniente e convincente a partir do lugar do qual falamos. O discurso que queremos ouvir a respeito de identidades LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) é formatado, higienizado, classificado; nesse caso transitar, entre uma ou outra identidade, não é o correto / aceitável na sociedade brasileira. De certa forma, como nos lembra Fry (1982), as taxionomias são profecias que se cumprem. Postula-se, por exemplo, a existência de um tipo natural, o homossexual, com sua essência e especificidade, e logo ele passa a existir (idem, p. 89).
Vimos, ao decorrer deste tópico, que as "masculinidades" e "feminilidades" não podem permanecer encapsuladas; da mesma forma, os comportamentos gestuais e discursivos dos homens homossexuais mais masculinos / mais femininos no que se refere à: bichas finas, bichas pererecas, bichas pintosas, monas ocó, devem ser observados como construções agenciais e negociáveis.
"Eu tenho medo de ficar afeminado": performances e convenções corporais de gênero
"Eu tenho medo de ficar afeminado ao longo dos tempos... Querendo ou não eu tenho a minha concepção, só que a sociedade tem um olhar mais repressor contra o afeminado, eu tenho medo por conta disso... Pretendo manter esse meu jeito assim... Digamos que nenhum nem outro, na minha, tipo, eu to bem na minha." (Valentim, Homossexual, 23 anos)
"Não precisa ser assim, tipo aquilo que tu vê lá na Lux ou em outros lugares. Pode ser um homem normal, sem feminilidade, sem nada." (Giancarlo, Gay, 20 anos)
"Quando você é um gay estereotipado, afeminado, afetado, então isso tá: água e vinho, melhor do que água e óleo que não se mistura... Mas, assim, quando você é um homossexual que tem um comportamento mais masculinizado isso passa despercebido entre os amigos." (Omar, Homossexual, 39 anos)
"Eu tenho um amigo que é ex-modelo. Ele era ótimo, dava os pitis e gritava. Dois anos depois ele veio em Belém, porque ele morava em Vigia e, quando o porteiro interfonou e disse: ‘Mauro, o fulano tá aqui'. Eu disse: ‘Beleza! Pode subir!'. Quando eu abri a porta de casa ele tava usando uma melissa feminina, bermuda masculina, uma blusa morcegão com o ombro caído e um sutiã aparecendo, um cabelo gigantesco, óculos femininos e de batom... Jesus! Eu acho que eu me preocupo muito com o que as pessoas vão pensar, também. Mas, na real, me incomoda, eu não acho legal... Uma coisa que a minha mãe sempre me falou foi pra eu nunca me vestir de mulher, pra eu nunca me tornar um cara feminino, e eu nunca vi necessidade disso, quer ser feminino então te assume como travesti, vai pra Europa, faz peito, faz bunda, mas não existe esse meio termo: ‘Ah! Eu sou homem e eu sou feminino, a minha voz é fina.'" (Felício, Gay, 28 anos)
Dentro e fora dos espaços notei homens homossexuais "atuando" a partir do que é mais conveniente a cada um. Muitos se preocupam com o que os outros vão pensar; talvez o que mais persegue os homens homossexuais, muito mais no Malícia que na Lux, seja o fato de serem chamados de femininos ou aparentarem maior feminilidade, esta representação traz consigo um status negativo e soa como pejorativo perante o grupo e, nos flertes: afasta amigos, atrapalha na busca por parceiros; há um preconceito exacerbado sobre a figura da bicha pintosa, o que talvez não aconteça, de maneira mais negativa, com homens homossexuais tidos como mais masculinos. De alguma maneira
Associar o homossexual ao passivo; com raras exceções, o "desmunhecar" é essencial para qualquer representação desse tipo de personalidade. Mesmo entre homossexuais, as chamadas "bichas pintosas" – os homens muito efeminados – sofrem muita discriminação por parte daqueles que internalizam os preconceitos da sociedade, extravasandoos sobre os indivíduos que veem como mais escandalosos e cuja companhia pode ser comprometedora (Macrae, 2005 [1983], p. 302).
A relação que se estabelece entre homens homossexuais mais efeminados e aqueles que se dizem mais discretos, ganha contornos parecidos às da realidade estudada. Não cabe generalizar tais colocações, quero apenas mostrar que essas performances corporais se deslocam para polos hierárquicos: masculino = superior; feminino = inferior. Circunscrito a esses espaços, há uma espécie de modelo político de gestão dos corpos e dos desejos, o qual diz que: "homens que querem viver sexualidades não-heterocentradas são estigmatizados como não sendo normais, suspeito de serem "passivos" e ameaçados de serem assimilados e tratados como mulheres" (Welzer-Lang, 2004, p. 120). Aqueles que possuem uma performance corporal mais feminina feminina são reconhecidos como desviantes,12 classificados como homossexuais afetados, pintosas, viadinhos, bichinhas, como se não houvesse performance no lado heterossexual e como se a heterossexualidade, também, não fosse uma invenção.13 Deste modo, cabenos dizer que a "masculinidade se expressa como um mito efetivo da sociedade moderna" (Oliveira, 2004, p. 20).
Na Lux e no Malícia as performances corporais e de gênero são as mais diversas possíveis: homens homossexuais têm preferência por usar roupas consideradas femininas, que gostam de se maquiar, outros preferem comportamentos mais discretos. "A bicha se protege envergando roupas de mulher; o halterofilista se veste de músculos – ‘roupa de homem'. Não há uma ‘natureza' feminina ou masculina – tratar-se-ia de construções" (Perlongher, 2008 [1987], p. 45). Não obstante o contato com homens homossexuais que, em alguns casos, sem se perceberem reafirmam padrões de "masculinidade" e / ou "feminilidade" marcados e delimitados por uma heterossexualidade que se apresenta e é vista como natural e superior à homossexualidade; contraposto a isso, é possível perceber uma maleabilidade identitária, concernente aos comportamentos que procuram problematizar o gênero e a sexualidade.
As colocações dos entrevistados nos levam a crer que exista uma diferença clara entre o comportamento de homens homossexuais mais femininos e homens homossexuais mais masculinos, desencadeando diversas questões, a saber: o escândalo; o olhar repressor da sociedade contra os afeminados; a relação conflituosa homossexuais mais femininos e homossexuais mais masculinos; comportamentos "normais" versus comportamentos "anormais"; feminilidade "natural" versus feminilidade "forçada". Percebi, na maioria das falas, o quão importante é passar uma boa imagem, ter uma boa reputação. Ao conversar com homens homossexuais tanto de classe baixa quanto de classe média/média alta, verifiquei a existência de um padrão de aceitação que rege as sociabilidades: não se vestir com acessórios e roupas femininas; saber entrar e sair dos lugares; não se escandalizar; se dar o respeito; não chamar tanta atenção; não falar fino; não ser uma pessoa alegórica; não andar cheio de anéis; não ter unha grande e pintada; não usar roupa justa.
Ramon: Com relação às características físicas, quais te destacam enquanto um "gay masculino"? Helano (Homossexual, 25 anos): Eu não uso tinta no cabelo, eu não ando com o cabelo alisado, eu não ando cheio de anéis, minha unha não é grande, pintada, eu não uso roupa apertada, aquelas extremamente apertadas e muito coloridas, cintos e mais cintos e cordões e alegorias, eu não sou uma pessoa alegórica! E, não é se vestir bem ou se vestir mal, mas é se valer de alegorias, eu não ando assim, não tenho aquele miado na voz: "E, ai?". Aquelas coisinhas na voz, eu não tenho, Então, todas essas coisas fazem eu me qualificar enquanto um gay masculino.
Ramon: Como você lida com o comportamento de "gays afeminados" e "gays masculinizados"? Valentim (Homossexual, 23 anos): Têm pessoas afeminadas que são afeminadas, mas elas se comportam de uma maneira que elas não precisam, tipo assim, elas não se escandalizam. Agora tem gays afeminados que se escandalizam, querem se vestir diferente, botar um negócio diferente, uma bolsa diferente, e não que ela seja inferior, aquilo é o jeito dela, ela foi criada para usar aquilo...
Se dar o respeito; saber entrar e sair; eu não sou uma pessoa alegórica!; não se escandalizar. Todas essas falas confirmam a produção de diferenças dentro e fora da Lux e da Malícia. Como sustentação das falas acima, pensamentos essencialistas reverberam na fala de outros homens homossexuais entrevistados, bem como de outros frequentadores. Frases como: Nascemos com o sexo definido!; Mulher é mulher e homem é homem!; Ainda continuam a ecoar e ganhar força nas conversas, nos bares, nas casas noturnas, da capital paraense.
Ramon: Como você lida com o comportamento de "gays afeminados" e "gays masculinizados"?
Demétrio (Homossexual, 47 anos): Como é que eu posso te colocar... Eu não concordo, mas eu respeito. Porque eu acho que nós nascemos com o sexo definido. Você não concorda com o quê, exatamente? Com afeminação. Com afeminação eu não concordo. Mulher é mulher, homem é homem, eu digo assim. Mas essa afeminação está ligada a quê? Corporal mesmo! Tipo assim... O cara que quer ser mulher, é isso que eu não concordo muito, mas respeito, é ele que quer ser isso, mas eu não concordo muito, não vejo isso com bons olhos.
Uma das principais preocupações dos entrevistados diz respeito aos seus posicionamentos em espaços públicos. Para a maioria deles, a sociedade lança um olhar repressor/opressor sobre o homossexual, com um carga de preconceito maior em cima do homossexual mais afeminado. Quando se pensa nesse olhar repressor/opressor que a sociedade lança sobre os homens homossexuais, principalmente sobre os mais afeminados, é muito comum, nas falas, a questão da presença de comportamentos "normais" e "anormais", ou mais especificamente numa feminilidade "natural" e feminilidade "forçada". A própria sociedade reafirma o discurso sobre o homossexual aceitável. Ser homossexual e não parecer ser é uma constante nas entrevistas, refletidos nas seguintes expressões: não dar pinta; não conviver com gays mais femininos com receio de trazer feminice para si e ficar afeminado.
Ramon: Sobre a questão dos homens homossexuais femininos, o que te deixa mais constrangido?
Valentim (Homossexual, 23 anos): Tem outro motivo que me leva a não namorar. É que, tipo, as pessoas que mais querem namorar são as pessoas mais femininas, eu não sei se eu estou sendo hipócrita. Os caras masculinos eles têm mais aversão a namoro por conta de que namorando eles podem se expor e se expondo eles podem estar trazendo alguma feminice pra si, eu vejo dessa forma, também, às vezes. Agora, são relações sociais, digamos que eu tenho um comportamento "normal". Anormalidade é a sociedade que impõe: o que é masculino, o que é feminino. Eu sei que é a sociedade que impõe, mas nós somos seres sociais, é claro que não importa de que forma, mas se eu tiver andando com uma pessoa efeminada... Eu não tenho preconceito, mas eu não quero proximidades, eu não quero muita relação, até mesmo pra não me efeminar, de certa forma, porque às vezes, aí existe uma outra coisa... Tem uns caras que são efeminados porque eles são femininos, tipo, tem cara que é efeminado e eles, naturalmente, são dessa forma, tem uma forma de pegar nas coisas, tem uma forma de falar, tem uma forma de andar, mas é uma coisa natural, é uma coisa que tu vê passar e, é uma coisa natural! Uma coisa que não chama tanta atenção. Agora tem cara que é efeminado porque ele põe uma calça / bermuda dobradinha [risos], ele põe óculos DESTE TAMANHO e sai "piriguetando" no meio da rua, aí é diferente! É diferente. Um efeminado que é natural, e um efeminado que se efemina, que se põe como feminino, que se rasga, que se veste diferente, tipo, e esse se vestir diferente é uma coisa que depende do ponto de vista, porque tem cara que se veste digamos que diferente, mas não completamente, tipo, uma vez eu estava num shopping eu achei bacana o cara que se vestiu diferente, não era assim tão diferente, ele estava com uma camisa básica, uma calça jeans normal, um tênis e com um cachecol e combinou, porque ele não estava se efeminando, dava pra saber que ele era gay, até por conta de que ele estava usando um cachecol e aqui em Belém usar cachecol não é da nossa cultura e, lá no shopping não estava feio, tava legal, pra ele combinou, mas tem gente que já quer se vestir diferente pra mostrar ser diferente.
Pelas palavras acima, pela não relação entre homossexuais mais femininos e homossexuais mais masculinos e pela suposta hipótese de que ao se relacionar com homens homossexuais mais femininos a pessoa adquiriria algum tipo de feminice, como num exercício de incorporação de trejeitos, é que acontece um processo que chamei de "guetificação" dos homossexuais mais femininos, fenômeno este que se expressa na fala de outro entrevistado sobre o fluxo de femininos da Lux para a Malícia.
Ramon: O que você tem a dizer sobre a Lux e a Malícia?
Helano (): Homossexual, 25 anos O fato de eu não preferir nenhuma das duas, é o fato assim... Do ambiente, espaço boate mesmo, assim como hoje eu já não frequento mais saunas, eu não sei, eu não to mais afim de ficar frequentado como antes, e a terceira boate que eu comentei (Hache), não é que eu prefira ela, mas entre ir pras três, eu vou escolher ela (Hache), mas não é que eu conviva, que eu vá lá com frequência, não. Como eu te disse, na verdade, a primeira vez que eu fui foi esse ano, esse final de semana, então a gente já tá no final do primeiro semestre, enfim... Se a Hache for, ao longo do tempo, agregando um público de homens homossexuais mais femininos, o que você acha que vai acontecer? Qual seria a minha reação? Simples. Assim como foi com a Lux, assim como foi com a Malícia, seria com ela. Eu iria parar de frequentar porque eu já não ia encontrar, lá dentro, o perfil de pessoas com quem eu quisesse me relacionar, seja com a intenção de ficar, ou simplesmente de conhecer para bater papo. Eu ia buscar outros ambientes.
As próprias relações mais íntimas são interferidas por conta de performances mais femininas, como na frase emblemática de um dos entrevistados: Gosto de homens e não de pessoas afeminadas (Demétrio, Homossexual, 47 anos). Dizer que gosta de homem, basicamente, implica "marcar uma posição de diferença / exterioridade / alteridade com relação ao universo dos sujeitos que fazem sexo com sujeitos classificados como masculinos" (Oliveira, 2006, p. 44). Gostar de homens e não de pessoas afeminadas não significa que ele goste de homens heterossexuais, mas para suas relações afetivo-sexuais o homem homossexual precisa ter uma performance de gênero masculina.14 A maioria dos entrevistados não concorda com essa tal "afeminação", sob a justificativa de que isso prejudicaria as relações consigo, com a família e amigos.
Considerações finais
Quais as compreensões que estas etnografias noturnas na Lux e no Malícia me trouxeram? Os espaços constituem os sujeitos, ou o inverso se confirma? No movimento de trânsito entre espaços e homens homossexuais se faz necessário um olhar mais adensado, crítico e distanciado para as performances e convenções corporais de gênero, como procurei mostrar neste artigo.
Os espaços de lazer e sociabilidade mencionados ainda são vistos, por uma grande parte de frequentadores, como lugares circunscritos à noção, única e exclusiva, de divertimento, este deve ser o papel desempenhado por eles. É instigante pensar e refletir na cena espacial que delimita, e identifica que determinado espaço deve ser frequentado por pintosas, pererecas e new generation, ou por monas ocó, finas e barrocas. No que consiste, de fato, esta separação? Qual o sentido de uma circulação que, na tentativa de aproximar sujeitos, faz elevar conflitos internos nos grupos?
A lógica prescritiva das relações entre homens homossexuais sejam elas de cunho social ou afetivo-sexual, promove maior distanciamento que aproximações. Como não distinguir os públicos se há heterogeneidade entre eles. Os modos de compartilhar ideias e opiniões possuem formatos de construção diferenciados. Neste contexto, o diferente é aquele fora do padrão (pintosa, de classe social baixa – perereca), ele não corresponde ao aspecto que inclui, é sempre um parceiro recusado, nunca em potencial. A analítica que recobre a noção de parceria em potencial deixa entrever que o termo ganha força quando coadunado com o espaço. É neste, com este, e nunca isolada, que a potencialidade do parceiro se constrói / reconstrói, por meio de: estabilidade financeira, corpo em forma e performance corporal masculina. Seguindo esse raciocínio, é correto afirmar que sujeitos e espaços se produzem mutuamente? Há, minimamente, uma relação mútua entre lugar e pessoa, esta joga com o lugar e vice-versa. O reflexo desta análise se dá na perspectiva de apresentação do lugar, independente da festa e dos sujeitos (dependendo de suas intenções).
Questiono-me, através das falas que reiteram convenções sociais de gênero, leia-se: homem é homem; mulher é mulher, e das políticas de gestão das performances corporais que oprimem gestos afeminados, se não estaríamos reafirmando padrões identitários, nos espaços de sociabilidade homossexual? Padrões que dizem qual a postura correta; qual roupa deve ser usada; que bebida deve ser comprada para que os sujeitos possam parecer descolados; como devem se comportar nos momentos de flerte. Se durante toda esta pesquisa notei convenções que tentavam me convencer de que naqueles espaços não se deveria pesquisar, não poderia deixar de notar as convenções que foram estabelecidas para o lugar e no lugar.
No movimento em que os frequentadores e entrevistados traziam convenções de gênero, de classe e de geração para os espaços, é enfática a fala que coloca o sujeito na condição de representativo do lugar, ao mencionar que homossexuais mais femininos feminizam o lugar e, consequentemente, as pessoas que o frequentam seriam feminilizadas, como uma espécie de disserminador de feminices, um corpo que deve ser "excluído" porque "carrega" consigo uma pecha negativa de conduta: inferioridade, alegoria, perda de virilidade, falta de respeito. A alcunha negativa que recai sobre os homossexuais mais femininos reverbera aos homossexuais mais velhos e aos de classe baixa, empurrando-os sempre para a base e nunca para o topo. É bom lembrar que, os que estão na base de sustentação, também, promovem processos de alijamento contra os homens homossexuais mais masculinos, de classe média / média alta e mais novos. Posso dizer que o cenário visualizado é de tensão e de conflito.
Nas relações com os amigos e posturas nos espaços públicos, os entrevistados, a partir de um discurso recorrente, expuseram os limites que devem haver com relação aos comportamentos: ser discreto e se dar o respeito, saber se comportar nos determinados ambientes, foram os mais reiterados. Não sei, ao certo, se sair ou não sair do armário facilita ou dificulta o convívio social, alguns mostram, enfaticamente, que sim, porém mesmo aqueles que já se assumiram continuam impondo limites comportamentais, justificando que posturas mais afeminadas seriam um chamariz para atitudes homofóbicas. Não cabe aqui dizer que os homens homossexuais, da Lux e do Malícia, devem ser mais masculinos para impedir que atitudes homofóbicas ocorram, a questão é que há uma relação de constrangimento e "conflito", expressa nas relações entre homossexuais mais femininos e homossexuais mais masculinos. Nestas relações ocorrem, de maneira clara, convenções generizadas de poder.
Com relação à produção de corpos nos espaços, podemos pensar que a circulação de travestis, drag queens, transexuais, praticantes de cross-dressing, no ambiente da Lux traria feminilidade para o local, tal como afirmou um entrevistado? Até que ponto isso pode ser levado em consideração? Bom, se formos pensar que na Lux há a liberação da entrada para aquelas pessoas que forem montadas (rapazes que se travestem de mulher), há a promoção de concursos de beleza negra, miss Pará, etc. e onde você encontra rapazes homossexuais mais jovens que estão passando por um processo de aprendizado de uma (homo) sociabilidade e cada vez mais se "feminilizando", seja pelo simples prazer de usar roupa do vestuário feminino ou para facilitar a entrada, visto que são de classes sociais mais baixas e, isso ajudaria a se "encaixar" nesse universo; tais hipóteses se confirmam na repulsa e recusa a esta feminilidade periférica / espalhafatosa que é "produzida" pela Lux em contraponto a uma masculinidade respeitável "produzida" pelo Malícia.
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Sobre obre os autores:
Ramon Pereira dos Reis:
Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós- Graduação
em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará.
Doutorando do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade de São Paulo.
e-mail: rpreis18@yahoo.com.br
Recebido em: 13/04/2012
Aceito para publicação: 17/11/2012
1.Não nego a variedade de categorias utilizadas pelos entrevistados, no entanto me valho desta expressão como forma de conferir alguma inteligibilidade aos sujeitos (Facchini, 2008; França, 2012 [2010]).
2. O atual blog da Lux foi desativado, as informações sobre o espaço estão soltas em vários sites na internet, trago informações do site A capa. Fonte:< http://acapa.virgula.uol.com.br/lifestyle/lux-baladaclassica- de-belem-do-para-e-diversaogarantida/ 1/1/7916>, acesso em 17/07/12. De 2007 até o final de 2010 a Lux estava situada na Rua Rui Barbosa, entre Municipalidade e Gaspar Viana, no bairro do reduto. A partir do início de 2011, após o término do contrato, mudou de endereço para a Avenida Senador Lemos esquina com a Avenida Almirante Wandenkolk, no bairro do Umarizal. Atualmente, a Lux está desativada.
3. Sobre informações comerciais a respeito da Malícia, ver o site:< http://www.maliciapub.com/2012/>, acesso em 17/07/12. Desde meados de 2008 até os dias atuais o Malícia está localizado na Rua Rui Barbosa, entre Manoel Barata e 28 de Setembro, no bairro do reduto.
4 O termo "masculinidade" está grafado com o uso de aspas para indicar que a movimentação dos sujeitos e suas performances corporais, nos espaços em questão, são constantemente construídas e reconstruídas.
5 Sobre a ideia brasileira de GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) ver França (2007).
6 Sobre estudos que tratam de sujeitos que praticam cross-dressing e sobre Drag Queens, ver os trabalhos de Vencato (2009; 2002, respectivamente).
7 O uso da expressão make-up babado procura evidenciar, de forma êmica, o trato com a maquiagem e o próprio uso que se faz dela, num espaço onde ter o rosto limpo e sem marcas de expressão ou de acne é aspecto fundamental no momento do flerte, por exemplo. Por isso, em alguns casos há um exagero na maquiagem, ouvi várias vezes a seguinte frase: "carrega (exagera) na make-up!".
8 Valer-se de uma expressão facial que indica soberba, arrogância, e a seleção exaustiva de parceiros.
9 Movimentação circular ou ziguezagueada com a cabeça, recorrentemente, explorada pelas Drag Queens em suas apresentações, consistindo em balançar a peruca, num movimento bastante acelerado, como forma de mostrar que a peruca não sairá da cabeça.
10 Tal como sinalizaram os informantes de Oliveira (2006), reconheço que no contexto tanto da Lux quanto do Malícia, também, há uma representação de performance masculina ou feminina por meio do jeito de cada pessoa, como sendo muito mais que a adesão a um estilo de vestuário, tem a ver com uma certa ‘atitude' que seria perceptível em todos os gestos e atos da pessoa (p. 66)
11 No caso das relações estritamente sexuais dentro e fora das boates, ser homem significa ser ativo. A categoria "homem", nesse caso, abarcaria todos os indivíduos do sexo masculino que supostamente mantivessem posição "ativa" em relações sexuais com mulheres ou homens, indiferentemente. Homens sexualmente "passivos", tratados como "bichas", "viados", etc. seriam percebidos como uma espécie de híbridos, nos quais atributos anatômicos masculinos se misturariam a características de gênero femininas (as famosas almas femininas em corpos masculinos) (Carrara e Simões, 2007, p. 69-70).
12 Aqueles e aquelas que transgridem as fronteiras de gênero ou de sexualidade, que as atravessam ou que, de algum modo, embaralham e confundem os sinais considerados "próprios" de cada um desses territórios são marcados como sujeitos diferentes e desviantes (Louro, 2004, p. 87).
13 Cf. Katz, 2007.
14 Em sua pesquisa de doutorado sobre consumo, homossexualidade e produção de subjetividades na cidade de São Paulo, em três espaços de sociabilidade homossexual, França (2012 [2010]) ao analisar os estilos e performances corporais exibidos num samba GLS, aponta os manejos utilizados por alguns entrevistados para atrair parceiros, na tentativa de fazer um estilo mais hétero, mais masculino (...) porque os homens não estavam querendo mais as bichas; então, ele tinha que se adaptar... (p. 222) Mais adiante esta autora ressalta que são marcantes a visibilidade e o valor atribuído a gays mais masculinos, tanto no âmbito do mercado como no do movimento social – como evidenciam as críticas de ativistas às bichas que aparecem em novelas ou programas de humor da TV, classificadas como caricatas e estereotipadas, em contraste com a aprovação declarada de personagens que encarnam gays discretos, musculosos e masculinos. Isso não quer dizer, necessariamente, que as bichas que bicham não terão mais lugar no mercado afetivo-erótico (...) Em ambientes gays, entretanto, as bichas parecem cada vez menos valorizadas, a não ser em lugares frequentados pelos profissionais de moda, que prezam pela androginia e percorrem itinerários específicos no interior desse mercado. Em outras situações, também pude observar a valorização das bichas no interior do mercado segmentado, especialmente em contextos mais populares que tem em comum com os lugares frequentados pelos profissionais da moda o apreço pela prática de se montar, à qual jovens rapazes se dedicam com esmero. De modo geral, porém, poucos parecem dispostos a ocupar esse lugar. Como já observamos, a rejeição à bicha parece combinar o desvio do preconceito, o reforço de um modelo em que gênero e sexualidade aparecem dissociados e a rejeição a um sistema de classificação associado às classes populares e menos "esclarecidas" (idem) (grifos da autora).
15Os autores, Fry (1982) e Perlongher (1987) ilustram as performances de gênero presentes nestas duas categorias, indicando que a presença dos traços de masculinidades estão presentes para que se faça existir esses sujeitos.
16 Ver "ÁVILA, Maria Betânia. Prefácio: Liberdade e Legalidade, uma relação dialética. In: ÁVILA, Maria Betânia; PORTELLA, Ana Paula & FERREIRA, Verônica (org.) Novas legalidades e democratização da vida social: família, sexualidade e aborto. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
17 Ver Mendonça (2009)
18 Idem.