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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.5 no.2 São Paulo 2013
Resenha
Resenha do livro – O homem da morte impossível e outras histórias: psicopatologia fenomenológica
Book review – The man of the impossible death and other stories: phenomenological psychopathology.
Guilherme Wykrota Tostes
Hospital Espírita André Luiz Brasil
Escrito por Maria Teresa Ferla (2007/2011), este livro busca ressaltar o valor do paradigma fenomenológico na prática em saúde mental retomando a característica fundante desse modo de se fazer ciência que parte da afirmação da particularidade da pessoa. O livro, desde a capa e por todo o seu conteúdo, chama a atenção do leitor para a importância desta dimensão fenomenológica. O coração vermelho presente na imagem da capa, que é de autoria de Armando Fasan, um usuário do serviço de saúde mental italiano, demonstra metaforicamente que o sofrimento mental é algo passível de ser compreendido, que a loucura é uma experiência, antes de tudo, humana, compreensível e que uma prática que não escuta a pessoa em sua dimensão de sentido, pautando-se exclusivamente num paradigma cartesiano que busca "explicar" todo o fator humano, corre o risco de ser extremamente violenta e ineficaz. Uma prática que não leve em consideração o conhecimento intuitivo e se reduz apenas ao conhecimento racional não consegue abarcar a complexa dimensão psicológica do ser.
Atualmente essa prática fenomenológica corre o risco de se restringir a apenas uma contribuição nosológica, na medida em que o profissional da saúde mental, no contato com o paciente, busca somente levantar um conjunto de sinais para escolher a melhor medicação. O paradigma biológico corre o risco de ser assumido de forma biologicista, como Eugenio Borgna11 coloca no prefácio do livro, ao reduzir o sofrimento mental da pessoa a uma falha fisiológica, tratável apenas com medicação. Teresa Ferla, em seu livro, busca denunciar a gravidade desta redução do fator subjetivo/social ao fator biológico e através do relato de oito casos clínicos, evidencia a possibilidade de se fazer uma prática em saúde mental ampla, que leva em consideração as diversas dimensões da pessoa. Teresa Ferla propõe uma prática não desprovida de dificuldades e sofrimentos para quem cuida e quem é cuidado, mas repleta de companhia, acolhimento e presença, fatores absolutamente potentes, capazes de promover Eugenio Borgna, psiquiatra italiano "mestre" de Maria Teresa Ferla, autor de diversos livros de psicopatologia fenomenológica, é, atualmente, uma das maiores referências em psiquiatria fenomenológica do mundo. esperança e cuidado inclusive naqueles sofrimentos mais inusitados e complexos. Teresa Ferla é psiquiatra e diretora de uma Unità Operativa di Psichiatria que é um conjunto de dispositivos públicos situados em regiões territoriais na Itália que abarcam cerca de 200.000 pessoas, sendo constituídos por: A – Servizio di Diagnosi e Cura (15 leitos psiquiátricos em um hospital geral para internações de pessoas em situações de crise grave); B – Centro Psico Sociale (Ambulatório); C – Comunità terapêutica a bassa/media protezione (15 - 20 leitos em um serviço residencial de baixa/ média proteção com assistência de 4 a 6 horas por dia); D – Centro Residenziale e Terapeutico (20 leitos em um serviço residencial de alta proteção para a readaptação social com assistência por 24 horas. Residência que acolhe casos graves que ainda não podem ser encaminhados para seus lares, acolhe também muitos egressos da internação psiquiátrica hospitalar); E – "CD" (Centro de convivência diurno para até 50 pessoas). Os casos clínicos se passam nesses dispositivos e o livro ressalta a possibilidade da realização de uma psiquiatria social onde o trabalho interdisciplinar é fundamental e toda a equipe terapêutica se faz presente. Presença, esta, que se dá possivelmente pelo fato dos coordenadores, sensibilizados pelo paradigma fenomenológico se colocarem numa posição de escuta, não apenas dos pacientes, mas de todas as pessoas envolvidas no processo de tratamento e ressocialização.
As clássicas vivências de sofrimento presentes na clínica da saúde mental aparecem neste livro. Nele encontram-se histórias sobre o mistério do suicídio, acompanhado da imprevisibilidade racionalista e difíceis questões humanas decorrentes desse ato; histórias sobre os fechamentos e aberturas do autismo esquizofrênico; sobre a experiência maníaca e sua possível raiz na vivência depressiva; sobre a permeabilidade do adoecimento mental no meio familiar. Certas reflexões, que são temas recorrentes entre os profissionais da saúde mental, também estão presentes neste livro, tais como a "hereditariedade da loucura" e seus elementos culturais, afetivos assim como os genéticos; sobre "o problema do diagnóstico" e o manejo daqueles casos que se tornam demasiado complexos por se tratarem de um adoecimento do grupo familiar, nos quais só se torna possível agir graças aos recursos jurídicos oferecidos pelo estado.
Esta obra de Teresa Ferla, como Borgna coloca no final de seu prefácio, é um livro não apenas para psicólogos ou psiquiatras, mas para todos os profissionais que se deparam com a complexa clínica da saúde mental, uma clínica que quase sempre é muito delicada e ao mesmo tempo extremamente provocadora, pois denuncia, muitas vezes, as mais profundas inquietações, medos e fragilidades de seus trabalhadores, questões que todo profissional que se permite ser tocado, há de viver. E neste permitir-se tocar que se encontra um dos maiores desafios dos trabalhadores, pois, para isso eles precisam estar atentos também aos seus próprios dilemas, suas próprias dores e limites, a fim de conseguirem estar realmente presentes, junto à pessoa que sofre por questões tão humanas quanto às deles. Aí está uma provocação sutilmente colocada no percurso de todo o livro: A pessoa para conseguir ajudar, não pode se colocar numa posição asséptica, defendida por uma hipertrofia da razão, mas, sim, se reencontrar com suas próprias questões, decorrentes da sua condição humana, inclusive aquelas questões mais duras, misteriosas e inexplicáveis, e então, nessa posição de abertura, ela se enriquece com o novo que se desvela na potência de num verdadeiro encontro entre os olhares de um humano quando se permite ser tocado por outro humano.
Referências
FERLA, M. T. (2011). O homem da morte impossível e outras histórias: psicopatologia fenomenológica. (G. W. Tostes, trad.). Belo Horizonte: Artesã. (Original publicado em 2007) [ Links ]
Recebido em junho de 2014
Aceito em setembro de 2014
Sobre o autor:
Guilherme Wykrota Tostes
Coordenador do setor de Psicologia do Hospital Espírita André Luiz
e da unidade de tratamento de desintoxicação de múltiplas drogas.
E-mail: gwtostes@gmail.com
11 Eugenio Borgna, psiquiatra italiano "mestre" de Maria Teresa Ferla, autor de diversos livros de psicopatologia fenomenológica, é, atualmente, uma das maiores referências em psiquiatria fenomenológica do mundo.