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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.11 no.3 Belém set./dez. 2019

https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº03artigo56 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº03artigo56

 

Cartografia de meio fio: uma história nas ruas em Brasília (DF)

 

Streets cartographs: a story in the streets in Brasilia (DF)

 

Cartográfias de alambre: una historia en las calles de Brasilia (DF)

 

 

Pedro de Andrade Calil Jabur; Tâmara Rios de Sousa Cássio; Henrique Oliveira da Conceição

Universidade de Brasília (UnB)

 

 

 


RESUMO

Este estudo apresenta um estudo de caso realizada com população em situação de rua em Brasília (Brasil), partindo-se do indicador que um processo de pesquisa, mais do que ações instrumentais visando objetivos claros e percursos pré-definidos, também é uma forma de encontro, que envolve tanto situações concretas como fatores subjetivos e emocionais. A partir do relato cartográfico de momentos da vida de um morador de rua buscou-se discutir e analisar aquilo que chamamos de 'palavras à margem', que significa indicadoras de um relato e de um espaço significativos, tanto da sua condição social e estrutural, como de suas vivências psíquicas e construções simbólicas. Neste cenário, além da inexistência da voz e das palavras, mas sim a falta de um espaço onde essas vozes poderiam ser ouvidas, pela falta de escoamento desses discursos e, portanto, pela incapacidade que essas vozes possuem de se criar uma identidade compreendida pelo outro.

Palavras-chave: Situação de Rua; Método Psicanalítico; Relatos de vida; Pesquisa de Campo.


ABSTRACT

This study presents a case study of a homeless population in Brasília (Brazil), based on the indicator that a research process, rather than instrumental actions aiming at clear objectives and predefined paths, is also a way of encounter, which involves both concrete situations and subjective and emotional factors. From the cartographic account of moments of the life of a homeless person, we sought to discuss and analyze what we call 'marginal words', which means indicators of a significant account and space, both of its social and structural condition, as of their psychic experiences and symbolic constructions. In this scenario, besides the lack of voice and words, but the lack of a space where these voices could be heard, the lack of flow of these discourses and, therefore, the inability of these voices to create an identity understood by the other

Keywords: Street Situation; Psychoanalytic method; Life reports; Field research.


RESUMEN

Este estudio presenta un estudio de caso de una población sin hogar en Brasilia (Brasil), basado en el indicador de que un proceso de investigación, en lugar de acciones instrumentales dirigidas a objetivos claros y caminos predefinidos, también es una forma de encuentro, que involucra tanto situaciones concretas como factores subjetivos y emocionales. Desde el relato cartográfico de los momentos de la vida de una persona sin hogar, buscamos discutir y analizar lo que llamamos 'palabras marginales', lo que significa indicadores de una cuenta y espacio significativos, tanto de su condición social como estructural, a partir de sus experiencias psíquicas y construcciones simbólicas. En este escenario, además de la falta de voz y palabras, pero la falta de un espacio donde se puedan escuchar estas voces, la falta de flujo de estos discursos y, por lo tanto, la incapacidad de estas voces para crear una identidad entendida por el otro .

Palabras-clave: Situación de la calle; Método psicoanalítico; Informes de vida; Investigación de campo


 

 

PROJETANDO A RUA: SITUAÇÕES

Este artigo é resultado de uma pesquisa realizada no primeiro semestre de 2014, como parte do projeto Situações de rua: histórias de vida, vínculos e sociabilidade acerca da população em situação de rua no Distrito Federal (DF)1. A situação de rua, tanto no sentido social e estrutural, como em seus aspectos subjetivos, relacionais e psíquicos, será analisada aqui como forma de contextualizar o próprio processo de desenvolvimento da pesquisa. A partir da experiência de entrevistas com um sujeito de rua, tentaremos, portanto, sublinhar os diversos movimentos metodológicos desta pesquisa, destacando seu objetivo mais concreto - um processo de recolhimento de informações, como também as vias de construção de uma dupla, tanto social, como emocional. É a partir de uma caracterização do filósofo francês Le Blanc (2007) acerca da população de rua, que começamos a denominar estes relatos, de histórias à margem, tanto no objetivo de caracterizar a situação social e psíquica extrema vivida nas ruas, como pela intensa mobilização de vivências que surgiam ao escutar e construir estes relatos juntamente com estes sujeitos. Uma história de quebras e rupturas – família, amigos, escola, trabalho, cidade de origem, local de moradia; de palavras soltas, que se perdem e, parecem, nascem perdidas em memórias e histórias pretéritas e presentes. À margem de precipícios: palavras de abismos.

Segundo Le Blanc (2007), a experiência da precariedade - as vidas às margens - é, também, uma precarização da experiência, estabelece um espaço de fala marginalizado, muitas vezes sem amplitude e alcance, que, em sua condição miserável, se assemelha muito mais a ruminações; restos de palavras e memórias, afundadas, ou prestes a sucumbir em uma miséria de sentidos e reconhecimento de si e dos outros em volta.

E nesse sentido, essa especificidade da situação de quem fala está marcada pela rua, suas errâncias, transitoriedades, alegrias e tristezas que vem e vão, por avenidas e pistas marginais. São vidas relatadas, em geral, em uma cronologia tortuosa, costurando fatos que parecem trazer a essas pessoas uma inteligibilidade para seu deslocamento. A errância, a fragilidade, e seu aspecto marginal são chaves importantes para o entendimento das situações de rua.

Teias de relatos construídas em um cenário, também de perdas, onde os cacos das palavras, misturadas aos ruídos, barulhos e cheiros da rua enredam um cenário, muitas vezes, de isolamento e marginalização; onde estas histórias marginais, no esforço de serem ouvidas e mesmo compreendidas, acabam puxando quem as ouve para as beiradas; em uma espécie de queda (emocional) dupla.

Le Blanc (2007), buscando retratar a tradição da escuta dentro das etapas de uma pesquisa social a partir de relatos de vida, lembra que Freud, ao relatar o jogo de carretel de seu neto, estava apresentando tanto o acontecimento da escuta psicanalítica em si, através do brincar da criança, como o próprio movimento de aproximação e distanciamento, inerente ao ato de estar disponível para a escuta do outro. Por isso, este processo de disponibilidade, tanto na psicanálise, como dentro do âmbito da pesquisa social, é elaborado por percursos que não podem ser separados e/ou hierarquizados: aproximação, distanciamento, escuta e fala, assim como o próprio carretel, fazem parte do sentido de apreensão da experiência emocional e concreta da vida; uma escuta que perpassa o mero ato de ouvir e que é, portanto, uma troca entre uma dupla.

Manuel Delgado (2007), antropólogo espanhol, afirma que a pesquisa na e da rua deve buscar evidenciar, justamente, as palavras e o sentidos marginais na tentativa de dar conta, não somente do significado concreto dessas enunciações, mas também do ritmo fluido e efêmero, próprio desses espaços urbanos. É preciso, segundo Delgado (2007), criar dispositivos de escuta que possam recolher as marginalidades dos sentidos das ruas; os restos de discursos destes seres, que vivem de restos, de materialidades e simbolismos jogados na rua, abandonados, muitas vezes prontos para se afogarem e sumir no anonimato de rumos ignorados.

É a partir destas várias possibilidades de se elaborar perspectivas sobre esse mundo emocional e social, vivido à céu aberto, que esta pesquisa, ao invés de tentar esquadrinhar (social e psiquicamente) as palavras às margens, tenta elaborar conjuntamente com esses indivíduos uma linha de fala e escuta; uma espécie de cartografia, investigação recolhedora de palavras, gestos, restos, linhas que se desenham em cada chapa cartográfica construída em nossos encontros com Demétrio, sujeito em situação de rua no Guará.

Importante ressaltar que estas palavras às margens, extraídas do relato de um único morador de rua, não nos permite construir generalizações teóricas acerca das inúmeras e diversas vidas nas ruas, mas não impede, todavia, uma análise crítica de como estas vidas às margens são indícios de aspectos de vulnerabilidade e fragilidade social e psíquica que extrapolam o cenário meramente individual e subjetivo. Esses indivíduos vagam de emprego, de lugares, de "casas", de abrigos; situações sem qualquer forma aparente de continuidade ou de um projeto mais ou menos racional de vida. Mais do que uma forma de excedente social (Castel, 2003), esses indivíduos se caracterizam pela ordem aleatória de suas vidas e, portanto, de escolhas, sentidos e narrativas.

 

PROCEDIMENTO

Os relatos de vida não são um instrumento metodológico que se referem unicamente a um conjunto de fatos e à relação entre eles, mas inclui também o investimento emocional do narrador e também do pesquisador. Por isso, à medida que são relatados se tornam progressivamente objetos de análise, mecanismos interpretativos, tanto pelo próprio sujeito da pesquisa, em nível mais individualizado, como pelo próprio pesquisador, dentro de referências teóricas e, porque não, emocionais. É um relato dotado de uma afetividade particular justamente porque é através dele que o sujeito se reconta e se reafirma.

A experiência da precariedade que é, também, uma precarização da experiência, segundo Le Blanc (2007), estabelece uma fala marginalizada destes relatos sobre a vida, muitas vezes sem amplitude e alcance, que, em sua condição miserável, se assemelha muita mais a ruminações; restos de palavras e memórias, afundadas, ou prestes a sucumbir em uma miséria de sentidos e reconhecimento.

Claudia Girola (1996), antropóloga franco argentina, afirma que os relatos dos sem abrigos (denominação europeia para a população em situação de rua) é inicialmente sempre, um contar, quase mítico, de histórias de perdas. A escuta destas vidas deve tentar, como reforça a autora, a partir de uma atenção mais sensível, ultrapassar esse sentido primeiro de perdas, não para deixar de ouvi-las, mas para entrar em contato com outras palavras (justamente aquelas que não estão fixas) e, portanto, com outras construções de perdas e ganhos formadores de uma condição de realidade social e psíquica permeadas por faltas, mas que não deixa de ser humana.

Construir relatos para manter as palavras vivas. Para se tentar apreender algo da experiência de vida, e construir, a partir da dupla, um vínculo vivo, onde por isso mesmo, as palavras são movediças – não fixadas através de um único significado - através de suas imprecisões e expressividades. Corpos errantes (Frangella, 2004) e palavras errantes, brutas, muitas vezes escondidas.

Nesse sentido, as ruas de Brasília, durante as manhãs e tardes foram o cenário da produção deste relato de pesquisa.

 

DEMÉTRIO: UMA CARTOGRAFIA PELAS E DAS BEIRADAS

Nossos encontros com Demétrio aconteceram entre abril e junho de 2014. No total foram oito encontros curtos, permeados por interrupções e uma dificuldade de se sair de um espaço e de um enredo 'na beirada', como mesmo define o entrevistado. As gravações e anotações foram expressamente permitidos pelo entrevistado. Nosso percurso cartográfico foi interrompido com o desaparecimento das nossas vidas de Demétrio. Esta pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília, em 10/07/2013, sob protocolo nº. 330.731.

Avistamos Demétrio sentado à beira de um paralelepípedo de uma marginal que liga o Plano Piloto à uma de suas cidades satélites, Guará. Cabelos ralos, longos e cinzas, a barba cheia, grisalha. Usava sempre uma calça de ginástica e tênis velhos e surrados. Carregava uma única mochila e estava sempre de pé, apontando os dedos para os carros, como se estivesse contando-os. Ao avistá-lo algumas vezes, de passagem com meu carro, arrisquei um dia tentar conversar com aquela figura que me chamou a atenção pelo inusitado do local onde estava e pelos gestos, sempre efusivos e marcantes. Parei o carro em um estacionamento distante e andei quase um quilômetro para avistá-lo.

Ao chegar, no entanto, não demorei e pedi licença, sentando, logo, ao seu lado, perto de carros que passavam em alta velocidade. O sol e o barulho do tráfego, achava eu, faziam daquele lugar, um espaço inapropriado para qualquer tipo de conversa. Não estávamos, propriamente em um lugar, mas em uma espécie de penhasco, veio a imagem à minha mente.

Pesquisador (P) – Me chamo Pedro e estou fazendo uma pesquisa sobre pessoas que vivem na rua. Posso conversar com o senhor? Não sabia se gritava, se falava baixo. Não escutava o retorno da minha própria voz.

Sua primeira reação, foi de espanto, ao ouvir uma voz com a intenção e o desejo claro de conversar com ele. Logo se levantou, adentrando o acostamento e respondendo em tom de desafio.

Demétrio (D) – Mas estou na minha hora de descanso. Se o senhor não se importar de conversar aqui. (P) – Não me importo, lhe respondi com a mesma presteza. Só me importo em ser chamado de senhor, disse-lhe numa tentativa de quebrar supostas e prévias hierarquias. Levantei-me e fiquei ao seu lado". (D) – Prazer, Demétrio, estendendo a mão calejada e grossa para me cumprimentar. (P) – Pedro, respondi.

Ficamos em silêncio. Demétrio, meio alheio, olhava para os carros, como se no momento, o fato de termos nos encontrado e apresentado já fosse uma conversa grande. De minha parte, havia uma série de perguntas, que preferi, por experiência, não despejar em cima dele de uma vez. " (P) – Você me disse que está descansando. Trabalha por aqui? "

Demétrio não ouviu minha pergunta. Precisei de lhe perguntar mais alto para sobrepujar o intenso barulho. A sensação de desconforto era grande, mas já tinha sido avisado que aquele lugar, não era qualquer um, mas sim seu espaço de descanso. Que tipo de trabalho e de descanso serão esses, me questionava. " (D) – Conto carros. O caminhão do meu irmão passa por aqui de duas em duas horas. Se eu perder, embaralha toda a logística".

Tentando conter a curiosidade, diante do incomum do seu trabalho, 'contar carros', 'caminhão do irmão', 'logística', perguntei-lhe, se passava o dia inteiro no trabalho contando carros.

(D) – Conto só os carros ímpares. Chego cedo, descanso agora um pouco e fico até o fim da tarde. A noite, quando o irmão termina o serviço, eu também termino o meu. Depois vou para casa. (P) – Então o seu local de trabalho é o mesmo local de descanso? (D) – É tudo a mesma coisa. Tem horas que eu tô trabalhando, tem horas que estou descansando. Mas é tudo a mesma coisa: trabalho, descanso, trabalho de novo. (P) – E não se confunde? (D) – Não, porque trabalho e descanso ao mesmo tempo. Ainda sem entender, seu trabalho e insistindo, perguntei-lhe, (P) – E seu irmão passa sempre nesses horários? " Demétrio pareceu confrontado com minha dúvida ao responder a questão, pois logo depois encerrou nosso primeiro diálogo de forma abrupta. "(D) – Passa sim, responde correndo para o meio da pista, recolher uma calota que havia se soltado de um carro. Volta a se sentar e coloca no gramado junto com mais umas cinco que ele havia recolhido e eu ainda não havia percebido que lá estavam. (D) - Agora, se o senhor me dá licença preciso voltar a trabalhar. (P) – Posso me sentar aqui, para ver o seu trabalho? Insisti para permanecer. (D) – Pode, mas não dá pra gente conversar não. Se eu perco um caminhão, a logística fica toda atrapalhada e meu irmão não volta nunca mais.

Demétrio parece compenetrado numa espécie de mantra que é impossível distinguir se ele está realmente contando carros, rezando ou cantando. Sorri quando passa um desses caminhões grandes de vários eixos. Parece estar assistindo um espetáculo. Se sente um pouco desconfortável com minha presença, mas permaneço ali, quieto, 'para não atrapalhá-lo'.

Depois de uns quinze minutos, onde não houve diálogo, Demétrio me convida. "(D) – Olha se quiser volta amanhã, chego um pouco mais cedo porque dá prá gente conversar melhor. (P) – Claro. Gostaria muito de entender o que você faz. (D) – Eu fico pelas beiradas, me responde sorrindo".

Saí dali, atravessando as ruas no meio do trânsito, em busca do estacionamento onde havia deixado meu carro, em frente a um grande supermercado. Não estava assustado, mas curioso. Sua última frase, 'fico pelas beiradas', serviu como uma costura para esse nosso primeiro encontro. Uma beirada barulhenta, desconfortável, mas local de trabalho de Demétrio.

Conjecturas possíveis. No fim só sabia disso: ele vive nas beiradas.

No outro dia, como combinado, estava lá um pouco mais cedo para poder conversar com ele. Sorri quando me vê chegar. Está com uma garrafa de pinga já pela metade.

(D) – Ei, meu irmão. Veio mais cedo hoje, hein - me recepciona assim, mostrando os dentes estragados e a boca esburacada. (P) – Trabalhou muito ontem? (D) – Muito. Se eu não faço isso, ninguém faz e meu irmão não consegue entregar a carga dele. (P) – E como chama seu irmão? (D) – Deocideo. (P) – Ele que te empregou aqui, para contar carros ímpares? (D) – Foi o patrão dele, que um dia passou aqui, parou a limusine e me falou que meu irmão estava por um triz para perder o emprego e que eu tinha que ajudá-lo. Irmão, né? A gente ajuda. Sangue do sangue. (P) – Ele mora com você? Conseguia perceber que minha curiosidade era grande em tentar decifrar, mesmo que concretamente, este homem, seu trabalho, seu irmão, suas 'beiradas'. (D) – Ele mora longe. Nunca mais vi. Só vejo o caminhão dele passar um tanto de vez por dia. Ele não me vê e nem eu vejo ele. Só o caminhão.

Fico em silêncio. Percebo que Demétrio está mais aberto para nossa conversa. Sem mesmo perguntar, ele continua.

(D) – Moro sozinho. Não tenho irmão, nem família, nem filho, nem pai, nem mãe. Ele me trouxe para cá e sumiu no mundo fazendo carreira de carga importante. Aí eu descobri um dia que ele passava por aqui. Fiquei aqui, esperando para ver se passava de novo (...)". Ele é famoso, mas é famoso, porque eu cuido da logística, como o chefe dele me pediu para fazer. (P) – Você é como um ajudante dele, então? (D) – Secreto. Das beiradas De novo, a palavra 'beiradas' me chama atenção. (P) – Ontem você me falou que fica nas beiradas e hoje que é um ajudante das beiradas".

Demétrio me interrompe.

(D) – Minha vida é nas beiradas, moço. Não tem centro não. Moro ali no meio do mato. Arrumo um dinheirinho ali na porta do trem, depois venho para cá, trabalhar. Mas é trabalho que não dá dinheiro. Então eu fico na pinga, no pão, na pinga. O chefe do meu irmão nunca falou como vai me pagar e nunca mais parou aqui. De vez em quando vejo a limusine dele, mas não para.

Será que esse irmão está vivo? Pois existir, pelo menos, em seus relatos, ele existe e passa rente a ele várias vezes ao dia. Quem é esse chefe? Me interrompe, para falar que gostaria de ficar sozinho.

Vou embora, confuso com seu relato. Preso às suas beiradas e também na beirada de uma vida que gostaria de conhecer mais. Estava encharcado de suor, misturado a fumaça de carro e o cheiro de alguma carniça, que por lá estava ao sol.

Reparei em mim e imediatamente me questionei: Como ele aguenta isso o dia inteiro? Por quanto tempo? Me disse que é seu local de trabalho. E sua moradia, que diz, ser no meio do mato?

Por dias, nossos encontros, interrompidos pela sua necessidade de trabalhar, se limitaram a conversas curtas, onde Demétrio e eu ficávamos presos nos 'carros ímpares' e em sua preocupação com a 'logística do irmão', descritos em falas quase monossilábicas.

Em um deles, Demétrio pouco falou comigo e estava nervoso porque, segundo, ele a logística vinha se atrasando, colocando em risco o trabalho do irmão.

(D) – Hoje está tudo atrasado. Tenho que fazer hora extra. Aí passa de mil, dois mil carros por hora. (P) – Parece que está bastante atarefado então? (D) – Muito, meu irmão depende disso. (P) – Disso o que? insisto para tentar abrir caminho em nossa conversa. (D) – Tem que passar no mínimo dois mil carros por hora aqui. Na hora extra. (P) – E você tem que contar até dois mil carros por hora? (D) – Até mais do que isso. Ele tem boca para alimentar, mulher, filhos, casa. Eu não posso largar ele de mão.

Ficávamos na contagem dos carros e, por vezes, passava algum tempo, assistindo-o fazer seu trabalho. Enquanto meus questionamentos advindos das minhas sensações se acumulavam, percebia que Demétrio, pelo menos, aparentemente, não expressava verbalmente emoções. Eram atuações confusas e poderosas que me enredavam em sua história.

Por isso, em outro encontro, resolvi arriscar, em nome de um desconforto meu, que por hora não era o seu, pelo menos conscientemente.

(P) – E essa vida na beirada parece barulhenta. Não seria mais calmo fazer essa contagem em outro lugar? (D) – Eu gosto dessa zueira. Não deixa a cabeça vazia e todo mundo me conhece por aqui. Tem gente que grita, que cospe, joga coisa. Mas tem gente que para e dá comida, manta de frio. (P) – E você começa a trabalhar que horas? (D) – Cedo eu vou na padaria, se tem dinheiro compro pão e pinga. Quinze pães, dá para dois dias. A garrafa só pra um dia mesmo (risos). No dia que não tem dinheiro, vendo as calotas para oficina ou peço lá na porta do trem, perto da feira.

Sinto que aos poucos aquele espaço/diálogo claustrofóbico vai se abrindo a partir de alguns outros caminhos.

(P) – Gosta lá da feira? Pergunto sonhando se algum dia Demétrio, esteve em algum lugar que não fosse na beira da marginal. (D) – Gosto nada. Vou lá só para pedir, passo na padaria e corro pra cá. Minha vida é trabaiá, cantarola, sorrindo, várias vezes. Se pondo a contar os carros de novo. (P) - E a sua casa? Apostando comigo mesmo que se desse para dormir aqui no acostamento, ele dormiria. (D) – Vou lá só para passar umas horinhas e deitar o corpo, porque dormir eu não durmo não.

Quando estava digerindo minhas conjecturas e suas respostas, Demétrio me dá um empurrão quase infantil e diz calmo, mas pela primeira vez, me parece, emocionado. "(D) - Agora sai que estou ocupado".

Guardando minhas vontades de começar ali um discurso moralizante sobre empurrões ou mesmo de falar sobre sua raiva, virei-me e fui. Senti-me expulso no momento em que Demétrio se emocionou. Emoção-empurrão, Empurrão-emoção.

No outro dia estava lá, embora, depois da primeira vez, evitava de passar dias seguidos. Fui recebido com um aviso: "(D) – Agora estou contando".

Sentei-me e Demétrio ficou repetindo a frase, em forma de cantos, gritos, danças, urros. Por vezes, olhava-me em tom de desafio. Não me sentia convidado a levantar e estar próximo a ele para quem sabe iniciar uma de nossas conversas novamente.

Esperei cerca de uma hora e Demétrio não parava de pular e gritar. Um outro tipo de empurrão. Desta vez, cheguei-lhe perto e disse, "(P) – Se não quiser conversar, é só dizer".

Embora soubesse que ele estava dizendo que não queria conversar, a realidade de ser expulso pela segunda vez seguida me frustrou.

Quando resolvi voltar, três dias depois, passando pela marginal não avistei Demétrio. Ainda parei o carro no local costumeiro, e fui a pé até o nosso local de conversa. Pensei em me dirigir para a mata perto, no intuito de aparecer em sua casa, mesmo não sendo convidado. De longe não avistei a lona azul e preta que ele havia me mostrado somente à distância.

Por duas semanas ainda tentei passar pelo local, em diferentes horas, mas em vão. O espaço tortuoso desses relatos também é indício tanto do seu início, como de seu término, muitas vezes de se perder o e do entrevistado: rumos ignorados.

 

CONTANDO CARROS ÍMPARES, ELABORANDO IDENTIDADES PERDIDAS.

A transcrição de um relato oral, ao ser materializado pela escrita, possui sempre, em sua essência, uma perda de expressividade e de momentos emocionais importantes. A história, ou pelo menos, a tentativa de se construir uma história de vida juntamente com Demétrio não é diferente.

A tentativa de transcrever as sensações impactadas com a aproximação e a escuta das histórias de Demétrio parecem falhas ao tentar relatar o desconforto e a sensação de desamparo causados. Enquanto ele dizia 'beirada', eu sentia/ouvia precipício, abismo. Enquanto ele circulava e vociferava por entre os carros, a sensação agorafóbica de que queda livre se instalava em mim.

Castel (2003) ao demarcar o lugar dessa margem, define esse indivíduo como supranumerário a partir de uma trajetória social aleatória. E que não é somente social, mas psíquica também. A rua, espaço de moradia e vida de vários supranumerários, os 'sem-identidades', é representada justamente por esse funcionamento desvinculatório e fragmentar dos indivíduos aqui analisados. Os indivíduos em situação de rua vivem em um contexto radical de insegurança e flutuação errante dentro desse percurso social. Esta condição de sobrante social não significa, todavia, uma forma de inexistência social, mas sim de uma condição marcada por rupturas de vínculos e relações sociais concretas e simbólicas.

Rua, espaço de violências físicas, simbólicas e psíquicas, um abismo de concreto. A cidade grande é justamente o lugar das ruas que crescem e se tornam marginais; supervias, onde Demétrio pôs-se a contar.

A leitura do psicanalista André Green (1988) sobre o indivíduo fronteiriço, abre espaço para novas perspectivas sobre fronteiras e margens tanto como vivências psíquicas, como estados sociais. Para ele, a confusão entre pensamentos, representações e afetos é o demarcador desses estados fronteiriços, organização singular e frágil nos seus limites intrapsíquicos e relacionais. O relato confuso, movimentado de sensações e atuações, ao mesmo tempo, se articula com o que Green (1988) destaca como ponto característico do fronteiriço: uma dificuldade em separar interno/ externo, dentro/fora, eu/outro.

Pela estranheza de se viver na beirada momentaneamente com Demétrio, deve-se tomar cuidado para não se patologizar instantaneamente um arranjo mental, que muitas vezes serve como uma defesa à rua e suas várias violências. Girola (1996) chama atenção para o perigo de uma caracterização determinista da população de rua, da sua condição psíquica e do espaço onde vive, muitas vezes trabalha e habita. Para a autora (1996), não seria possível afirmar que uma situação de extrema pobreza gera tão somente condições materiais, sociais e psíquicas negativas, ou mesmo situações (concretas e simbólicas) únicas, onde esta população – considerada como um grupo único e estanque em características, identidades, histórias de vida, motivações, estaria tão somente lutando por uma sobrevivência miserável.

Ruminações e invenções ao mesmo tempo. Estas palavras marginais, como denominamos esses relatos, ficavam (e ainda ficam) impregnadas em que as vive, cheira, vê e ouve. Tudo pela beirada de realidades massacrantes e ficções confusas.

As fronteiras de Demétrio, penhascos geográficos e emocionais, apareciam em seus relatos a ponto de eu não saber ao certo se os carros ímpares, o irmão, a logística, o chefe em sua limosine eram reais, lembranças próprias, invenções ou alucinações. Suas histórias deslizavam, por vezes violenta, em formas de gritos, empurrões e isolamento em cantigas e ruminações incompreensíveis para quem as ouve.

Nossos encontros se movimentavam em palavras (vivências) de vida e morte: a imagem de uma pessoa se debatendo, lutando contra um possível afogamento. Nossas entrevistas foram sempre carregadas por emoções incompreensões e angústias. Nesse sentido, o movimento pendular do processo de pesquisa de aproximação e distanciamento – remetendo novamente à imagem do jogo do carretel - é também um jogo de vida e morte, conhecimento e estranhamento.

Veena Das (2008), antropóloga indiana, sugere que a escuta de episódios de dor, deve partir do princípio que estes relatos são formados por palavras que demandam, a todo instante, reconhecimento e um espaço de disponibilidade concreta e emocional de escuta. Uma das preocupações acerca do trabalho deste tipo de escuta é justamente este sentido fragmentário que acaba por dificultar ainda mais a aproximação de quem sofre e de quem escuta estes sofrimentos. As dores (não suas causas imediatas e objetivas) não possuem um encadeamento lógico, a partir de fatos cronológicos, mas se espalham pelo corpo, na mente e nas palavras de quem conta. Neste possível espaço que se cria está a possibilidade de se construir formas e momentos de troca e acompanhamento. Por parte do investigador, ressalta Veena Das (2008), espaços de aproximação, compreensão e análise deste outro em sofrimento.

Talvez, o grande desafio destas palavras náufragas seja acompanhar seus movimentos, a fim de poder escutá-las. Quando Le Blanc (2007) aponta a precarização desses indivíduos, concreta e simbólica, destaca, entre outras coisas, a fragilização da voz como um ponto de inflexão que caracteriza uma situação de precariedade. A ausência não se daria pela inexistência da voz e das palavras, mas sim pela falta de um espaço onde essas vozes poderiam ser ouvidas, pela falta de escoamento desses discursos e, portanto, pela incapacidade que essas vozes possuem de se criar uma identidade compreendida pelo outro.

 

Referências

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Ogden, T. H. (2013). Reverie e Interpretação: Captando Algo Humano, São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Notas sobre os autores:

Pedro de Andrade Calil Jabur - Professor da Universidade de Brasília (UnB), doutor em sociologia pela UnB. Coordena o coletivo de pesquisa e extensão Observa PopRua. ID Lattes: 7160757337951818. E-mail: pedrojabur@gmail.com.

Tâmara Rios de Sousa - especialista em Saúde Coletiva pela Fiocruz Brasília; mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília/Faculdade de Saúde. Coordena o coletivo de pesquisa e extensão Observa PopRua.ID Lattes: 0487022179366782. E-mail: tamararioss@hotmail.com.

Cássio Henrique Oliveira da Conceição - graduado em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília/Faculdade de Ceilândia; mestrando em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional pelo CEAM/UnB. Coordena o coletivo de pesquisa e extensão Observa PopRua. ID Lattes: 6199572822343481. E-mail: cassiohenrique28@gmail.com.

 

 

Recebido: 19/05/2019.
Aprovado: 21/10/2019.

 

 

1 Pesquisa de campo realizada em Brasília a partir do Projeto de Pesquisa Situações de rua: histórias de vida, vínculos e sociabilidade, financiado pelo CNPq, a partir do edital Universal de 2013. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília, em 10/07/2013, sob protocolo nº. 330.731.

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