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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.12 no.3 Belém set./dez. 2020
https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo74
Artigo
DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo74
Os sentimentos dos profissionais de saúde diante da morte de recém-nascidos
The Feelings Of Health Professionals About The Death Of Newborns
Los Sentimientos De Los Profesionales De Salud Ante La Muerte De Recién Nacidos
Lucila Moura Ramos Vasconcelos; Elza Maria do Socorro Dutra
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
RESUMO
O presente estudo teve como objetivo compreender como os profissionais de saúde, atuantes em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal, experienciam a morte de recém-nascidos. Com este intuito, a fenomenologia heideggeriana foi escolhida como possibilidade para compreensão do fenômeno. Foram realizadas nove entrevistas narrativas. A análise das narrativas foi feita tendo como inspiração o círculo hermenêutico, proposta por Martin Heidegger na Analítica da Existência. As interpretações mostraram os profissionais relatando sentimentos de impotência, culpa e tristeza. A vivência destes sentimentos levam alguns profissionais a mudarem a maneira de atenderem aos familiares dos pacientes. Como também resultam na criação de estratégias para evitar o sofrimento, distanciando-se dos pacientes próximos à morte. Os resultados apontam a necessidade de criar um espaço para que os profissionais possam expressar as suas emoções o que pode contribuir para uma melhor qualidade de vida no trabalho e para a melhoria na assistência aos pacientes e seus familiares
Palavras-chave: Morte; Fenomenologia; Emoções; Profissionais de Saúde
ABSTRACT
The present study aimed to understand how health professionals working in Neonatal Intensive Care Units experience the death of newborns. For this purpose, the Heideggerian phenomenology was chosen as a possibility for understanding the phenomenon. Nine narrative interviews were conducted. The analysis of the narratives was inspired by the hermeneutic circle proposed by Martin Heidegger in the Analytic of Existence. The interpretations showed the professionals reporting feelings of impotence, guilt and sadness. The experience of these feelings leads some professionals to change the way they attend patients' relatives. They also result in the creation of strategies to avoid suffering, distancing themselves from patients close to death. The results point out the need to create a space for professionals to express their emotions, which can contribute to a better quality of life at work and to better care for patients and their families.
Keywords: Death; Phenomenology; Emotions; Health Professionals.
RESUMEN
El presente estudio tuvo como objetivo comprender cómo los profesionales de salud, actuantes en Unidades de Terapia Intensiva Neonatal, experimentan la muerte de recién nacidos. Con este propósito, la fenomenología heideggeriana fue escogida como posibilidad para la comprensión del fenómeno. Se realizaron nueve entrevistas narrativas. El análisis de las narrativas se hizo teniendo como inspiración el círculo hermenéutico, propuesto por Martin Heidegger en la Analítica de la Existencia. Las interpretaciones mostraron a los profesionales relatando sentimientos de impotencia, culpa y tristeza. La vivencia de estos sentimientos lleva a algunos profesionales a cambiar la manera de atender a los familiares de los pacientes. Como también resultan en la creación de estrategias para evitar el sufrimiento, distanciándose de los pacientes cercanos a la muerte. Los resultados apuntan a la necesidad de crear un espacio para que los profesionales puedan expresar sus emociones lo que puede contribuir a una mejor calidad de vida en el trabajo ya la mejora en la asistencia a los pacientes y sus familiares.
Palabras clave: Muerte; Fenomenología; Emociones; Profesionales de la Salud.
INTRODUÇÃO
As maternidades, locais associados à ideia de vida, de nascimento, também se configuram como lugares onde a morte está presente no cotidiano dos profissionais de saúde, principalmente para aqueles que trabalham nas Unidades de Terapia Intensiva Neonatal (UTINs). Estas unidades, são consideradas como locais "frios", caracterizados pela presença de equipamentos de alta tecnologia, pela luz intensa e contínua, pela temperatura, pelos ruídos. Em meio aos aparatos tecnológicos, os profissionais de saúde precisam dedicar muita atenção aos aspectos técnicos da assistência (Silva, Valença & Germano, 2010; Rocha, Nascimento, Raimundo, Damasceno & Bondim, 2017).
As UTINs podem ser compreendidas como locais de assistência 24 horas, destinados a prestação de cuidados intensivos e a realização do acolhimento dos pacientes e familiares em um momento muito delicado. Nestes locais, os neonatos ficam expostos ao risco de adquirir patologias indesejáveis, que podem deixar sequelas. Além disso, a fragilidade dos pacientes, amplia o risco de mortalidade. Os profissionais de saúde trabalham presenciando constantemente a dor do outro, sofrendo as interferências emocionais ligadas à hospitalização, com cobranças constantes de qualificação e em meio a um ambiente caracterizado por um estresse constante de lidar com a linha tênue que separa uma vida frágil que se inicia e a morte (Silva, Santos & Aoyama, 2020; Noleto & Campos, 2020; Santos, Porto & Batista, 2020)
Diante deste contexto, as UTINs devem ter no seu quadro de pessoal uma equipe multidisciplinar capacitada para oferecer assistência aos pacientes e familiares. Por assim dizer, os profissionais de saúde precisam passar por treinamentos para conseguir planejar os cuidados e realizar os procedimentos técnicos. Além disso, precisam de habilidade e sensibilidade para atender pacientes e familiares. (Silva, Santos & Aoyama, 2020; Silva, Valença et al., 2010)
Durante a assistência para pacientes tão frágeis, os profissionais de saúde também se deparam com o sofrimento dos pais, os quais podem se sentir amedrontados e/ ou culpados por terem gerado um bebê frágil, ao mesmo tempo em que podem se sentir incapazes de oferecer os cuidados necessários à sobrevivência do filho (Braga & Morsch, 2003; Lamego, Deslandes & Moreira, 2005; Costa & Padilha, 2011).
Reconhecer o limite entre a dedicação na assistência ao paciente e o envolvimento, ao ponto de adoecer, pode se configurar como algo complexo e difícil. Faz parte da rotina dos profissionais de saúde lidar com o sofrimento dos pacientes e a dor da perda dos seus familiares. Diante da morte do recém-nascido, alguns dilemas podem surgir na atuação dos profissionais de saúde, como a dificuldade para dar a notícia para os pais do bebê e a não aceitação de que os procedimentos realizados não tiveram êxito. Para uma vida tão frágil, a possibilidade de qualquer erro gera a preocupação com a finitude de um ser. Trata-se de uma linha muito tênue entre a vida e a morte, que gera uma tensão rotineira nos trabalhadores da área de saúde (Silva, 2007).
Na sociedade contemporânea, a morte é considerada interditada. Nos hospitais busca-se a cura; nos cemitérios, os mortos chegam maquiados; evita-se falar no assunto nas rodas de conversa, ou quando se fala é como algo mais distante e não como possibilidade concreta da própria existência. A morte pode apresentar-se como algo indesejado por remeter à ideia de finitude do ser (Ariès, 2003; Heidegger, 2015).
Ao se deparar com a possibilidade da morte, o ser humano se angustia por se dar conta de que a finitude deixa todos os projetos inacabados, torna todas as escolhas questionáveis, modifica valores, reprograma a vida. Diante da iminência da própria morte, a vida pode ser revista. E diante da morte do outro? Heidegger (2015) afirma que não temos acesso à experiência vivida por quem morre, no máximo estamos apenas junto. Nós só poderemos saber o que é morrer, quando morremos. Entretanto, a morte do outro nos faz lembrar da possibilidade da nossa própria morte. Algo que nos alerta em meio a um turbilhão de atividades da vida cotidiana.
Para os profissionais de saúde que, no cotidiano de trabalho, lidam com a morte de pacientes, como é viver com a lembrança diária da possibilidade de morte? Escolher trabalhar com a assistência em hospitais implica em assumir também este desafio, além de todas as outras atribuições inerentes ao cargo que ocupa.
Expressões como "lutar contra a doença" e "perder a batalha" retratam uma concepção moderna de morte que refletem na formação dos profissionais de saúde, voltada pra a cura das doenças. A partir desta concepção, a morte aparece como um evento indesejado, como um fracasso, uma falha em uma atuação profissional que busca realizar todos os esforços necessários para a manutenção da vida. A compreensão da morte como um "inimigo a ser conquistado" pode comprometer a aceitação e a preparação para a morte de profissionais de saúde e familiares (Gellie, Mills, Levinson, Stephenson & Flynn, 2015; Da Silva, Machado, De Araujo, Lima, Freitas da Silva, De Souza, Monteiro & Rocha, 2016).
Alguns estudos apontam que, ao vivenciarem a morte de pacientes, médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem apresentam sentimentos de auto reprovação, baixa autoestima e culpa. A morte de bebês é vista como uma falha da equipe no processo de cura. No espaço em que os profissionais de saúde trabalham, muito tempo e esforço é direcionado para técnicas que possam prolongar a vida. Quando estas não funcionam são gerados sentimentos de impotência, fracasso, raiva, frustração, tristeza e desconforto (Silva at al., 2010; Rubarth, 2003; Saines, 1997; Shorter & Stayt, 2009; Seno, 2010; Mello & Silva, 2012).
Um estudo, publicado em 2019, destacou alguns sentimentos dos profissionais diante da morte de recém-nascidos, tais como: a frustração, a decepção, a preocupação com os pais e a naturalidade, este último no sentido de ver a morte como um evento natural da vida, mas que poderia indicar uma forma de defesa do profissional diante do sofrimento. A morte dos bebês dentro da UTIN, de acordo com o estudo, era visto como um grande insucesso pela maioria dos profissionais de saúde entrevistados (Lima & Silva, 2019).
Outros estudos recentes também destacam os sentimentos de impotência, angústia, tristeza, culpa, compaixão, ansiedade, negação, envolvimento emocional, empatia e indiferença. A morte também pode ser vista como sendo a solução da dor e do sofrimento, refletindo uma maneira encontrada pelos profissionais para se proteger do sofrimento psíquico (Roseiro & Paula, 2015; Ribeiro, Silva & Medeiros, 2020; Menin & Pettenon, 2015).
Para os profissionais de saúde, a morte pode significar a perda do controle; a dor de se deparar com a possibilidade de não salvar a vida, de falhar, de não conseguir. Em uma sociedade caracterizada pelo avanço da medicina e pela busca incessante da cura, a morte é indesejada. E, quando ocorre, traz consigo a lembrança dos limites do homem e da possibilidade de falhas (Bernieri & Hirdes, 2007).
Diante do exposto, o presente estudo teve como objetivo compreender como os profissionais de saúde atuantes em UTINs vivenciam a morte de recém-nascidos.
METODOLOGIA
Com o intuito de atingir o objetivo proposto, o caminho metodológico escolhido foi a fenomenologia heideggeriana. A fenomenologia nos convida a ver além das aparências, a retornar às coisas mesmas; nos oferece a possibilidade de compreender o fenômeno, a experiência do outro, como algo que se desvela em um contexto específico. Como aquilo que se apresenta a partir da compreensão e das afetações dos que estão ali vivenciando o fenômeno (Dutra, 2016; Dutra, 2002).
A entrevista narrativa foi utilizada por permitir o acesso ao fenômeno, à história contada pelo narrador da forma como ele a compreende. A narrativa se apresenta como uma expressão da compreensão. Por meio da narrativa, o participante relata o que considera relevante para a sua trajetória vivencial, contada por meio de fatos, acontecimentos e afetos (Dutra, 2002). A análise e interpretação do fenômeno foi realizada em congruência com a circularidade hermenêutica (Heidegger, 2015). Por meio da qual, busca-se a compreensão do fenômeno considerando o horizonte histórico em que o mesmo está imerso.
Parte-se do pressuposto de que a compreensão não se dá de forma isolada do contexto e do momento histórico em que o fenômeno ocorre. Esta compreensão ocorre de forma circular partindo de uma posição prévia (ou seja, de conhecimentos e ideias préconcebidas sobre o fenômeno) para uma visão prévia (momento de encontro com o fenômeno, este encontro possibilita uma interpretação sobre o mesmo) e, então, para uma concepção prévia (momento em que reflexões sobre a posição prévia e a visão prévia resultam em uma nova compreensão sobre o fenômeno). O termo "prévia" remete à ideia de algo que não é estanque, mas algo que pode ser modificado, em um contínuo processo. (Azevedo, 2013; Maux, 2014)
As etapas da análise foram definidas utilizando como fontes de inspiração as propostas de Dutra (2002), Azevedo (2013) e Maux (2014): transcrição da entrevista e posterior releitura do pesquisador; identificação de temas que emergem das narrativas; e interpretação do fenômeno com base na concepção prévia (momento em que os conhecimentos anteriores são refletidos junto às entrevistas transcritas). Nesta etapa, o todo da pesquisa é apresentado diante da reflexão do pesquisador para a estruturação da compreensão do fenômeno.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CAAE: 68533517.0.0000.5537). Todos os cuidados éticos quanto ao sigilo foram tomados, inclusive a adoção de nomes fictícios para os participantes. Os participantes do estudo realizaram a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A definição dos participantes ocorreu de forma intencional, considerando a disponibilidade dos profissionais em participar. Foram realizadas nove entrevistas com profissionais de saúde representantes das distintas categorias profissionais que compõe uma UTI Neonatal (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistentes sociais, fisioterapeutas e psicólogos). As entrevistas foram realizadas durante o mês de julho de 2017 na UTIN de uma maternidade pública que é referência em gestação de alto risco no estado do Rio Grande do Norte. Neste ambiente, os profissionais vivenciam a morte de recém-nascidos cotidianamente. Ao narrarem as suas experiências, os sentimentos diante das perdas foram contemplados.
Como critério de exclusão foi definida a ausência de formação (de graduação ou técnica para o exercício da função) e/ou de vínculo profissional efetivo. Não foram considerados como critérios de exclusão a idade, sexo, o tempo de formação profissional e o tempo de atuação na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise das entrevistas resultou na identificação de três categorias referentes aos sentimentos dos profissionais diante da morte: impotência, tristeza e culpa. Cada um destes sentimentos e suas formas de expressão serão contemplados a seguir:
IMPOTÊNCIA
No cotidiano de trabalho, os profissionais de saúde se deparam com situações que podem mobilizá-los emocionalmente. Ao lidar com as incertezas e com a limitação do conhecimento científico, os profissionais podem se sentir impotentes, inclusive diante das expectativas dos familiares dos pacientes. A impotência pode ser percebida como um sentimento que incomoda, gerando a sensação de que nada mais pode ser feito. Simplesmente, o profissional se depara com algo que o paralisa, indicando que, por mais que ele se esforce, por mais que esteja preparado tecnicamente, existe um limite para a sua atuação, como pode ser percebido no relato a seguir:
...Quando a gente pensa em maternidade, a gente pensa na vida, quando a gente pensa em UTI, a gente pensa em salvar vidas. E a gente salva? Salva. Mas quando eu falo em impotência... O sentimento que a gente tem, de forma geral, é que chega um momento que a gente não tem o que fazer... Aí, a gente precisa lidar com essa morte...Isso dá uma sensação de impotência muito grande... (Íris)
Este trecho compõe parte de um relato da profissional de saúde diante da morte de pacientes. O momento de não ter mais o que fazer gera uma sensação de impotência. Este sentimento não reflete apenas a limitação técnica, de não ter o que fazer para salvar aquela vida, mas também, a dificuldade de lidar com a morte.
Kluber-Ross (1996) realizou pesquisas pioneiras com pacientes próximos a morte, levando a reflexões importantes sobre as atitudes dos profissionais de saúde diante da morte de pacientes, relatando que muito pode ser feito nos momentos em que, pelo prisma da racionalidade médica, se supõe que "não há mais nada a fazer". A referida autora, ao abordar esta temática, reconhece que o conhecimento teórico é importante, mas não é suficiente, propondo que deveria se trabalhar com o coração e a alma. Também traz reflexões em relação aos membros da família do paciente terminal, afirmando que os mesmos merecem cuidados e orientação, para evitar que adoeçam.
Diante do exposto, poderíamos nos questionar: De onde vêm os sentimentos de impotência e frustração diante da morte? Por que os profissionais de saúde se sentem frustrados e impotentes? É interessante, a partir desses questionamentos, refletirmos sobre o nosso horizonte histórico. Novamente, as ideias de Heidegger (2015) nos inspiram para abordar a questão da era da técnica, do quanto é difícil não ter o controle sobre as coisas, sobre os acontecimentos do mundo.
De acordo com Heidegger (2007, p. 376): "O querer-dominar se torna tão mais iminente quanto mais a técnica ameaça escapar do domínio dos homens". Quanto mais difícil for o desafio e maior a probabilidade de perder o controle, o homem tende a buscar novas soluções e alternativas, como se lutasse contra algo que incomoda pelo simples fato de resistir ao aparente controle. Este querer-dominar pode estar presente na difícil decisão da hora de tentar parar de salvar um paciente, que já dá sinais de despedida.
A decisão sobre a hora de parar, no sentido de interromper um procedimento na tentativa de evitar a morte do paciente é muito difícil para alguns profissionais. Como pode ser observado no seguinte relato:
...Uma das coisas mais difíceis é você optar pelo fim de uma reanimação... As diretrizes mandam que com 10 minutos, 15 minutos de reanimação, em assistolia, o coração não tá mais batendo, você para de reanimar. Nós já reanimamos menino aqui por mais de hora. Que você não quer acreditar que ele morreu... Às vezes quando você diz assim "não vou mais", você sente que alguns olhares lhe bombardeiam dizendo assim: "Por que? Tente mais um pouquinho". Esse momento realmente é o conflito dentro da UTI... A hora de parar... (Angélica).
Definir qual a hora de parar aparece como uma grande dificuldade, é como reconhecer que existe um limite e, junto com ele, o sentimento de impotência. Existe uma cobrança pela cura, tanto por parte dos próprios profissionais, como também, pelos familiares. A sensação de esgotar todas as possibilidades surge como uma forma de dizer que tudo que era possível foi feito. O difícil é reconhecer quando não é mais possível.
Outra profissional também falou a respeito da hora de parar, ao retratar uma situação na qual uma residente estava desesperada e pediu para retirar a família da UTI Neonatal. Ao falar com a médica, a residente pedia para tentar novamente e a médica respondeu: "Mas você sabe que a gente já tentou e não deu certo, e isso só faz gerar um sofrimento nesse bebê a mais, porque não tem muito o que fazer".
Até que ponto esta tentativa de evitar a morte era o melhor para o paciente? Não seria o reflexo dessa dificuldade do profissional em lidar com a morte, com as perdas? Os relatos abordam a dificuldade de tomar uma decisão que envolve a vida do paciente e nos remete a um sentimento de culpa diante destas situações. O próximo tópico trata a respeito deste sentimento.
Culpa
Diante da morte de pacientes, podem surgir questionamentos quanto aos procedimentos adotados, às técnicas utilizadas, ao preparo da equipe. Para um profissional que lidera um grupo, a morte pode ser encarada como uma falha que remete a sensação de culpa e a uma reflexão sobre o que poderia ter sido feito de forma diferente. A culpa pode surgir como algo que penaliza, que gera frustração e pode promover o adoecimento do profissional de saúde:
... Culpa. Eu fiz... o que foi que eu errei? Aonde foi que eu errei? E aí tem que parar... Repensar e não baixar a cabeça, se frustrar. Tem muita gente que endoida, porque a profissão é cruel... Tem muito colega nosso que ou começa a usar remédio, ou faz quadros de depressão, porque é difícil você lidar justamente com esse turbilhão de emoções que se passa dentro do dia a dia... (Angélica)
Este relato se apresentou em meio a um choro contido, a um sofrimento que transparecia na inclinação da cabeça, no olhar para baixo, na expressão de dor. É como se uma responsabilidade muito grande estivesse em seus ombros, algo que ia além do que ela deveria suportar. Talvez, por isso, o relato se estendeu como um desabafo, envolvendo as dificuldades do cotidiano de trabalho, os riscos de adoecimento.
A culpa se manifesta como algo que incomoda profundamente as participantes. Mas, o que seria essa culpa? Uma culpa atrelada a uma responsabilidade de cuidar dos pacientes, de gerenciar uma equipe, de buscar salvar vidas e evitar erros e falhas? Uma culpa inerente a uma condição humana, ao ser-no-mundo?
A culpa e a angústia são características ontológicas do ser-no-mundo, também designado como ser-aí, ser-no-mundo e Dasein. O ser humano e o mundo são indissociáveis, por isso o Dasein pode ser compreendido enquanto um ser-no-mundo. Ao mesmo tempo, este ser apresenta uma abertura para possibilidades é um ser-aí. Por este conceito o aí não se refere a um lugar, mas sim à abertura, caracterizando um ser que se constitui sendo, que precisa reafirmar-se cotidianamente durante a sua existência (Boss, 1981; Ferreira, 2002).
Reafirmar-se cotidianamente pode ser percebido como um fardo bem pesado, talvez, por isso, o ser humano caia na decadência. É importante ressaltar que cair na decadência não significa sair de um estágio superior para um inferior, a decadência é uma determinação existencial, indicando que o homem encontra-se entregue à impessoalidade do cotidiano. Trata-se de uma condição da existência humana, pois, mesmo decadente, o homem está, de alguma forma, sendo. (Heidegger, 2015)
A culpa é o fundamento ontológico do homem decadente, faz parte do ser, portanto, pode-se compreender que "a culpa é a determinação ontológica do existencial da facticidade, nesse sentido ela é um modo de ser do ser-aí fático e diz respeito ao fato de o homem estar-lançado no mundo e misturado com ele" (Ferreira, 2002, p.1). Podemos compreender a partir da afirmação anterior que todos nós sentiremos culpa.
Uma vez que a facticidade é a forma mais ordinária do ser-aí, no sentido de a forma mais comum, a culpa nos acompanhará ao longo da existência. Será algo inerente ao nosso ser que está destinado a ser, sendo; e, no cotidiano da vida, estar continuamente se reafirmando. Então, quando vivo em um mundo, na impessoalidade, em meio ao falatório, à ambiguidade e a curiosidade, estou suscetível à culpa de não ser o que queria ser, de não cumprir com os padrões estabelecidos pelo mundo, de falhar com o que foi prescrito ou previsto anteriormente. A culpa é, por assim dizer, inerente à condição de dasein. "Por que o dasein é culpado? O próprio dasein faz uma escolha, ele não pode transferir a responsabilidade para o eles ou para alguma pessoa. Toda escolha vai ter consequências que o dasein não previu, nem pretendeu..." (Inwood, 2004, p. 99)
O próximo sentimento abordado pode vir junto com a culpa, ou simplesmente manifestar-se como uma forma de reconhecer o sofrimento do outro (dos familiares do recém-nascido) e ser solidário ao mesmo.
TRISTEZA
A tristeza apareceu como um sentimento que envolvia os profissionais diante do sofrimento dos familiares. O silêncio tomava conta do ambiente, alguns profissionais se compadeciam ao visualizarem os momentos de despedida das mães com os bebês, como pode ser percebido no seguinte relato:
Era um bebê todo malformado, tinha os ossos... os membros bem curtos... Mas ela dizia: "eu quero esse, porque esse foi o que foi escolhido pra mim, mas eu queria cuidar dele, eu só queria cuidar dele....". Aí... ele morreu no colo dela. E ela dizia "mas eu sonhei tanto em cuidar de você! Deixe eu cuidar de você! ... Umas frases bem chocantes! Pra quem é mãe, você não se aguenta não. Você morre junto do menino... (Angélica)
Neste relato, a profissional expressa sua tristeza diante do sofrimento daquela mãe. Com aquela morte, um silêncio profundo se instaurou dentro da UTI Neonatal. A morte do recém-nascido mobilizou a profissional a refletir sobre a sua própria vida: "tenho minhas filhas em casa, saudáveis. Não posso reclamar de nada, só posso ser feliz..." Assim algumas escolhas mudam como ficar mais tempo com os filhos, mesmo chegando cansado do trabalho.
Heidegger (2015) afirma que a morte do outro pode nos levar a refletir sobre a própria morte. No caso, a morte de bebês particularmente, pode levar a algumas profissionais que são mães a se depararem com a possibilidade do falecimento dos próprios filhos. Ao se colocar no lugar do outro, o profissional repensa sobre a própria vida e as escolhas que realiza. Isto pode ser observado mais claramente com o trecho que aborda um momento no qual a profissional torna-se mãe de um bebê internado na UTI Neonatal e, a partir desta experiência, muda a sua forma de atender as mães dos pacientes:
Outro grande marco da minha vida... foi quando eu tive a minha primeira menina, ela foi um bebê de UTI... É uma UTI que eu trabalho... O fato de eu entrar pela porta... não como médica, mas como mãe de paciente, mexeu muito comigo, então meio que foi um divisor de águas na minha carreira... Eu passei a ver o paciente de uma outra maneira, menos técnico... Porque é diferente. Você sente... você sabe exatamente o que aquela mãe tá sentindo... Você meio que bloqueia a sua razão e você vira só emoção mesmo lá dentro... (Angélica)
Este trecho do relato apresenta a transformação desta profissional ao se ver em uma situação similar ao de algumas mães com filhos internados. Assim, colocar-se no lugar do outro proporcionou uma nova forma de atendimento a partir do que a profissional passou a considerar como necessidades da mãe de um recém-nascido internado. Novamente, podemos refletir sobre o quanto de nós está na relação com o outro.
Esta situação também pode remeter ao mito de Quíron. Na mitologia grega, Quíron era um centauro, um ser metade homem e metade cavalo que nasceu da união entre Cronos e a bela Filira. Quíron recebeu do pai grandes virtudes tornando-se muito sábio. Pela sua educação e sabedoria foi considerado o rei dos centauros. Em certa ocasião, foi ferido pelas flechas de Hércules. Por ser imortal e ter uma ferida incurável, sofria grandes dores. Assim, tornou-se o grande mestre dos médicos. Ao ser tocado pela sua dor, era capaz de se sensibilizar com a dor dos outros. É o que pode acontecer também com alguns profissionais de saúde que entram em contato com suas próprias dores e perdas, tornandose sensíveis ao sofrimento das pessoas sob seus cuidados. (Carvalho, 1996).
Diante de tanta tristeza e sofrimento, alguns profissionais, entretanto, desenvolvem estratégias para lidar com as situações de morte e perdas, como por exemplo, estabelecer um certo distanciamento dos pacientes considerados mais graves, o que alguns autores denominaram de "cortina de proteção" (Gerow, Conejo, Alonzo, Davis, Rodgers & Domian, 2009).
A gente cria mecanismos de defesa... Porque quem cria um vínculo afetivo perde a capacidade de cuidar. Então você não vai cortar, você não vai furar, você não vai fazer uma coisa que doa numa pessoa que você goste... Alguém precisa fazer essa parte...A gente não fica insensível, mas cria formas de se proteger... (Girassol)
A referência da profissional à capacidade de cuidar remete à ideia de uma dificuldade para realizar os procedimentos em virtude de um abalo emocional diante do sofrimento do outro. A profissional apresenta a necessidade de criar maneiras de se proteger do sofrimento para que possa realizar os procedimentos necessários, como também para que ela consiga suportar o trabalho na UTI Neonatal. O relato a seguir demonstra mais explicitamente esta necessidade de criar mecanismos de proteção para continuar trabalhando:
...Acho que não era nem um mês que eu tava aqui, entraram na parada, médico, enfermeiro, fisio... E eu fiquei olhando de fora e assim a pressão caiu, eu fiquei sudorenta na hora e o bebê morreu. Quando a mãe chegou ai eles botam no colo o bebê, morto no colo... Você não tem noção de como eu passei mal... Eu desci, fiquei na calçada, chorando... Ai depois até a médica, a chefe da UTI disse: "Af Maria, você era pra tá num shopping vendendo roupa, não era pra tá aqui não" eu disse "me respeite"... Depois eu cheguei em casa mal, chorei, abracei muito minha filha... Foi bem difícil...E ai as coisas foram acontecendo, eu fui entrando mais no clima... Daquela parte emocional, você tenta dar um freio, colocar um limite entre você mesma e aquilo que tá acontecendo, pra que você não sofra tanto... É preciso entrar no clima... (Tulipa)
O próprio contexto exige do profissional a postura considerada adequada. Até os colegas de trabalho podem ser severos diante da expressão dos sentimentos dos demais. Valoriza-se o controle emocional, a assertividade na resolução das situações, a utilização da técnica. Assim, este limite ou freio, apresentado no trecho acima, passa a ser uma exigência do próprio profissional, como algo inerente ao trabalho, como uma condição para sobreviver naquele ambiente. A profissional ainda utilizou a expressão: É preciso "entrar no clima". O clima falado reflete à atmosfera do ambiente, ao como as coisas funcionam, aos comportamentos considerados adequados, ao ambiente mais frio e racional.
Os relatos demonstram, portanto, a possibilidade de ocorrer um afastamento dos profissionais diante da iminência da morte, configurando-se como uma preparação para o que pode ocorrer, como uma forma de proteção, de minimizar o sofrimento.
Em "A questão da técnica", Heidegger (2007) nos leva a uma importante reflexão sobre existir no mundo da modernidade. A técnica que colocada em ênfase aqui não se restringe ao uso de instrumentos, ou até mesmo ao domínio do conhecimento para utilizá-los. Mas, sim, ao modo de ser do homem na modernidade, ao espírito presente em uma época.
Considerando o contexto no qual estamos inseridos, torna-se importante que a instituições educacionais abordem as temáticas da morte e do processo de morrer durante os cursos, articulando estes conhecimentos com a vivência dos estudantes, em estágios, por exemplo. Também é relevante que as instituições hospitalares ofereçam espaço para orientação e acolhimento dos profissionais de saúde, seja enquanto momentos de capacitação e troca de experiências em grupo, como também de escuta psicológica individual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os paradoxos e dilemas estão presentes na atuação dos profissionais de saúde do mundo contemporâneo. São problemas contextualizados, relativos a uma realidade voltada para a busca da cura e para a interdição da morte. A morte dos pacientes mobiliza sentimentos, como a tristeza, a culpa e a impotência, presentes nos relatos dos participantes deste estudo. Estas experiências de perda de pacientes, possibilita a mudança na atuação profissional, podendo resultar em novas formas de oferecer assistência aos familiares, como também, gerando estratégias de proteção para os profissionais que assistem à dor e ao sofrimento no cotidiano de trabalho.
Os relatos nos levam a refletir sobre a necessidade de os profissionais terem um espaço, no ambiente de trabalho, para expressarem as suas emoções, o que pode contribuir para uma melhor qualidade de vida no trabalho, e consequentemente para a melhoria na assistência aos pacientes e seus familiares. Assim como, sobre a importância de se discutir mais sobre a temática da morte durante a formação profissional, tanto para cursos técnicos, como em cursos de graduação e pós-graduação para diversas profissões na área de saúde.
Diante do exposto, seria interessante ampliar os estudos com profissionais de saúde sobre a temática da morte de pacientes e, particularmente, com os residentes, que não foram contemplados no presente estudo, mas que poderiam trazer reflexões importantes sobre a formação de profissionais na área de saúde.
Referências
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Notas sobre as autoras:
Lucila Moura Ramos Vasconcelos - Psicóloga, doutora em Psicologia (UFRN), Professora adjunta do Departamento de Administração na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Natal/RN, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8890-6488. E-mail: lucilamoura@yahoo.com.br
Elza Maria do Socorro Dutra - Professora Titular de Psicologia Clínica Fenomenológica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Pós-doutora pela UFF-RJ. Docentepesquisadora do PPgPsi, orientadora de Mestrado e Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Departamento de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Natal/RN, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-0225-9836 E-mail: elzadutra.rn@gmail.com
Recebido em: 05/04/2020
Aprovado em: 29/04/2020