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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.3 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2011
ARTIGOS
Sobre o cinismo em um tempo de identificações irônicas
Paulo José Carvalho da SilvaI; Paulo Antonio de Campos BeerII
IDoutor em Psicologia (USP), membro do Laboratório de Psicopatologia Fundamental, Professor da PUC-SP
IIAluno de Psicologia (PUC-SP) e Filosofia (USP), ganhador do XVII Prêmio Aniela Ginsberg para pesquisa em Psicologia
RESUMO
O capitalismo de consumo traz importantes mudanças no modo de socialização e de ordenação do desejo. A busca incessante pela satisfação do desejo é a "ordem do dia", mesmo que este nunca seja satisfeito. Nesse contexto, uma racionalidade cínica parece permear cada vez mais as relações humanas. O objetivo deste artigo é discutir, a partir da Psicanálise lacaniana, o cinismo enquanto modo de socialização, e suas consequências. Trata-se, assim, tanto de uma definição precisa do termo quanto de sua relação com a ideologia, as características privilegiadas no âmbito da identificação e a aparente falência da crítica - decorrente do caráter irônico próprio desse modo de ordenação do gozo.
Palavras-chave: cinismo; ideologia; identificação; crítica; gozo.
ABSTRACT
The consumer capitalism brings important changes in the manner of socialization and jouissance ordination. The endless search for satisfaction is the "word of the day", even if it is impossible. In this context, a cynical reason seems to be more and more present in all human relations. This article intends to discuss the cynicism as a socialization mode and its consequences, based on lacanian psychoanalysis. It proposes a precise definition of cynicism, its relation with ideology, the main features in identification scope, and the apparent critique failure - as a result of its own ironic manner of jouissance ordination.
Keywords: cynicism; ideology; identification; critique; jouissance.
A atual organização do capitalismo em torno do consumo parece trazer consequências importantes relacionadas tanto à maneira como se lida com o desejo e sua possibilidade de satisfação, como em relação à possibilidade de mudança desse tipo de organização. Em seu livro Cinismo e falência da crítica (2008), o filósofo Valdimir Safatle aproxima as duas problemáticas, indicando que a atual impossibilidade de mudança da organização social está ligada a uma racionalidade cínica, que por sua vez também relaciona-se com os modos socialmente partilhados de regulação do gozo. Este artigo tem o objetivo de discutir essa posição cínica, fazendo, assim, uma retomada do movimento cínico na Antiguidade e sua recepção na Modernidade, para então, a partir da Psicanálise lacaniana, aprofundar a relação do modo como se lida com o desejo e suas consequências na possibilidade de crítica da sociedade contemporânea.
Sobre o cinismo
A partir do livro Os Cínicos: o movimento na antiguidade e o seu legado (BRANHAM & GOULET-CAZÉ, 2007), pode-se ver que o movimento cínico antigo, que tem como principal personagem Diógenes de Sinope (séc. IV a.C.), consistia numa constante crítica das normas sociais, tendo como fundo a defesa de uma vida mais próxima à natureza, uma vez que se acreditava que a proximidade da natureza era o modo de se aproximar da felicidade. Diógenes era filho de um banqueiro, e foi condenado ao exilo e vendido como escravo por ter falsificado moedas. Desprezava todas as convenções que afastavam o homem de sua natureza, e vivia de acordo com esse desprezo. Sua ilustração mais conhecida é de um homem vivendo num barril, que ao ver um menino tomando água na concha das mãos, quebra sua caneca repreendendo-se por ter carregado, por tanto tempo, um peso desnecessário. Vemos, dessa maneira, que mais que um conjunto de ideias, o cinismo colocava-se como uma forma de vida: "...Quem quer que o pratique vive uma vida próxima da natureza. Os cínicos romperam com o modelo intelectualista de filosofia e privilegiaram a experiência do sábio." (BRANHAM & GOULET-CAZÉ, 2007, p. 36)
Esse rompimento com o modelo intelectualista liga-se ao fato de cínicos fazerem suas críticas com base, muitas vezes, no humor e no paradoxo, além de práticas como o desrespeito a convenções religiosas e mesmo despudor público. Nesse sentido, a liberdade de fala (parrhesia) surge como o ápice da crítica, e era extremamente valorizada. Contudo, deve-se frisar que a crítica cínica dirigia-se não à moral em si, mas a maneiras. Como coloca Long: "...Conta-se explicitamente que ele repreendeu várias pessoas por se comportarem de forma não ética no primeiro sentido com as palavras: 'Você não tem vergonha...?' (D.L.6,65)." (LONG, 2007. p. 46).
Desse modo, pode-se reconhecer uma vertente extremamente estética no movimento. Como vemos, mesmo que muitas vezes seja difícil reconhecer o conjunto de ideias presente no movimento - algo que se percebe na frequente confusão entre o cinismo e seus instrumentos (ironia, sátira) -, a imagem do homem cínico, a imagem de Diógenes no barril, é algo muito claro e direto. Como escreve Niehus-Pröbsting:
O cínico não rompeu a lei - como a história sobre ele ter desfigurado a moeda sugeria - nem solapou as convenções por meio de críticas teóricas. Em vez disso, ele ridicularizou aqueles que representavam o sistema de valores aceito e agiam como modelos de conduta, pessoas de alta posição que eram altamente consideradas pela sociedade. Ao destruir a base de todo o respeito, tornou-se ele próprio desprezível e, assim, o ridículo e a desprezibilidade eram parte de sua função; tornam-se a marca de sua independência da opinião aceita e da estima pública. (NIEHUS-PRÖBSTING, 2007. p.381)
Dessa maneira, fica claro porque tanto o despudor público como a liberdade de fala são características marcantes na descrição de Diógenes. Assim surge também o termo "cínico", que significa "ao modo de um cão". Porém, deve-se relembrar que, embora Diógenes desprezasse maneiras estabelecidas, isso não significa uma negação de princípios éticos, nem da vida em sociedade. Uma vez descritas as principais características do cinismo clássico, esse que em alemão ganhou o nome, no século XIX, de Kynismus, pode-se agora entrar no tema da recepção do cinismo na Modernidade.
A relação do cinismo com o Iluminismo marca-se por uma alternância de identificação com diferentes características cínicas, resultando numa ambivalência do uso do termo cínico, às vezes tido como algo bom, outras, ruim. Niehus-Pröbsting (2007) destaca quatro pontos de referência na relação entre cinismo e Iluminismo.
Primeiramente, o fato de Diógenes ser considerado um ser extraordinário já traz em si uma concepção iluminista de valorização do homem. Aliado a isso, em segundo lugar, o personagem enquanto um representante da razão é algo que atrai a simpatia dos filósofos iluministas. Vemos, dessa maneira, que essas duas referências à figura de Diógenes carregam consigo uma série de outras características positivas encontradas no cinismo pelos iluministas: "...Ideais que o Iluminismo associava ao cinismo são, por exemplo, a liberdade de preconceitos e a crítica aberta a autoridades seculares e religiosas; a autonomia do indivíduo e a separação da moralidade de restrições religiosas; a filantropia [Menschenliebe] universal e o cosmopolitismo." (NIEHUS-PRÖBSTING, 2007. p.362).
Por outro lado, junto com a identificação de Diógenes com a razão, aparece também a identificação com seu oposto: a loucura. A alusão a "Sócrates enlouquecido" não é novidade, contudo se reforça, no Iluminismo, o tom ofensivo do termo. Vê-se, desse modo, a profunda influência que o cinismo tem sobre os filósofos iluministas, sobretudo em seu modo de crítica polêmico. Contudo, essa influência faz-se presente mesmo no Contrailuminismo, o que pode ser bem entendido se consideramos o quarto ponto indicado pelo autor, de que essa loucura é justamente uma implicação da razão, uma consequência (por ser seu oposto).
Como apresenta Niehus-Pröbsting , o autor que expressa de maneira mais clara a idealização iluminista da figura do cínico é o alemão Christoph Martin Wieland (1733-1813). Em seu livro Sócrates mainomenos; ou, os diálogos de Diógenes de Sinope, o personagem principal (Diógenes) representa idealmente a personalidade livre e independente que critica tanto a religião como o poder secular. Na crítica às desigualdades sociais, Wieland assume sua postura mais radical, ao considerar que, uma vez que a constituição estava extremamente afastada da lei natural, não era possível que setores da sociedade se unissem para mudá-la. Desse modo, o autor mostra não somente sua afinidade com a contradição cínica entre lei e natureza (nomos e physis), mas também profetiza a Revolução Francesa - que tem, para si, Diógenes como um herói cívico. Contudo, deve-se ressaltar que, embora a personalidade independente seja uma característica com a qual o Iluminismo se identifica profundamente, os aspectos mais grosseiros e "sujos" são deixados de lado.
Entre outros autores que foram relacionados ao cinismo, destacam-se Wieland, Rousseau, Voltaire, d'Alembert e Diderot. Segundo Niehus-Pröbsting, Rousseau é, de início, dito cínico por "...sua crítica cultural e na idealização da natureza intocada no primeiro e no segundo dos Discours." (NIEHUS-PRÖBSTING, 2007. p.368). Por outro lado, se algumas vezes a aproximação de Rousseau era feita de maneira positiva, em outros momentos ela era sarcástica e desprezível, como o próprio Wieland, além de Voltaire e d'Alembert, viria fazer: "Havia uma tendência constante a representar Rousseau não tanto como o próprio Diógenes, mas antes como um Diógenes presunçoso, falso e depravado: ele é um Diógenes sem uma lanterna - ou seja, sem as insígnias do Iluminismo." (NIEHUS-PRÖBSTING, 2007. p.375).
Contudo, apesar da constante refutação ao cínico antigo, tanto Voltaire quanto d'Alembert também se apresentam, em determinados momentos, como Diógenes. Porém, se d'Alembert coloca explicitamente sua admiração pelo cínico, o mesmo não pode ser dito de Voltaire, pois sua crítica não se dirigia à cultura: "...Ainda assim, algo o ligava também ao cinismo: era o sarcasmo mordaz de que ele era capaz e que direcionava particularmente contra a religião em sua forma não iluminada." (NIEHUS-PRÖBSTING, 2007, p.376). Esse posicionamento de Voltaire era criticado como cínico pelo Contrailuminismo religioso: seu cinismo era apresentado com algo pervertido e maldoso. Contudo, não se pode restringir essa representação do Iluminismo enquanto cínico ao Contrailuminismo, como explica Niehus-Pröbsting:
O fato de que o representante do Iluminismo tenha se tornado o cínico não se deve apenas à visão maldosa do Contra-Iluminismo, mas era o medo do próprio filósofo iluminista reflexivo. Esse ponto me conduz a Diderot e ao terceiro aspecto da recepção do cinismo pelo Iluminismo, qual seja, a auto-ameaça cínica ao Iluminismo e a degeneração do Iluminismo em cinismo no sentido moderno. (NIEHUS-PRÖBSTING, 2007. p.377)
Niehus-Pröbsting defende que Diderot se diferencia dos outros autores por ter, não somente praticado o cinismo no sentido moderno, mas também refletido sobre ele. Em O Sobrinho de Rameau, uma das obras mais importantes do cinismo moderno, se encontra um desenvolvimento da problemática da desprezibilidade, a partir do humor e da sátira, que faz com que o cinismo comece a tomar a forma que assume completamente após Nietzsche. Se para o cinismo antigo o desprezo dava-se a partir da independência, isso não necessariamente precisa ser uma regra: "É apenas coerente com a sua própria filosofia que o cínico tenha de desvalorizar e desprezar a independência cínica quando ela própria se torna um valor aceito e respeitado." (NIEHUS-PRÖBSTING, 2007. p. 381).
Em O Sobrinho de Rameau, encontra-se um cinismo que apresenta a capacidade de deslegitimização de qualquer tipo de argumento, quando pode ser aplicado a si mesmo. Um dos personagens principais do livro (o sobrinho) defende um ethos de desprezibilidade, um modo de vida que adota uma perspectiva amoral. Mas essa amoralidade tem, no fundo, um pilar fundante, que é justamente o fato de tudo poder ser desprezado. Assim, vemos que essa desprezibilidade aparece justamente como um resultado da razão levada às últimas consequências. O ideal iluminista, que traz a imagem da iluminação completa, livre de todos os preconceitos, parece distante do otimismo moral que o motivava, e próximo de um cinismo desiludido.
Portanto, coloca-se a questão sobre se o cinismo seria o final do Iluminismo. Aparentemente sem resposta, essa questão será retomada por Nietzsche, que concretiza, em sua relação própria com o cinismo, a recepção que leva ao conceito moderno de cinismo (em alemão, Zynismus).
Niehus-Pröbsting inicia sua análise dizendo que Nietzsche tratou o cinismo de diversas maneiras. Entre elas, destaca-se o pessimismo. Nietzsche parece fazer um resgate do cinismo focando-se nessa questão, ao defender que o pessimismo cínico não leva à negação da vida, mas ao seu contrário: "...Evitar o sofrimento da vida, mas afirmar a própria vida: esse é o sentido do cinismo como Nietzsche o interpretou quando leu detalhadamente uma anedota no capítulo "Medo de morrer" em suas aulas de literatura grega."( NIEHUS-PRÖBSTING, 2007, p. 387). Nesse sentido, o autor começa a ver o cinismo como um curto caminho para a felicidade, algo que reaproxima o homem de sua natureza: animal e inocente.
Mais adiante em sua obra, porém, o cinismo assume um caráter de negação radical da moral, de modo que o cinismo será usado numa crítica a qualquer tipo de "mentira". Ele aparece como uma posição para "Além do Bem e do Mal", uma posição na qual o homem consegue superar sua natureza animal e não é atravessado por nenhum tipo de moralidade:
cinismo - e este é o sentido especificamente moderno da palavra - surge quando o homem deixa para trás a natureza animal, ou, em palavras de Nietzsche, quando ele vai além do mundo de emoções dos animais, e não alcança a moralidade, mas pressupõe uma consciência livre de morais. O cinismo é a rejeição consciente e demonstrativa de uma atitude moral exigida. A atitude moral é afastada e substituída, por exemplo, por uma atitude cômica: nesse ponto, aparece o humor cínico. O protocínico é o bufão sem pudor. No entanto, o cinismo no sentido moderno também surge quando a moral é substituída por mera sagacidade ou por uma atitude científica... (NIEHUS-PRÖBSTING, 2007. p.390).
Vemos, desse modo, como o conceito moderno do cinismo é profundamente influenciado pela obra de Nietzsche. Essa forma de crítica, originalmente (em Nietzsche) dirigida à Igreja, assume uma forma de tal modo radical que muitas vezes realmente aproxima-se da loucura (desrazão). De fato, o cinismo se desenvolve como a contrapartida da razão, algo até certo ponto contrário, mas sempre presente em qualquer produção racional. Ele se mostra como irmão e algoz do Iluminismo, no momento em que sua crítica é aplicável ao próprio ideal da iluminação: o que ele de fato faz é mostrar a loucura da iluminação, a inverdade de qualquer tipo de verdade, impossibilitando, assim, qualquer tipo de legitimidade racional incontestável.
Uma razão cínica
O descontento em nossa cultura assumiu uma nova qualidade: ele aparece como um cinismo difuso e universal. A crítica da ideologia tradicional encontra uma derrota diante desse cinismo. Ela não sabe qual botão pressionar nessa consciência lamentosamente cínica para fazer o iluminismo continuar. O cinismo moderno apresenta-se como esse estado de consciência que segue após ideologias ingênuas e sua iluminação. (SLOTERDJIK, 1987, p. 3, tradução nossa)
Com essa colocação, Peter Sloterdijk começa o livro Critique of Cynical Reason (1981/1987). Lançado exatamente cem anos depois da Crítica da Razão Pura, de Kant, Sloterdijk se propõe a discutir essa categoria que parece estruturar a forma de racionalização presente na sociedade contemporânea: o cinismo. Sloterdijk define o cinismo como "a falsa consciência esclarecida" (SLOTERDIJK, 1987. p.5). Como já colocado, o cinismo enquanto negação de qualquer tipo de racionalização absoluta é, ao mesmo tempo, filho e algoz do pensamento iluminista (no segundo caso, precisamente do Positivismo). Desse modo, o cinismo é muitas vezes colocado como resultado de uma desilusão com este tipo de pensamento.
Assim, não somente se encontra uma profunda crise de legitimidade, como o modo tradicional de crítica (desmascaramento) não surte efeito - ao contrário, a crítica é absorvida e devolvida como algo assimilado. Assim como relatamos a inserção do cinismo na Antiguidade e no Iluminismo, exemplificaremos essa maneira cínica na contemporaneidade a partir de considerações sobre dois filmes recentes e de grande sucesso.
Em Obrigado por fumar (REITMAN & SACKS, 2005), o enredo gira em torno de Nick Naylor (Aaron Eckhart), o porta voz da indústria tabagista americana. Num momento em que a sociedade começa a repudiar com maior ênfase os malefícios causados pelo fumo, Naylor encontra-se na encruzilhada de, mesmo sabendo desses males, defender a indústria tabagista das acusações. Por outro lado, Naylor tenta afirmar seu papel como pai, o que exige que ele consiga, de alguma maneira, conciliar seu trabalho muitas vez amoral com a necessidade de ser um modelo moral para seu filho. Já em O Senhor das Armas (NICCOL, 2005), o amoralismo cínico mostra-se de maneira mais crua. Yuri Orlov (Nicolas Cage) é um traficante de armas que alcança grande sucesso profissional por vender suas mercadorias indiscriminadamente, ou, em outras palavras, vendendo armas para qualquer um que queira comprar, "sem escolher lados". Ele é um personagem que defende que tudo deve ser construído sobre mentiras, e que a moralidade é algo que pode ser muito ruim para os negócios.
Deve-se ressaltar que o enredo também corrobora com essa racionalidade cínica: no primeiro, dificilmente pode-se afirmar se Naylor é um herói ou anti-herói, mas o que é certo é que sua amoralidade (e aqui grifa-se, justamente, que não é imoralidade, tampouco, é claro, moralidade) é repleta de todo o glamour - que, embora não fique claro se a personagem está certa ou errada (talvez ele esteja justamente acima disso), seu modelo é valorizado; no segundo, por mais que Orlov possa ser considerado um vilão, seu cinismo é sempre respaldado por uma sociedade também cínica, o que fica claro no final do filme, quando Orlov é liberado da prisão, mesmo sendo acusado com provas incontestáveis. Se no primeiro o cínico amoral é valorizado, no segundo ele é colocado como uma necessidade/produto da sociedade (ao que se dirige, justamente, a crítica do filme).
Sloterdijk situa essa racionalidade cínica em uma situação na qual a crítica da ideologia perde seu poder performativo. Isso poderia acontecer por uma desilusão em relação à própria crítica da ideologia, que pode "facilmente ser transformada de um instrumento na busca pela verdade em um de dogmatismo" (SLOTERDIJK, 1987. p.19, tradução nossa). Porém, o argumento de Sloterdijk vai mais além: seria justamente o cinismo que permitiria descartar a crítica da ideologia como algo "ultrapassado". O autor defende que essa desilusão com a crítica da ideologia encontra-se numa situação na qual o desmentimento, a explicitação de tudo aquilo que antes era mascarado, não causa mais nenhum dano àquele que desmente. Mais que isso, o amoralismo contido no cinismo faz com que haja um simples reconhecimento daquilo que está sendo apontado, mas isso não surte nenhum efeito transgressor. Isso faz com que, muitas vezes, defenda-se que vivemos em uma sociedade pósideológica.
Sobre esse colapso da crítica da ideologia e a "sociedade pós-ideológica", o ensaio de Slavoj Zizek, Como Marx inventou o sintoma? (1989/2008), é extremamente esclarecedor. Como apresenta o autor, essa afirmação de que vivemos em uma sociedade pós-ideológica só se sustenta a partir de uma leitura específica do conceito de ideologia. Segundo ele, a célebre frase de Marx "eles não o sabem, mas o fazem" pode ser entendida de duas maneiras. A primeira tem o foco no saber. O conflito surge por se ter um desconhecimento dos motivos pelos quais se faz algo, um erro, um mascaramento. Nesse sentido, o desmentimento dos motivos que impulsionam as ações seria a superação da ideologia.
Porém, Zizek defende que o foco dessa frase não deve ser o saber, mas o fazer. Em outras palavras, que a ideologia opera justamente naquilo que se faz, e a falha do saber não é um erro de reconhecimento dos reais motivos, mas sim o não reconhecimento da existência de algo que permeia a relação com o fazer (e consequentemente estará também presente no discurso, no saber), a saber, a ideologia.
Nas versões mais sofisticadas dos críticos da escola de Frankfurt, por exemplo-, não se trata simplesmente de ver as coisas (a dizer, a realidade social) como 'são em realidade', ou de se tirar os óculos distorcidos da ideologia; o ponto principal é ver como não pode se reproduzir a realidade sem esta chamada mistificação ideológica. A máscara não encobre simplesmente o estado real das coisas; a distorção ideológica está inscrita em sua própria essência. (ZIZEK, 2008. p.346, tradução nossa)
Da maneira como Zizek defende, não somente seria um erro dizer que vivemos em uma sociedade pós-ideológica, como também considerar a ideologia como algo superável. Ao contrário, ele argumenta que a ideologia deve ser entendida como uma fantasia necessária ao suporte da realidade, partindo do pressuposto lacaniano de que nossa relação com o objeto de desejo se dá sempre como fantasia. Desse modo, coloca-se de maneira suficientemente sólida que o cinismo aparece não como algum tipo de superação nem de crítica, mas como uma estrutura de racionalização e socialização presente em nossa sociedade.
Zizek defende, ainda, que o cinismo como ideologia não traz consigo uma negação direta da moralidade. Ao contrário, o que parece haver é um uso da moralidade em benefício da imoralidade. A "habilidade" do cinismo estaria, segundo ele, em saber transformar a proibição em libertinagem, a verdade em uma forma mais efetiva de mentira. O cínico não rebate um argumento com outro, mas antes, desautoriza o argumento colocado, transformando ele mesmo em sua arma.
(...) Este cinismo é, portanto, uma espécie de 'negação da negação' pervertida da ideologia oficial: confrontada com o enriquecimento ilegal, com o roubo, a reação cínica consiste em dizer que o enriquecimento legal é muito mais eficiente e, ademais, está protegido pela lei. Como Bertold Brecht diz em sua Ópera de três vinténs: 'o que é o roubo a um banco comparado com a fundação de um novo banco?' (ZIZEK, 2008. p.346, tradução nossa)
Em Obrigado por fumar (REITMAN & SACKS, 2005) vemos uma cena que ilustra essa ideia: Naylor é chamado a participar de um debate num programa de televisão, para o qual seus opositores levaram um adolescente que tinha câncer de pulmão para reforçar a argumentação antitabagista. Naylor, contudo, sai vitorioso, por sustentar que a indústria tabagista não teria nenhum interesse na morte deste rapaz, afinal isso significaria um consumidor a menos. Nessa passagem, vê-se claramente como o argumento cínico usa o desmentido para sustentar sua posição, defendendo que, embora as mortes aconteçam, elas não lhes interessam (eles prefeririam que as pessoas não morressem, para que pudessem fumar mais).
O mesmo pode ser visto em O Senhor das Armas (NICCOL, 2005), quando Orlov diz que ele preferiria que as pessoas sempre errassem seus alvos quando disparassem uma arma, portanto que continuassem disparando. O que vemos nesses dois casos como ponto central de contradição é a defesa do uso de algo que necessariamente produz um efeito indesejável, concomitante ao repúdio a este efeito indesejável. Isso é a razão cínica.
Como defende Vladimir Safatle (2008), a questão é entender como a racionalidade cínica consegue, de alguma maneira, estabilizar uma situação eminentemente anômica. Em outras palavras, o cinismo seria algo que permitiria a racionalização de um sistema paradoxal, sendo o paradoxo algo que "...deriva do fato de uma concretização aparentemente contrária à intenção que a gerou poder ser adequada a essa mesma intenção." (SAFATLE, 2008. p.14). Segundo o autor, não há dúvida de que a forma de organização social na sociedade capitalista seja paradoxal. Além disso, ele ressalta, é importante lembrar que a denúncia deste paradoxo deixa de ter valor crítico, uma vez que "...a realização paradoxal da intenção é, de certa forma, realização legítima." (SAFATLE, 2008. p.15). Nesse sentido, o ponto central a ser estudado é o fato de a denúncia dessa contradição não ter nenhum tipo de poder performativo, de modo que a crítica, como até então tem sido realizada, perde sua força.
O cinismo seria uma situação na qual a ironia atingiu tal ponto no qual o objeto realmente se perdeu. Isso porque, na ironia, não é possível dizer que haja algum tipo de insinceridade. Ao contrário, se há uma clivagem entre enunciado e enunciação, a ironia faz exatamente explicitar essa clivagem, e não mascará-la. Contudo, essa explicitação da clivagem pode ter efeitos diferentes: se por um lado, pode-se tentar dizer exatamente o contrário daquilo que se está dizendo (desse modo, bloqueando a ideia oposta àquela que se defende), por outro, pode-se chegar a uma situação de ironização completa, na qual ocorre o bloqueio de qualquer tipo de força perlocucionária. A essa situação, referimo-nos como cinismo. A partir do momento em que não há nenhuma positividade na enunciação, os atos de fala não entram mais em contradição, por mais paradoxais que sejam, de modo que essa ironização absoluta resulta na possibilidade de se racionalizar e legitimar posições contraditórias.
Uma vez definida a particularidade do modo cínico de racionalização como uma conduta capaz de racionalizar paradoxos sem que a oposição existente entre eles deslegitime, de alguma maneira, uma das partes; ou como um modo de indexação no qual a ação legitimada pode ser contraditória à norma, mas ainda assim não tirar sua efetividade (da norma), agora cumpre entender por que esse modo de racionalização se faz presente na sociedade contemporânea.
Identificações irônicas
Se Adorno ainda via uma possibilidade de emancipação nessa distância em relação à crença nos conteúdos ideológicos disponibilizados pela indústria cultural, podemos dizer que tal "crença desprovida de crença" é exatamente a mola de funcionamento da ideologia na contemporaneidade e a garantia de sua perenidade. Os conteúdos já são previamente ironizados e é isso que lhes permite continuar circulando. (SAFATLE, 2008. p.101)
Como vemos, Safatle já localiza em Adorno o reconhecimento de uma razão cínica própria ao capitalismo tardio. De fato, Adorno já havia percebido que categorias como reificação, mascaramento e ilusão não possuíam mais nenhum tipo de efetividade crítica, justamente pelo fato de se tratar "de uma situação na qual a própria transparência parece ser o motor central para a sustentação da ideologia." (SAFATLE, 2008. p.94) Contudo, para que possamos entender os motivos que levam ao fato de o discurso que visa a algum tipo de legitimação ser um discurso irônico, é necessário que entendamos o contexto no qual ele é produzido.
Como Safatle coloca, o que se faz interessante é o fato de o capitalismo contemporâneo funcionar a partir de sua própria ironização, sem, contudo, que isso resulte em seu enfraquecimento. Ao contrário, a constante permanência de um estado de suspensão da lei que, contudo, não a anula (algo frequentemente característico de situações de anomia), parece ser "... o modo hegemônico de funcionamento da Lei." (SAFATLE, 2008. P.104). Como coloca o autor, "...Na verdade, eles são cada vez mais chamados a sustentar identificações irônicas, ou seja, identificações nas quais, a todo momento, os sujeitos afirmam a sua distância em relação àquilo que estão representando ou, ainda, em relação a suas próprias ações." (SAFATLE, 2008. p.104).
Para embasar essa possibilidade de identificação irônica, Safatle parte da teoria psicanalítica lacaniana, que coloca a identificação como ponto central em qualquer tipo de socialização. Nesse sentido, a socialização, em si, trataria de um modo de ação calcado em tipos ideais que definiriam modelos a serem seguidos. Quanto ao cinismo como modo de socialização presente na sociedade contemporânea, vê-se que a identificação se dá justamente com a indeterminação e a ironização de identidades. Para isso, é necessário considerar que o capitalismo atual não pauta mais sua estrutura na produção, mas no consumo. Essa mudança faz-se essencial justamente pelo fato de que o modo como nos relacionamos com o desejo está intimamente ligado àquilo que é socialmente partilhado, o que Freud defende ao dizer que a função paterna está sempre relacionada a outras esferas: "Tal relação entre esferas aparentemente autônomas de valores (família, religião, Estado) permite a Freud insistir que aquele que suporta a função paterna não é apenas representante da lei da família, mas de uma Lei que determina o princípio geral de estruturação do universo simbólico. (SAFATLE, 2008. p.119)
Assim, poderíamos dizer que a função paterna, ao ocupar um lugar essencial na organização da economia libidinal, também reproduz modos partilhados de ordenação do gozo, que em dado contexto permite que o capitalismo de produção se desenvolva. Em outras palavras, a ética protestante, que Weber - Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus (1904-1905) - aponta como necessária ao espírito do capitalismo, se reproduz nesse "pai repressor", resultando numa forma de repressão do gozo que permite a concentração da libido na produção e no acúmulo.
Contudo, o capitalismo não parece mais se organizar em torno da produção, mas sim do consumo. Ligado a essa mudança estrutural, surgem valores como flexibilização, fluidez e mobilidade, que mostram como o mundo do trabalho visa, agora, satisfazer as demandas de gozo presentes nas práticas do consumo. Porém, a lógica do consumo não partilha dos mecanismos de repressão das pulsões libidinais, o que nos leva, consequentemente, a outra forma de regulação do gozo. Ou, como coloca Safatle,
O que nos interessa aqui são certas conseqüências psíquicas dessa passagem da sociedade de produção para a sociedade de consumo. Jacques Lacan identificou talvez a maior delas ao insistir que a figura social dominante do supereu na contemporaneidade não estava mais vinculada à repressão das moções pulsionais, mas à obrigação da assunção dos fantasmas. Não mais a repressão ao gozo, mas o gozo como imperativo. (SAFATLE, 2008. p.128)
O fato de a sociedade se estruturar a partir de um imperativo de gozo faz com que os modelos de identificação ligados à renúncia pulsional sejam substituídos ou, pelo menos, suplantados por outros que têm como traço característico a busca interminável do gozo pela instrumentalização dos fantasmas. Isso, contudo, não significa que a lei simbólica deixe de existir: o que se vê, todavia, é que, embora haja uma instauração simbólica do supereu que regula as relações sociais a partir da lei, a identificação instaurada prega sua transgressão. Isso converge (embora não seja a mesma coisa) com o que Lacan já havia postulado como a parte Real do supereu (materno), essa que incentiva a transgressão. O que parece acontecer é que na sociedade capitalista contemporânea há um reforçamento desse supereu que diz "Goze!", reforçamento esse resultante da identificação com a figura do capitalista.
Contudo, deve-se colocar que essa exigência do supereu que diz "Goze!" é essencialmente frustradora, já que não há objeto adequado a essa exigência. Dessa maneira, essa busca alimenta a necessidade de mercado existente em uma estrutura focada no consumo, de modo que há um deslocamento infinito e instantâneo de objetos que são consumidos, de fantasmas que são instrumentalizados, e sempre o retorno à insatisfação. Esse imperativo, contudo, em nenhum momento, deixa de ser um tipo de controle, ele apenas muda, como coloca Safatle, de um "controlerepressão" para um "controle-estimulação":
Em última instância, isso nos faz passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada, na qual ninguém realmente acredita nas promessas de gozo veiculadas pelos sistema de mercadorias (já que são postas para serem descartadas), a começar pelo próprio sistema, que as apresenta de maneira cada vez mais auto-irônica e "crítica". (SAFATLE, 2008, p.133)
Desse modo, reencontramos o modo de racionalização que desde o princípio colocamos como tendência hegemônica no capitalismo contemporâneo: o cinismo. Justamente no fato de possibilitar a racionalização de paradoxos, resultando na perda da força perlocucionária da enunciação da clivagem, o cinismo aparece como modo de racionalização de uma sociedade que se estrutura a partir de um imperativo de gozo que nunca pode ser satisfeito, mas que continua a ser privilegiado em relação a qualquer outra direção normativa. "Dessa forma, o 'sofrimento de indeterminação' normativa capaz de provocar sintomas como a ansiedade e a depressão pode parecer, no interior do cinismo, como motivo de gozo." (SAFATLE, 2008, p.139).
Novamente encontramos um gozo advindo da identificação com um tipo ideal socialmente partilhado. De fato, a identificação com tipos ideais não é algo específico de nossa sociedade, mas sim de qualquer laço social. Há, contudo, algo no capitalismo que merece especial atenção. Raul Pacheco Filho (2009) defende que o modo de organização atual colabora com "...uma aceleração da tendência totalitária à alienação, em escala sem precedentes nas demais formas históricas de sociedade." (Pacheco Filho, 2010, p.155). O autor desenvolve seu argumento a partir de uma aproximação entre a metáfora paterna lacaniana (criação de significação de algo até então desconhecido, que permite a circulação do falo) e o equivalente-geral marxiano (que permite a significação do valor de um objeto, permitindo a circulação de mercadorias). A partir dessa aproximação, defende o autor, é possível se pensar num "valor-desejo", algo que permita a definição objetiva da "desejabilidade" de um objeto, e que essa determinação seja socialmente compartilhada. Desse modo, pode-se pensar que o capitalismo apresenta uma articulação entre o sujeito e seu desejo (enquanto algo objetivável). E é justamente essa articulação que permite que a sociedade se organize em um "ethos" que tem como principal paradigma o consumo de objetos, que, ao menos no discurso dominante, trariam a satisfação do desejo.
Contudo, como já foi visto, o discurso dominante, ao mesmo tempo em que defende essa adequação do objeto ao desejo, a nega. Em outras palavras, assume a incompatibilidade entre objeto e desejo sem prejudicar a dinâmica do consumo. De fato, o que parece acontecer é que os indivíduos têm essa capacidade de racionalização de paradoxos porque a solução não passa por seu próprio desejo. Os paradoxos podem conviver na medida em que o indivíduo se identifica com esse Outro que poderia realmente conviver com eles (paradoxos). O que acontece, então, é que o indivíduo se aliena nessa identificação, de modo que o conflito existente não lhe traz nenhum tipo de dilema, uma vez que esse Outro segue apenas um imperativo, o imperativo do gozo. Assim, ignoram-se os conflitos, mas o resultado é uma extrema alienação. Como diz Pacheco Filho: "O que mais me assusta no sujeito do capitalismo é, ao contrário (do narcisismo), a progressão da disposição (e da ausência de resistência) que ele apresenta para se entregar à alienação do 'discurso do capitalista': a aceleração de sua tendência totalitária a essa alienação do laço social." (PACHECO FILHO, 2009, p.159).
Desse modo, vemos como a identificação com um tipo ideal que se caracteriza pela não identificação parece ter como resultado um aprofundamento da alienação do sujeito. O cinismo aparece justamente como resultado dessa identificação, a identificação com um discurso que defende o gozo, mesmo que ele se sobreponha a ideais de justiça - o discurso do capitalista.
Lacan trabalha com a categoria de discurso como um modo de regulação do gozo. Desse modo, em seu seminário de 1969-1970, O avesso da psicanálise (1992), ele postula que só existem quatro discursos possíveis, nos quais quatro termos fundamentais se relacionam num esquema que define as posições de agente, saber, gozo e verdade.
Contudo, como diz o próprio Lacan, "...desse trajeto surge alguma coisa definida como umaperda. É isto o que designa a letra que se lê como sendo o objeto a." (LACAN, 1992, p.13) Assim, vemos que em qualquer tipo de regulação do gozo, há sempre uma porção que é inalcançável. Disso que advém o desejo. Lacan usa o discurso do mestre para ilustrar a situação na qual o sujeito tenta gozar a partir do outro, de maneira que o objeto a aparece como perda. Além disso, ele defende haver uma barra entre o lugar da verdade e o do gozo (no caso $ e a), de modo que não somente o gozo é barrado, mas também resultando em o mestre ser sempre aquele que nada sabe sobre seu desejo. Isso implica, como diz Lacan, em uma impossibilidade de reconhecimento da fantasia como modo de relação do sujeito dividido com seu desejo, ou, nas palavras do próprio autor,
Essa fórmula, como definidora do discurso do mestre, tem seu interesse por mostrar que ele é o único a tornar impossível essa articulação que apontamos em outro lugar como a fantasia, na medida em que é a relação do a com a divisão do sujeito - ($ ◊ a).
Em seu ponto de partida fundamental, o discurso do mestre exclui a fantasia. E é isto exatamente o que faz dele, em seu fundamento, totalmente cego. (LACAN, 1992, p.114)
Assim, vê-se que o discurso do mestre corresponde justamente a esse tipo de organização na qual há a exploração de um outro, da qual resulta a mais-valia, ou, com dirá Lacan, o mais de gozar. Contudo, parece ocorrer uma pequena mutação no discurso do mestre, ligada a um modo de" organização da produção contemporâneo. Essa variação do discurso do mestre, Lacan chamará de discurso do capitalista. O autor já anuncia essa variação no Seminário XVII, quando diz: "...que o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o do senhor moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do saber." (LACAN, 1992, p.32). Contudo, é somente em 1972, em sua conferência dada em Milão intitulada Do discurso psicanalítico (mais conhecido como A Conferência de Milão), que o autor indicará o que seria, realmente, essa modificação: "...uma pequena simples inversão entre o S1 e o $... que é o sujeito... isso é suficiente para que ande como sobre rodinhas, isso não pode andar melhor, mas justamente isso anda rápido demais, isso se consome, isso se consome tão bem que se consuma." (LACAN, 1972, p.10, tradução nossa).
Contudo, vê-se que além do deslocamento entre $ e S1, há uma mudança na relação entre os termos. Vê-se que nos quatro primeiros discursos, o agente relaciona-se com o saber, que se relaciona com o produto, que se relaciona com o agente. A verdade relaciona-se com o agente e com o saber. Já no discurso do capitalista, o agente se relaciona com a verdade, que se relaciona com o saber, que se relaciona com o produto, que se relaciona com o agente. È um circuito fechado, no qual todos os termos estão em contato. Assim, analisar-se-á dois aspectos: a inversão entre $ e S1, e a mudança nas relações entre os termos.
Pensando-se no discurso do mestre, a inversão entre os termos indicaria uma aparente "assunção" do sujeito ao lugar de agente. Aparente, pois o discurso continua a ter um efeito muito parecido com o do discurso do mestre, embora o mestre não se veja lá. Contudo, o S1 continua em relação com S2, e o $ com S1. Esse deslocamento aparenta, mais do que qualquer possibilidade de constituição de outro discurso, um disfarce: o posicionamento do sujeito dividido no lugar de agente numa dinâmica na qual ele de fato não pode ocupar esse lugar, de modo que o efeito continua a ser equivalente ao do discurso do mestre.
Por um lado, mantém-se a relação entre $, S1, S2 e a, e, por outro, permite que todas as funções sejam integradas. Deste modo, há uma circulação infinita, que pressupõe que a barreira anterior (entre produto e verdade) seja superada por esse novo caminho. Isso seria, de fato, o que permitiria que a verdade fosse incluída no circuito sem que ele parasse de funcionar.
Nesse ponto, vemos como o discurso do capitalista relaciona-se com o fato de que o capitalismo de produção consiga, ao mesmo tempo, assumir que não existe objeto adequado ao desejo, e ainda assim perpetuar o consumo de objetos que se apresentam como tal. Esse modo de regulação do gozo está ligado à identificação com essa "figura" do capitalista, que se caracteriza pela indefinição, pela tentativa de não identificação causada pela "consciência" da impossibilidade de objetificação do desejo ou de qualquer tipo de valor universal, consciência essa que Sloterdijk definiu como "falsa consciência esclarecida". Além disso, esse modo de regulação do gozo parte de uma aparente negação da castração, algo que muitas vezes é aproximado da perversão.
Se o cinismo apresenta-se justamente como um modo de relação com a Lei no qual a explicitação de uma racionalização de contradições não anula nenhuma das partes, então se deve pensar que no cerne desse tipo de racionalidade há algum tipo de denegação, de desmentimento, muito próximo do que Freud chama de Verleugnung. Por outro lado, deve-se ter muito cuidado ao lidar com o termo perversão, pois mesmo que se possa apontar modos perversos de se lidar com o desejo ou a castração, isso não significa que se está apontando uma estrutura perversa.
De fato, toda escolha objetal pode ser vista como perversa, ou, o gozo fálico pode ser sempre visto como uma denegação da castração, a partir do momento em que se acredita que há um objeto adequado ao desejo. Contudo, isso de maneira alguma indica uma estrutura perversa. Nesse ponto, o texto de Sidi Askofaré chamado A perversão generalizada (2005) é esclarecedor:
A « perversão generalizada », se ela quer dizer alguma coisa em psicanálise, só significa a « perversão generalizada do campo do gozo ». Nem desvio, nem aberração, nem inversão das normas e menos ainda nova norma social, ela é fundamentalmente a tradução clínica e conceitual do fato de que o campo do gozo do ser falante se estrutura e se ordena em torno de um impossível. (ASKOFARÉ, 2005. p.6, tradução nossa)
Desse modo, contudo, pode-se supor que o termo perversão seja freqUentemente usado nessa discussão pelo fato de a racionalidade cínica encerrar em si alguns traços muitas vezes ligados à perversão. Tentaremos, contudo, especificar esses traços, e não usar o termo perversão. O modo de regulação do gozo, como já discutido, parece ser um dos pontos principais dessa aproximação. Contudo, deve-se lembrar que ele decorre da identificação com um tipo ideal que tem a ironia como referência, de modo que fica explícito que se trata de um mecanismo neurótico. A imago com a qual se identifica, contudo, tem em si a questão do desmentimento. Outro ponto a ser levantado é a tentativa de reconstrução de um Outro não barrado, não castrado. Essa reconstrução está na gênese de qualquer laço social, em indivíduos neuróticos, mas, de alguma maneira, tenta negar a castração (do Outro).
Assim, esse desmentido parece duplicado no cinismo: além da tentativa de reconstrução de um Outro não barrado, a imago desse outro não barrado é cínica, ela tem a denegação como característica fundante. Isso resulta num tipo de identificação reflexivo, que por remeter à negação de qualquer identificação, aprofunda a alienação, uma alienação, como vimos em Pacheco Filho (2009), sem antecedentes, que resulta na atual falência da crítica; que resulta numa ideologia reflexiva que não pode ser criticada a partir do desmascaramento e da enunciação de paradoxos, uma ideologia que parece colocar em movimento uma dinâmica na qual o sujeito se afasta cada vez mais de seu desejo, e também de qualquer possibilidade de reconhecimento dessa alienação.
A necessidade da crítica
Como já foi colocado, embora o imperativo seja "Goze!", não há nada que determine como ou com o quê se deve gozar: a ordem é vazia. Como resultado, têm-se as cada vez mais célebres "patologias do vazio", aquelas que Safatle soma ao cinismo, como próprias à sociedade contemporânea: a depressão, a ansiedade, etc. Em outras palavras, parece haver uma tendência na qual tudo o que escapa a essa dinâmica de busca incessante do gozo seja visto como patológico. Uma vez visto como patológico, a sociedade tem um modo muito preciso de resolver: a partir das terapêuticas. Essa solução visa à supressão de qualquer tipo de sintoma, de modo que aquilo que escapa ao funcionamento seja visto como uma falha individual que deve ser corrigida.
Como mostra o sociólogo Frank Furedi (2004), a nossa sociedade parece cada vez mais entender os acontecimentos a partir de uma ótica terapêutica, que em essência está completamente de acordo com o imperativo do gozo, uma vez que ela tenta justamente corrigir aquilo que atrapalha o indivíduo em sua busca (do gozo). Ainda, o autor ressalta que cada vez mais o indivíduo é colocado como algo frágil, dependente de ajuda especializada para lidar com seus problemas: "A cultura terapêutica tem ajudado a construir uma ideia diminuída do self, que caracteristicamente sofre de um déficit emocional e possui uma consciência permanente de vulnerabilidade." (FUREDI, 2004. p.21, tradução nossa). Nesse contexto, contudo, a Psicanálise se posiciona de maneira diferente.
Safatle defende em seu texto O ato para além da lei: Kant com Sade como ponto de viragem do pensamento lacaniano (2003) que, "...a partir de Kant com Sade, Lacan verá a psicanálise não exatamente como uma terapêutica, mas como uma ética com consequências clínicas." (SAFATLE, 2003. p.226). Vemos, assim, a posição da Psicanálise (lacaniana) em recusar ocupar essa posição de uma terapêutica que tem como função a supressão dos sintomas do indivíduo para que seu convívio no meio social não seja prejudicado. Ao contrário, o que é dito em seu seminário sobre A ética da psicanálise (1959-1960/2008), e formalizado em Kant com Sade (1962/1998), é justamente que a Psicanálise propõe uma ética própria, a Lei da ética do desejo, na qual o sujeito deve usar como guia o seu próprio desejo, o que o permitiria não transgredir, mas "atravessar a Lei", colocando-se como sujeito responsável por sua instituição, e assim arcando com as consequências. Nesse seminário, Lacan usa o mito de Antígona para ilustrar o que quer dizer, exatamente pelo fato de ela escolher enterrar o irmão, escolher sua morte. Como diz o autor, "Antígona se apresenta como autônomos, pura e simples relação do ser humano com aquilo que ocorre de ele ser miraculosamente portador, ou seja, do corte significante, que lhe confere o poder intransponível de ser o que é, contra tudo e contra todos." (LACAN, 2008. p.333).
Desse modo, não se pode reconhecer uma moral definida pela Psicanálise, ao contrário, o que se pode postular é que o sujeito sempre poderá atravessar a Lei, se isto realmente estiver de acordo com seu desejo. Parte-se do pressuposto de que não há possibilidade de determinação de uma Lei que dê conta da regulação das intenções das ações, contudo pode-se pensar num reconhecimento da inadequação entre desejo e Lei que leve o sujeito a superá-la (e não transgredi-la), de modo a respeitar seu desejo. Em Kant com Sade, Lacan critica ambos pela suposição de que há uma Lei adequada ao desejo, e em Antígona encontra essa solução, na qual o ato atravessa a Lei. Em sua crítica a Sade, Lacan apresenta outro exemplo que poderia ser equivalente a essa solução: "...o livro nunca nos apresenta o sucesso de uma sedução, com o qual, no entanto, se coroaria a fantasia: aquela em que a vítima, nem que fosse em seu derradeiro espasmo, viesse a consentir na intenção de seu torturador, e até passasse para o lado dele, pelo ardor desse consentimento." (LACAN, 1998. p.799)
Contudo, a ética da Psicanálise não deve ser confundida com a solução. Dificilmente se poderia dizer que o que está em jogo no cinismo é o desejo, e não a demanda. Desse modo, vemos que essa denegação cínica da Lei é uma simples transgressão, transgressão essa muito astuta, que se apresenta como um ideal de liberdade, mas que de fato resulta numa identificação alienadora com um tipo ideal que propõe não a aceitação da castração e assim outro modo de lidar com o desejo, mas sim a sua negação (da castração). Por outro lado, ao se lidar com a relação do sujeito e a Lei, pode-se cair numa solução cínica. De fato, essa solução de um ato que atravessa a Lei passa muito próxima da denegação, na qual embora se reconheça a existência da Lei, ela não apresenta nenhum empecilho para o sujeito. A diferença entre agir de acordo com o desejo, lidando ou não com as consequências da Lei, é muito tênue, e sempre ronda a prática psicanalítica.
Segundo Lacan, a possibilidade que a Psicanálise traz de mudança para essa relação entre o sujeito e seu desejo reside na posição ocupada pelo analista na situação de análise. Aquele que ele denominará discurso do analista diz respeito a isso, justamente esse discurso no qual o objeto a se coloca no lugar de agente, e possibilita assim o questionamento sobre o desejo. Esse discurso, como diz Lacan na Conferência de Milão, não somente atua na situação de análise, como também apresenta uma possibilidade crítica social: "...o que eu penso é que se o discurso analítico tivesse tomado corpo... ele saberia melhor o que é necessário para fazer a revolução." (LACAN, 1972. p.9, tradução nossa).
Contudo, o questionamento da efetividade desse tipo de intervenção numa sociedade que se caracteriza pela ironização de qualquer tipo de valor continua sendo válido. Em outras palavras, até que ponto não se pode dizer que essa prática psicanalítica não foi assimilada pela sociedade e transformada justamente em algo que aprofunda o cinismo? Essa resposta pode ser encontrada dentro da clínica. A questão de se o processo analítico ainda é possível pode indicar o quanto essa ideologia é ou não criticável. Pois, se há algo, na clínica, que consegue superar essa identificação irônica, então há algo que pode exercer uma função crítica, que pode, de alguma maneira, superar a ironização do cinismo. Se há algo que tem essa capacidade, talvez possa ser trazido para fora da clínica na forma de um ato político.
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Recebido em: 20 de agosto de 2010.
Aprovado em: 03 de junho de 2011.