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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.3 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2011
ARTIGOS TEMÁTICOS
Três versões do narcisismo das pequenas diferenças em Freud
Three versions of Freudian narcissism of minor differences
Luiz Moreno Guimarães ReinoI; Paulo Cesar EndoII
IMestrando do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Pesquisador bolsista do CNPq e estudante de Letras Clássicas (USP). luiz.moreno.reino@usp.br
IIPsicanalista. Professor Doutor do Instituto de Psicologia da USP. Membro do Grupo interdisciplinar independente de combate à tortura e à violência institucional da Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SEDH). pauloendo@uol.com.br
RESUMO
Pretende-se examinar a noção de narcisismo das pequenas diferenças em Freud. A partir da problemática trazida pelos termos antitéticos que compõe essa noção - narcisismo e diferença -, propõe-se acompanhar pari passu a origem, a entrada e as torções que o narcisismo das pequenas diferenças recebe ao longo do pensamento freudiano.
Palavras-chave: metapsicologia freudiana, narcisismo das pequenas diferenças, diferença, narcisismo, pulsão de morte.
ABSTRACT
We aim to examine the Freudian notion of narcissism of minor differences. Starting from the set of problems brought by the antithetical terms that compound this notion - narcissism and difference -, we intend to follow pari passu the source, the starting point, and the twists that the narcissism of minor differences experience throughout the Freudian thought.
Keywords: Freudian metapsychology, narcissism of minor differences, diference, narcissism, death drive.
Da diferença sexual à pequena diferença
Comecemos pela forma privilegiada do início de análise, isto é, com um inquietante estranhamento ali, onde em geral existe um consenso. Pensemos nos termos que compõem a expressão narcisismo das pequenas diferenças; "vamos adotar uma atitude ingênua diante dela, como se a ouvíssemos pela primeira vez" (FREUD, 1930/2010, p. 73).1
Estranha composição, o narcisismo das pequenas diferenças parece ser uma construção antitética. Freud (1910/2006) dava grande valor aos estudos linguísticos de Abel (1884) sobre o léxico egípcio, os quais consideravam que as palavras primitivas tinham uma origem antitética. Ou seja, na origem, havia antíteses, uma palavra tinha dois significados contrapostos ou a própria palavra trazia a marca dessa oposição. Por exemplo, no caso mais impressionante, em que colocavam lado a lado termos contrários - como velhojovem, unirseparar, foradentro -, reunindo assim em sua composição os opostos entre si, apesar de, semanticamente, só focar um dos termos. Freud já havia chegado a algo semelhante ao estudar os sonhos que "unem os opostos em uma unidade ou os figura em idêntico elemento" (1900 citado pelo próprio Freud, 1910/2006, p. 147). A princípio, o narcisismo das pequenas diferenças parece guardar certa semelhança com esse tipo de construção antitética (ou onírica), pois junta em uma mesma expressão termos opostos: narcisismo e diferença.
Há aqui, no entanto, um risco, pois, ao opor narcisismo e diferença, não se trata de repetir ad nauseam os clichês viva a diferença, do respeito ao próximo (todas variações comerciais do mandamento religioso amar o próximo como a ti mesmo), tão comuns hoje em dia; este fenômeno denominado de "multiculturalismo" (ZIZEK, 2008) é um efeito de massa no qual a condição para que a diferença do outro seja reconhecida é a de que ela perca sua alteridade. Não se trata disso. Na verdade, a aceitação imediata da alteridade é metapsicologicamente impossível. Há uma série de obstáculos que se opõem ao reconhecimento do outro. Nesse sentido e antes, a questão que devemos responder é por que a alteridade é vivida como uma ameaça? E uma resposta possível está nessa oposição entre narcisismo e diferença.
Se nos lembrarmos de um texto de 1925, Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, veremos que lá Freud analisa o esforço colossal da criança para não perceber a diferença trazida pela mulher (geralmente, a mulher que se ocupa dos cuidados com a criança - mãe ou babá). Tal diferença é a ausência do falo na mulher que contrasta com a fantasia infantil de um monismo fálico - que todos humanos possuem o falo, com suas variações, por exemplo, naqueles que não possuem irá crescer. Tudo se passa como se o reconhecimento da diferença se confundisse com o reconhecimento da castração. Pois se todos possuem o falo não só não há castração (nesse caso seria uma negação, já que o não é em si uma forma de reconhecimento), como o próprio complexo não está colocado.
A diferença trazida pela anatomia feminina (verdadeiro signo da alteridade) coloca em xeque a projeção corporal narcísica. Já não é mais possível sustentar a fantasia de que todos os corpos são dotados de falo. O que significa que já não é mais possível ter uma projeção plena do próprio corpo e do corpo do outro, ou falta algo em meu corpo (caso da menina), ou pode ser que eu venha a perder algo (caso do menino). Em suma, o reconhecimento da diferença sexual abala fortemente os contornos da imagem corporal - um dos nomes do narcisismo.
Contudo, não só a diferença sexual ameaça a integridade narcísica do eu, como qualquer diferença parece ameaçá-la.
Nas antipatias e aversões não disfarçadas para com estranhos que se acham próximos, podemos reconhecer a expressão de um amor a si próprio, um narcisismo que se empenha na afirmação de si, e se comporta como se a ocorrência de um desvio em relação a seus desenvolvimentos individuais acarretasse uma crítica deles e uma exortação a modificá-los. (FREUD, 1921/2011, p. 57)
Nesse contexto e em diversos momentos da pena de Freud, o narcisismo vai marcar o pólo de oposição ao reconhecimento da diferença, "aquilo que resiste ao outro" (MIGUELEZ, 2007, p. 124). Esse suposto amor a si mesmo - narcisismo - é de tal modo rígido e conservador que qualquer desvio trazido pelo outro é visto como uma afronta e o faz entrar em guerra contra qualquer sombra de divergência. Como se dissesse: tudo que de mim difere me ameaça. O reconhecimento do diferente se opõe ao narcisismo, e para que o outro seja reconhecido como tal, há de ocorrer necessariamente uma mudança psíquica. Nunca há um acesso à alteridade que não passe por alterações no psiquismo.
Assim, narcisismo das pequenas diferenças seria uma construção antitética; tal como Abel concebia o pareamento de opostos na origem primitiva das palavras e dos conceitos. De tal forma que podemos formular uma pergunta: como é possível, no âmbito mesmo da teoria freudiana, um narcisismo não que se oponha à diferença, mas, ao contrário, um atrelado a ela? Em outras palavras, que narcisismo é esse que se enoda com as diferenças para se fazer valer enquanto tal? Ora, é justamente essa a questão central trazida pelo narcisismo das pequenas diferenças, e ela está nos próprios termos que compõem a noção; como de costume, o que está mais evidente é o mais difícil de ser notado.
Taboo of personal isolation ou origem do narcisismo das pequenas diferenças
Data de 1918 a invenção da noção narcisismo das pequenas diferenças e encontra-se no texto O tabu da virgindade:
Com expressões que diferem pouco da terminologia empregada pela psicanálise, Crawley assinala que cada indivíduo se separa dos demais por um "taboo of personal isolation", e que justamente em suas pequenas diferenças, não obstante sua semelhança em todo o resto, se fundamentam os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria sedutor ceder a esta ideia e derivar desse "narcisismo das pequenas diferenças" a hostilidade que em todos os vínculos humanos vemos batalhar com êxito contra os sentimentos solidários e degolar o mandamento de amar o próximo. (FREUD, 1918/2006, p. 195)
Freud diz que seria sedutor ceder a essa ideia e derivar do taboo of personal isolation um narcisismo das pequenas diferenças. Tal narcisismo poderia ser a chave para o entendimento de uma hostilidade inerente e constante nos vínculos humanos (com a exceção da relação mãe-filho), que se opõe a uma solidariedade e torna impossível o mandamento cristão de amar o próximo como a ti mesmo. De fato, Freud cede a essa ideia e, não só, desenvolve a noção de narcisismo das pequenas diferenças, mas também elabora uma análise do mandamento cristão.
É da leitura de um livro de Alfred Ernest Crawley que Freud retira a ideia que dará origem à noção de narcisismo das pequenas diferenças.2 Cito uma passagem central para o entendimento da expressão:
Essas ideias de contato, que são encontradas em todo o mundo, dá às relações humanas em geral um significado religioso, quase inimaginável por nós. Cada indivíduo, como tal, é cercado por um tabu de isolamento pessoal e para a comunicação entre ele e seus companheiros, em teoria, precisaria de um intermediário. (CRAWLEY, 1902, p. 141, grifo nosso)
A noção de taboo of personal isolation aparece diversas vezes no livro The mystic rose; e em todas elas está associada a uma tentativa do autor de evidenciar o que está em jogo no contato entre humanos, ou seja, o que está em jogo quando um indivíduo se aproxima de outro. Uma série de questões gira em torno dessa expressão de Crawley e são abordadas pelo autor: quais são os tabus em vigor nessas aproximações ou que as impede? Que tabu é esse que existe em torno de cada indivíduo que coloca certas restrições ao aproximar-se um dos outros? Quando esse tabu é rompido, o que ocorre? Para Crawley, o taboo of personal isolation estaria em todas as relações humanas e pode ser quebrado em situações bem específicas, por exemplo, pelo insulto. É claro que não responderemos essas questões aqui, mas só o fato de enunciá-las já nos remete ao campo em que o tabu de isolamento pessoal se insere, a saber, o do contato, da aproximação e do isolamento que os indivíduos estabelecem entre si.3
Agora, nessa primeira menção (ou versão) freudiana. já encontramos três dos principais aspectos do narcisismo das pequenas diferenças, ainda que embrionariamente, e que serão desenvolvidos em importantes textos. Vejamos quais são os aspectos: 1-a afirmação do particular sobre o comum e o indiferenciado, "[...] justamente em suas pequenas diferenças, não obstante sua semelhança em todo o resto, se fundamentam os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles" (FREUD, 1918/2006, p. 195). 2- a fraqueza da solidariedade frente ao narcisismo das pequenas diferenças, "[...] a hostilidade que em todos os vínculos humanos vemos batalhar com êxito contra os sentimentos solidários" (1918/2006, p. 195). 3-a aproximação da análise do narcisismo das pequenas diferenças com a análise do mandamento religioso amar o próximo como a ti mesmo, "a hostilidade que em todos os vínculos humanos vemos [... ] degolar o mandamento de amar o próximo" (1918/2006, p. 195). Esses três pontos serão desenvolvidos em dois futuros e importantes textos de Freud, em Psicologia das massas e análise do Eu (1921) e em O mal-estar na cultura (1930). Assim, Freud, ao mencionar Crawley, já introduz dois elementos para se pensar essa ideia de aproximação que subjaz a noção de taboo of personal isolation - a hostilidade e o apego exagerado às pequenas diferenças.
O segundo mal
Em um gelado dia de inverno, os membros da sociedade de porcos-espinhos se juntaram para obter calor e não morrer de frio. Mas logo sentiram os espinhos dos outros e tiveram de tomar distância. Quando a necessidade de aquecerem-se os fez voltarem a juntar-se, se repetiu aquele segundo mal, e assim se viram levados e trazidos entre ambas as desgraças, até que encontraram um distanciamento moderado que lhes permitia passar o melhor possível. (SCHOPENHAUER, 1851/2009, p. 665)
Trata-se de uma parábola bem conhecida dos leitores de Freud, publicada originalmente em Parerga y paralipómena II, de Schopenhauer. e citada na íntegra em uma nota de rodapé de Psicologia das massas e análise do Eu, de Freud. É a última parábola do livro e, a ela, Schopenhauer adiciona um comentário, este já não tão conhecido:
Assim a necessidade de companhia, nascida do vazio e da monotonia do próprio interior, impulsa os homens a unirem-se; mas suas muitas qualidades repugnantes e defeitos insuportáveis os conduzem a se separarem uns dos outros. A distância intermediária que ao final encontram e na qual é possível que se mantenham juntos é a cortesia e os bons costumes. Na Inglaterra, àqueles que não se mantêm a essa distância se grita: keep your distance! - Devido a ela, a necessidade de esquentar-se mutuamente não se satisfaz por completo, em compensação não se sente o espetar dos espinhos. - Não obstante, aquele que possui muito calor interior próprio fará melhor em se manter longe da sociedade para não causar nem sofrer nenhuma moléstia. (SCHOPENHAUER, 1851/2009, p. 665)
A parábola em si é uma verdadeira criação artística. Nela há tanto em tão pouco, que não há como não dizer que Freud, ao utilizá-la, faz uma apropriação muito específica, pontual. O mesmo acontece com o próprio Schopenhauer, autor da parábola, pois seu comentário, ainda que aponte uma leitura singular da problemática do convívio, fica muito aquém da densidade da parábola. Como se o Schopenhauer comentador estivesse alguns passos atrás do Schopenhauer criador. Vejamos em que aspecto da parábola recai a ênfase dada por Freud e como esta se relaciona com o narcisismo das pequenas diferenças.
Há, logo de imediato, dois impossíveis na parábola: o frio e o espinho. Dois impossíveis opostos, por sinal; pois o frio aparece como impossibilidade de sobreviver sozinho (unir-se para não morrer de frio), ao passo que o espinho representa a impossibilidade de viver junto (separar-se para não furarmos uns aos outros). Schopenhauer chama os espinhos de segundo mal; o primeiro, portanto, seria o frio, como anunciador da morte que nos impele em direção aos outros. E o homem - porco-espinho que é - vive entre essas duas impossibilidades: ou só e com frio, ou com o outro e seu espinho.
Em outros termos, a função dos espinhos é a de serem impossibilitadores de uma fusão com o outro. Como aponta Barros (1998, p. 43):
Os espinhos são o obstáculo para uma suposta simbiose, é através deles que se rompe a proporção que seria necessária para se conseguir uma associação perfeita. Os animais não têm a intenção de espetar os outros, mas de se associar, e os espinhos, que no entanto fazem parte dos seus corpos, dos mesmos corpos que precisam de calor, surgem como um impedimento.4
O distanciamento moderado, que os porcos-espinhos encontram nessa báscula de avanços e recuos, pode ser entendido na certeira expressão de Fuks (2003): "viver junto separadamente" - que também aproxima os opostos. É certamente uma solução insatisfatória, pois "a necessidade de esquentar-se mutuamente não se satisfaz por completo, em compensação não se sente o espetar dos espinhos" (SCHOPENHAUER, 1851/2009, p. 665). No final das contas, cria-se uma solução instável e provisória.
O uso que Freud faz da parábola é para falar do modo como os seres humanos em geral se comportam afetivamente entre si e, principalmente, para descrever essa impossibilidade de uma aproximação muito íntima do outro. Ou seja, a ênfase freudiana recai sobre o segundo mal, o espinho.
Conforme o testemunho da psicanálise, quase toda relação sentimental íntima e prolongada entre duas pessoas - matrimônio, amizade, o vínculo entre pais e filhos - contém um sedimento de afetos de aversão e hostilidade, que apenas devido ao recalque não é percebido. Isso é mais transparente nas querelas entre sócios de uma firma, por exemplo, ou nas queixas de um subordinado contra o superior. (FREUD, 1921/2011, p. 56)
A única relação isenta de afetos de aversão e hostilidade, segundo Freud, seria a da mãe com seu filho. Todas as demais teriam seus espinhos. O ponto central aqui é que essa aversão, hostilidade e intolerância (Freud nomeia de diversas formas) se apega aos pormenores da diferenciação para se expressar, se apega às pequenas diferenças. "Não sabemos por que uma suscetibilidade tão grande envolveria justamente esses detalhes de diferenciação", diz Freud (1921/2011, p. 57), mas de fato os espinhos se evidenciam nesses pormenores. Tal como o sonho se vale do resto diurno, a hostilidade se apega à pequena diferença.
Há, contudo, certos momentos em que essa mútua aversão entre os homens, ou essa hostilidade primária, é suspensa.
[... ] toda essa intolerância desaparece, temporariamente ou de maneira duradoura, por meio da formação da massa e dentro da massa. Enquanto perdura a formação de massa, ou até onde se estende, os indivíduos se conduzem como se fossem homogêneos, suportam a especificidade do outro, igualam-se a ele e não sentem repulsa por ele. (FREUD, 1921/2011, p. 58)
Há ligação libidinal entre os membros no interior de uma massa que permite suportar a especificidade do outro. O narcisismo das pequenas diferenças, que distinguiria os integrantes ao instaurar uma mútua hostilidade, fica como que suspenso no interior da massa. O narcisismo das pequenas diferenças (em sua primeira versão, taboo of personal isolation) mostra-se, inclusive, uma oposição à formação da massa, pois essa exige "ligações libidinais entre os seus camaradas" (FREUD, 1921/2011, p. 58) e a recusa de qualquer pormenor que venha diferenciá-los. Afinal, os integrantes de uma massa supõem-se todos irmãos indiferenciados, como se tivessem a mesma forma, uni-form-izados.
Vale destacar que o narcisismo das pequenas diferenças não é um fenômeno exclusivo de massa (como em geral costuma ser definido), ainda que Freud tenha privilegiado esse locus em suas análises do fenômeno. A questão é que na massa ele aparece desavergonhadamente - sem diques. Na verdade, e inclusive, o narcisismo das pequenas diferenças desaparece no interior da massa entre os seus integrantes; para somente em um segundo tempo retornar - com intensidade - na oposição que se estabelece na formação de grupos, gangues, partidos, facções etc. E da mesma forma como antes o narcisismo das pequenas diferenças era uma garantia de uma unidade do Eu, agora passa a ser a garantia de uma coesão e singularidade de uma massa.
Uma massa não se forma sem uma limitação do taboo of personal isolation: "[...] se na massa aparecem restrições ao amor-próprio narcisista, inexistentes fora dela, isso indica forçosamente que a essência da formação de massa consiste em ligações de nova espécie entre os membros da massa" (FREUD, 1921/2011, p. 59). No entanto, tal limitação retorna em um âmbito mais amplo.
Toda vez que duas famílias se unem por casamento, cada uma delas se acha melhor ou mais nobre que a outra. Havendo duas cidades vizinhas, cada uma se torna a maldosa concorrente da outra; cada pequenino cantão olha com desdém para o outro. Etnias bastante aparentadas se repelem, o alemão do sul não tolera o alemão do norte, o inglês diz cobras e lagartos do escocês, o espanhol despreza o português. Já não nos surpreende que diferenças maiores resultem numa aversão difícil de superar, como a do gaulês pelo germano, do ariano pelo semita, do branco pelo homem de cor. (FREUD, 1921/2011, p. 56-57)
Essa renúncia de um taboo of personal isolation que distingue e separa os homens entre si, para depois reencontrá-lo na forma de narcisismo das pequenas diferenças na massa, define a segunda versão do narcisismo das pequenas diferenças em Freud e permite analisarmos esse fenômeno em um âmbito social. Somem os espinhos interpessoais, para retornarem mais pontiagudos nas relações intergrupais.
Há também outra forma de suspensão do narcisismo das pequenas diferenças, além dessa que ocorre na formação da massa. Na terceira e última parte do artigo Sobre a mais generalizada degradação da vida amorosa, Freud (1912/2011, p. 181) escreve:
Faça-se passar fome, por igual, a um grupo composto por indivíduos mais diversos entre si. À medida que cresce a imperiosa necessidade de alimentar-se, se apagarão todas as diferenças individuais e emergirá, em seu lugar, as uniformes exteriorizações dessa única e não saciada pulsão.
Essa quase parábola de Freud surge em meio a um exame não mais da escolha do objeto sexual, mas o foco passam a ser as modificações das pulsões. A ideia central é que a importância psíquica de uma pulsão aumenta significativamente quando ela é frustrada. Ou seja, quando o objeto é negado, a pulsão se intensifica. Para nós, contudo, convém se atentar a um detalhe dessa passagem. O aumento da imperiosa necessidade de alimentar-se não só intensifica a pulsão como apaga todas as diferenças individuais.
Uma massa de homens famintos que, subjugados pela necessidade, não se distinguem entre si: suspende-se, assim, o narcisismo das pequenas diferenças. A sequência seria: privação do objeto da necessidade, intensificação da pulsão, apagamento das diferenças. A fome aqui parece ter a mesma função do frio na parábola de Schopenhauer, ambos são anunciadores da morte e ignoram momentaneamente os espinhos. Tal ideia nos explicaria porque. em tempos de guerra (outra anunciadora da morte). também se refaz o narcisismo das pequenas diferenças, em que povos em geral hostis uns aos outros se unem em coligações e alianças. Obviamente, trata-se de uma suspensão temporária, logo retomada.
Narcisismo das pequenas diferenças e pulsão de morte
Um dos argumentos centrais do Mal-estar é a dupla renúncia a que está submetido o homem no interior da cultura. Por um lado, precisa renunciar as suas pulsões sexuais (pulsão de vida), ao menos renunciar sua realização imediata, visto que o princípio de realidade trabalha no sentido de postergar a realização do princípio de prazer. Por outro lado, também precisa renunciar suas pulsões destrutivas (pulsão de morte). A novidade trazida pelo Mal-estar é essa segunda renúncia, pois a primeira era de longa data conhecida e teorizada por Freud. Agora, o preço pago por cada um desses dois sacrifícios é distinto entre si; a renúncia das pulsões sexuais gera sintoma, já a renúncia da pulsão de morte gera sentimento de culpa. E o resultado final, bem conhecido por nós, é que, "se a cultura impõe sacrifícios não apenas à sexualidade, mas também ao pendor destrutivo do homem, compreendemos melhor por que para ele é difícil ser feliz nela" (FREUD, 1930/2010, p. 82).
No entanto, há ainda lugares no interior da cultura nos quais se pode, digamos assim, destilar (no sentido etimológico de cair gota a gota) as pulsões destrutivas. Lugares em que o outro "não constitui apenas um possível colaborador ou um objeto sexual, mas também uma tentação à tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo" (1930/2010, p. 76-77). Esses lugares nos quais é possível uma realização distorcida de tais tentações destrutivas se mantêm como que salvaguardados no interior da cultura e, na quinta parte do Mal-estar, Freud aponta para dois: a propriedade privada e o narcisismo das pequenas diferenças.
A breve menção à propriedade privada como locus para o exercício da destrutividade aparece em meio à crítica freudiana ao "sistema comunista", como ele denomina. Tal crítica está pautada na desconfiança de que há um pressuposto psicológico insustentável na tentativa de supressão da propriedade privada. Pois certamente "suprimindo a propriedade privada, subtraímos ao gosto humano pela agressão um dos seus instrumentos" (1930/2010, p. 80), no entanto, é apenas um dos seus instrumentos que lhe é retirado, ao passo que a pulsão não lhe é subtraída. Sabemos que o objeto é o mais variável dos componentes da pulsão, e privar a pulsão de seu objeto não elimina a pulsão, pelo contrário, a intensifica: "[... ] uma coisa é lícito esperar: que esse indestrutível traço da natureza humana [a pulsão] também a acompanhe por onde vá" (1930/2010, p. 80). Obviamente, não é uma análise dos ideais comunistas, Freud não tinha tal pretensão, "não é de minha alçada a crítica econômica do sistema comunista" (1930/2010, p. 80), trata-se apenas de apontar uma desconfiança do pressuposto psíquico que subjaz a ideia de revolução, e se tal pressuposto não seria ingênuo.
Já o narcisismo das pequenas diferenças seria outro modo de satisfação "cômoda e relativamente inócua" da destrutividade. Fazendo menção em texto de 1921, Freud escreve:
Certa vez discuti o fenômeno de justamente comunidades vizinhas, e também próximas em outros aspectos, andarem às turras e zombarem uma da outra, como os espanhóis e os portugueses, os alemães do norte e do sul, os ingleses e os escoceses etc. Dei a isso o nome de "narcisismo das pequenas diferenças", que não chega a contribuir muito para o seu esclarecimento. Percebe-se nele uma cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade, através da qual é facilitada a coesão entre os membros da comunidade. (1930/2010, p. 81)
Aqui, em 1930, o narcisismo das pequenas diferenças é retomado e reanalisado em outro patamar conceitual. A ênfase freudiana não já recai sobre a unificação de um grupo, o acento agora está do outro lado, o da exclusão, da rejeição do outro e da pulsão que a ele é destinada. "Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade" (FREUD, 1930/2010, p. 80-81). O outro passa a ser receptáculo da pulsão de morte.
A diferença da forma como é analisado o narcisismo das pequenas diferenças em 1921 e em 1930 é de fato marcante. Tal mudança advém da própria forma como Freud relê a formação da massa. No Mal-estar na cultura, há uma forma de conceber a união e coesão de uma massa que não se encontra em Psicologia das massas e análise do Eu.
Se, em 1921, uma massa é definida como um conjunto de indivíduos que colocaram "um único objeto no lugar de seu ideal do Eu e, em consequência, identificaram-se uns com os outros em seu Eu" (FREUD, 1921/2011, p. 76), note-se que não há referência ao conceito de pulsão de morte; em 1930, a união dos indivíduos entre si passa a ser um bom pretexto para exercício da destrutividade. "Não é de menosprezar a vantagem que tem um grupamento cultural menor, de permitir à pulsão um escape, através da hostilização dos que não pertencem a ele" (FREUD, 1930/2010, p. 80). De tal forma que uma massa também poderia se formar por colocar um único e mesmo objeto como destino da pulsão de morte. Unem-se e se identificam entre si, pois há outro a quem se pode hostilizar.
A questão em pauta é se, necessariamente, a massa necessita de um líder ou se ele pode ser substituído por um objeto a quem se destina a pulsão de morte. Tal desconfiança, ainda que não tenha sido desenvolvida, Freud já mostrava em 1921: "O líder ou a ideia condutora poderia tornar-se negativo, por assim dizer; o ódio a uma pessoa ou instituição determinada poderia ter efeito unificador e provocar ligações afetivas semelhantes à dependência positiva" (FREUD, 1921/2011, p. 55).
Nesse sentido, podemos resumir e cotejar as torções que sofre o narcisismo das pequenas diferenças no pensamento freudiano a partir da seguinte pergunta: qual é a função da pequena diferença no psiquismo? Ou: por que lhe é dada tanta importância? Em 1918, a pequena diferença nos fala desses pormenores que, ao serem investidos, diferenciam um indivíduo do outro, obliterando um fundo de indiferenciação e criando um taboo of personal isolation. Em 1921, a pequena diferença é um pormenor que diferencia massas, estas, por sua vez, só surgem com a condição de que os espinhos entre os integrantes sejam suspensos, para retornarem no embate entre grupos, gangues, facções etc. Já em 1930, a pequena diferença é um mero pretexto para o exercício da destrutividade.
Não são análises que se excluem, obviamente; nem são apenas três formas de abordar o mesmo fenômeno (uma espécie de relativismo teórico); trata-se, contudo, de perceber que há um diálogo mais profundo entre dois conceitos da metapsicologia freudiana: narcisismo e pulsão de morte.
O narcisismo das pequenas diferenças está relacionado com o conceito de narcisismo, já que, a todo momento, estamos discutindo como se forma e como se mantém uma unidade (do eu e da massa), mas está também relacionado ao conceito de pulsão de morte, afinal, ao que tudo indica, essa unidade só se forma e se mantém quando há um outro a quem se destina essa mortífera pulsão. Coesão e satisfação da destrutividade acabam por formar os dois pólos dessa noção.5
Temos aí não só uma problemática conceitual, mas o próprio fenômeno se mostra portador de um duplo risco. Primeiro, quando "a ligação social é estabelecida principalmente pela identificação dos membros entre si" (FREUD, 1930/2010, p. 83), já estamos no âmbito do que Freud chamou de miséria psicológica da massa, em que a heterogeneidade e a singularidade dos membros se desmancham em fumaça. Segundo, o potencial destrutivo que subjaz uma formação dessas. Assim se caracteriza duplamente o narcisismo das pequenas diferenças enquanto fenômeno social: como miséria psicológica da massa e como possibilidade do exercício da destrutividade.
Caricaturar o outro
A miséria psicológica do narcisismo das pequenas diferenças pode ser entendida, entre outras coisas, como uma miséria perceptiva, na qual a sensibilidade torna-se estereotipada. Em um de seus romances policiais, Contardo Calligaris (2011, p. 50) escreve:
Cada etnia costuma ser pouco sensível às diferenças de fisionomia das outras - tanto individuais quanto coletivas. Em São Paulo, onde vive uma grande comunidade de imigrantes japoneses, qualquer oriental, chinês ou coreano, é um "japa". Em Nova York, quando um branco tenta descrever um rosto de um negro, em geral não consegue dizer nada além dos traços que valem para a imensa maioria dos negros (pele escura, nariz largo, lábios espessos). É como se, na outra etnia, não houvesse diferenças. Não sei se acontece a mesma coisa com os negros quando eles olham para os brancos, mas é provável que sim.
Há dois elementos em jogo nessa citação: 1- apagamento da diferença no interior da outra etnia; 2- elevação de alguns traços ao estatuto de generalidades. Na verdade, os dois elementos são simultâneos: ao se elevar uns traços á categoria de gerais e definidores de uma etnia, já não se vê mais nada além dos supostos traços definidores. Em outros termos, podemos dizer que uma etnia vê a outra como uma grande massa amorfa, cujos integrantes não são distinguíveis entre si, mas se diferenciam de outra por traços gerais; como se dissesse: "eles se diferem de nós, mas não diferem entre si". Ou seja, o narcisismo das pequenas diferenças cria uma heterogeneidade intergrupal e, ao mesmo tempo, uma homogeneidade intragrupal.
Há uma coexistência entre diferenciação e indiferenciação no interior do narcisismo das pequenas diferenças. Pois ao se elevar alguns traços do outro à categoria de excentricidade, fora esses traços, já não se vê mais nada, sofre-se uma cegueira perceptiva e a sensibilidade torna-se assim estereotipada. Forte recurso psíquico esse que transforma a alteridade em uma caricatura, da qual se pode rir não um riso libertador - mas de escárnio.
Notas
1. Uma análise começa quando conseguimos fazer perguntas ali onde o contrato social não permite, o que gera certo estranhamento. Isso porque o consenso inibe a interpretação e o que é supostamente óbvio, em geral, é ideológico. Eis uma das formas de pensar a semelhança do psicanalista com uma criança que, perguntando sobre o óbvio, acaba por questionar o consenso dos adultos. Em suma, analisar é deixar explícito aquilo que é pressuposto e velado pelo óbvio ululante.
2. Crawley (1869-1924) foi um antropólogo social britânico que escrevia calhamaços tendo como objeto de estudo temas pouco comuns (por exemplo, sua interessante análise sobre a origem do beijo). Seu livro The mystic rose é central na composição do citado artigo de Freud de 1918, é nele que consta a ideia de um "taboo of personal isolation", que dará origem ao narcisismo das pequenas diferenças.
3. O próprio ato de beijar (outro objeto de estudo de Crawley) o rosto de um outro, tão comum em nossa cultura, é uma sorte de rito de aproximação. Herrmann (2001, p. 81) foi talvez quem melhor percebeu o que está velado em tal rito: "Na raiz de cada gesto de nosso rito de aproximação está contida uma teoria da distância correta que os parceiros devem respeitar." E tudo se passa como se houvesse uma denegação (Verneinung) no ato de aproximação: "Ao dar as mãos, mostramos que não levamos facas, ao beijar, que não mordemos".
4. Trata-se de um dos poucos artigos dedicados a uma análise do narcisismo das pequenas diferenças, e ainda leva o mérito de ser original. Romildo do Rêgo Barros empreende uma releitura da noção freudiana aproximando-a de dois dos três registros definidos por Lacan: real, simbólico e imaginário. Assim, o narcisismo aparece como unidade imaginária, projeção da imagem do corpo, enquanto as pequenas diferenças são o registro do real, em permanente exclusão, corroborando com o nosso primeiro argumento de que o narcisismo das pequenas diferenças é uma construção antitética. O embate entre os dois - narcisismo das pequenas diferenças - gera o que ele denomina de fronteira: "A fronteira é então o efeito, ou a marca, do encontro entre um corpo e uma impossibilidade, entre um corpo e algo que impede que o encontro se dê" (BARROS, 1998, p. 43).
5. Uma revisitação das formulações de André Green (1988) acerca do narcisismo negativo, não em um âmbito clínico como privilegia esse autor, mas focado nas análises de fenômenos sociais, ainda resta a ser feita e poderia trazer importantes contribuições para se pensar essa articulação.
Referências
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