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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.5 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2013
ARTIGOS
A letra e a voz
David Bernard
Psicanalista em Rennes ; mestre de conferências em Psicopatologia na Universidade de Rennes II; autor de Lacan et la honte, aux éditions du Champ freudien
RESUMO
A partir dos efeitos de linguagem e de escrita desvelados por Joyce em Stephen Hero, e desenvolvidos por Lacan nos seminários dos anos 1970, o presente artigo procura demonstrar como a psicanálise, desde Freud, pode ser dita uma "clínica do fonema". Com Lacan, o autor enfatiza a interpretação pelo equívoco e o trocadilho, indagando até que ponto se deveria repensar a clínica da psicose. Ao final, ele propõe um entrecruzamento da neurose e da psicose justamente na redução do sentido por meio da letra.
Palavras-chave: fonema; equívoco; trocadilho; letra.
ABSTRACT
From the effects of language and writing unveiled by Joyce in Stephen Hero, and developed by Lacan in the seminars of the years 1970, this article seeks to demonstrate how psychoanalysis, since Freud, can be said to be a "clinic of the phoneme". With Lacan, the author emphasizes the interpretation by the mistake and the pun, asking to what extent we should rethink the clinic of psychosis. At the end, he proposes an interweaving of neurosis and psychosis in the reduction of meaning through words.
Keywords: phoneme; misconception; Pun; letter.
Se há um autor que, mais do que os outros, manejou as relações da letra e da voz, este foi certamente Joyce. Jacques Aubert insistiu nisso com frequência, trazendo-nos, por exemplo, a seguinte frase extraída do ensaio crítico que Joyce consagrou a James Clarence Magnan:
Uma canção de Shakespeare ou de Verlaine, aparentemente tão livre e vivaz, é tão distante de toda determinação consciente quanto a chuva caindo sobre um jardim ou a luz do entardecer, e em nada difere da expressão rítmica de uma emoção que nenhum outro procedimento teria conseguido comunicar com tamanha perfeição (JOYCE, 1982, p. 953).(1)
Já muito se poderia dizer a partir daqui. Por que, então, uma canção, em sua unidade significante, seria mais propícia a dizer o afeto do que qualquer discurso?
Mas, sigamos, acentuemos outra coisa. Primeiramente aquilo que o próprio Jacques Aubert propõe: uma formulação possível da epifania joyciana e do procedimento poético que ela comporta. O que isso significa? Em que a epifania poderia encontrar-se com o efeito da chuva? Joyce responde a essa pergunta em Stephen Hero, enunciando primeiramente o efeito de afeto que as epifanias terão sobre o jovem Stephen, migalhas de palavras colhidas ao vento, assim como outras "gotinhas de conversas" (MUSIL, 1956, p. 9)(2) que caem sobre ele como vindas ao léu. Elas deixarão em Stephen "uma impressão tão vívida que sua sensibilidade permanecerá profundamente afetada por elas" (JOYCE, 1982, p. 512). Nos termos de Jacques Aubert, a epifania é "uma experiência de linguagem que lhe faz ouvir pela metade uma coisa outra que não aquela que foi pretensamente dita" (AUBERT, 1982, p. LXX). A epifania consiste no efeito de chuva do significante, separado do sentido, escutado em seu alcance de equívoco e, desde então, afetando o sujeito em seu corpo. É também, entretanto, o que impulsionará o jovem Stephen a se voltar para a letra, pois é por meio da letra do poema, esvaziada de sentido, mas entregue à sua voz, que Stephen buscará doravante, não propriamente encontrar, e sim, pelo menos, comemorar (ibid., p. LXIII) esse efeito primeiro de chuva, por meio do qual a linguagem o afetou. "Ao voltar para casa (...) ele agrupava as palavras e as frases que não tinham sentido" (JOYCE, 1982, p. 346).
Nos versos, ele procurava prender seus estados de alma os mais fugidios e compunha cada linha, não de palavra em palavra, mas de letra em letra. Após ler o que Blake e Rimbaud haviam escrito sobre o valor das letras, ele chegou a deslocar e combinar as cinco vogais para compor os gritos que exprimem as emoções primitivas (ibid.).
A partir do efeito de chuva inaugural, Stephen passa, então, ao uso sonoro e sem sentido da letra, visando comemorar o primeiro afeto que faz signo de seu advento à linguagem. Com a ajuda da manipulação da letra, porém, Stephen alcança - e também nos desvela - o efeito de estrutura do ser falante. E foi justamente isso que Lacan pôde demonstrar a partir dos anos 1970: para o sujeito, a linguagem não tem apenas efeito de representação, mas também de escrita. "A função do escrito" deve ser vista como "outra modalidade do falante na linguagem" (LACAN, 2003, p. 504). Portanto, não é que chova apenas na Bretanha, chove do lugar do Outro. Então, é menos como "banho" de linguagem que devemos conceber o Outro e mais como chuva de linguagem, "que cai sem previsão", do lado de fora do sentido, porém pesada em seus efeitos de gozo sobre o sujeito.
Lacan nos permite, então, determinar os móveis deste efeito de gozo e suas relações com a letra. A letra é o efeito de gozo com que o significante vem marcar o sujeito. O texto Lituraterra insiste nesse ponto e a conferência Excursus, dois anos mais tarde, lhe fará eco. A linguagem, prossegue Lacan, é um "acúmulo de gozo", com seus "efeitos de chuva", efeitos de "rasura" (LACAN, 1978) que fixarão no inconsciente do falante sua dupla condição de letrado. Exilado, ele doravante o será. Exilado da possibilidade de escrever a relação sexual. Não há relação sexual porque o efeito da linguagem assim introduzido, tanto quanto as suas consequências para o gozo, tornarão a "escrita vã" (ibid.) para cada um. Sucede, porém, que, diferentemente do gozo que desertou, os restos do gozo irão compor um "depósito" (LACAN, 19751). Lalíngua, e não mais a linguagem, dirá Lacan em A terceira, "precipita-se" (novamente o efeito de chuva) sobre a letra. Para assegurar o quê? A letra do sintoma, ou seja, a cifra de um gozo que o sintoma não cessará jamais de escrever no real.
Eis-nos, desde então, abordando uma primeira vertente da interpretação, aquela que o inconsciente, que "comanda" a letra (LACAN, 2009), processa por si próprio. Trata-se do procedimento pelo qual o inconsciente opera a cifra de um gozo reencontrado traumaticamente, por meio de uma letra sem sentido. É o que o sintoma "opera de forma selvagem" (LACAN, 19753, p. 15), para não mais cessar de escrevê-lo, eternizando assim a comemoração. Lá onde a relação sexual não pode ser escrita, lá onde a escrita é vã, a letra do sintoma não cessará nunca de se escrever, assegurando um resto de gozo para o sujeito. É isto o que Lacan acrescentará à sua Lituraterra: se o inconsciente comanda a letra, é porque, "no ciframento, está o gozo, sexual decerto" (LACAN, 2003, p. 553). Bem pouco, pois, longe de atenuar, ele apenas fixará a não relação. O inconsciente, portanto, não cessa de escrever, por intermédio de suas formações que são o lapso, o sonho, o sintoma e o chiste. Lacan delimitará o material significante, pelo qual operam a interpretação selvagem (LACAN, 19851, p. 125; LACAN, 2008) e o ciframento do inconsciente: "Todo significante, desde o fonema até a frase, pode servir de mensagem cifrada" (LACAN, 2003, p. 515). Ele volta a esse ponto em A terceira, e esclarece em seu Seminário Mais, ainda (LACAN, 19852, p. 29, 196): trata-se dos Uns da língua, certamente fora de sentido, mas desde então abertos para que o sentido jorre e se goze (LACAN, 1974). Em sentido estrito, se o inconsciente comanda, é por efeito de um Um encarnado em lalíngua, significante do gozo do sujeito, que se precipita como letra no sintoma e depois se repete, mas ainda é preciso demonstrá-lo clinicamente, para tentar deduzir, com Lacan, de que é capaz a interpretação do analista contra essa repetição.
Minha releitura dos casos comentados por Freud levou-me ao que poderíamos chamar de uma clínica do fonema. Durante todo o seu ensino, Lacan nunca cessou de acentuar a importância dessa clínica, no que tange aos efeitos de uma linguagem, efeitos de lalíngua sobre o inconsciente. Em 1957, Lacan já insistia em que, como "estrutura (...) localizada do significante..." (19981, p. 505), o fonema é particularmente inclinado a encarnar a instância da letra no inconsciente. Recordemos, então, o que é o fonema com o apoio de seu exemplo paradigmático, retirado por Jakobson de Alice no país das maravilhas (1963, p. 46): "Você disse porco ou pouco?" (3) - pergunta o Gato a Alice, numa frase em que vemos ser o fonema um traço distintivo, necessário à decisão do sentido, embora ele próprio esteja fora do sentido. O fonema é, então, uma unidade significante, que revela a natureza de toda unidade significante ou Um da lalíngua é a de estar fora do sentido. De fato, Lacan chama a atenção para isso, não é apenas o fonema que está fora do sentido, mas qualquer palavra da língua. "O fonema, isso nunca faz sentido. O chato é que, apesar do dicionário, a palavra tampouco faz sentido. Eu me esforço por fazer com que a palavra, qualquer que ela seja, diga um sentido qualquer na frase" (LACAN, 19751). Assim, é suficiente o fonema, uma letra, um som, denudados de sentido, para reintroduzir o significante em estado puro, em seu alcance de mal-entendido.
Quid, então, de suas repercussões na clínica e do que nela se demonstra como valor de gozo? O caso do pequeno Hans, relido com a teorização de lalíngua, poderia esclarecer-nos sobre o cifrar em que o inconsciente consiste: o cifrar de um gozo, por meio de uma letra, ela também gozo. Detenhamo-nos no que a criança desvela para seu pai, indicando como lhe adveio a fobia do cavalo puxando as carroças. Um dia em que ele brincava de cavalinho com as outras crianças, obtendo um imenso prazer, como observou Freud, seus colegas não paravam de dizer uma mesma frase. Ora, segundo Hans, e sem que ele saiba por quê, é na repetição desta frase que estaria situada a origem da sua fobia. "Porque eles ficavam dizendo: wegen dem Pferd (por causa do cavalo) e wegen dem Pferd (ele acentua o "wegen"). Então, talvez, por eles terem falado dessa maneira: wegen dem Pferd, talvez por isso eu tenha ficado com essa bobagem." É o próprio Hans quem acentua a matéria significante, matéria sonora da frase: é porque as crianças pronunciaram de determinada maneira o termo alemão 'por causa de', que o inconsciente cristalizou a fobia nos cavalos puxando carroças. Freud, por sua vez, não deixa de dar ênfase a isso, buscando primeiramente em suas análises a relação particular das crianças com as homofonias da língua, e ressaltando, no caso Hans, os equívocos a que se presta a palavra 'por causa de' em alemão. A forma particular, estilizada, diz ele, como o termo foi pronunciado pelas crianças, e depois pelo próprio Hans, não dava a entender wegen, mas Wägen, que significa carroça. Por isso, o 'por causa de' abriu a via para a propagação da fobia, do cavalo para as carroças, Wagen (FREUD, 1969). Nessas construções o significante cavalo tornou-se ,desde então, "um sinal (...) primeiro cristal", acrescentou Lacan (1995, p.392), em torno do qual giraram (ibid., p. 411) todos os desenvolvimentos míticos de Hans, um "por causa de" aberto a todos os sentidos de gozo.
Voltemos à questão: o que pode a interpretação do analista em relação a isso? Em seu texto O aturdito, Lacan formalizará vários tipos de interpretação e depois, na sequência de seu ensino, insistirá bastante na interpretação por meio do equívoco. E por que não, já que me parece que ela é a interpretação típica, pois desvela sua visada de redução do sentido, isto é, o isolamento de uma letra de gozo reduzida ao não-sentido da relação sexual ( LACAN, 2003, p.512), por ela até então velado. Ora, encontramos o mesmo testemunho na clínica freudiana do fonema. Sabemos a importância que Lacan dará ao brilho sobre o nariz que um paciente de Freud tinha erigido em fetiche. Freud soube decifrar por trás do Glanz auf der Nase o efeito de lalíngua que seu paciente esquecera, mas que foi recuperado em um flash, de pouco mais do que duas letras, To glance at the nose (LACAN, 19983). Sabemos também o destaque que ele dará à "censura fonemática", a Espe ([W]espe) do homem dos lobos, a que também voltará, por sua vez, Michel Bousseyroux. Quanto a mim, permitir-me-ei acrescentar outro exemplo de interpretação de Freud, uma história de jogo de palavras.
Trata-se de uma anedota que Freud narra em uma nota de rodapé de seu texto de 1908, Caráter e erotismo anal, e que lhe fora contada por um de seus pacientes. Um amigo deste último fora tomado por um ataque de riso ao ler uma passagem dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, na qual Freud ressalta o ganho de prazer que uma criança pode obter ao defecar. Aproximadamente vinte minutos depois, enquanto lanchava, ele foi surpreendido pela lembrança de uma ideia que sempre tivera durante a infância. Cito-o: "Eu sempre me imaginava fabricando o chocolate Van Houten (ele pronunciava Van Hauten) e imaginava que eu tinha um maravilhoso segredo, para sua fabricação, o qual eu guardava a sete chaves, e todo mundo se esforçava por arrancá-lo de mim, pois seria a felicidade geral. Não faço a menor ideia sobre como fui parar em Van Hauten. Parece que seu anúncio foi o que teve maior influência." Freud faz sua a interpretação do seu paciente. Como no caso de Alice e no de Hans, um sotaque particular, uma pronúncia, um "modo de dizer"4 Van Hauten, mais do que Van Houten, denuncia uma irrupção do inconsciente do sujeito, que não deixa de chamar a atenção do auditor. "Rindo (5) (...) eu pensava: Wann haut'n die Mutter? (Quando é que as mães dão tapas?(6)). Só algum tempo depois, eu me dei conta de que meu jogo de palavras (7) continha, de fato, a chave da totalidade desta recordação da infância (FREUD, 1969). Ao que poderíamos retorquir que haüten (8), que significa "despelar", no sentido de matar, estaria talvez mais próximo do dizer do nosso homem e de sua recusa a se ver despojado de seu gozo.
Com o apoio desses exemplos clínicos, voltemos então ao que Lacan delimita quanto aos objetivos da interpretação, e aqui, precisamente, da interpretação pelo equívoco. Em primeiro lugar, se o analista usa o equívoco, é justamente para operar uma redução do sentido (19752) com que o sintoma se nutria até então. Daí em diante, é contra a barra que separa o significante do significado que a interpretação se dirige. Pode-se dizer o mesmo da escrita, quando ela propõe, face ao significante que se enuncia, "uma leitura outra que não o que ele significa" (LACAN, 19852, p. 50-52). Por isso, a interpretação deve ser sonora e nós reencontramos a relação estreita que une a letra e a voz, tal como Joyce a demonstrou. "A interpretação" - insiste Lacan na Universidade de Colúmbia - "deve sempre - no analista - levar em conta o seguinte, que, no que é dito, há o sonoro, e que este sonoro deve estar em consonância com o que tem a ver com o inconsciente" (19754, p. 42-45). Em seu seminário O Sinthoma, ele diz também: "É unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe" (2007, p. 18).
Acrescentemos, porém, mais uma questão. Se, na neurose, o que justifica a interpretação é que ela pode apoiar-se na "abolição do sentido", como isso se passa na psicose?
Que nesse caso a interpretação esteja proscrita, eis aí alguma coisa cujos fundamentos poderíamos interrogar, tanto quanto o modo como o próprio sujeito psicótico se faz intérprete, e nos ensina. Desde 1946, Lacan indicava essa via (19982, p. 167), colocando em série os jogos de lalíngua de seu amigo Leiris com as "interpretações por trocadilho" que Guiraud (1921, p. 403) encontrou em vários sujeitos psicóticos. Será possível que o último ensino de Lacan, com sua redefinição do inconsciente, tenha mudado alguma coisa na prática clínica com a psicose, e nos leve a reexaminar, também aqui, para que serve a interpretação, falada ou escrita? Desde então, para concluir, um breve retorno à clínica do fonema, desta vez na psicose.
Começo assinalando a perplexidade inicial que parece sempre afetar o sujeito psicótico, desde o momento em que o significante em sua pureza de equívoco retorna a ele no real. O caso do Homem das falas impostas é um bom testemunho disso. Ele confiou a Lacan não apenas que palavras se impunham a ele, mas também o modo como, sempre que isso acontecia, ele padecia no real pelo significante "reduzido ao que ele é, ao equívoco, a uma torção de voz". "Ele escutava, por exemplo" - relata Lacan - "alguma coisa como sujo assassinato político e tornava equivalente a sujo assistanato político" (2007, p. 92). A partir da perplexidade primeira, suficiente para impor o jogo do fonema, as diferenças teriam de ser introduzidas na clínica. Um determinado sujeito poderia enlouquecer até à mania, ou mesmo, até à desintegração esquizofrênica do sentido, enquanto outros o utilizariam para estabelecer um sentido novo ou, ao contrário, para o foracluírem. Assim, o paciente psicótico de Guiraud usava a decomposição dos nomes para obter a Revelação de uma significação Outra, em concordância com o seu delírio. "Ele compreende bem" - relata Guiraud (1921, p. 404) - "que tinha de ficar infeliz em Paris, pois, quando se pronuncia com o sotaque alsaciano, obtém-se Baris, o que significa que os pobres riem e, consequentemente, zombam das pessoas" (9).
Schreber, por sua vez, testemunha sua relação com os fonemas, mas faz um uso diferente deles, até mesmo contrário. Suas memórias demonstram, com efeito, que ele não tratava sua psicose apenas pelo estabelecimento de uma significação delirante, mas que se dedicava também ao manejo dos fonemas, e de seu alcance de equívoco. Trata-se da ajuda verdadeiramente preciosa que a homofonia (10) lhe fornecia para sua defesa, "uma simples analogia dos sons", além de tudo divertida, os incessantes ritornelos dos pássaros miraculosos. Por exemplo: quando estes lhe diziam 'Santiago', Schreber podia retorquir com 'Cartago'; com Jesus-Christu a Chinesentum; com Atemnot a Abendrot, e assim por diante. Isso porque, se os pássaros "percebem palavras que têm um som igual ou próximo daquele que no momento estão falando (tagarelando) [...] isto os deixa num estado de surpresa em consequência do qual, eles, por assim dizer, sucumbem à assonância..." (SCHREBER, 1984, p. 204 - os grifos são do próprio Schreber). Desse modo, apoiando-se sobre a letra e a voz, via fonema, Schreber deixava enfim "passar o sem-sentido" (ibid.).
Há, portanto, a perplexidade primeira na qual um significante, reduzido a uma torção de voz, pode expulsar um sujeito, deixando-o na incerteza de uma Revelação por advir. Em seguida, há o modo como o sujeito poderá, talvez, replicar. Aqui, Schreber que usa os fonemas para se defender do imperativo de sentido em que consiste o comando para pensar. Abre-se desde então uma questão, aquela que Lacan levanta a partir do próprio Joyce. Depois de ter interrogado o caráter imposto da fala para Joyce, Lacan de fato observa o modo como este, por meio do seu manejo do equívoco, de letra e da voz, acaba por quebrar a "identidade fonatória" da linguagem. A partir daí ele se interroga (e a nós):
Sem dúvida, há aí uma reflexão no nível da escrita. É por intermédio da escrita que a fala se decompõe ao se impor como tal, a saber, em uma deformação acerca da qual permanece ambíguo saber se é caso de livrar-se do parasita falador (...) ou, ao contrário, de se deixar invadir por propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala (2007, p. 93).
Também na psicose, coloca-se a questão de saber como o sujeito pode libertar-se do parasita linguageiro e de seus efeitos de gozo (ouço) - sentido (11). Reduzir o sentido por meio da letra, eis onde neurose e psicose, como seres falantes, poderiam talvez se cruzar, nesse caso como um modo de cessar a espera de uma Revelação do verbo, seja ela de fantasia (LACAN, 1981, p. 12) ou de delírio. E não era o que Gérard Macé encontrava no poeta Jean Tardieu? "Felizmente, as palavras são algumas vezes tão leves quanto as portas de tecido que levantam" (1986, p. 10).
Notas:
(1) Note-se que Joyce retoma esta frase em « Stephen le Héros », ibid. p. 388.
(2) Agradeço ao colega Laurent Ottavi por ter chamado a minha atenção para esta passagem de Musil.
(3) No original em francês: "cochon ou cocon?'", cuja tradução literal, sem a ressonância do original, teria sido: "porco ou casulo?" (N. T.).
(4) Expressão que tomo de empréstimo a Lacan, em "Conferência em Genebra sobre o sintoma", publicada no Bloco de notas da psicanálise, no 5, 1985.
(5) Eu próprio acentuo este termo (N. A.).
(6) Em francês: "Quand les mères donnent-elles la fessée? » - "donner la fessée", dar tapas, o que também remete a « fesse » (nádega, bunda, traseiro) (N. T.).
(7) Eu próprio acentuo este termo (N. A.).
(8) Agradeço a meu colega Alfred Rauber, que me esclareceu esse ponto.
(9) Há um trocadilho que se estende de 'Paris' até 'bas peuple y rit', passando por 'Baris', o qual desaparece na tradução em português. A expressão "bas peuple" designava, na França do século XIX, a população pobre em geral, da cidade ou do campo.
(10) De fato, uma paronímia: a quase identidade sonora de duas palavras, com diferença de apenas um ou dois fonemas. Cf. Yaguello M., Alice au pays du langage, Seuil. Paris. 1981 p.175.
(11) No original: joui-sens, que remete simultaneamente a "ouço sentido" e "gozo (do) sentido" (N. T.).
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Recebido em 06/04/2013
Aprovado em: 22/11/2013
Tradução: Vera Pollo