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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.6 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2014
ARTIGOS TEMÁTICOS
A Miséria da Psicopatologia
The Misery of Psychopathology
David Borges FlorsheimI; Manoel Tosta BerlinckII
IGraduado em Psicologia (PUC-SP) e em Ciências Sociais (USP). Especialista em Psicologia da Saúde e em Psicoterapia Psicodinâmica dos Transtornos de Personalidade (ambas pela UNIFESP - Escola Paulista de Medicina). Mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP) no Laboratório de Psicopatologia Fundamental. E-mail: davidborgesf@hotmail.com
IISociólogo, psicanalista, Ph.D. (Cornell University), Professor da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Presidente da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. E-mail: mtberlin@uol.com.br
RESUMO
O campo do discurso sobre o sofrimento psíquico, a Psicopatologia, possui uma longa e rica tradição; contudo, num contexto como o nosso, no qual os saberes se encontram altamente especializados, muitos parecem optar por ignorar essa tradição, recolhendo-se em grupos fechados. Se o sectarismo pode favorecer uma segurança intelectual quanto aos próprios fundamentos, por outro lado, torna-se uma postura miserável justamente por desconsiderar outros pontos de vista. Considerando a diferença entre rigor e rigidez, buscou-se aqui pensar a influência da Antropologia Fundamental para a Psicopatologia Fundamental. Esta última se configura como um ideal de comunicação que considera a diversidade de perspectivas.
Palavras-chave: Psicopatologia Fundamental, Antropologia Fundamental, Diálogo, Sectarismo.
ABSTRACT
The discourse about mental suffering, Psychopathology, has a long and rich tradition. However, many professionals ignore this tradition especially in our context of widespread specialization, and choose to remain in closed groups. On the one hand, sectarism can provide an intellectual safety regarding the very background. On the other hand this becomes a poor stance because it ignores other points of view. We emphasize the difference between precision and rigidity, and we evaluated the influence of Fundamental Anthropology on Fundamental Psychopathology. The latter is seeing as an ideal of communication that takes diversity of perspectives into consideration.
Keywords: Fundamental Psychopathology, Fundamental Anthropology, Dialogue, Sectarism.
A proliferação de teorias é benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade prejudica seu poder crítico.
FEYERABEND
O livro Sistema das Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria, escrito em 1846 por Pierre-Joseph Proudhon, tornou-se um clássico por diversas razões, entre as quais, pelos diversos jogos de palavras que se fizeram com o seu título. Karl Marx, por exemplo, escreveu, logo no ano seguinte, um texto chamado A Miséria da Filosofia. Mais de cem anos depois, outros autores, tais como Karl Popper, em A Miséria do Historicismo (1957), E. P. Thompson, em A Miséria da Teoria (1978), e também Pierre Bourdieu, em A Miséria do Mundo (1993), também aproveitaram esses títulos para escreverem seus próprios textos. Menos importante do que discorrermos sobre o conteúdo de tais livros - ao menos no que se refere ao nosso presente artigo - é explicitarmos a procedência de nosso título.
Qual é a miséria da Psicopatologia? É possível dar tantas respostas a essa questão, tanto no sentido prático quanto teórico, que o melhor é respondermos logo para não dar margem para o grande número de entendimentos possíveis. Caso contrário, podemos ir parar em reflexões sobre as condições de trabalho no Sistema Único de Saúde, sobre a formação dos profissionais no campo da Psicopatologia ou mesmo sobre algumas tendências de tratamento atuais.
A miséria maior que destacamos aqui é aquela própria ao sectarismo teórico e metodológico. É a posição daquele que considera seus próprios saberes e teorias a dar conta de uma suposta realidade externa e, desse modo, os demais saberes ou estariam errados, ou seriam superficiais. Dessa forma, não existiria o menor interesse no diálogo com o diferente, mas apenas, no melhor dos cenários, uma tolerância. A nosso ver, tal atitude é especialmente miserável no campo psicopatológico, pois, segundo acreditamos, a interlocução e o diálogo deveriam ser os fundamentos essenciais de uma área constituída justamente por saberes diversos.
Que o sectarismo deve ser evitado é algo afirmado constantemente e em quase todo lugar (meios científicos, diplomáticos, religiosos etc.). Dificilmente, alguém se apresenta como dogmático e, ao menos num primeiro discurso, é comum o respeito e a consideração pelos demais saberes. Para sairmos, contudo, de uma posição de julgar um determinado comportamento, devemos pensar na utilidade de evitar o dogmatismo, considerando algumas de suas consequências.
Referindo-se mais especificamente à Psicanálise, por exemplo, Dunker (2010), num subitem intitulado "Com quem você pensa que está falando?", afirma que "argumentos de autoridade, do tipo Freud disse, ou Lacan falou, revelam muitas vezes apenas a subserviência reverente do autor diante da tradição que o precedeu".
Quando citamos nossos autores preferidos colocando-os num lugar idealizado de autoridade, acabamos sendo subservientes a eles e às suas ideias, ao eximir-nos de nossa exigência ética de pensar. Tal uso, como nos fala Dunker, posiciona o autor num lugar de portavoz de uma autoridade a ser respeitada e, sobretudo, a não ser questionada.
Até mesmo do ponto de vista da Lógica Formal, entretanto, o procedimento dogmático assim manifestado pode ser considerado errôneo (e, dessa forma, podemos nomeá-lo de falácia). O Argumentum ad Verecundiam (apelo à autoridade), usado para "granjear a anuência a uma determinada conclusão" (COPI, 1981, p. 81) pode ser facilmente utilizado em excesso, e mesmo de forma a se constituir como falacioso. Isso se dá quando se utiliza um autor para testemunhar em questões extrínsecas à sua especialidade. Se, por um lado, entendermos a Psicopatologia como um campo composto de múltiplos saberes, mas, por outro, utilizarmos apenas um deles, considerando-nos portadores de uma resposta definitiva sobre alguma questão, estaremos incorrendo, então, numa falácia.
Pensando a prática psicoterápica, Orange (2010) elabora algumas reflexões sobre a questão:
Precisamos pensar e nos questionar a cada vez que nos enamoramos de um único pensador ou escola de pensamento. Todo herói ou heroína psicanalista ou psicoterapeuta pode tornar-se nosso guru, ou até mesmo um "cult leader" (líder de seita). Seduzidos por tais autoridades, tenham fama mundial ou local, talvez abandonemos nossa responsabilidade humana de pensar e de nos questionarmos. Em vez disso, somos tentados a interpretar o mundo, nossa experiência clínica e, pior ainda, nossos pacientes, por meio da voz do "cult leader". Talvez, inclusive, nós nos associemos a grupos (inclusive institutos de formação) que excluem, dominam e desautorizam as vozes dissidentes (tradução nossa) (p. 4-5).
Como afirma a autora, o uso de apenas uma referência, no momento de lidar com a complexidade do mundo, aponta frequentemente para uma postura sectária. Na Psicopatologia, na qual se encontram propostas de compreensão que variam desde o puramente orgânico até o puramente psíquico, é especialmente importante a consideração de diversos saberes. Isso porque ela se insere na área da saúde, e é até mesmo perigoso abordar as questões clínicas de acordo com uma única referência. O que para uma teoria pode ser perfeitamente entendido como uma histeria, por exemplo, para outra pode tratar-se de uma lipofuscinose. Também o que pode ser motivo de uso de fortes medicações psicotrópicas para uns, poderia ser tratado com psicoterapia por outros.
Nesse cenário, cumpre atentar que todos "veem" suas teorias na prática. Comportamento, inconsciente sexual, reforçamento, inconsciente coletivo, enactment, negação, angústia existencial etc.: tudo isso é visto na prática, a depender da referência que utilizarmos. Como diria o criador da Antropologia Social, Franz Boas: "o olho que vê é órgão da tradição" (SAHLINS, 1997, p. 181), ou seja, não é pelo fato de vermos perfeitamente alguma coisa na clínica que necessariamente a outra tradição está errada, pois nossos olhos já estão preparados para ver algumas coisas e não outras, por mais que possamos mudar isso.
Rigidez e rigor
Temos, portanto, aí não somente uma exigência empírica que nos compele a abrir a ciência do homem, mas também exigência epistemológica que nos compele a elaborar uma teoria necessariamente aberta, contrariando a tendência tradicional segundo a qual o rigor impunha o fechamento, isto é, a autarquia teórica. Na realidade, o fechamento transformava a teoria em doutrina, tornando-a ao mesmo tempo inconsistente. É esse um dos inúmeros efeitos da confusão entre rigor e rigidez. (MORIN, 1974, p. 10-11).
A passagem acima trata de uma questão significativa para a ciência no século XX e prevalente até os dias atuais. Trata-se da divisão e especialização crescentes do trabalho em geral (incluindo-se aí a atividade científica). Por que motivo, porém, isso seria uma questão? De acordo com Morin (1974), se, por um lado, a divisão pode ser considerada positiva no sentido de complexificar cada área do conhecimento, fazendo-a evoluir (e, à primeira vista, tornando-a mais rigorosa), por outro lado essa mesma divisão, quando dificulta o diálogo entre as áreas separadas, pode prejudicar cada uma delas.
Segundo acreditamos, junto com boa parte da Filosofia e das Ciências Sociais contemporâneas, todas as divisões e classificações são invenções humanas: a natureza não divide o corpo humano nem o mundo, isso somos nós mesmos, humanos, que fazemos. A natureza não dividiu os seres em animais, vegetais e minerais, nem dividiu o corpo humano em cabeça, tronco e membros, por exemplo. Existem muitas justificativas teóricas para validar as divisões, no sentido de geralmente considerar-se a utilidade de usar tal forma de categorização. É um fato, entretanto, que não se tratem de divisões "naturais", pois a natureza por si só não nos diz nada disso. Assim, o mesmo pensamento pode ser utilizado em relação à divisão de disciplinas no interior da ciência, ou seja, há sempre um caráter arbitrário presente nas divisões.
Como vimos, Morin (1974) trata da diferença entre rigor e rigidez. Segundo ele, as ciências foram-se fechando paulatinamente em si mesmas em nome de um rigor teórico, metodológico e epistemológico. Consequentemente, considera-se com frequência que o diálogo com outras ciências, e a não especialização (abertura), seria algo pouco rigoroso.
Theodor Adorno (2008), um dos principais autores da Escola de Frankfurt, trata desta questão quando toma como exemplo a Astrologia. Em determinado momento de seu livro As Estrelas descem à Terra, Adorno pergunta por que razão a Astrologia não é normalmente entendida como uma ciência. Segundo ele, isso se dá principalmente pela razão de ela juntar dois campos do saber - a Astronomia e a Psicologia - que, segundo a comunidade científica, não são ciências passíveis de dialogar.
Desse modo, não se acredita, nos meios acadêmicos em geral (ao menos oficialmente), na possibilidade de o movimento dos astros interferirem diretamente no comportamento ou no afeto dos seres humanos. Certamente, o Sol e a Lua possuiriam alguma influência: um dia ensolarado com clima ameno certamente permitiria mais facilmente um humor hipertímico do que um dia frio e com garoa. O fato de Plutão estar alinhado com Saturno, contudo, é algo considerado pouco provável de interferir diretamente no humor, na vida sexual ou nas perspectivas de ascensão profissional daqueles nascidos no dia 29 de fevereiro, por exemplo.
Se há diálogos passíveis de serem considerados pouco rigorosos ou até mesmo irracionais, por outro lado haveria uma grande quantidade de informações isoladas sem uma devida integração entre si. No entanto, justamente essa integração poderia permitir uma abertura na compreensão do mundo. Em outras palavras, a produção científica de saberes, caso estes sejam pensados juntamente com outros referenciais, poderia abrir novas possibilidades de entendimento. Adorno (2008) afirma que: "é precisamente esse tipo, ao mesmo tempo cético e insuficientemente equipado do ponto de vista intelectual - um tipo dificilmente capaz de integrar as diversas funções intelectuais apartadas pela divisão do trabalho -, que parece estar se difundindo hoje" (p. 186).
Se por um lado podemos detectar uma falta de rigor em alguns diálogos entre saberes distintos (tal como parece acontecer na Astrologia, ou ao menos em certo modelo seu), por outro lado percebemos que a incapacidade de diálogo pode ser uma demonstração de rigidez e doutrinação por parte do cientista. O diálogo com o diferente, portanto, caminha numa linha bastante tênue entre rigor e rigidez.
Contrapondo-se ao sectarismo há, portanto, o ecletismo, que é definido como uma postura metodológica que leva em consideração a diversidade, porém, de forma pouco rigorosa. Isso porque, de acordo com Oliveira Filho (1995), os conceitos são usados fora dos seus respectivos esquemas conceituais e teóricos, alterando os seus significados. Desse modo, justapõem-se apenas os conceitos das disciplinas, sem qualquer tipo de questionamento acerca de suas diferenças, semelhanças e peculiaridades. Segundo o autor, o ecletismo pode inclusive ser considerado uma patologia metodológica, justamente por considerar diversos aspectos sem respeitar alguns limites metodológicos necessários. Além de rigor/rigidez e sectarismo/ecletismo existem, porém, outras possibilidades metodológicas.
Antropologia Fundamental e Psicopatologia Fundamental
Antes de prosseguirmos faremos uma breve digressão histórica, no sentido de situarmos a criação de uma proposta de entendimento psicopatológico. Em 1972, realizou-se na Abadia de Royaumont, na França, um colóquio sobre "A Unidade do Homem: invariantes biológicos e universais culturais". Um dos resultados desse colóquio foi a publicação de livros onde se encontra um resumo de algumas das principais contribuições científicas suscitadas pelo encontro (no Brasil, ele foi publicado pelas editoras Cultrix e Edusp, com o título do colóquio e dividido em três volumes, sendo eles: Do primata ao Homem, O Cérebro e seus Universais e Para uma Antropologia Fundamental).
Uma das características que chama a atenção para esse colóquio em especial é a natureza pluralista dos diálogos que ocorreram. É possível, com efeito, perceber formações científicas variadas entre os trinta e seis autores participantes. Biofísica, Medicina, Sociologia, Neurofisiologia, Psicofisiologia, Etologia, Psicologia, Biologia Molecular, Antropologia, Linguística e Matemática são as especialidades de alguns autores. Havia, portanto, tanto representantes das Ciências Humanas quanto das Ciências Naturais.
Todos esses participantes eram considerados extremamente competentes em suas áreas naquela época (muitos o são até hoje), e trabalhavam em centros de pesquisa considerados referências mundiais no assunto. Dessa forma, podemos encontrar nomes como Georges Balandier, Humberto Maturana e Edgar Morin, além de Salvador E. Luria e François Jacob (ganhadores do prêmio Nobel de medicina em 1969 e 1965 respectivamente).
Assuntos variados tais como a forma pela qual se deu a passagem do animal irracional para o animal dotado de razão, o funcionamento do cérebro humano e ainda o desafio de se pensar questões universais do ser humano, permitiam e exigiam um diálogo entre os diversos saberes existentes. Os assuntos se pautavam majoritariamente por estudos antropológicos, mas num sentido bem amplo deste termo, ou seja, a tudo que se refere ao estudo sobre o Homem.
Ao contrário do sectarismo, que descarta a possibilidade de consideração de saberes diferentes, e do ecletismo, no qual não se respeitam os limites metodológicos necessários, a proposta da Antropologia Fundamental refere-se a um pluralismo metodológico. Este se configura como uma postura que considera o diferente, levando, contudo, em consideração os limites necessários para não incorrer na falta de rigor ou na incoerência. Para mudar um pouco o foco, vejamos o que disse Pierre Fédida (1998):
Seria, então, conveniente pensar o projeto de uma psicopatologia fundamental como um projeto de natureza intercientífica, em que a epistemologia comparativa dos modelos e de seu funcionamento teórico-clínico desempenharia o papel determinante de uma consciência de seu limite de operatividade e de sua aptidão a transformarem-se uns aos outros. Caso em que, o fundamental seria aqui um ideal de comunicação mais do que o objeto de uma esperança da ciência unificada (itálicos nossos) (p. 115).
Fédida está propondo um ideal de comunicação muito semelhante ao do colóquio da Abadia de Royaumont. Em especial, chama a atenção o uso da palavra "fundamental" para caracterizar um projeto de natureza intercientífica que encontramos tanto no termo "Antropologia Fundamental" quanto em "Psicopatologia Fundamental". Estamos, com isso, propondo um entendimento de que possivelmente (e talvez até provavelmente) Fédida aproveitou a ideia do colóquio - onde se privilegiava a pluridisciplinaridade - para propor algo muito semelhante para o campo da Psicopatologia.
Para reforçar nosso argumento a respeito dessa influência para a criação da Psicopatologia Fundamental, podemos considerar que, dos trinta e seis autores que participaram do encontro na França, vinte e um trabalhavam naquele país, sendo cinco deles professores da Universidade de Paris. Isso é importante, pois Fédida também era professor da referida universidade e muito dificilmente teria ignorado o colóquio ou as propostas dele resultantes. Além disso, tendo como base uma formação filosófica e plural, Fédida sempre esteve interessado no diálogo com outros saberes. Diz Pereira (2001):
Em sua comunicação ao V Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, lida na abertura daquele evento realizado em Campinas/SP, em setembro de 2000, afirmava o professor Fédida: "Relendo recentemente algumas notas escritas no Brasil em 1974, tive o prazer de constatar que foi em Campinas que avancei a seguinte proposição: a psicopatologia geral correspondeu, em 1915, a uma atitude reflexiva da pesquisa pela psiquiatria da especificidade de sua compreensão psicológica. Hoje e no futuro, é menos necessário visar uma fundação da psiquiatria do que sua extensão pluridisciplinar através de uma psicopatologia fundamental".
Desse modo, Fédida afirma ter começado a desenvolver a ideia de uma Psicopatologia Fundamental em Campinas no ano de 1974. Como já sabemos que dois anos antes (em 1972, na França), houve um projeto similar onde se buscou pensar uma Antropologia Fundamental de modo igualmente pluridisciplinar, podemos deduzir, se considerarmos a possibilidade de ter havido essa influência, que a Antropologia contribuiu na constituição da Psicopatologia Fundamental. Além disso, conhecemos também a preocupação do autor em pensar a influência deste campo do conhecimento para a Psicopatologia, como vemos neste fragmento:
Por muito tempo, praticamente até os anos 1950 e 1960, muitos psiquiatras tinham a preocupação de definir a vocação antropológica da psiquiatria. Ademais, a psiquiatria não fazia totalmente parte da medicina, embora seja necessário ser médico para ser psiquiatra. A psiquiatria solicitava a participação das Ciências Humanas, da mesma forma que das Ciências da Vida [Naturais], marcando sua vocação antropológica. O lugar que a psiquiatria ocupava era bastante singular. Essa perspectiva - de dar fundamentos antropológicos à psiquiatria - foi em parte abandonada diante da recente evolução das disciplinas científicas. Além disso, em psiquiatria é cada vez menos necessário - e não se tem mais tempo! - escutar os pacientes como outrora e ouvir suas histórias para compreender o desenvolvimento da doença (itálicos nossos) (FÉDIDA, 2001, p. 170).
Para Fédida, portanto, trata-se de uma perda significativa por parte da psiquiatria quando ela não apresenta uma preocupação antropológica. Dessa forma, a Psicopatologia Fundamental poderia ser pensada como uma Psicopatologia que considera a Antropologia, entendendo-se esta última como uma disciplina em que há diálogos entre Ciências Humanas e Ciências Naturais (como aconteceu no colóquio).
O trecho acima traz luz às origens da proposta de Fédida e aponta para uma criatividade do autor no sentido de propor um sistema metodológico para uma área do saber que historicamente sofreu de dogmatismos e falta de rigor. Ao propor uma Psicopatologia Fundamental, o autor busca aproveitar a preocupação de um momento histórico no qual se percebia melhor a importância de as disciplinas não se fecharem em si mesmas.
Se é frequente percebermos uma tendência ao sectarismo no campo psicopatológico (seja na Medicina, Psicologia, Psicanálise ou outras disciplinas), quando consideramos autores influentes nesse campo, vemos que normalmente consideram saberes variados na construção do conhecimento. Karl Jaspers, por exemplo, um autor que influencia a Psiquiatria até hoje, afirma que "a medicina é apenas uma das raízes da psicopatologia" (2003/1913, p. 50). Além disso, considera que "de fato convergem na psicopatologia os métodos de quase todas as ciências... Esta dependência de outras ciências, cujos métodos e conceitos se transferem, é constitutiva da psicopatologia" (2003/1913, p. 52).
A Psicopatologia Fundamental estimula também, como método, a interlocução entre saberes. Ela se aproxima da visão da Psicopatologia Geral de Jaspers quando concebe a multiplicidade de saberes como parte constitutiva (e fundamental) da Psicopatologia. Quanto a isso, diz Berlinck (2000):
A Psicopatologia Fundamental é um campo de pesquisa e interlocução composto por múltiplas posições - a psiquiatria, a psicologia, a psicanálise, a filosofia, a sociologia, a arte - que tratam do sofrimento humano na perspectiva psicoterapêutica (contracapa e orelha do livro).
Em razão dessa busca pela interlocução entre diferentes, tanto a Antropologia Fundamental quanto a Psicopatologia Fundamental se distanciam da miséria intelectual. Se, para alguns, o fechamento garante segurança quanto aos próprios fundamentos, a interlocução pode justamente permitir o questionamento dos mesmos de forma constante. "Fundamental", portanto, pode significar aqui a ideia de que se temos muita segurança quanto aos nossos fundamentos, então provavelmente há algo de muito errado no que estamos fazendo.
Referências bibliográficas:
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Recebido em: 06//06/14
Aprovado em: 01/11/14