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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.8 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2016
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2016v1p.16
ARTIGOS TEMÁTICOS
O que se inscreve é o que se transmite: escrita, estilo e transmissão
What is inscribed is which is transmitted: writing, style and transmission
Luis Vinicius do NascimentoI; Denise Maurano MelloII
IDoutor em Memória Social. Psicanalista e Professor das Faculdades Integradas Vianna Júnior. End. Av. dos Andradas 547, sl 718, Juiz de Fora MG. luisnascimento@gmail.com; (32)99912-1112
IIPós-Doutora em Letras; Psicanalista e Professora do Programa de Pós Graduação em Memória Social da UNIRIO. End. Av. Pasteur, 458 - Urca, Rio de Janeiro - RJ. denisemaurano@corpofreudiano.com; (21) 99328-5701
RESUMO
O objetivo deste trabalho é abordar a questão da transmissão da psicanálise em sua dimensão mais ampla. Por se posicionar de forma eticamente diferenciada do discurso sustentado pela ciência - que ambiciona abarcar o saber completo ao controlar até mesmo as suas lacunas - a psicanalise aposta justamente em um espaço no qual o vazio possui um papel essencial. É a partir dele que a psicanálise se abre para o sujeito dividido, aquele que semi-diz, aquele que é dividido entre verdade e saber, entre desejo e gozo: o sujeito do inconsciente. Por isso, a psicanálise necessita também de um posicionamento diferenciado na transmissão de seus conceitos, que tocam justamente o irrepresentável e a incapacidade das palavras expressarem as coisas por completo. É neste contexto que a questão da escritura adquire um papel essencial no saber psicanalítico, sobretudo a partir do conceito lacaniano da letra, um borrão que se dá entre o simbólico e o real, capaz de tocar o irrepresentável e transmitir algo dele, por um estilo.
Palavras-chave: ESCRITA; ESTILO; TRANSMISSÃO; PSICANÁLISE; INSCRIÇÃO.
ABSTRACT
The aim of this paper is to approach psychoanalysis' transmission, considering its maximum amplitude. Psychoanalysis has an ethical position that is different of the discourse of science -that aims complete knowledge, and to get this its control, even its gaps and failures -psychoanalysis invests on a path where the empty has an essential role. On this path, Psychoanalysis is opened for the divided subject, the one that half-says, divided between what is true and knowledge, joy and desire: the unconscious subject. Psychoanalysis needs a different ethical position that is related with the transmission of its concepts, which reveals the unrepresentability of the words. In this context, the theme of the writing is essential for the psychoanalytical knowledge, even with the Lacanian concept of the letter, a blur that is between the real and the symbolic, capable of touching the unrepresentable and transmitting something of it, through a style.
Keywords: WRITING; STYLE; TRANSMISSION; PSYCHOANALYSIS; INSCRIPTION.
Afinal, se soubéssemos o que é verdade,
haveríamos de nos preocupar com o que dizem os homens?
Platão(1)
Assim como o cheiro é partícipe do sabor do vinho, a epígrafe acima citada enlaça-se de forma indistinguível a este próprio artigo: no diálogo Fedro (370 a.C./2007), de Platão, tanto a questão ética da verdade quanto a questão estética do belo vêm à tona a todo o momento. É nele que encontramos a indagação que introduz o mito egípcio da criação da escrita. O que a frase "afinal, se soubéssemos o que é verdade, haveríamos de nos preocupar com o que dizem os homens?" (p. 118) aponta é justamente uma disjunção entre a verdade e o saber.
O estilo vem ao encontro dessa disjunção, uma vez que ele é o que emerge no lugar da extração do objeto, aquele "que sustenta o sujeito entre a verdade e o saber, causa de gozo", ou seja, no carrossel da divisão do sujeito, "o objeto é a causa e o estilo é seu efeito" (Caldas, 2001, p. 72).
Para a psicanálise, a verdade fundamental do sujeito é o desejo, sendo ele constituído por uma falta estrutural inconfessável à linguagem. É um inominável vazio particular que reside no lugar da verdade mais íntima do sujeito. Para Lacan (1972-1973/1985, p. 124), a verdade é "o que não se pode dizer. É o que só se pode dizer com a condição de não levá-la até o fim, de só se fazer semi-dizê-la". Portanto, a verdade à qual a psicanálise se dirige não é a verdade toda, a instância metafísica última do verdadeiro. A partir da linguagem, a verdade pode ser somente meia-verdade, só é possível dizê-la enquanto não toda. Operar a partir de uma noção de verdade que implique sempre o semi-dizer não se faz por uma simples incapacidade situacional da linguagem, mas, sobretudo por uma implicação ética que procura não excluir das Ding do cerne da experiência psicanalítica. Semi-dizer a verdade faz parte da aposta ética da psicanálise de abandono de ideais, contornando o vazio da existência a partir do novo, inventado pelo sujeito.
O saber encontra-se em outro polo que não o do desejo. Desde Freud (1900/1986), o inconsciente aparece como um saber, um saber não sabido, apontado diretamente na escolha do termo que o define: Unbewusste, ou seja, literalmente o insabível. O saber mais essencial ao psicanalista é aquele ao qual ele se direciona: "o saber que há sujeito do inconsciente, saber ao qual ele só pode ter tido acesso através de uma experiência de análise pessoal" (Jorge, 2000, p. 68). Conforme Lacan (1972-1973/1985), para a psicanálise o saber é um enigma, pois como se pode saber sem saber que se sabe? O saber é um enigma que "é presentificado pelo inconsciente tal como se revelou pelo discurso analítico. Ele se enuncia assim - para o ser falante, o saber é o que se articula" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 188).
A análise veio nos anunciar que há saber que não se sabe, um saber que se baseia no significante como tal. Um sonho, isso não introduz a nenhuma experiência insondável, a nenhuma mística, isso se lê do que dele se diz, e que se poderá ir mais longe ao tomar seus equívocos no sentido mais anagramático do termo. [...] E é aí que se renova a questão do saber (Lacan, 1972-1973/1985, p. 129).
A psicanálise surge, portanto, como um campo de saber, como uma construção de linguagem. Tal qual um corpo teórico é um conjunto de representações que historicamente adquirem valor para um determinado grupo, o saber da psicanálise passa por aquilo que a prática e a teoria psicanalítica atestam: as proposições e textos que constituem o campo psicanalítico. A psicanálise situa-se, então, em uma eterna tensão entre o saber - construção de linguagem que pode ser compartilhada e transmitida universalmente - e a verdade - ponto de falta particular que a linguagem não pode abarcar por completo, frente ao qual nos resta o semi-dizer. Conforme ressalta Silva Júnior (2006, s.p.):
A técnica psicanalítica nasce de uma questão independente, surgida da tensão entre o rigor de um saber que se quer universalmente transmissível e a singularidade da experiência clínica. A partir da inflexão clínica da tradicional problemática entre o singular e o universal a técnica psicanalítica poderia ser descrita através de duas questões paradoxais e, não obstante, necessárias. De um lado, a questão do estilo do analista, pois aquilo que se repete na singularidade como um traço inimitável é, também, marca de sua genialidade ou do seu sintoma. De outro lado, a questão da articulação entre teoria e clínica, pois se cada modelo de psiquismo abre a escuta para diferentes sentidos do discurso, são precisamente os impasses singulares da clínica que constituem seus obstáculos epistemológicos.
Através da obra freudiana e do ensino lacaniano, a psicanálise pôde delinear um pouco mais sobre a relação do sujeito com seu desejo e sobre a relação do sujeito com o Gozo, de modo que o que interessa à experiência psicanalítica é a ousadia de se poder constituir algum saber sobre a verdade. Essa construção sobre a verdade não é senão aquela revelada pelos mecanismos da economia do gozo (Maurano, 2003). A psicanálise adentra o campo do sujeito e vislumbra assim algo da sua economia de gozo. Da mesma forma como a verdade também está situada no polo do desejo, o saber está situado no polo do gozo; o sujeito goza do saber e o saber é meio de gozo. É acerca dessa forma de funcionamento econômico do inconsciente que a psicanálise possui um campo imenso de saber a redescobrir e a desbravar. De acordo com Maurano (2010a, p. 01), "resta à psicanálise o trabalho das formigas: trabalhar pouco a pouco em um movimento incessante e interminável de construção".
Qualquer formalização desse saber precisa, antes de tudo, ter a marca da letra freudiana, ou seja, estar comprometida com o cerne de sua descoberta: o inconsciente é um saber que não se sabe que sabe. Ou, como aponta Lacan (1969-1970/1992, p. 21), "o que conduz ao saber não é o desejo de saber... o que conduz ao saber é [...] o discurso da histérica". Não cabe ao discurso analítico a simples repetição vazia de velhas fórmulas mágicas, sejam elas vindas de Freud ou de Lacan. A psicanálise é um discurso que almeja construir um saber acerca do inconsciente - deste desconhecido saber que não se sabe - e que em seu caminho de eterna construção necessita transmitir a um conjunto maior de sujeitos algo que é da experiência particular e única de somente um sujeito, ou seja, a transmissão demanda a construção de uma ponte entre o que há de mais particular e o que há de mais universal. Essa situação torna-se mais complexa a partir do ponto em que o que há de mais particular na experiência do sujeito, o real, é inapto para a linguagem, ou seja, habita um lugar que somente o significante não atinge. Enquanto a verdade está situada no polo do sujeito, na situação da clínica analítica o saber situa-se no polo do Outro, "o saber está no Outro" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 131).
O sonho do discurso sustentado pela ciência é justamente construir um saber que seja completo, sem falta, sem erro. Pouco importa se esse processo se dá a partir de uma técnica que asceticamente se protege de qualquer estímulo desconhecido na ambição de possuir um saber total, como no caso da neurociência, ou que isto aconteça por meios nos quais os erros tenham sido previsíveis em seus mínimos detalhes, como no caso das diversas engenharias genéticas. Conforme já indicou Garcia-Roza (1990, p. 111), "o saber absoluto é o momento em que a totalidade do discurso se fecha sobre si mesma, numa não contradição perfeita".
Já a psicanálise, devido à sua particular forma de encarar o campo do Outro, mais especificamente, por não excluir o furo próprio que o constitui, sem intencionar tamponá-lo ou escondê-lo, possui uma forma diferenciada de trabalhar com a constituição de seu saber. A ética psicanalítica propõe trabalhar a partir dos paradoxos próprios da vida, a partir de uma ética que encontra em seu cerne um vazio radical e encontra no Outro uma barra, considerando-o constitutivamente não absoluto. A linguagem impõe um regime de limitação tanto à verdade quanto ao saber, pois assim como a inconfessável verdade do desejo pode revelar-se somente ao ligar-se os significantes - incapazes de abarcá-la por completo -, também o saber, por ser uma construção de linguagem, um corpo de significantes, é incapaz de expressar a universalidade que o tornaria inequívoco. A verdade e o saber são dois termos que se encontram em disjunção, exceto pela limitação, um ponto-buraco, através do qual ambos podem tocar-se.
O sujeito dividido entre verdade e saber é aquele marcado impreterivelmente pelo objeto a enquanto causa, ponto através do qual a verdade e o saber se tocam. Para Lacan (19691970/1992), a verdade toca o saber a partir da ética psicanalítica, pois ela sustenta uma prática que aposta no saber como verdade, ou seja, o psicanalista aposta que há algo de verdade nas construções ficcionais que se fazem em análise. O saber e a verdade tocam-se a partir da estrutura de um enigma, um semi-dizer do sujeito a partir do qual se sustenta toda a prática analítica. Conforme bem expressou Lacan (1969-1970/1992, p. 50), "o que se espera de um psicanalista é [...] que faça funcionar seu saber em termos de verdade. É por isto mesmo que ele se confina em um semi-dizer". O discurso do analista sustenta-se em um semi-dizer, pois é através dele que se torna possível tocar o real do objeto.
Sustentar o desejo do analista, o desejo de despertar, é também sustentar o desejo de não recuar frente ao impossível do real. Essa é a única forma de o psicanalista transmitir algo de sua experiência, sustentar sua posição ética. O estilo surge como testemunha de seu desejo de transmissão, situando-se como um operador entre verdade e saber que, por não recuar frente ao real, não engoda o sujeito em relação à estrutura ficcional da verdade. Não se trata de estabelecer uma relação antagônica entre saber e verdade, mas de acolher sua paradoxalidade presente no enigma, que se apresenta a quem estiver disposto a decifrá-lo, segundo a sua lógica própria. Somente uma ética que não busque suprimir o vazio da existência, ou seja, que, através da dessubjetivação de seu agente, trate de cingir litoraneamente o real, é capaz de sustentar uma prática que opere com um saber como verdade. De acordo com Maurano (2006, pp. 85-86):
Na perspectiva psicanalítica opera-se não com oposições, mas com paradoxos. Ou seja, valores heterogêneos e mesmo antagônicos, não se anulam nem no processamento psíquico, nem na forma da psicanálise construir sua teoria. São forças que se medem nos termos da tensão que edifica a vida. Disso já se pode depreender que o singular e o social encontram-se de tal modo imbricados, que se poderia pensar que o singular é uma dobra do social, e em se tratando de sujeito, ou da subjetividade, seria impossível desatrelá-los. E é por isso que se exige que um analista em sua função, não atue como sujeito, mas possa ultrapassar a sua própria subjetividade indo, em nome da ética que o orienta, mais além da contradição.
É nesse ponto que a psicanálise encontra uma frutífera estratégia para contornar a impossibilidade de formalização deste impossível através do estilo. Esse impasse de formalização está na pergunta: como dizer do que não tem palavras, ou melhor, como ir através das palavras até onde as palavras não podem chegar? Lacan (1972-1973/1985) propôs que o real é aquilo que no inconsciente não cessa de não se inscrever, ou seja, o real é o registro daquilo que não acede e não adere a qualquer tipo de representação, insistindo em não se inscrever, em não se deixar pegar. Ainda segundo Lacan, "o real só pode se inscrever por um impasse da formalização" (p. 125).
Dessa forma, para resolver o impasse em relação à transmissão do real é necessário sustentar uma ética que possa contornar o vazio, efetuar uma borda no real sem suprimi-lo. A psicanálise é uma prática que caminha em direção ao real e, por isso, podemos dizer que ela sustenta e é movida por uma ética que não foge frente ao vazio de representação, mas pelo contrário, caminha em direção a ele, contornando-o. A limitação da verdade é dada pelo vazio de objeto, o objeto a enquanto a Coisa freudiana, um vazio encarnado no sujeito, através do qual podemos indicar que não há significante que abarque o radical impossível de representação, o que daria a consistência de ser ao sujeito. A limitação do saber é dada pelo Outro barrado, pela incidência do objeto a no campo do simbólico, revelando a incapacidade de um significante significar a si mesmo. Há algo que cai do Outro, algo ao qual o simbólico não pode conter: o objeto a.
A divisão do sujeito entre saber e verdade, entre gozo e desejo, entre os significantes que nunca o representam por completo e o vazio que nunca se dá à representação, revela a sua particular existência como um ser de falta, ou, como expressa a fórmula da fantasia, um sujeito dividido em sua relação de injunção e disjunção com o objeto causa do desejo (Lacan, 19661967/2000). A travessia da fantasia é a operação através da qual essa dualidade pode ser transposta, na qual o saber e a verdade se tocam no ponto de falta e a partir da qual um estilo cai como resto da operação.
Entre os registros do real e do simbólico encontra-se um litoral, uma inscrição em forma de borrão a partir da qual o sujeito subsiste: a letra. Esta se torna de suma importância para compreender a questão do estilo, uma vez que, conforme aponta Feu de Carvalho (2005, p. 207), "o estilo é o modo peculiar como o objeto a se faz letra, suportado pela escritura daquele que é nomeado autor". Para a assunção do estilo é necessário que o psicanalista sustente, a partir de seu desejo, a prática da letra. O desejo do analista tem como consequência um estilo, uma letra que marca o discurso com uma forma particular, especial, uma marca que bordeja o real.
O conceito de letra é utilizado por Lacan para dizer daquilo que opera como base material do escrito, o que se inscreve como marca no inconsciente. Em um primeiro momento do ensino lacaniano, a letra aparece como a incidência material do significante, porém, ao longo de seu ensino, Lacan estendeu o seu estatuto. Em "O Seminário sobre 'A carta roubada'" (Lacan, 1955/1998), a letra aparece como a carta roubada(2)2, do famoso conto homônimo de Poe (1844/2003), ou seja, aquela que está escondida onde menos se busca, aquela que se mistura e se disfarça no mais claro; a carta é letra enquanto extensão da lembrança encobridora proposta por Freud. No "Seminário 20, Mais, ainda", Lacan (1972-1973/1985, p. 65) diz que "as letras constituem os ajuntamentos, e não designam esses ajuntamentos, elas são tomadas funcionando como esses ajuntamentos" e ainda: "o inconsciente é estruturado como os ajuntamentos de que se tratam na teoria dos conjuntos como sendo letras" (p. 66). Tomando de empréstimo a teoria dos conjuntos, Lacan trata a letra como um conjunto de traços que operam em grupo, constituindo assim a base da "estrutura" do inconsciente. Remetendo aos traços mnêmicos delineados por Freud, a letra aparece como célula estrutural do inconsciente. A função da letra pode ser tomada como "aquela que faz a letra análoga de um gérmen, gérmen que devemos, se estamos na linha da fisiologia molecular, severamente separar dos corpos junto aos quais ele veicula vida e morte conjuntamente" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 132).
A letra é em si ruptura, como ressalta Andrés (1996), que deve ser tomada ao pé da letra. Se o significante se encontra mais próximo do simbólico, a letra se encontra mais próxima do real, ocupando um território limítrofe entre estes dois registros. Nela temos uma torção como na banda de Moebius: uma de suas bordas aponta para real enquanto o outro lado de sua face é um efeito do simbólico, mas no final das contas, é uma só e mesma banda. Em seu texto "Lituraterra", Lacan (1971/2003) considera que a letra é apropriada à escrita, mas não o é para designar as palavras, assim como o é o significante. Esta obscura proposição se torna mais clara a partir do momento que retomamos Freud, quando este considera que os traços do inconsciente não se apresentam como palavras, mas como hieróglifos, como rébus. A letra é litoral, território que não é nem terra nem mar, uma constante torção entre o simbólico e o real.
Lacan (1972-1973/1985, p. 39) considera que, no discurso psicanalítico, se trata "do que se lê e tomando como o que se lê para além do que vocês incitaram o sujeito a dizer [...], dizer não importa o quê, sem hesitar em dizer besteiras". Ao considerar que a "escrita não é de modo algum do mesmo registro [...] que o significante" (p. 41), Lacan distancia a natureza do escrito da linguística, visto que nesta o significante se constitui com base em sua relação com o significado.
A letra é uma rasura, é traumática e está para além do significado, está para além da leitura. A letra é "rasura de traço algum que seja anterior [...]. Produzi-la é reproduzir esta metade ímpar com que o sujeito subsiste" (Lacan, 1971/2003, p. 21). Uma prática da letra, enquanto rasura, admite "a imperfeição não como uma decorrência lógica da busca de perfeição, mas como um trajeto como um processo, como um processo de escrita. Como um estilo" (Castelo Branco, 1993, p. 131). Afinal de contas, o "estilo é também o estilete que sulca a superfície da página, o território da escrita, a terra da letra, essa lituraterra que Lacan tão bem nomeou como literatura, assinalando o lugar da mancha, da rasura (e, portanto, da imperfeição) no texto escrito" (p. 132).
Dessa forma, o estilo aparece como aquilo que se inscreve, que efetua sua assunção a partir de uma prática sustentada pela letra. O estilo aparece como o objeto - ou como uma marca da incidência deste através da letra - ou seja, aquele que atravessa o mais particular do sujeito e o mais universal do Outro, servindo de suporte ao sujeito que se encontra dividido entre saber e verdade. O estilo aparece como a marca de uma letra, uma tatuagem do objeto. Ele não é o particular em si, mas o traço que marca o modo particular através do qual o sujeito opera com o objeto. A arte é mais um dos campos que serve como testemunha desta operação de queda do objeto. A "a obra de arte [...] permite um acesso privilegiado ao advento de estar acima de qualquer realização subjetiva possível, tocando o real humano indeterminado e universal" (Maurano, 2010b, p. 01).
Aí encontramos uma aproximação entre o analista e o artista: eles não são coincidentes, mas devido à operação de uma est-ética particular, encontram-se em condições de criar a partir do vazio de sua existência. Conforme aponta Miller (1997, p. 399) "Lacan desenhou o analista como mestre do discurso universal, ou pelo menos, capaz de subjetivar o discurso universal". Acrescentamos aqui que é devido à importância que o estilo ganha para a psicanálise que o psicanalista adquire essa capacidade de subjetivar o universal. O que do universal interessa à psicanálise não diz respeito a nenhum saber absoluto, ou a uma padronização ou globalização, mas ao acolhimento da diversidade universal de singularidades, uma vez que a universalidade do desejo dá-se somente pelo fato de que este é uma lei particular, "mesmo que seja universal que essa particularidade se encontre em cada um dos seres humanos" (Lacan, 1959-1960/1997, p. 35).
O ultrapassamento dos campos do particular e do universal, tal qual Kant formulou a respeito do belo, ou tal qual Nietzsche e Murry pontuaram especificamente a respeito do estilo, dá-se somente a partir de uma ética que não intenciona reduzir o sujeito a um discurso generalizante, mas que sabe de sua particularidade para, a partir dela, constituir um saber.
O que nos interessa é a transmissão de um desejo que, no final das contas não é outra senão o desejo do analista. Um desejo de exceção que vai além das âncoras (miragens) de nossa subjetividade, de nossas identificações particulares, em direção a um tipo de amor que de dois não faz Um, que não reduz a diversidade na unidade e que excede esta oposição, endereçando-se a uma perspectiva instruída pelo belo (Maurano, 2010b, p. 01).
A letra enquanto inscrição, suporte da escrita, rasura litorânea e marca da relação entre o sujeito e o objeto, revela também a indomável natureza do objeto a em relação à transmissão estrita da psicanálise. A via do objeto a eleva o discurso psicanalítico até os limites do dizer. Como aponta Caldas (2001, p. 75), pelo fato de o estilo ser o objeto a, irrepresentável no real, ele só se verifica através dos seus efeitos, em especial a repetição: "seja pela repetição simbólica e automática do traço unário, seja a repetição paradoxal do próprio trauma - a tyché do encontro impossível".
O estilo como a marca que se repete, que se reinscreve sulcando o corpo do sujeito e barrando o Outro, talvez seja uma das melhores metáforas acerca da natureza do estilo. Esse limite, essa barra inscrita no Outro, é o ponto com o qual o sujeito se depara nos momentos finais de seu processo de análise. É frente ao desamparo, ao inseguro Outro que não pode fornecer garantias de felicidade, que o sujeito é convidado a se reinventar, e habitar o belo da vida transfigurando o horror da morte. Frente ao limite do Outro e aos nossos inúmeros impossíveis, resta-nos criar, com nosso estilo, a partir deste radical vazio que habita nossa existência.
Notas
(1) Citação extraída da obra Fedro (370 a.C./2007, p. 118).
(2) Lacan se aproveita da homonímia de lettre em francês, que significa ao mesmo tempo "carta" e "letra".
Referências
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Recebido em: 07/07/2015
Aprovado em: 12/10/2015