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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.10 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v2p.130 

CONFERÊNCIA

 

A psicanálise está preparada para a mudança de sexo?*

 

Is the psychoanalysis prepared for the sex change?

 

¿El psicoanálisis está preparado para el cambio de sexo?

 

 

Patricia GheroviciI; Tradução: José Maurício LouresII

IPsicanalista. Diretora do Philadelphia Lacan Group and Associate Faculty, Studies Minor (University of Pennsylvania). Endereço: 420 S. 17th Street Philadelphia PA 19146-1555. Tel.: 1-215 985 0556. Email: pgherovici@aol.com
IIDoutorando e Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade (Universidade Veiga de Almeida)

 

 


RESUMO

A psicanálise, no decorrer de seu desenvolvimento, assumiu uma posição normativa ao interpretar a transexualidade como índice de patologia. As pessoas transgênero têm apontado para a impossibilidade de representar a sexualidade, uma impossibilidade que subverte implicitamente a fixidez de todas as reivindicações identitárias. Não há dúvida de que o fenômeno cultural descrito nas notícias como "momento transgênero" está mudando as nossas noções de gênero, sexo e identidade sexual. Esta evolução implica um realinhamento importante na prática psicanalítica.

Palavras-chave: TRANSEXUALIDADE; PSICANÁLISE; SEXUALIDADE; GÊNERO.


ABSTRACT

Psychoanalysis, in the course of its development, assumed a normative position in interpreting transsexuality as an index of pathology. The transgender people has pointed to the impossibility of representing sexuality, an impossibility that implicitly subverts the fixity of all identity claims. There is no doubt that the cultural phenomenon described in the news as a "transgender moment" is changing our notions of gender, gender and sexual identity. This evolution implies an important realignment in psychoanalytic practice.

Keywords: TRANSSEXUALITY; PSYCHOANALYSIS; SEXUALITY; GENDER.


RESUMEN

El psicoanálisis, en el transcurso de su desarrollo, asumió una posición normativa al interpretar la transexualidad como índice de patología. Las personas transgénero ha apuntado a la imposibilidad de representar la sexualidad, una imposibilidad que subvierte implícitamente la fijación de todas las reivindicaciones identitarias. No hay duda de que el fenómeno cultural descrito en las noticias como "momento transgénero" está cambiando nuestras nociones de género, sexo e identidad sexual. Esta evolución implica un realineamiento importante en la práctica psicoanalítica.

Palabras clave: TRANSEXUALIDAD; PSICOANÁLISIS; SEXUALIDAD; GÉNERO.


 

 

Vou começar com uma confissão: a psicanálise tem um problema sexual em mais de um sentido.

Historicamente, os psicanalistas tomaram uma posição normativa ao interpretar a transexualidade como um sinal de patologia. Não há dúvida de que o fenômeno cultural descrito nas notícias como "momento transgênero" está mudando nossas noções de gênero, sexo e identidade sexual. Essa evolução pode reorientar a prática psicanalítica.

Partindo da premissa de que o corpo não é uma entidade determinada e fixa, mas implica um processo de incorporação (um devenir do corpo), a psicanálise - a lacaniana, em particular - é qualificada de forma exclusiva para apoiar o compromisso do transgenderismo com novas formas de desejo.

 

 

O frequentemente presumido "problema de gênero" de pessoas transgênero é, de fato, uma condição universal: a impossibilidade de representar a sexualidade, uma impossibilidade que subverte implicitamente a fixidez de todas as reivindicações identitárias. Por isso, a psicanálise precisa de um realinhamento importante, uma mudança, e o tempo é agora.A teoria da mudança de sexo tem desempenhado um papel central para a psicanálise, que também desempenhou um papel central na história da transexualidade. Essa interdependência é uma questão urgente, dado as mudanças que ocorrem na sociedade e o crescente afluxo, em nossas práticas, de analisandos que se identificam como trans ou fora do binário de gênero.

O filósofo Michel Foucault conscientizou-nos de que a sexualidade tem uma história e que a psicanálise tem desempenhado um papel muito importante como uma teoria das interseções da Lei e do desejo. Sua História da Sexualidade afirma que uma história da sexualidade desde a era clássica também "pode servir como uma arqueologia da psicanálise" (Foucault, 1900, p. 130). Hoje, não podemos pensar na sexualidade sem usar categorias psicanalíticas. No caso da transexualidade, então, a inter-relação com a psicanálise não é apenas referencial, é fundamental.

A estreita conexão entre a psicanálise e o campo da sexologia é um capítulo perdido na história de ambos os campos. O sexólogo e ativista pioneiro dos direitos dos homossexuais, Magnus Hirschfeld, foi um dos fundadores, com Karl Abraham, da Sociedade Psicanalítica de Berlim.

Hirschfeld foi apreciado por Freud, mas rejeitado por Jung. É hora de historicizar e teorizar o difícil diálogo entre sexólogos e psicanalistas. O preconceito impediu a colaboração. Sexologia e psicanálise levaram caminhos divergentes e até opostos. Apesar dessas tensões, a sexologia da transexualidade permaneceu intimamente ligada à psicanálise. Eu apelo a um diálogo mais frutífero entre a psicanálise e a clínica da transexualidade, explorando a forma como ambos os campos se encontram e se enriquecem mutuamente.

Em se tratando do transsexualismo, se olhamos para a história da evolução da nomenclatura, vemos como a terminologia foi associada ao domínio do patológico. Isso também evidencia o papel central e paradoxal que a psicanálise desempenhou na história do transsexualismo.

O termo "travesti" foi inventado pelo "Einstein do Sexo" - como foi chamado Magnus Hirschfeld -, em 1910, para descrever aqueles que ocasionalmente usavam roupas do outro sexo. Hirschfeld, um ativista reformador que lutou pela legalização da homossexualidade, buscava despatologizar as sexualidades não normativas. Ele também era um travesti ocasional, bem como uma figura política central no campo incipiente na sexologia da Alemanha. Hirschfeld desenvolveu uma teoria dos intermediários sexuais, alegando que a existência de dois sexos opostos era uma simplificação excessiva e que se podia observar muitas variedades de intermediários. Pioneiro na luta pelos direitos das pessoas trans, ele argumentou que o trans não poderia ser reduzido a homossexual, fetichista ou a qualquer forma de patologia.

Após a partida de Hirschfeld, a Sociedade Psicanalítica de Berlim decidiu, por instigação de Abraham, trabalhar coletivamente nos "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" (1905), de Freud. A ironia é que os "Três Ensaios" devem muito à pesquisa de Hirschfeld. Freud (1905, p. 1) credita na página de abertura os "escritos bem conhecidos" de Hirschfeld, juntamente com outros oito autores que vão de Krafft-

Ebing a Havelock Ellis, todos publicados em Jahrbuch für sexuelle Zwischenstufen, um jornal sob a direção de Hirschfeld.

Os dados empíricos de Hirschfeld mostram que as expressões não normativas da sexualidade não são necessariamente patológicas, revelando que os travestis não eram só homens e mulheres homossexuais ou bissexuais, mas, ao contrário da crença popular, muitos eram heterossexuais. Também observou que alguns travestis eram assexuados (o automonosexual era seu termo); o grupo assexuvel levou eventualmente a classificação dos transexuais na década de 1950. Hirshfeld abriu novos fundamentos ao propor que o travestismo fosse uma variação sexual separada diferente do fetichismo e homossexualidade. Como clínico e pesquisador, no entanto, Hirschfeld nunca vacilou em sua crença em uma base biológica (endocrinológica) para a sexualidade.

Passando de Hirschfeld, talvez a mais influente teoria do transgenderismo fosse a de Wilhelm Stekel (1930). Ele popularizou o uso da parafilia para comportamentos sexuais incomuns. O termo parafilia (do grego pará: além, e philia: amor) foi cunhado em 1903 pelo etnógrafo, sexólogo, antropólogo e correspondente de Freud, Friedrich S. Krauss. Stekel frequentemente discutiu casos de travestismo e sistematizou o uso do termo parafilia para comportamentos sexuais incomuns. A escolha de Stekel deste termo coloca "desvios" sexuais em par semântico com outras formações não patológicas do inconsciente como parapraxias. Hoje, podemos tentar traduzir a parafilia como uma performance fracassada, uma espécie de deslizamento da sexualidade. Como Freud diz sobre as parapraxias cotidianas, como o esquecimento de palavras e nomes, as parafilias, como as parapraxias, podem ocorrer em pessoas saudáveis e normais.

O livro de Stekel, Aberrações sexuais: o fenômeno do fetichismo em relação ao sexo (1930), torna explícito no seu título o desejo de sistematizar a estrutura de todos os desvios sexuais como uma entidade única sob o modelo do fetichismo, o substituto prototípico para o falo materno. O livro incluiu um capítulo sobre o travestismo escrito por Emil Gutheil. Para Gutheil (1930), embora o travestismo não fosse estritamente fetichismo, era uma compulsão para criar uma fêmea fálica: a atração pelos genitais do "outro" sexo foi transferida para as roupas. Stekel e Gutheil são bons exemplos de como ex-discípulos dedicados modificaram as teorias freudianas e as popularizaram, apagando qualquer matiz e aproximando-as do modelo médico dominante. Como diz Bullough (1994, p. 90), "Freud não pode ser culpado pelos excessos de seus discípulos".

Durante a primeira metade do século XX, a maioria dos pós-freudianos baseou-se inevitavelmente na noção do efeito traumático das experiências da infância. A ansiedade de castração representava uma etiologia psicobiológica do transgênero, muitas vezes confundida com a homossexualidade (Bullough, 2000). O travestismo continuou a ser entendido, de acordo com as teorias de Gutheil, como uma tentativa de superar o medo da castração, criando uma mulher fálica e identificando-se com ela (Lukianowicz, 1959).

A palavra "transexualis" foi usada pela primeira vez na revista popular Sexology, em 1949, em um artigo de David Cauldwell intitulado Psychopathia Transexualis. A ortografia foi com apenas um "s" porque o termo era uma referência direta ao título da ópera magna Psychopathia Sexualis, de Krafft-Ebing ([1886] 1965), o catálogo monumental das "aberrações" do comportamento sexual.

Cauldwell falou de um distúrbio psicológico, de um "desejo patológico-mórbido de ser um membro do sexo oposto" (Cauldwell, [1949] 2006, p. 40). Já em 1923, Hirschfield usou a expressão alemã Seelischer Transsexualismus (transsexualismo psicológico), atribuindo as raízes das inclinações transgêneros à psique. Em 1949, Cauldwell ([1949] 2006, p. 275), caracterizou os "transexuais" como "indivíduos que desejam ser membros do sexo a que eles não pertencem". Cauldwell também cunhou o termo "transmutador do sexo" e usou as grafias trans-sexuais e transexuais de forma intercambiável.

Cauldwell ([1949] 2006, p. 275) descreveu inicialmente transsexualismo em termos de doença, considerando como condição hereditária de indivíduos que são "mentalmente insalubres". Em 1950, Cauldwell tinha claramente feito algum progresso. Ele recomendou fortemente, no entanto, a "cirurgia de mudança de sexo", alegando que a cirurgia não poderia fazer um membro "real" do sexo oposto (Cauldwell, 1955). Cauldwell geralmente é creditado erroneamente como a primeira pessoa a usar a palavra transexual, mas raramente citada na literatura acadêmica.

A palavra transsexualismo tornou-se um termo popular na década de 1950 nos EUA, graças ao pioneiro de mudança de sexo Harry Benjamin. Benjamin era um endocrinologista de Berlim que se mudou para Nova York em 1915. Trabalhou em estreita colaboração com Eugen Steinach, endocrinólogo que realizou as primeiras cirurgias de mudança de sexo por transplantes de glândulas no final do século XIX e isolou os "hormônios sexuais". Ele conhecia Hirschfeld, o reformador do sexo, antes da guerra. Benjamin confiou em um conceito biológico para explicar a etiologia do transsexualismo, apesar do fato de ele não encontrar nenhuma confirmação física para essa afirmação. Notavelmente, Benjamin defendeu a psicoterapia e emprestou a fórmula de Ulrich - de uma alma feminina presa em um corpo masculino -, enquanto buscava respostas no corpo, não na alma. Apesar do uso do termo "neurose", Benjamin (1954, p. 228) desencorajou qualquer intervenção psicanalítica ou psicoterapêutica, vendo-os como "um desperdício de tempo".

Benjamin enfatizou o aspecto biológico do transsexualismo, que explicou para ele o fracasso da psicoterapia no tratamento da condição. A condição justificou uma intervenção cirúrgica. E manteve um viés negativo contra a psicoterapia e a psicanálise, mas ele criou um protocolo para mudança de sexo em que os psiquiatras receberam o poder de determinar quem seria potencial candidato à cirurgia. Os psiquiatras tiveram a última palavra sobre a decisão de tratamento, mas não dizem sobre o diagnóstico.

Hausman (1995, p. 124) observou: "isso ilustra a relação ambivalente entre o especialista em saúde mental e o endocrinologista clínico no tratamento do transsexualismo". O fato de que a escolha de tratamentos de Benjamin afetou e transformou o corpo (cirurgia, hormônios), encerrou uma consideração do que pode não ser totalmente anatômico, como se a aparente eficácia das intervenções no organismo impedisse qualquer consideração de outras questões envolvidas na transição do sexo.

Outro colaborador próximo de Benjamin, o psicanalista americano Robert Stoller, ajudou a estabelecer uma clínica pioneira de mudança de sexo no início da década de 1960, o Centro de Identidade de Gênero da UCLA. Nessa clínica, desenvolveu uma noção influente derivada do novo vocabulário de gênero de John Money, ao introduzir a ideia de um sexo psicológico "ambiental" separado do sexo biológico e que se esforçou para oferecer uma estrutura psíquica transsexual distinta (Meyerowitz, 2002/2004, p. 114; Millot, 1990, pp. 49-59).

Money (1955) propôs um modelo behaviorista para o que chamou de "papéis de gênero". Stoller refinou ainda mais a noção de separação de sexo e gênero com a idéia de "identidade de gênero", que correspondeu à ideia internalizada de pertencimento do indivíduo a um determinado sexo. Stoller, inicialmente, apoiou a ideia de uma força biológica que determinou o gênero. A "identidade de gênero" enfatizou mais a experiência subjetiva de gênero, um gênero separado da sexualidade. Com base na convicção de uma identidade distinta e da importância do pênis, Stoller sistematizou uma distinção entre o transexual, o travesti e o homossexual afeminado. Ele observou que, em contraste com os transexuais, os travestis e os homossexuais masculinos se identificam como homens; os transexuais abominam o pênis, que, para travestis e homossexuais, é uma insígnia de masculinidade e uma fonte de prazer (Stoller, 1975, pp. 142-181). Stoller declarou explicitamente que o transsexualismo feminino não é a mesma condição que o transsexualismo masculino, enfatizando que o transsexualismo feminino e masculino é clinicamente, dinamicamente e etiologicamente diferente (Stoller, 1975, pp. 223-244).

Após Stoller, muitas teorias psicanalíticas do desenvolvimento da identidade de gênero culparam problemas de gênero em identificações com o pai "errado" (Coates, Friedman & Wolfe, 1991; Stoller, 1975; Lothstein, 1992). E a maioria dos psicanalistas passou a ver expressões trans como um indicador da patologia subjacente - seja um precursor do travestismo ou homossexualidade (Limentani, 1979), transtornos limítrofes (Green, 1986), transtornos narcisísticos (Oppenheimer, 1991; Chiland, 2003) ou psicose (Socarides, 1970). Compreensivelmente, sentindo-se relegadas ao domínio da patologia e da abjecção, as pessoas transpostas rejeitaram a psicanálise.

Hoje é o momento para que os psicanalistas abandonem as atitudes moralistas e estigmatizantes das gerações anteriores de clínicos que, intrigados pelo fenômeno transgênero, dificilmente disfarçavam, em seus comentários depreciativos, seu medo e desprezo e apoiavam posições contrárias à teoria psicanalítica.

Em 1977, Leslie Lothstein escreveu um artigo informando analistas sobre como gerenciar a contratransferência negativa que, como ele antecipava, eles experimentariam com pacientes transexuais. Essa situação parece confirmar a observação de Lacan (1951/2006, p. 497) de que "não há outra resistência à psicanálise do que a do analista". Vários psicanalistas que trabalharam com pacientes transgêneros levantam, no entanto, questões clínicas interessantes, como Collete Chiland (2000), Danielle Quinodoz (1998), Michael Eigen (1996) e Ruth Stein (1995). O número de pessoas que levantam essas questões é bastante pequeno, o que é notável porque as pessoas transgênero aparecem cada vez mais visíveis na sociedade de hoje. De acordo com Stephen Whittle (Cauldwell, 2006, p. 40), "as identidades trans foram uma das mais escritas sobre assuntos no final do século XX". Como psicanalistas fiéis a uma ética, devemos ser capazes de romper com debates sem sentido entre os fundamentos do sexo e do gênero, o debate antigo da natureza contra a educação, do essencialismo biológico versus o construtivismo social.

Eu discordo da suposição generalizada de que a maioria dos transexuais vive no deserto do Real e, portanto, são psicóticos. Em vez disso, eu argumento por uma despatologização do transgenderismo e, diferindo, assim, da posição tomada por quase

todos os analistas. O transgenderismo não deve ser sistematicamente definido como patologia. Se o transgenderismo não é patológico, então uma mudança de sexo não deve ser considerada nem um tratamento nem uma cura. Hoje psicanálise lacaniana pode oferecer um quadro ricamente maleável para pensar através de questões de sexo, subjetividade, desejo e sexualidade. Eu discuti para um confronto produtivo entre a psicanálise e os discursos trans e mostrei como as pessoas trans estão realmente mudando a práxis clínica, promovendo novas ideias para a clínica que podem ser expandidas para o social e o intelectual.

Minha perspectiva segue a ética de Lacan para repensar a diferença sexual. Esta teoria é um desvio da teoria freudiana clássica do complexo de Édipo e até mesmo das primeiras formulações de Lacan que insistiram na ordem simbólica e na importância do pai. Parto também de um segundo período no trabalho de Lacan, quando colocou a ênfase na teoria da fantasia e na causa do desejo. Em meados da década de 1970, Lacan modificou sua posição inteira uma última vez, quando, antes de discutir os escritos de Joyce, elaborou uma nova concepção da sexualidade e que pode ser generalizada.

Meu recente trabalho explorando o desejo trans revelou-me que, contrariamente ao pressuposto de Catherine Millot, os indivíduos transgêneros não são "hors sexe" (fora de sexo), mas obcecados com a diferença sexual. Além disso, mais frequentemente, a transição de gênero não é um desejo de ir além do binário de gênero, mas um desejo de superar os limites da existência mortal. O que Millot chama de "horsexe" e Jay Prosser chama de "inabitável", é de fato a experiência de um corpo que se sente mais morto do que vivo. Gayle Salamon critica a descrição de Prosser da relação transsexual com sua "materialidade encarnada" como habitando o "real irreparável", observando que tal posição rege os corpos transexuais para um lugar fora da linguagem, significado, relação e desejo, um local de abjeção e morte de que é impossível teorizar a subjetividade, cis ou trans. Minha experiência clínica ensinou-me que o corpo transgênero é muitas vezes experimentado como um recinto mortal. Aquilo em que a maioria dos analisandos insistiu não era tanto em perder ou em ter uma nova parte do corpo, mas encontrar uma estratégia para afirmar a habitabilidade de sua própria incorporação, de modo a dar um novo significado à materialidade de seus corpos. Eles querem encontrar uma nova maneira de ser.

O presente oferece uma oportunidade única para a psicanálise porque o psicanalista - pelo menos na definição lacaniana - está em uma posição privilegiada para oferecer uma ética de escolha e responsabilidade subjetiva. Existe um interesse crescente pelas obras de Lacan entre os clínicos de outras persuasões teóricas. Suas contribuições não são mais vistas como doutrinárias - pura especulação separada da prática - mas começam a parecer úteis quando se trabalha com pacientes. Será que os psicanalistas de hoje não são mais tão assustados quanto à não conformidade sexual e de gênero?

 

 

Considerações finais

O que torna um homem um homem e uma mulher uma mulher é uma questão que veio à psicanálise de pacientes histéricas. A posição sobre a bissexualidade de Steinach e Benjamin parece mais próxima de uma noção queer de sexualidade, em que os gêneros são colocados mais em um continuum, do que em um binário estrito. Paradoxalmente, os discursos liberais de identidade de gênero sustentam uma espécie de essencialismo sobre a identificação de gênero. Uma colaboração entre a psicanálise e o discurso transgênero abriria o caminho para uma alternativa.

Una anedota poder ser ilustrativa. Em uma visita de Harry Benjamin a Viena, um encontro com Freud foi organizado. Benjamin queria conhecer Freud para consultá-lo por problemas de potência sexual. Freud sugeriu que a disfunção erétil de Benjamin era devido à sua homossexualidade reprimida. Pfaefflin afirma que essa curta interação entre os dois homens voltou ao ceticismo permanente de Benjamin contra a psicanálise, ou seja, um desinteresse profundo, que desde então tem sido reivindicado como um marcador de muitos encontros de transexuais e seus clínicos.

A própria lembrança de Benjamin sobre o encontro, no entanto, parece bastante diferente. Ele descreve Freud como muito sério, mas diz que eles riram brevemente quando Benjamin brincou dizendo que uma desarmonia de almas pode ser explicada por uma desarmonia de glândulas endócrinas. Freud falou de Eugen Steinach, reconhecendo plenamente o grande valor de suas experiências biológicas. Ele disse a Benjamin que ele próprio havia sofrido uma operação de "rejuvenescimento" de Steinach. O "rejuvenescimento" era, de fato, uma vasoligação, e tinha sido realizado por um colaborador próximo de Steinach, o professor Kun, um urologista-chefe. Na opinião de Benjamin, Freud foi biologicamente inclinado e, neste sentido, ele [Freud] não era freudiano.

Assim, o médico de mudança de sexo e o psicanalista se encontraram e tiveram uma troca amigável que começou com uma admissão leve de desarmonia psicodinâmica e endócrina, una versão do aforismo de Lacan: "Não há relação sexual". Hoje, em 2 de setembro de 2017, no Rio de Janeiro, seria um bom momento para continuar um debate que foi interrompido pelo aumento da distância entre os dois discursos, a psicanálise e a clínica da transexualidade.

 

Referências

Benjamin, H. (1954). Transvestism and transsexualism as psycho-somatic and somato-psychic syndromes, American Journal of Psychotherapy 8, no. 2, p. 228.         [ Links ]

Bullough, V. (1994). Science in the Bedroom: A History of Sex Research. Nova York: Basic Books.         [ Links ]

Cauldwell (2006). Psychopathia Transexualis, The Transgender Studies Reader. Nova York: Routledge. (Original publicado em 1949).         [ Links ]

Foucault, M. (1990). The History of Sexuality. Volume I: An Introduction, trans. Robert Hurley. Nova York: Vintage Books.         [ Links ]

Freud, S. (1979). Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

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Hausman, B. (1995). Changing Sex: Transsexualism, Technology, and the Idea of Gender. Durham, NC: Duke University Press.         [ Links ]

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Person, E. & Ovesey, L. (1978). "Transvestism: New Perspectives." Journal of the Academy.         [ Links ]

Stoller, R. (1975). Bisexuality: The 'bedrock' of masculinity and femininity. Sex and Gender, V II. Londres: Hogarth Press.         [ Links ]

 

 

* Conferência proferida no Seminário "Identidade de gênero e transexualidades: psicanálise e teoria queer", em 2 de setembro de 2017, na Universidade Veiga de Almeida, como atividade preparatória para o evento Sexuação & Identidades: II Jornada Interamericana da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL), II Simpósio Interamericano da IF e XVIII Encontro Nacional da EPFCL-Brasil.

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