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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.10 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v2p.232
ARTIGOS LIVRES
Liev Tolstói: o romancista e o dogmático. Do conflito perene à produção literária
Liev Tolstói: the novelist and the dogmatic. From the perennial conflict to the literary production
Liev Tolstói: el novelista y el dogmático. Del conflicto perenne a la producción literaria
Rebeca Carolinne Castro GomesI; Laéria FonteneleII
IMestra em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Psicanalista. Endereço: Rua Vilebaldo Aguiar, 401, apto. 104, Bloco G, Cocó. Fortaleza - CE. CEP: 60192-010. Telefone: (85) 99793.2147. E-mail: rebeca_carolinne@yahoo.com.br
IIProfessora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Endereço: Rua Manuel Jacaré, 171. Apto 1500. Mucuripe. Fortaleza - CE. CEP:60175-110. Telefone: (85) 99984-6366. E-mail: laeria@terra.com.br
RESUMO
Dada a complexidade da trama literária de Liev Tolstói, esta pesquisa procurou investigar a problemática do estilo do autor. A metodologia escolhida foi o levantamento de informações a respeito do escritor, de seus traços literários e, por serem indissociáveis, de seus traços doutrinários. Constatou-se que o pathos inconfundível de sua autoria reside na tensão entre duas facetas, uma moralista e uma literária, de modo que sua relevância reside na construção de uma literatura híbrida, marcada por uma dialética conciliatória entre doutrina e ficção.
Palavras-chave: LITERATURA; LIEV TOLSTÓI; DOUTRINA; FICÇÃO.
ABSTRACT
Given the complexity of Leo Tolstoy's narrative, this research aims to analyze the author's style issue. The methodological chosen was the survey of information about the author, his literary traits and, because they are inseparable, their doctrinal traits. It was noted that the unmistakable pathos of his style is a tension between two facets, a moralist and a literary, so that its relevance lies in the construction of a hybrid literature, marked by a conciliatory dialectic between doctrine and fiction.
Keywords: LITERATURE; LEO TOLSTOY; DOCTRINE; FICTION.
RESUMEN
Dada la complejidad de la trama de Leo Tolstoy, este estudio buscó investigar el problema del estilo del autor. La metodología escogida fue el levantamiento de informaciones sobre el escritor, sus rasgos literarios y, porque son inseparables, sus rasgos doctrinales. Se observó que el pathos inconfundible de su autoría se encuentra en la tensión entre dos facetas, una moralista y una literaria, de modo que su importancia reside en la construcción de una literatura híbrida, marcada por una conciliación dialéctica entre la doctrina y la ficción.
Palabras-clave: LITERATURA; TOLSTOY; DOCTRINA; FICCIÓN.
Introdução
Maravilhado perante a obra de Liev Tolstói, é assim que, em carta a Godofredo Rangel, Monteiro Lobato o define: "Como é grande Tolstói! Grande como a Rússia" (Lobato, 1909, citado por Gomide, 2004, p. 219). A essa assertiva, com a qual concordamos indubitavelmente, ressaltamos o que a ela se encontra atrelado: Tolstói é, ademais, um autor problemático. Ocorre que, de um modo geral, Liev Tolstói é um ficcionista singular, na medida em que, para além de seu artesanato romanesco, seu legado desvela-nos um pensador, cuja reflexão, situada no umbral entre religião, política e filosofia da existência, apresenta, como entroncamento axial, os pressupostos do cristianismo (Gomide, 2004).
Nesse sentido, sua obra - constituinte, desde a sua juventude, de sua ocupação vital - pode ser compreendida como um manancial de combates ideológicos, onde reinam complexas relações entre arte e ideologia; literatura e moral e estética e ética, de modo que a coexistência das atividades de escritor, doutrinador e ator na esfera pública resulta na criação de um ícone polivalente, um tipo de autor, cuja peculiaridade reside em um inextrincável enovelamento entre as dimensões de ficcionista e pregador.
Dessa forma, consoante Bernardini (2010), observamos que sua obra constitui um significativo desafio, o qual impõe, à crítica literária, a difícil e penosa tarefa de equacionar o quanto de pensador e artista cabe a Liev Tolstói. Assim, diante de sua potência narrativa, somos convocados a considerar a tensão, sempre latente, entre Tolstói artista e Tolstói pensador, de modo que, para compreender a grandeza do artista, devemos recorrer "ao doutrinador que colore com seu pathos e sua veemência toda a obra tolstoiana" (Bernardini, 2010, p. 18).
Nesse contexto, impulsionada pelo efeito arrebatador que a obra tolstoiana surte em seus leitores, esta pesqdessa duplicidade, quais sejam: Tolstói e Tolstoísmo; formas de vida e formas de arte.
Por fim, dados o porte apoteótico e o alto valor literário do célebre autor russo, ao optarmos por dele falar, sabemos, de saída, que o fazemos pela via da temeridade e é com ela, motor deste processo, que nos vemos impelidos a caminhar de forma circunspecta, avançando, gradualmente, nas considerações que pretendemos fazer a respeito de quem é Liev Tolstói e de onde ele fala.
Liev Tolstói: formas de vida
Iniciemos delimitando que, conforme aponta seu ilustre biógrafo Boris Schnaiderman (1983), Liev Nicoláievitch Tolstói, membro de uma família da velha nobreza russa, nasceu em 9 de setembro de 1828, na propriedade paterna de Iásnaia Poliana. Sua mãe era, por nascimento, princesa Volkônskaia. Em 1847, por herança, tornou-se senhor de vastas terras, daí o porquê de ser também conhecido por Conde Tolstói.
De modo extremamente significativo para a compreensão dos fatores determinantes da vida e da obra de Liev Tolstói, Rolland Romain (1921) revela-nos as contradições de caráter e os contundentes conflitos pessoais que fizeram parte da vida do autor. Ao longo de toda a sua existência, percebe-se um movimento pendular entre uma vida de bebedeiras, jogatinas e farras com mulheres e outra, destinada à negação da primeira, onde figuram a penitência, o arrependimento e a condenação daquilo que considerava seus vícios: o jogo, a sensualidade e a vaidade (Romain, 1921). No que tange a estes, os diários do autor, além de ideias para livros, especulações infindáveis sobre Deus e religião, são repletos de páginas que revelam seus apelos aos céus contra os terríveis tormentos que afligem sua alma:
Uma hora apenas havia passado que eu escutei a voz do vício. Eu adormeci sonhando com glória e mulheres: era mais forte do que eu. - Não importa! Agradeço a Deus por este momento de felicidade para o que ele me mostrou minha pequenez e minha grandeza. Eu quero orar, mas eu não sei; eu quero entender, mas não me atrevo. Eu me rendo à Tua Vontade! (Tolstoi, 1851 citado por Romain, 1921, s/p, tradução nossa)
Ademais, tendo em vista a pregnância de tais tormentos, podemos assinalar que o enredo de sua vida inclui uma trajetória em que o aprimoramento pessoal figura como uma meta profundamente desejada, conforme podemos observar a partir das confissões de Tolstói, resgatadas por Zweig:
Procurava me aperfeiçoar intelectualmente, aprendendo tudo que podia, tudo aquilo para o que a vida me impelia. Esforçava-me pelo aperfeiçoamento da minha vontade; formulava regras e tentava observá-las. Para o aperfeiçoamento físico, usava toda a espécie de exercícios corporais e ia-me enrijecendo à força de privações diversas. Tudo isso me parecia ser o aperfeiçoamento. Sem dúvida, acima de tudo, havia o aperfeiçoamento moral; este, porém, foi logo substituído pelo aperfeiçoamento geral, isto é, pelo desejo de me tornar melhor, não aos meus próprios olhos ou aos olhos de Deus, mas aos olhos dos outros homens. (Tolstoi, 1882 citado por Zweig, 1961, p. 46)
Nesse sentido, vale dizer que podemos compreender melhor a complexa trajetória de Tolstói, caracterizada pelo imbricamento de várias dimensões de pensamento, se partimos do pressuposto de que, mobilizado por um desespero pessoal (Zweig, 1961), Tolstói é, antes de tudo, um investigador inquieto, no qual reina uma avidez pela verdade que, matizada de altruísmo e filantropia, ancora-se no Cristianismo.
"No princípio, pensa somente pôr ordem em sua vida pessoal e privada, dar repouso à alma tentando adaptar o mais possível a conduta individual aos preceitos dos Evangelhos; tem só uma intenção: viver em paz com Deus e consigo mesmo" (Zweig, 1961, p. 21). Suas incursões pelos escritos bíblicos, contudo, somadas a sua acurada procura pela verdade e salvação, vão conduzi-lo a intrincados problemas, cujos resultados o levam a deixar a posição de pesquisador para adotar a de questionador mercurial do Evangelho.
Assim, aprofundando-se em sua tarefa de perscrutar os textos bíblicos, julga constatar uma enorme defasagem entre o que é apregoado pela doutrina de Cristo e o que a Igreja Ortodoxa russa, ligada ao Estado e à aristocracia, tem de subsumido em suas práticas e mandamentos. Assim sensibilizado, logo chega a definir a sua principal tarefa: interpretar o Evangelho em seu sentido verdadeiro e pregar a todos um Cristianismo puro, sem ritos e sem padres, fundamentado, especialmente, em uma concepção de vida e não em uma doutrina mística. É isso que o leva a, na década de 1880, romper radicalmente com a Igreja Ortodoxa (Zweig, 1961) e fundar um movimento anárquico-cristão que recebe o nome de Tolstoísmo (Gomide, 2004).
A este respeito, Zweig (1961), para quem Tolstói se configura como um filósofo e pesquisador da verdade, defende que tal doutrina religiosa e social tem como nascedouro não o júbilo do pensar ou a curiosidade do espírito, mas sim, por desespero, o instinto de conservação, de modo que a filosofia tolstoiana, organizada sob a égide do Tolstoísmo, brota do abismo, como um meio que perscruta a vida pelo medo da morte.
Outrossim, vale ainda apontar que a trajetória de Tolstói apresenta um deslinde que nos leva a encontrar um compósito de crente e pesquisador, de onde assoma uma figura de profeta, propícia, por sua vez, a desembocar no terreno vizinho: o fanatismo.
Do desespero pessoal, brotou uma doutrina autoritária em embrião, uma reforma de todo o pensamentos espiritual e moral e, ainda, uma nova sociologia; a pergunta primitiva de uma individualidade angustiada: "Qual é o sentido da minha vida e como devo viver?" se transformou, pouco a pouco, num postulado extensivo a toda humanidade: "É assim que deveis viver". (Zweig, 1961, p. 19)
Nesse contexto, mobilizado por sua filosofia, é imprescindível apontar o inquestionável valor humanitário de Liev Tolstói no que tange à miséria petrificada em diversas regiões da Rússia (Zweig, 1961). Sensível a esta realidade, Tolstói acaba por constatar que o combate à miséria está para além de uma ação individual, sendo-lhe necessária, portanto, uma mudança que, acentuando-se de modo a ultrapassar as dimensões da filantropia e da caridade, contemplasse toda a ordem social estabelecida.
Nesse sentido, vale dizer que o que conferirá singularidade ao argumento tolstoiano é a sua convicção de que apenas o aperfeiçoamento moral do indivíduo será capaz de resolver as disparidades sociais. "Para mudar a ordem do mundo, torna-se necessário que os homens se modifiquem a si mesmos" (Zweig, 1961, p. 33). Dessa forma, observamos que o que Tolstói propõe inicia-se por uma revolução interior, uma revolução de almas e não de punhos, cuja essência cristã associa-se a uma postura de rejeição ao Estado e às suas formas de organização e expressão institucionais, uma vez em que são elas, protetoras intransigentes da propriedade privada, o esbirro de uma injustiça latente que não apresenta escrúpulos no que tange à exploração do trabalho humano (Zweig, 1961).
Acrescenta-se a todas essas questões o fato de que o nivelamento social, sua ideia central, não deve vir de baixo, como querem os revolucionários que expropriam à força os possuidores, mas, do alto, mediante uma renúncia voluntária daqueles que detém a propriedade. "O verdadeiro reino de Deus sobre a terra começará quando não existirem mais superiores nem subordinados e os homens tenham aprendido de novo a formar uma única comunidade de irmãos" (Zweig, 1961, p. 35). Tal postura consiste, como já o mencionamos, na bobina precípua do Tolstoísmo, uma espécie de conversão que reivindica o lugar de arma de combate (Carpeaux, 1985).
Desta feita, impulsionado por suas preocupações morais, imiscuídas em um processo catalisador de mudanças sociais, Tolstói, durante anos, esforçou-se por adaptar sua vida pessoal às suas teorias. A partir dos anos de 1870, considerados os anos do apogeu de sua crise, há uma reviravolta em sua vida: abominando o seu prestígio social de Conde Tolstói, aristocrata rico, dono de inúmeras terras e, portanto, gerenciador de camponeses, fez-se arauto de uma vida simples.
No que tange a isso, vale destacar que, consubstanciando todo esse proselitismo religioso e social, bem como essa conversão existencial, figura, no terreno do solipsismo, uma luta interior, uma obsessão pessoal que resulta em uma conduta fundamentada em um rigoroso regime dos prazeres. Este, com vistas à salvação, repudia os apetites considerados selvagens, quais sejam, a bebida, o jogo e a prostituição. No que tange à última, torna-se elucidativo mencionar que a condenação do desejo alcança níveis de pregação da abstinência sexual, inclusive, no que se referencia aos laços matrimoniais. A esse respeito, oportunamente, Gornick (2010) resgata dos registros de Tolstói, manancial inesgotável de seus conflitos e tormentos, a perene querela entre a fraqueza do homem e a potência (diabólica) da mulher, neste caso, figurada em Sonya, sua própria esposa:
As mulheres são pessoas com órgãos sexuais acima dos seus corações. (...) Ela está a começar a tentar-me carnalmente. Gostava de me conter, mas sinto que não vou conseguir. (...) Os pontos fortes das mulheres: frieza - e algo pelo qual não podem ser responsabilizadas, dada a sua pobreza de espírito - sedução, astúcia e bajulação. (Tolstoi citado por Gornick, 2010, s/p, tradução nossa)
Assim, dessa exigência, demasiadamente superior às forças e às qualidades humanas, sobressai-se a impraticabilidade de seus pressupostos, de onde, intuímos desde o início, só cabe sucumbir mediante quedas e falhas. A elas, por sua vez, são infligidos julgamentos implacáveis, radicados em culpa e desejo de expiação. O próprio Tolstói, ante a fatalidade de não conseguir adotar, peremptoriamente, os princípios do Tolstoísmo, sente como inúteis os seus esforços, de modo a intuir como trágico o destino do pecador e, portanto, o seu próprio. Nesse contexto, conforme aponta Zweig (1961), é "(...) com emoção que lemos em seu diário a pergunta: 'Dize-me, Leão Tolstoi, vives segundo os princípios da tua doutrina?' e, logo a seguir, a resposta amargurada: 'Não. Morro de vergonha. Sou um culpado e mereço o desprezo'" (Tolstoi citado por Zweig, 1961, p. 37).
Longe, contudo, de considerarmos legítima a possibilidade de efetivação desse menosprezo, se, nestas linhas, mencionamos essa luta interior, alimentada pela aspiração de uma espécie de ascese individual e coletiva, é porque não temos dúvida de que é justamente este imperativo de vida que confere um contorno singular aos imperativos de arte de Liev Tolstói.
Liev Tolstói: formas de arte
Com vistas a dar continuidade à nossa explanação, neste momento, consideramo-nos aptos a retomar aquilo que conjecturamos como sendo uma correlação dialética entre formas de vida e formas de arte e, do ponto de vista de um estudo de recepção crítica, indicar que, no que toca a Liev Tolstói, sua faceta de polemista foi no mínimo considerada tão importante quanto à de ficcionista. Damos, portanto, um passo à frente e, partindo do pressuposto de que, no processo de composição literária de Tolstói, há, de alcance moral e beleza estética, uma mistura de convicção de apóstolo e intuição de artista, afirmamos que é daí que assoma a marca inconfundível da ficção doutrinária de Liev Tolstói (Gomide, 2004).
Nesse sentido, nossos esforços centralizam-se no que tange ao confronto entre doutrina e ficção, explorando qual o espaço para a atividade artística nesse estoque de ideias tolstoianas. Segundo Gomide (2004), para "a maior parte dos críticos e resenhistas de fim de século, Tolstoi era um moralista que recorria ao gênero romance para expor uma cosmogonia altamente pessoal e avessa aos baluartes da civilização" (p. 203). Por outro lado, ressalta Romain (1921): dada sua potência de invenção, sua força de pensamento, sua excelência de estilo e sua originalidade de concepção, construiu, como criador, um dos espelhos mais límpidos da complexidade humana. Consoante a isso, endossa Câmara (2010): em se tratando de Tolstói, nenhum proselitismo espiritual tem o poder de diminuir ou mascarar o seu extraordinário valor artístico, tornando possível imaginar que a narrativa vença o lugar comum de uma simples moralité.
Desta feita, resulta, de acordo com o Projeto Releituras, organizado por Nogueira Júnior (1996), um extenso rol de produções literárias, sobre o qual - incompleto do ponto de vista de toda a produção tolstoiana - nos debruçaremos a partir de agora. Destacam-se, inicialmente, as primeiras obras, ambas de cunho autobiográfico, Infância (1852) e Contos de Sebastopol (1855-1856), sendo estes baseados em suas experiências na guerra da Crimeia.
Tinha vinte e seis anos, de volta da guerra, cheguei a Petersburgo e me liguei com escritores. Acolheram-me como um deles. Lisonjearam-me e, antes que tivesse tempo de voltar a mim, a opinião que estes homens tinham sobre a vida se tornou minha (...). (Tolstoi citado por Zweig, 1961, p. 48-49)
Neste período, enveredando-se com mais veemência nos círculos literários, escreve, em seguida, Felicidade Conjugal (1859), seu primeiro romance, no qual, com um talento portentoso para dar máxima expressão ao humano e ao literário, retrata as benesses e aflições de um idílio amoroso, assim como sua ascensão e seu declínio:
Lamento e sofro pelo amor que tivemos e que não voltará. Quem foi o culpado disso? Não sei. Restou um amor, mas não aquele; o lugar dele ficou, mas o amor não tem força, não tem seiva, restaram lembranças e sentimentos de gratidão (...). (Tolstói, 2012, p. 121)
O romance, muito bem acolhido por seus pares e pela crítica vigente, desponta em Liev Tolstói o apreço pela fama e pelo prestígio: "Era considerado um artista admirável e um grande poeta; foi então muito naturalmente que adotei essa teoria. (...) Pagavam-me para isso; tinha boa mesa, belo apartamento, mulheres, sociedade; tinha a glória enfim." (Tolstoi citado por Zweig, 1961, p. 49). Assim, de sua altissonante potência narrativa, publica, posteriormente, as grandiosas obras Guerra e paz (1865-1869) e Anna Kariênina (1875-1877). A primeira, considerada um dos romances mais importantes da história da literatura universal, arauto de uma visão épica da sociedade russa no período compreendido entre os anos de 1805 e 1815, profere uma filosofia extremamente otimista que atravessa os horrores da guerra e a consciência dos erros da humanidade, enquanto a segunda, por sua vez, figura como um dos melhores romances psicológicos da literatura moderna. Para Matthew Arnold (1941 citado por Gomide, 2004, p. 369), contudo, "não devemos tomar Ana Karenina como obra de arte, devemos tomá-la como pedaço da vida", uma vez que, à altura dos anos de 1870 e 1880, é bem sabido que Tolstói estava reelaborando, de forma dramática, suas sentenças doutrinárias e sua persona de escritor. É assim que, especialmente a partir da década de 1880, surgem resenhas e ensaios escritos a respeito das obras tolstoianas, cujo escopo era apontar que nelas erigia-se algo transcendente à literatura.
Acontece que data desse período o que ficou conhecido como "crise tolstoiana", caracterizada, precipuamente, por colocar "em primeiro plano as tendências não ficcionais que o vinham inquietando desde a juventude e que seriam, a partir de crises pessoais violentas, expressas em polêmica doutrinação filosófica e ética" (Gomide, 2004, p. 202). Testemunham esse período o texto Uma confissão (1882), onde descreve seu crescente esforço de organização espiritual; o eloquente ensaio Amo e criado (1894) e, de toda a sua fatura criativa, o maior de seus catalisadores de polêmicas: a diatribe O que é arte? (1898), na qual, em nome de uma estética inspirada na moral, na consciência religiosa e na defesa do nivelamento social, condena quase todas as formas de arte, incluindo as próprias obras (Nogueira Júnior, 1996).
Ocorre que o polêmico ensaio, juntamente a posterior A sonata a Kreutzer (1889), figura como uma das maiores polêmicas literárias de todos os tempos. Trata-se da expressão máxima dos pressupostos tolstoianos de que, à arte, faz-se imperativo ter, como função primordial, a educação das grandes massas (Schnaiderman, 1983). Dessa forma, sustentando que uma parcela substancial da estética ocidental era patrimônio da elite e, ao mesmo tempo, considerando que nada lhe parece mais importante do que suprimir o terrível conflito entre ricos e pobres, Tolstói desferiu uma profusão de ataques contra as produções literárias e musicais de titãs como Shakespeare, Dante e Beethoven, porque nem sempre estavam ao nível de penetração do grande povo (Zweig, 1961).
No que tange à repercussão de seu escrito, Gomide (2004) aponta que, enquanto Liev Tolstói "bradava contra as mentiras convencionais da civilização, era possível um pacto com diversos tipos de consciências radicais. Mas quando investiu contra o sacrossanto território da arte, o estranhamento foi enorme" (Gomide, 2004, p. 221). Nesse contexto, nenhum outro aspecto de sua doutrina, ou mesmo de sua vida pessoal, foi capaz de criar tanta celeuma quanto suas teses a respeito da estética, da arte e da criação.
Nesse sentido, endossando nossa explanação, acrescentamos que a rigidez de sua fórmula consistia em acusar a arte, dado o seu caráter classicista, de abrir espaço para a manipulação e o autoritarismo, de modo a legitimar as desigualdades sociais, reforçar as distinções de classe e realimentar o mecanismo que reproduz as estruturas da sociedade, na medida em que se furtava do papel de servir como instrumento de aperfeiçoamento humano, esquivando-se, consequentemente, de seus efeitos de formação e educação.
Consoante Gomide (2004), podemos afirmar que a esquematização sociológica haurida em O que é arte? poderia ter sido bem aceita, se não fosse o seu questionamento acerca do papel elevado da Arte - benfazeja da sociedade e da humanidade -, acrescido das blasfêmias dirigidas ao cânone dos grandes clássicos. De um modo geral, esse célebre ensaio rendeu-lhe, por um lado, uma circulação efetiva em textos de crítica, e, por outro, custou-lhe, em alguma medida, as simpatias do mundo literário.
Dando prosseguimento, por outro lado, à nossa listagem de obras assinadas por Liev Tolstói, constam, ainda, em seu inventário literário, as novelas A morte de Ivan Ilitch (1886) e A sonata a Kreutzer (1889), seguidas, por seu turno, pelo conto O diabo, escrito em 1898, mas publicado, apenas postumamente, em 1916, e, por fim, seu último romance, Ressurreição (1899).
Conforme apontamos linhas acima, o texto intitulado A sonata a Kreutzer figura, juntamente ao ensaio O que é arte?, dentre os escritos mais polêmicos de Tolstói. No contexto de sua obstinada aspiração ao aperfeiçoamento moral, trata-se de uma narrativa mordaz contra a imoralidade do casamento tal como o autor o concebe: um reduto de apetites selvagens, onde os elementos do par conjugal fazem uso lascivo um do outro, não importando o argumento amoroso com o qual querem disfarçá-lo. Adstrito a isso, encontra-se, para Schnaiderman (2010), uma afirmação categórica das obsessões do autor, as quais, para nós, fundamentam-se em uma pregnante defesa do que consideramos ser a assepsia da carne, a negação do corpo e o estrangulamento do desejo:
O amor carnal, sejam quais forem as formas em que se apresenta, é um mal, um mal terrível, com o qual se deve lutar, e não estimular, como se faz em nosso meio. As palavras do Evangelho no sentido de que todo aquele que atenta numa mulher para cobiçá-la, já cometeu adultério com ela, não se referem apenas às mulheres alheias, mas, precisamente e sobretudo, à própria esposa. (Tolstói, 2010, p. 41-42)
Ademais, para a crítica da época, tratou-se também de uma narração profunda e sofisticada. De caráter híbrido, situa-se no entrecruzamento do libelo e da arte, e é, por essa razão, de difícil definição, daí poder ser interpretada sob diversos matizes, seja como tratado sociológico sobre a questão jurídica do casamento e a situação da mulher; seja como estudo patológico, analisando a gradual transformação do protagonista em assassino; seja, finalmente, como "obra-prima de sociologia sentimental". Seja como for, o texto foi considerado o zênite de suas ideias acerca do casamento e da relação sexual, cujos germes, apontam alguns críticos, já se encontravam em Anna Kariênina, a história de um adultério (Gomide, 2004).
A respeito de Anna Kariênina, consideramos imprescindível uma breve incursão. De acordo com Carpeaux (1985):
(...) Tolstoi não quis que seu romance fosse uma obra de arte. Quis (...) construir um relógio que indicasse a hora certa, isto é, o certo comportamento moral de homens e mulheres. Essa sua intenção e o resultado do seu trabalho (o romance) estão em conflito. Não se sabe, francamente, se devemos tomar o partido do romancista Tolstoi ou do moralista Tolstoi. (p. 7)
É por essa razão que, assim como em outras obras do autor, o referido texto está pleno de páginas que testemunham as dimensões de arte e moral, tão peculiares a Liev Tolstói. Neste sentido, considerado um dos pontos máximos atingidos pelo romance psicológico do século XIX, Anna Kariênina é, ao mesmo tempo, obra de acentuada preocupação social, onde se vislumbram as contradições vigentes na sociedade russa da época, e, sobretudo, com tamanha intensidade, é expressão da condenação moral do adultério (Schnaiderman, 1983).
Ocorre que o enredo retrata a história de Anna Kariênina, a esposa infiel de um burocrata russo, e sua relação com o elegante, sedutor e leviano Conde Vrónski. Segundo Carpeaux (1985), os dois personagens principais não são retratados como amantes românticos, mas, sim, como pecadores culpados. É o que podemos observar a partir deste tempestivo trecho do livro, no qual o narrador descreve o momento posterior à consumação sexual da ligação criminosa entre Anna e Vrónski:
O que para Vronski, durante quase um ano, fora o fim único da vida e para Ana um sonho terrificante, mas encantador, realizou-se finalmente. Pálido, o queixo trêmulo, inclinado sobre ela, pedia que se acalmasse.
- Ana, Ana - dizia com uma voz confusa - Ana, suplico-te! ...
(...)
- Meu Deus! ... Perdoai-me! - soluçava, apertando-lhe a mão contra o peito.
Achava-se tão culpada, tão criminosa que só lhe restava pedir perdão - e não tendo mais que Ele no mundo era a Ele que se dirigia. Olhando-a, o seu aviltamento parecia tão claro que nenhuma outra palavra poderia pronunciar. Quanto a Vronski, sentia-se semelhante a um assassino em frente ao corpo inanimado da vítima: esse corpo imolado por ele era o seu amor, a primeira face do seu amor. Ele misturava um não sei quê de odioso à recordação de haverem pago o preço horroroso da vergonha. O sentimento da sua nudez moral torturava Ana e se transmitia a Vronski. Mas, qualquer que fosse o pavor do assassino em face da sua vítima, ele não o aumentaria destruindo o cadáver, cortando-o aos pedaços. Então, com uma raiva frenética, lançou-se sobre o cadáver e o apertou para destruí-lo em pedaços. Foi assim que Vronski cobriu de beijos o rosto e as espáduas de Ana. Ela lhe deu a mão e ficou imóvel. Sim, aqueles beijos, ela os adquiria com o preço da sua honra, sim, aquela mão que lhe pertencia para sempre era a do seu cúmplice. (Tolstoi, 1985, p. 116 - 117)
Mediante isto, observamos que, dado o conflito dramático entre o bem e o mal que a paixão adúltera, selo da maldição, consubstancia, Anna deve ser terrivelmente punida. Como presságio de um destino trágico, lê-se, na página de abertura do texto, traduzido por Rubens Figueiredo (2013), a citação de Deuteronômio, XXXII, 35: "De mim virá a vingança, e também a recompensa" (p. 13). Para Carpeaux (1985), é Tolstói, pecador arrependido e moralista torturado pelos escrúpulos, que assina a sentença de morte.
Diante desse contexto, no que se relaciona à sentença de morte, para que possamos dar um novo passo em nossa explanação, façamos uma retomada do mencionado conto O diabo. No que diz respeito a esse texto, consideramos importante mencionar que sua ideia central consiste na necessidade de aperfeiçoamento moral do indivíduo, perante Deus e seus semelhantes (Soares, 2012), embora seja evidente que tal pressuposto desenvolve-se em meio a uma sinfonia de grande densidade literária, conforme temos percebido ser a marca estilística do autor.
Nesse sentido, apontamos que, de acordo com Schnaiderman (1983), o enredo consiste em uma trama de insânia sexual, onde um membro da aristocracia, um proprietário rural recém-chegado da capital para administrar suas terras, sucumbe a uma paixão fulminante por uma camponesa. Dessa paixão, assoma o signo da lascívia, que destina homens e mulheres ao pecado e à sua consequente e inexorável expiação. Deste modo, ante ao desejo que pressente incontrolável, aflige-se o personagem central, Evguêni Irtênev:
Ela é o diabo. É o próprio diabo. Pois ela se apossou de mim contra a minha vontade. (...) Não, não é possível. Só há duas saídas: matar minha mulher ou matá-la. Ou ainda... Ah, é verdade, existe uma terceira alternativa: matar-me (...). (Tolstói, 2012, p. 177-178)
Por fim, ainda segundo Schnaiderman (1983), Tolstói, que não chegou a publicar essa obra em vida, deixa, como legado e expressão de suas indecisões morais, duas variantes da história: uma em que o personagem central acaba por suicidar-se e a outra em que ele assassina a amante, objeto de seu desejo. Para nós, contudo, o que carece de premente elucidação é que, ainda que as formas de indecisão digam respeito ao suicídio ou ao assassinato do objeto desejado, não há dúvidas de que, em O diabo, assim como em outras de suas obras, é o expediente da morte a única forma de libertação e triunfo sobre o pecado.
Diante disso, acrescentamos que, no enredo tolstoiano, o que temos observado a partir de nossas investigações é uma incompatibilidade entre desejo e vida. Ademais, em maior ou menor medida, na obra de Liev Tolstói, o certo é que, ante a transgressão, o destino faz-se senhor do castigo. Dessa forma, seja pelo padecimento em vida, mediante a perda irreparável de algum signo de valor supremo, como o amor ou a paz de espírito; seja pela própria morte ou pelo assassínio, é a punição, muitas vezes, pressentida, que assoma no horizonte do personagem pecador.
- (...) Em breve, tudo mudará e não sofreremos mais.
- Não te compreendo - disse Vronski, apesar de compreendê-la perfeitamente.
- (...) Eu o sei, eu o sei com certeza. Morrerei e estarei contente. Para mim, como para ti e ele, a minha morte será uma libertação. (Tolstoi, 1985, p. 254 - 255)
Assim, os personagens de Tolstói, impotentes ante a força das circunstâncias e escravizados por limitações internas, especialmente no que toca, respectivamente, à hipocrisia dos costumes e à fragilidade humana ante a concupiscência e a lascívia (Gornick, 2010), sucumbem à transgressão dos ditames morais e dão substância a um enredo que se delineia pela via da tragicidade. Tal assertiva remonta-nos à definição de tragédia, dada por Flávio Aguiar (2012), com a qual, no tocante à obra tolstoiana, encontramos algumas convergências:
Uma tragédia se caracteriza por serem inevitáveis, pelo menos a partir de certo ponto, as ações e os destinos dos personagens. Isto é: por certas marcas pessoais, junto às dos meios em que vivem, eles não podem agir de outra maneira. Essas marcas pessoais podem ser traços de caráter, questões de nascimento e origem, faltas cometidas no passado que, a princípio esquecidas ou mal-avaliadas, retornam com o seu peso de culpa. As marcas do meio podem ser moralismo dominante, diferenças de classe e de condição social, hipocrisia dos costumes. (Aguiar, 2012, p. 85)
Nesse sentido, compreendemos, como temos assinalado até então, que, na obra de Tolstói, as marcas pessoais dizem respeito aos vícios humanos, apaziguados apenas pelas mãos de Deus, enquanto as marcas dos meios referem-se às degenerescências e às veleidades aristocráticas, sinais de um mal interno, entranhado no corpo social. Assim, a partir da edificação deste cenário, observamos que, mediante o vaticínio da punição, destino inevitável para aqueles que transgridem os preceitos da moralidade, o enredo tolstoiano erige-se sob um primado moral, de cunho dogmático e tom doutrinal, cuja raison d´être consiste na propagação de uma visão de mundo, fundamentalmente, religiosa.
Nesse contexto, conforme aponta Gomide (2004), Tolstói, um produtor de ideias, vale-se da ficção para lastreá-las. Da empreitada, resulta, por um lado, uma literatura doutrinária, em que, entremeadas em sua trama, subjazem todas "as orientações para o aprimoramento moral e espiritual do homem no deserto contemporâneo" (Gomide, 2004, p. 204). Assim sendo, edifica-se uma tese: é essencial que o sentimento a ser comunicado seja de origem religiosa para que os fins confluam em direção ao aperfeiçoamento de homens e mulheres perante Deus e os outros homens. "(...) quero que a Rússia tenha sempre escritores assim, morais; (...) eu não posso mais de modo algum ser adocicado, e também escrever passando do vazio ao vácuo - sem um pensamento e, sobretudo, sem um objetivo" (Tolstoi citado por Schnaiderman, 1983, p. 15). Por essa razão, Gomide (2004) alerta-nos quanto à necessidade de certa preparação para encarar Tolstói, sem a qual, dado seu ideário, inaceitável para muitos de nós, poderá parecer-nos absurdo, irracional, mau ou até odioso.
Deixemos latente, no entanto, essa questão, benevolentemente admoestatória, para darmos prosseguimento ao raciocínio engendrado acerca do estilo do autor, é pertinente que apontemos que, nesta literatura com aspirações didáticas, no que tange à organicidade da função da arte em Liev Tolstói e à correlação dialética entre suas formas de vida e suas formas de arte, nós nos consideramos aptos a afirmar que, de um modo geral, alguns dos mais essenciais de seus fragmentos biográficos, seus tormentos e suas pretensões ideológicas, compõem sua narrativa e, ao mesmo tempo, conferem contornos bem definidos a uma ideia moral que não é apenas ilustrada pela obra, mas, demonstrada, como uma tese, ao longo de toda a estrutura narrativa (Bernardini, 2010). Sendo assim, os preceitos religiosos que tanto apregoou encontram-se, como confissões de seu solipsismo, corporificados em sua materialidade textual, conforme testemunha a fala de Aleksiei Aleksándrovitch, esposo traído de Anna Kariênina. Fala, observemos, compungida, matizada pela decência cristã e, por essa razão mesma, triunfante ante a intrepidez e abjeção do pecado:
- (...) Vindo aqui, eu desejava a morte de Ana, mas... - Calou-se por um instante tentando descobrir o sentimento que o fazia agir. - Mas, prosseguiu, eu a vi novamente e a perdoei. A felicidade de poder perdoá-la mostrou-me claramente o dever. Perdoei irrestritamente. Entrego a outra face à bofetada, dou a minha última roupa ao que me despiu. A única coisa que peço a Deus é deixar-me a alegria do perdão (Tolstoi, 1985, p. 289).
Desse modo, neste compósito de ficção e expressão de pensamento, faz-se essencial destacar que literatura e religião, no caso de Tolstói e de muitos outros escritores russos, confluem como disposição de linguagem cujo objetivo é uma intervenção concreta nas formas de vida presentes. "Meu objetivo é a glória literária. O bem que eu posso fazer com os meus livros" (Tolstoi citado por Schnaiderman, 1983, p. 15). Daí apontarmos que, se a vitalidade de Liev Tolstói persiste, ainda, nos dias de hoje, muito mais decisiva foi a sua leitura para os homens de seu tempo. Consta que a assimilação de suas obras tornou-se uma realidade vital para os homens de sua geração, de modo a ser para eles aquilo que Goethe fora para os homens do século anterior (Schnaiderman, 1983).
No entanto, ante a complexidade de suas obras, ainda temos algo a acrescentar. Advertidos de que ignorar o contexto histórico consiste em uma das formas de silenciar o autor, especialmente no que diz respeito aos autores russos, comumente ativistas engajados nos problemas de sua sociedade, é preciso dizer que Tolstói retratou com realismo e excepcional qualidade artística a vida das mais variadas camadas sociais de sua época (Soares, 2012). Depreende-se disso uma relação entre literatura e sociedade, na qual a primeira, empenhada num esforço de compreender e debater o destino de um país e de uma sociedade em geral, figura como consistente instrumento para a instrução e a crítica de toda uma dinâmica histórico-social.
Assim sendo, de acordo com Bernardini (2010), a atividade literária de Liev Tolstói desenvolve-se em um período da história russa delimitado por dois marcos fundamentais: a abolição da gleba, em 1891 e o episódio que ficou conhecido por Domingo Sangrento, ocorrido em 1905 e fragmento dos movimentos que desembocaram na Revolução Russa de 1917.
Em linhas gerais, podemos apontar que, ligado às questões agrárias da Rússia czarista, o primeiro marco diz respeito à abolição do regime de servidão que previa, por um lado, a venda aos camponeses das parcelas de terra que eles já ocupavam e, por outro, a pretexto de indenização pelas terras perdidas, o pagamento, proveniente do Estado, aos antigos senhores (Silva, 2012). Ademais, como a história testemunha, o que se deu, também, foi a consequente constituição de uma classe miserável de camponeses. Esses, constrangidos pelas circunstâncias recalcitrantes do regime anterior, permaneceram estagnados, agora, em um estágio fronteiriço, uma vez que, não podendo adquirir direito de propriedade privada ante as terras que ocupavam, pois lhes faltavam recursos para isso, estabeleceram-se como membros de uma comuna ou de um grupo doméstico, de onde continuaram a figurar como inópia social. O segundo marco, por sua vez, refere-se à violência perpetrada pelo absolutista Nicolau II contra as forças contrárias à Monarquia e favoráveis à supressão dos latifúndios. O resultado de tal repressão foi o fuzilamento de milhares de manifestantes, acontecimento que nomeou apropriada e funestamente o dia de Domingo Sangrento.
Assim é que Liev Tolstói também escreve de modo a retratar suas pretensões à anarquia, abominando, sobretudo em seu ensaio O que é arte?, como dissemos páginas acima, o uso da literatura como mercadoria de entretenimento ou marca de distinção social. Tal postura, apresentada na tessitura de seus textos, afeta o conteúdo e a forma de suas obras, ao mesmo tempo em que lhe confere tonalidades de engajamento social. Dessa forma, a letra de Tolstói apresenta-se como um modelo peculiar da relação do escritor e do intelectual com a vida sócio-política do país (Gomide, 2004).
Por essa razão, sua obra revela-nos como o nexo entre literatura e vida social transforma-se em uma vantagem artística, capaz de proporcionar-lhe uma favorável recepção em cenários transnacionais. Neste sentido, Gomide (2004) aponta que as conexões por ele estabelecidas envolvem os mais diversos grupos ideológicos, dentre eles, destacam-se, por um lado, as esferas formadas por pensadores anarquistas e socialistas e, por outro, os ilustrados círculos de literatos e beletristas dos países europeus.
Ademais, vale dizer que, em meio a esse turbilhão de particularidades, as obras russas, bem como a sua expressão denotativa e consistente de uma dada sociedade, designam uma difícil tarefa quanto ao encaixe na classificação de gêneros literários. Em tal contexto, estabelecendo-se a partir do que, razoavelmente, convencionou-se chamar Realismo Socialista e Realismo Ocidental, a inserção do primeiro na tribuna literária da belle époque deu-se de forma substancial, uma vez que sua repercussão e sua aceitação fizeram-se, em grande medida, pelas possibilidades de convergência à ideologia realista das letras europeias vigentes na época (Gomide, 2004).
Assim sendo, diante de tais considerações, ratificamos que, dado o estofo de uma Rússia czarista que lhe serviu de substrato, somado às ideologias anárquico-cristãs do próprio autor, o legado literário de Liev Tolstói é de difícil qualificação. Conforme aponta Gomide (2004), consideramos razoável, contudo, conferir-lhe a categoria de Realismo Socialista. Este, habitualmente tido como uma espécie de patrimônio da esquerda, na medida em que se faz voltado para as questões sociais, prega a abolição da propriedade privada, põe-se contra a Igreja e rejeita o princípio da arte pela arte em prol de uma arte destinada à coletividade, acaba por desembocar, inevitavelmente, nos preceitos de combate e denúncia do Realismo Ocidental.
Considerações finais
Por fim, no que tange à tarefa que nos propomos realizar, isto é, a de analisar a problemática do estilo do autor de nossa eleição, assim como a de compreender o que lhe confere singularidade no campo literário, nós constatamos que, de modo irrefutável, a narrativa de Liev Tolstói tem como diapasão particular a persistência pungente de uma percepção de obrigação moral (Parini, 2011). Esta, de fundamental importância para a caracterização do autor, é, ademais, um elemento que nos habilita a ponderar outras suposições. Nesse sentido, vale destacar que, ainda que nitidamente presente no enredo das tramas tolstoianas, tal percepção não é capaz de macular o seu valor literário, embora, em termos de recepção, possamos concluir que daí resulta aquilo que podemos denominar efeito de estranhamento. Em outras palavras, trata-se de uma espécie de constrangimento, o qual, proveniente do estilo do autor, pode despontar de sua leitura.
Em tal contexto, para que possamos fazer as nossas últimas considerações, julgamos indispensável retomar uma questão que deixamos latente, a saber, aquela apontada por Gomide (2004) quanto à necessidade de certa preparação para encarar Tolstói, sem a qual sua obra poderá parecer-nos odiosa. De fato, conforme temos apontado ao longo de toda esta explanação, a obra de Liev Tolstói tem uma sinfonia peculiar.
Consoante Câmara (2010), não foram poucos os que destacaram que a existência de dois homens em um só, o artista e o doutrinador, promove, na tessitura textual, uma facilmente perscrutável tensão entre moral e arte. Em nossas próprias palavras, no que diz respeito à produção literária de Liev Tolstói, podemos afirmar que existe um conflito perene entre o romancista e o dogmático. Tal conflito - sustentáculo da relação dialética existente entre formas de vida e formas de arte - constitui justamente o que delimita o processo de escritura e dá contornos consistentes à marca estilística do autor. É a isso que se refere Schnaiderman (1983), quando nos brinda com estas oportunas palavras:
O que dá uma vibração peculiar a sua obra é a coexistência do pregador moralista e do narrador que adere à natureza, às coisas, à plena materialidade do mundo. O toque bárbaro evidente em Tolstói, e que foi apontado muitas vezes, está ligado a este narrador exuberante. Mas a coexistência de dois narradores tão opostos entre si é que imprime a seus textos um pathos inconfundível. (p. 62)
Mediante isto, no que diz respeito à leitura de Liev Tolstói, nossa admoestação - aportada à de Gomide (2004) e subsidiada, ao mesmo tempo, por nossa própria pesquisa - aponta ainda outro sentido: a obra de Tolstói, dadas sua pujança literária e sua vitalidade perene, ainda que fundamentalmente plena de certezas olímpicas e juízos categóricos (Schnaiderman, 2010), possibilita-nos um ponto de ultrapassagem, o qual nos desvia do que poderia ser odioso no autor e em suas exasperações morais, para sensibilizar-nos com relação ao que nos parece odioso, trágico e, por essa mesma razão, belo, no próprio espírito humano.
Desse modo, em defesa convicta de sua narrativa, consideramos necessário reconhecer que a coexistência de atitudes diversas - artista, criador de vidas e doutrinador - convoca-nos a perceber que a atividade doutrinária de Tolstói é tão importante quanto à de ficcionista, de modo que sua literatura não pode ser encarada como sendo meramente didática e sem beleza. Consoante Schnaiderman, apontamos que, contraditoriamente, "Tolstói assumiu uma função de doutrinador, forçosamente atravessada pelo impulso literário que lhe impunha, ao mesmo tempo, o caráter de grande romancista" (1983, p. 25).
Por fim, com vistas a tentar uma conciliação para este conflito que, para nós, é perene, apontamos, como solução, a existência de uma dialética entre doutrina e ficção, cuja síntese, sempre cambaleante, nos permite perscrutar a vibração e a intensidade peculiares ao texto tolstoiano. Em outras palavras, queremos dizer, juntamente a Romain Rolland (1921, s/p, tradução nossa) que, em Liev Tolstói, "a fusão não era um ponto perfeito entre suas naturezas diversas: sua verdade de artista e sua verdade de crente". Daí decorre a consistência do argumento de que, no que diz respeito a Liev Tolstói, sua vantagem artística provém deste, por vezes, insólito, imbricamento moral e literário, que confere a seus escritos a coexistência de duas atitudes aparentemente contraditórias: a de ficcionista e a de doutrinador.
Nesse sentido, o caráter híbrido que daí assoma e confere tonalidades peculiares à materialidade de seus textos pode, por sua vez, ser percebido em uma trajetória errática que, ao dar corpo à criação, ora emerge por meio da pena ficcionista que erogeniza a obra e seduz o leitor, ora por meio da pena(lização) moralista que confere aos transgressores uma inapelável expiação: a tragicidade do destino.
Referências
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Recebido em: 10/05/2018
Aprovado em: 18/08/2018