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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.12 no.1 Rio de Janeiro jan./un. 2020
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2020v1p.14
ARTIGOS TEMÁTICOS
Ideais culturais e o tornar-se mulher: a cultura na constituição da feminilidade
Cultural ideals and to become a woman: the culture in the constitution of femininity
Les idéaux culturels et le devenir femme: la culture dans la constitution de la féminité
Milla Maria de Carvalho Dias VieiraI; Ana Cleide Guedes MoreiraII
IPsicóloga. Mestre e Douranda em psicologia pela Universidade Federal do Paraná - UFPA, na linha de Psicanálise Teoria e Clínica. E-mail: milla_mluz@hotmail.com
IIDocente e Tutora do Programa de Atenção ao Paciente Crítico, Residência Multiprofissional, UFPA-EBSERH. Professora Associada 4, aposentada, da Pós-Graduação em Psicologia, Mestrado e Doutorado na UFPA. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Relações de Gênero. Pesquisadora visitante do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social PUC-Rio/UVA. Chercheur associé à l' Université Paris 7 Denis-Diderot. E-mail: acleide@uol.com.br
RESUMO
Este artigo aborda a importância dos ideais culturais no processo de constituição da feminilidade e na criação de um padrão de normalidade para as mulheres na modernidade. Desde os séculos XVIII e XIX, surgiu um novo ideal de feminilidade: o de mulher dedicada à maternidade e submissa ao desejo do marido. Rousseau é considerado o principal autor desse novo ideal que serviu de possibilidade identificatória às pulsões, contribuindo para o modo de subjetivação das mulheres. Com esse novo modelo de feminilidade, há a conflituosa relação entre a moral estabelecida por esse ideal e a pulsão sexual, ocasionando neuroses.
Palavras-chave: FEMINILIDADE; PSICANÁLISE; IDEAIS; ROUSSEAU.
ABSTRACT
This article discusses the importance of cultural ideals in the process of constitution of femininity and the creation of a pattern of normality for women in modernity. Since the eighteenth and nineteenth centuries, a new ideal of femininity arose: a woman dedicated to motherhood and submissive to her husband's desire. Rousseau is considered the main author of this new ideal that served as an identification possibility to the drives, contributing to women's subjectivation means. With this new model of femininity, there is the conflictive relationship between the moral established by this ideal and the sexual drive, causing neuroses.
Keywords: FEMINITY; PSYCHOANALYSIS; IDEALS; ROUSSEAU.
RESUMÉ
Cet article aborde l'importance des idéaux culturels dans les processus de la constitution de la féminité et dans la création d'un système standard de la normalité pour les femmes dans la modernité. Depuis les siècles XVIII et XIX, il est né un idéal de féminité: celui de femme dediée à la maternité et soumise au désir du mari. Rousseau est considéré le principal auteur de ce nouvel idéal qui servait de possibilité identifiable aux pulsions, en contribuant à la subjectivation des femmes. Avec ce nouveau modèle de féminité, Il y a une relation conflictuelle entre la morale établiée par cet idéal et la pulsion sexuelle, en occasionant des nevroses.
Mots-clés: FÉMINITÉ; PSYCHANALYSE; IDÉAUX; ROUSSEAU.
Introdução
A concepção da existência de uma essência feminina voltada para a maternidade, para a passividade ao desejo masculino e para a docilidade passou a vigorar na Europa a partir dos séculos XVIII e XIX, com o surgimento de novos discursos que tinham por objetivo "promover uma perfeita adequação entre as mulheres e o conjunto de atributos, funções, predicados e restrições denominado feminilidade" (Kehl, 2008, p. 47).
Esses discursos estavam ancorados em justificativas que tomavam o corpo da mulher para explicar o seu lugar na sociedade. Assim, seria por conta de sua anatomia sexual que a mulher teria em sua essência certas funções, como a maternidade e outros atributos que constituiriam a feminilidade, conforme podemos verificar nas palavras da psicanalista Maria Rita Kehl (2008):
A feminilidade aparece aqui como o conjunto de atributos próprios a todas as mulheres, em função das particularidades de seus corpos e de sua capacidade procriadora; a partir daí atribui-se às mulheres um pendor definido para ocupar um único lugar social - a família e o espaço doméstico -, a partir do qual se traça um único destino para todas: a maternidade (Kehl, 2008, p. 48).
Assim, Kehl (2008) considera em sua tese que a feminilidade seria produto de uma construção discursiva produzida a partir da posição masculina, à qual se espera que as mulheres correspondam. Dessa forma, em cada época haveria um modo feminino de ser, de acordo com o que era estabelecido pelos pensadores da época. Um desses homens que contribuiu para a constituição da feminilidade voltada para a maternidade e para o cuidado com o lar foi Jean-Jacques Rousseau.
Autores como Kehl (2008), Nunes (2000), Badinter (1985) e Laqueur (2001) consideram Rousseau como o principal teórico dessa perspectiva. Nas palavras de Kehl (2008, p. 58), "de todos os escritores que se manifestaram a favor de uma volta das mulheres ao seu verdadeiro estado, ou seja, o 'estado de natureza', o mais influente foi Rousseau". Foi em seu livro Quinto da obra "Emílio ou da Educação", de 1762, que Rousseau (1762∕1973) escreveu a personagem Sofia, esposa de Emílio, a qual, segundo Kehl (2008, p. 59), "é o paradigma do ideal de feminilidade baseado na dedicação, na doçura, na submissão".
O modelo de mulher criado por Rousseau (1762∕1973) foi tão fundamental para a constituição de um novo ideal de feminilidade que ainda está presente na subjetividade de mulheres contemporâneas. Sobre a presença desse modelo de mulher ideal na modernidade, Kehl (2008) afirma que:
O modelo de Rousseau é tão perfeitamente articulado, que escutamos até hoje suas ressonâncias. No século XIX, ele dominou, com uma série de variações mais ou menos científicas e/ou pedagógicas (aquele foi o século da medicina e da pedagogia), toda a produção de saberes sobre as mulheres (Kehl, 2008, p. 62).
Na perspectiva de Rousseau (1762∕1973), seria por conta do seu corpo, mais especificamente do seu sexo anatômico, que as mulheres teriam em sua essência a passividade, a submissão ao desejo do homem; que seriam dóceis e capazes de suportar sofrimento. Além disso, deveriam abdicar dos seus próprios desejos, para que, assim, pudessem se dedicar unicamente à maternidade, ao marido e ao lar. Assim, com Rousseau (1762∕1973), surge uma nova forma de pensar a feminilidade, paradigma que passa a fazer parte da cultura e da subjetividade de mulheres como um ideal.
Contrapondo-se a essa perspectiva que afirma a existência de uma essência feminina a partir do seu sexo anatômico, a psicanálise, importante aporte teórico criado por Freud, considera a existência de uma constituição da feminilidade e da masculinidade. Dessa forma, em psicanálise, aborda-se um tornar-se mulher e não se considera a existência de uma natureza feminina.
Sobre a constituição da feminilidade e masculinidade, Kehl (2008) defende que seriam compostas tanto pelas identificações que estruturam o eu como pela particular estratégia que cada sujeito realiza em relação ao trinômio falo∕falta∕desejo (Kehl, 2008). Nesse sentido, Kehl (2008, p. 9-10) afirma:
(...) ao mesmo tempo que nossa condição de seres de linguagem nos inscreve obrigatoriamente em um ou outro grupo marcado por algumas (mínimas) características comuns, a psicanálise não pensa esta pertinência como garantia de uma identidade. A mesma travessia que produz nossa identificação ao gênero produz também a diferença irredutível de cada sujeito.
Por conseguinte, seria a partir da travessia edípica que os sujeitos se identificam a certos ideais relativos aos gêneros; contudo, é a partir dessa mesma travessia que há também a possibilidade da constituição singular de cada subjetividade, que independe de padrões próprios ao gênero.
Além disso, é importante considerar que, diferente de certos discursos que pretendiam descrever o que é uma mulher, Freud considera a importância de analisar como uma mulher se forma. É em seu artigo "Feminilidade", presente nas "Novas conferências introdutórias sobre psicanálise", que Freud (1933-1932∕1996) destaca a importância do tornar-se mulher:
De acordo com sua natureza peculiar, a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher - seria esta uma tarefa difícil de cumprir - mas se empenha em indagar como é que a mulher se forma, como a mulher se desenvolve, desde a criança dotada de disposição bissexual" (Freud, 1933-1932∕1996, p. 125).
Assim, alguns conceitos criados a partir do fundador da psicanálise serão fundamentais para a construção da teoria freudiana sobre o tornar-se mulher, como o complexo de Édipo, os processos identificatórios, a bissexualidade psíquica, a trajetória pulsional de cada sujeito, o que implica o afastamento da psicanálise de uma perspectiva naturalizadora da mulher.
O conceito de pulsão sexual, elaborado por Freud, foi fundamental para que ele rompesse com as abordagens que tomam o sexo anatômico para justificar o lugar do homem e o da mulher na sociedade. Foi com esse conceito que ele deslocou a sexualidade do domínio da biologia para o da representação psíquica, além disso, possibilitou abordar a sexualidade humana como polimorfa, ou seja, como assumindo diferentes formas. Nesse contexto, Nunes (2000) considera que:
Isso colocava Freud diante da possibilidade de existir no sujeito humano potencial para uma variedade de formas femininas e masculinas de ser, relativamente independentes do sexo biológico. Se a sexualidade humana se desenrola no registro das fantasias, das representações psíquicas, nada do que pertença à sexualidade seria predeterminado (Nunes, 2000, p. 176).
É importante considerarmos, contudo, que, apesar de Freud ser revolucionário - pois permitiu pensarmos em um tornar-se mulher a partir do seu conceito de pulsão sexual e outros conceitos fundamentais -, ao teorizar sobre a sexualidade feminina e a feminilidade, ele acabou reforçando a perspectiva de mulher tão presente no século XIX. Seus conceitos foram importantes, porém, para que os pós-freudianos aprofundassem as suas teses sobre o tornar-se mulher e trouxessem novas concepções teóricas sobre esse processo de constituição da feminilidade.
A partir dessa perspectiva que aborda o tornar-se mulher, analisamos neste trabalho a importância dos ideais culturais no processo de constituição da feminilidade e na construção de um padrão de normalidade para as mulheres, além disso, abordamos a conflituosa relação entre a pulsão sexual e a moral sexual cultural e o consequente surgimento de neuroses, como a histeria, cujos sintomas estiveram muito presentes em mulheres no século XIX. Primeiramente analisamos, todavia, o ideal de feminilidade que surgiu a partir da perspectiva de Rousseau sobre a mulher, o qual toma a anatomia sexual do corpo feminino como justificativa para considerar a existência de uma essência passiva e submissa em relação aos homens.
Um novo ideal de feminilidade
Jean-Jacques Rousseau, considerado por grande parte dos estudiosos de teoria literária como o pai do Romantismo, construiu um sistema filosófico que influenciou a forma de viver e pensar do Ocidente (Toledo, 2002). Assim, foi o responsável pela construção de uma proposta filosófica, moral e política para a sociedade burguesa em ascensão (Lejarraga, 2002).
Em sua proposição, homens e mulheres se diferenciariam e assumiriam diferentes deveres e direitos, tanto em relação à vida pública, quanto à vida privada do casamento, como afirma o autor: "em tudo que diz respeito ao sexo, a mulher e o homem têm em tudo relações e em tudo diferenças" (Rousseau, 1762∕1973, p. 414). Com isso, para Rousseau (1762∕1973), seria uma futilidade discutir sobre a igualdade entre os sexos, pois ambos seriam perfeitos e atenderiam, cada um na sua especificidade, aos fins da natureza. Textualmente, escreve o autor:
Tais relações e tais diferenças devem influir no moral; esta consequência é sensível, conforme a experiência, e mostra a futilidade das discussões acerca da preferência ou da igualdade dos sexos: como se cada um deles, atendendo aos fins da natureza segundo sua destinação particular, não fosse mais perfeito nisso do que se assemelhando mais ao outro! No que têm de comum, são iguais; no que tem de diferente, não são comparáveis. Uma mulher perfeita e um homem perfeito não devem assemelhar-se nem de espírito nem de fisionomia, e a perfeição não é suscetível nem de mais nem de menos (Rousseau, 1762∕1973, p. 415).
A partir dessa perspectiva de uma desigualdade ancorada em uma diversidade morfológica sexual, Rousseau "inaugurou todo um discurso sobre a diferença entre os sexos e suas consequências morais e sociais, acoplando diferença sexual e diferença de gênero" (Nunes, 2000, p. 38). Nesse sentido, a mulher não seria nem inferior nem imperfeita, mas perfeita em sua especificidade. A partir desse viés, Nunes (2000) considera que Rousseau conseguiu se justificar diante da ética libertária emergente, pois a condição feminina seria um desígnio da natureza e não uma imposição social.
A respeito da conduta assumida pela mulher, Nunes (2000, p. 43) certifica que esse filósofo apontou vários aspectos inerentes à feminilidade, tais como "fragilidade, timidez, doçura, sedução e afetividade (...) para ele, feminilidade rima com passividade". Tal padrão de feminilidade de Rousseau fez escola, e o século XVIII viu nascer o desenho de um perfil feminino.
É importante destacar que, apesar de Rousseau (1762∕1973) asseverar que a essência feminina está voltada naturalmente para a passividade, para a subordinação e para uma maior capacidade de amor e doação, ele elabora um projeto pedagógico que, conforme Nunes (2000), seria um adestramento da mulher para que ela pudesse suportar o lugar de submissão.
Nesse sentido, ela seria educada para atender às necessidades e aos desejos masculinos, assumindo a passividade como algo que faria parte da sua conduta. As mulheres também deveriam ser úteis e sempre procurar agradar aos homens, como se pode ler em Rousseau (1762∕1973, p. 415):
(...) Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco: é necessário que um queira e possa, basta que o outro resista pouco. Estabelecido este princípio, segue-se que a mulher é feita especialmente para agradar ao homem. Se o homem deve agradar-lhe por sua vez, é necessidade menos direta: seu mérito está na sua força; agrada, já pela simples razão de ser forte (Rousseau, 1762∕1973, p. 415).
Segundo Sampaio (2010), nessa lógica de dominação masculina presente na concepção rousseauniana, o sexo feminino fica em uma posição de nítida sujeição ao desejo masculino. Diante disso, a visão preponderante é a de que a mulher é feita para agradar ao sexo masculino; a mulher deveria preocupar-se em satisfazê-lo. Este, por sua vez, só se satisfaria sujeitando-a ao seu desejo. Desse modo, bastaria ao homem dominar a mulher, pensada como necessariamente subordinada ao desejo dele.
Para que isso acontecesse, ou seja, para que as mulheres submetessem suas fantasias e seus desejos à vontade dos homens, elas deveriam desde cedo sofrer o que Rousseau denominou de constrangimentos contínuos. Nas palavras do autor:
(...) As jovens devem ser vigilantes e laboriosas; não é tudo: elas devem ser contrariadas desde cedo. Esta desgraça, se é que é uma, inseparável de seu sexo; e dela nunca elas se libertam senão para sofrer outras bem mais cruéis. Estarão a vida inteira escravizadas a constrangimentos contínuos e severos, os de decoro e das conveniências. É preciso exercitá-las desde logo a tais constrangimentos, a fim de que não lhes pesem; a dominarem suas fantasias para submetê-las às vontades dos outros (Rousseau, 1762∕1973, p. 429).
Assim, como resultado desse contínuo constrangimento, surgiria na conduta da mulher a docilidade, a passividade, a submissão. A doçura seria importante qualidade de uma mulher, pois ela teria como dever suportar os erros que o marido cometesse, sem questioná-los. Sobre essa questão, Nunes (2000) considera que um importante aspecto presente no projeto pedagógico de Rousseau é pressupor que, além de a menina se submeter calada, ela deveria fazer isso de bom grado, extraindo daí satisfação. O homem, por sua vez, nessa relação, não poderia ser um marido delicado, pois poderia tornar a mulher impertinente. Sobre a importância da docilidade feminina, o autor assevera que:
Resulta desse constrangimento habitual uma docilidade de que as mulheres necessitam durante a vida toda, porque não deixam nunca de se achar submetidas ou a um homem ou ao julgamento dos homens, e que não lhes é permitido colocarem-se acima de tais juízos. A primeira e a mais importante qualidade de uma mulher é a doçura: feita para obedecer a um ser tão imperfeito quanto um homem, amiúde cheio de vícios, e sempre cheio de defeitos, ela deve aprender desde cedo a sofrer até injustiças e a suportar os erros do marido sem se queixar; não é por ele, é por ela mesma que deve ser doce (Rousseau, 1762∕1973, p. 430).
Portanto, como se verifica nesse excerto e ao longo de toda a proposta rousseauniana, há, no pensamento de Rousseau (1762∕1973), afirmativas misóginas e sexistas como essas em que se mantém a mulher submetida aos constrangimentos e julgamentos feitos pelo marido na relação amorosa, suportando as injustiças cometidas por ele, sem poder questionar sua posição de submissão.
Tal situação permite concordar com Nunes (2000), acerca da ideia de que "o processo educativo preconizado por Rousseau se assemelha a uma verdadeira tortura, onde a necessidade de subjugação contínua da vontade das meninas é o fim principal" (Nunes, 2000, p. 45).
Além disso, Rousseau (1762∕1973) também aborda a importância de uma função complementar entre o casal. Assim, o dever do homem seria trabalhar na esfera pública e o da mulher, ser a responsável pelo cuidado do lar, dos filhos e do marido. Sampaio (2010, p. 29), ao comentar essa perspectiva, constata que "com Rousseau (1762∕1973) se desenha, então, um forte retrato literário da família moderna então nascente, na qual o homem é o provedor e a mulher ocupa o posto de rainha do lar".
Dessa forma, seria por conta da particularidade do seu corpo que a mulher estaria destinada a um único lugar social - o lar - e a maternidade seria a única função que poderia assumir, não podendo exercer outras funções sociais. Diante dessa perspectiva rousseauniana, Nunes (2000) considera que é interessante notar como a maternidade exigiria das mulheres sacrificar seus anseios, seus projetos, seus direitos pessoais, civis, em nome dos filhos e do marido, por isso "a ideia de que o ideal de feminilidade supõe que a mulher sacrifique qualquer desejo em nome do marido e dos filhos passa então a ganhar cada vez mais força" (Nunes, 2000, p. 77).
Portanto, haveria, nessa nova descrição da feminilidade, a concepção de que a mulher deveria ser capaz de suportar sofrimentos, injustiças, subjugação e encontrar prazer naquilo a que estava destinada. Para Nunes (2000), até aquele momento nunca se insistira tanto na necessidade de sacrifício materno:
Toda mãe tem de sacrificar sua vontade e seu prazer para o bem da família. Os discursos médicos exaltavam a capacidade feminina para o sacrifício. Faz-se um elogio daquelas que morrem para salvar a vida dos filhos e do marido. Aprofunda-se a ideia de que mulher que se sacrifica retira desse sofrimento um importante quantum de prazer. Na glória de tornar-se mártir, a mãe sofre e goza (Nunes, 2000, p. 80).
Para Kehl (2008, p. 58), Rousseau foi o "grande propagandista das virtudes do amor materno com a publicação do seu Emílio, em 1762". Como já afirmamos neste trabalho, foi no livro Quinto dessa obra que Rousseau descreveu a esposa adequada para Emílio, a qual serviu de modelo para a nova família burguesa.
Portanto, a partir de Rousseau, criou-se um ideal de feminilidade, o qual ainda serve como referencial identificatório para mulheres na contemporaneidade, de acordo com a afirmação de alguns autores, como Kehl (2008) e Nunes (2000). Dessa forma, pode-se afirmar que ainda está presente no imaginário social a concepção de que seria por conta do sexo anatômico da mulher que ela estaria destinada a determinadas funções, como a maternidade e o cuidado com o lar, e, também, destinada a determinadas condutas, como a docilidade, o recato e a submissão ao desejo masculino.
O saber psicanalítico, por sua vez, vem contrapor-se a essas concepções essencialistas e naturalizantes, ao propor analisar os processos de constituição subjetiva, diferenciando-se da concepção de uma feminilidade pré-estabelecida a partir da anatomia sexual. A seguir, abordamos as contribuições da psicanálise para analisarmos o tornar-se mulher e, assim, construirmos uma base para entender como o pensamento psicanalítico opõe-se à perspectiva de uma feminilidade já naturalmente existente no sexo feminino.
Feminilidade na perspectiva freudiana.
Como abordamos anteriormente, nos séculos XVIII e XIX, houve a produção de discursos repressores que buscavam adequar a conduta de mulheres à nova família burguesa. Segundo Kehl (2008), os homens foram os produtores desses discursos, e, à época, não foi possível às mulheres tomarem consciência de que aquela era a verdade do desejo de alguns homens médicos e filósofos responsáveis pelas formações ideológicas modernas. É nesse contexto social que surge, no século XIX, a histeria como forma do mal-estar feminino (Kehl, 2008).
Foi a partir da escuta das histéricas que Freud, em seu consultório, pôde investigar o sexual na neurose e o infantil na sexualidade (Kehl, 2008). A partir dessa escuta, também publicou o seu polêmico artigo "Três ensaios da teoria da sexualidade", em que rompia, segundo Nunes (2000), com o dispositivo "perversão-degenerescência-hereditariedade", o qual norteava as formulações psiquiátricas do século XIX. Com isso, além de criticar a concepção existente sobre o sexual, ele afastou essa concepção da perspectiva biológica e hereditária.
Além disso, ao possibilitar que as histéricas falassem em seu consultório, Freud permitiu que o sofrimento feminino pudesse ser expresso por meio da fala e não apenas por meio do corpo, como ocorria com os sintomas de conversão que se expressavam nos corpos das mulheres como resultados do conflito psíquico gerador de muito sofrimento. Segundo Kehl (2008), a conversão histérica era a única forma de expressão da experiência das mulheres diante de ideias tradicionais de feminilidade. Vale ressaltar que, no ideal de feminilidade de Rousseau, as mulheres eram submetidas ao desejo dos homens e não podiam falar dos seus desejos e sofrimentos, apenas aceitar caladas o que era imposto a elas.
A partir do contato com esse feminino em sua clínica, Freud buscou, em sua teoria sobre a sexualidade feminina, mais do que descrever o que seria uma mulher, buscou questionar como ela torna-se uma, por meio de um processo dependente da trajetória pulsional de cada mulher e das inter-relações subjetivas e não de uma essência feminina predeterminada. Sobre essa questão, Nunes (2000) considera que:
Antes mesmo de Simone de Beauvoir, Freud demonstrou que a mulher não nasce pronta; tornar-se mulher seria, ao contrário, uma possibilidade dependente das inter-relações subjetivas e da consequente trajetória que as pulsões sexuais tomariam. Quando argumenta que a psicanálise só pode se perguntar como um bebê se torna mulher, ele coloca o discurso psicanalítico como antagônico ao discurso psiquiátrico e sexológico do século XIX que pretendeu dizer o que é a mulher (Nunes, 2000, p. 192).
Ao longo da obra freudiana, podem-se destacar dois momentos em que ele aborda o processo de constituição da sexualidade feminina. O primeiro se refere ao período de 1905 até o início dos anos de 1920. O segundo momento ocorre após 1920 e vai até 1933, com o seu texto "Feminilidade", presente no capítulo "Novas conferências introdutórias sobre psicanálise".
No primeiro momento, Freud apresenta duas proposições que serão fundamentais para uma compreensão da sexualidade feminina na primeira tópica. A primeira proposição é a existência de uma libido masculina que estaria presente tanto em meninos quanto em meninas. A segunda é a fantasia infantil da existência de apenas um único sexo, o masculino. Essas proposições fizeram com que algumas autoras, como Chasseguet-Smirgel (1988), Nunes (2000) e Neri (2005), denominassem de monismo sexual esse primeiro momento da teoria freudiana.
A partir dessa perspectiva monista da sexualidade, em que haveria uma libido masculina e apenas uma zona erógena idêntica em homens e mulheres: a masculina, alguns autores, como McDougall (2001), Nunes (2000), Birman (2001) e Sigal (2009), afirmam que Freud analisa a sexualidade da mulher a partir do modelo da sexualidade masculina. Sobre essa questão, Birman (2001, p. 181), em seu livro "Gramática do erotismo: a feminilidade e as suas formas de subjetivação em psicanálise", declara que "O ser da mulher poderia ser revelado, na sua positividade e negatividade, por uma especulação em relação ao homem. Seria por comparação e até mesmo por subtração que o ser da mulher poderia ser elucidado a partir da condição masculina" (Birman, 2001, p. 181).
É somente no segundo momento, após 1920, que Freud passa a atribuir uma especificidade à sexualidade feminina, ao formular uma nova concepção da diferença entre os sexos e propor um novo modelo de desenvolvimento libidinal para as mulheres (Nunes, 2000).
Freud, nesse segundo momento, ao desenvolver sua tese sobre a sexualidade feminina, considera que a mulher não apresentaria um superego forte, seria possuidora de uma inveja do pênis por ser castrada, apresentaria uma menor capacidade de sublimar e se voltaria para a maternidade com o objetivo de possuir o tão desejado pênis.
É em seu texto "Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos" que Freud (1925∕1996) concebe o superego da mulher como diferente do presente no homem, já que, no modelo masculino, é o temor da castração que permite o fim do complexo de Édipo e a formação do superego. Nas meninas, como não há um motivo para o fim do complexo de Édipo, já que ela se encontra castrada, não havendo o que temer, o seu superego não seria forte e, por isso, apresentaria uma moral pouco desenvolvida.
Sobre a inveja do pênis, ele considera que isso ocorre porque elas notam que os meninos possuem um pênis de grandes proporções "e imediatamente o identificam com o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível; dessa ocasião em diante caem vítimas da inveja do pênis" (Freud, 1925∕1996, p. 285).
A respeito da sublimação nas mulheres, Freud, em 1933, afirma que elas possuiriam menor capacidade de sublimar, acrescenta também que elas teriam pouco senso de justiça, por conta da inveja do pênis, e seriam mais débeis em seus interesses sociais.
Ao teorizar sobre a maternidade, ele considera que a mulher se voltaria para a maternidade com o objetivo de possuir o tão desejado pênis. Além disso, sustenta a maternidade como o único caminho para que a menina alcance a feminilidade. Em suas palavras: "a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar de pênis" (Freud, 1933∕1996, p. 136).
Segundo Birman (2001), Freud, ao teorizar sobre o sexo feminino como aquele que busca o tão desejado pênis∕falo, e para o qual a maternidade representa a possibilidade de realização desse desejo, acabou se apossando do paradigma da diferença sexual construído no século XIX para realizar uma leitura libidinal dos destinos do feminino. Assim, ele considera que "a interpretação freudiana dos destinos da mulher se funda nos valores instituídos no século XIX, isto é, estes pré-conceitos é que estão na base dos conceitos propostos por Freud" (Birman, 2001, p. 203).
É importante ressaltar que, apesar de Freud ter sido herdeiro dessas matrizes, ele submeteu-as a uma reinterpretação psicanalítica. Desse modo, construiu certos conceitos a partir dessas matrizes, mas também as reconfigurou com originalidade e elas adquiriram outra consistência e novos horizontes (Birman, 2001).
Diante dessas considerações freudianas sobre a mulher, é interessante notar que Freud (1933-1932∕1996, p. 143) assevera que sua teoria da sexualidade feminina "certamente está incompleta e fragmentada, e nem sempre parece agradável" e sugere que quem queira conhecer mais sobre a feminilidade que consulte os poetas ou espere pelos avanços da ciência, para que ela "possa dar-lhes informações mais profundas e mais coerentes" (Freud, 1933-1932∕1996, p. 143).
Freud (1933-1932∕1996) encerra o artigo comentando suas dificuldades para tratar da sexualidade feminina, já que, para ele, esse seria um enigma. Sobre o discurso freudiano a respeito da mulher, Birman (2001) afirma que Freud sempre evocou o enigma da feminilidade. Dessa forma, a feminilidade seria algo da ordem do enigmático e do quase indizível. Para esse autor, "isto quer dizer, portanto, que a figura da mulher estava sendo concebida por Freud como inconsistente e obscura" (Birman, 2001 p. 182).
É importante considerar, contudo, que, apesar de Freud caucionar algumas concepções presentes no século XIX sobre as mulheres, ele também trouxe significativa contribuição para se pensar na constituição da feminilidade, ao questionar como a mulher torna-se uma. Além disso, suas contribuições a respeito da pulsão sexual, do complexo de Édipo, da bissexualidade psíquica, dos processos identificatórios, da constituição subjetiva e outros conceitos inovadores foram importantes para se pensar no processo de subjetivação como uma experiência antes de tudo singular. Dessa forma, o tornar-se mulher seria da ordem de uma construção e não de uma essência feminina predeterminada.
Portanto, vários conceitos criados pelo fundador da psicanálise foram fundamentais para que pós-freudianos pudessem teorizar sobre a feminilidade. A seguir, abordamos as contribuições de psicanalistas sobre a constituição da feminilidade a partir dos ideais culturais, os quais serão fundamentais para o modo de subjetivação das mulheres.
A constituição da feminilidade e ideias culturais.
Neste momento, abordamos como a cultura é importante no processo de constituição da feminilidade. Segundo Birman (1997), o sujeito se constrói na cultura, assim, sem ela não se pode pensar na constituição do sujeito:
Em psicanálise, enunciar qualquer proposição teórica e crítica sobre a questão do sujeito na cultura implica sublinhar, logo de início, que é impensável para o discurso psicanalítico qualquer tematização sobre o sujeito na exterioridade do campo da cultura. Dessa maneira, a cultura é o outro do sujeito, sem a qual é impossível pensar nas condições de possibilidade para a constituição do sujeito (Birman, 1997, p. 9).
Dessa forma, a cultura, os ideais culturais que são construídos em cada época e lugar, serão fundamentais para se pensar na constituição do sujeito, assim como na constituição da feminilidade. Claro que outros processos psíquicos também são importantes, contudo, neste artigo, abordamos a criação de discursos responsáveis por delimitar o que é da feminilidade e o que é da masculinidade, sendo que esses discursos contribuem para o surgimento de ideais que servirão de possibilidades identificatórias às pulsões.
Assim, McDougall (1999), em seu artigo "Teoria sexual e psicanálise", considera como importantes para o desenvolvimento da feminilidade os discursos culturais, ou seja, o perfil de feminilidade de uma época do qual os pais são uma emanação e que incide decisivamente sobre o modo de subjetivação das mulheres.
Nesse sentido, Ceccarelli (2010b) afirma que é inicialmente por intermédio dos pais e do grupo primário que a criança adquire os códigos responsáveis por delimitar o que é ser menino e menina em nossa cultura, aos quais a criança está submetida. Assim, "o que se espera de uma criança está intimamente atrelado a convenções sociais e a regras de conduta oriundas de um sistema simbólico no qual ela se locomove" (Ceccarelli, 2010b, p. 275).
Ceccarelli (2010b) também assevera que Freud, ao trabalhar com as perspectivas de masculino e feminino, é revolucionário, pois recusa a definição que se baseia em uma realidade anatômica. Assim, para Freud, masculinidade e feminilidade são pontos de chegada e não de partida. Nesses termos, é importante considerar que o ponto de chegada é único, pois está relacionado com a particularidade dos processos identificatórios de cada sujeito.
Nesse contexto, os processos identificatórios são importantes na constituição da feminilidade, já que seria por meio das identificações que a criança poderia adquirir os atributos do gênero (Ceccarelli, 2010b). A identificação, segundo Ceccarelli (2010b), é um processo inconsciente que possui uma dinâmica própria e é importante na constituição do Eu, já que este é formado a partir de uma série de identificações.
Freud, em seu artigo "O eu e o id" (1923∕2011, p. 60), ao abordar sobre a importância da identificação na constituição do Eu, elabora esta consideração: "assim, afirmamos repetidamente que o Eu se constitui, em boa parte, de identificações que tomam o lugar de investimentos abandonados pelo Id".
Sobre o processo de constituição do Eu, Freud (1923∕2011) considera que, quando ocorre a perda do objeto, como na melancolia, o investimento objetal é substituído pela identificação do sujeito com o objeto, ocorrendo uma alteração no Eu. Assim, a libido do objeto transforma-se em libido narcísica. Ele também afirma que esse processo é muito frequente nas fases primitivas de desenvolvimento e mais uma vez reitera a sua importância na constituição do Eu: "(...) o caráter do Eu é um precipitado dos investimentos objetais abandonados, de que contém a história dessas escolhas de objeto" (Freud, 1923∕2011, p. 36).
Assim, a identificação na obra freudiana assume um valor central que faria dela "mais do que um mecanismo psicológico entre outros, mas uma operação pela qual o sujeito humano se constitui" (Laplanche & Pontalis, 2001, p. 227).
Como os processos identificatórios são tributários do simbólico, da cultura da qual fazem parte, é por esse processo que a cultura "humaniza", mostrando sua diversidade. A partir dessa perspectiva, pode-se pensar não na existência de uma natureza intrínseca no ser humano, em uma essência, mas em ideais culturais responsáveis por normatizar, por regular, por definir o que é ser masculino e feminino em nossa sociedade, já que "por falta de identidade somos condenados à identificação" (Ceccarelli, 2010b, p. 281).
É importante considerar que é na relação edípica que ocorre a identificação aos padrões e ideais de feminilidade e masculinidade, como se pode verificar na afirmação de Kehl (2008):
É a partir da travessia edípica que nos tornamos sexuados, marcados pela identificação aos padrões e ideais próprios aos gêneros, os quais nos garantirão a pertinência imaginária a um grande subgrupo humano - dos homens ou das mulheres; obra que não se dá sem o sacrifício de algumas possibilidades de satisfação da pulsão - entre outras, as possibilidades bissexuais, primárias no ser humano (Kehl, 2008, p. 9).
Assim, em nossa cultura, encontramos ideais que definem o que é ser feminina, os quais, no processo de constituição subjetiva, incidirão sobre o modo de subjetivação das mulheres, sendo a relação edípica fundamental para que ocorra a identificação aos padrões e ideais de feminilidade.
Dessa forma, os ideais possibilitam o surgimento de padrões de normalidade, como foi o caso do ideal de feminilidade de Rousseau, responsável por normatizar a conduta de muitas mulheres no século XIX e ainda hoje no século XXI, como considera Kehl (2008, p. 60): "o texto de Rousseau, atual por sua enorme habilidade argumentativa, descreve com clareza os fundamentos do modelo de feminilidade que dominou a Europa, sobretudo nos países católicos, durante o século seguinte".
É importante considerar que, como afirma Ceccarelli (2010a), as normas de conduta e as regras sociais que servem para classificar, etiquetar, para definir como os sujeitos devem proceder em sociedade seriam criadas a partir de discursos que acabam gerando uma ordem repressiva. Neste trabalho, consideramos o discurso de Rousseau como o responsável por criar uma ordem repressiva para as mulheres, já que suas condutas são normatizadas a partir desse discurso.
Essas restrições determinadas pela cultura acabam causando o surgimento de neuroses, como teoriza Freud desde 1908. Assim, diante da identificação de mulheres com certos ideais de feminilidade, como o de Rousseau, que impunha a elas certas restrições em sua conduta, em sua sexualidade, estabelecendo como deveriam agir no espaço privado e no espaço público, surgiu no século XIX uma grande quantidade de mulheres com graves sintomas histéricos. A seguir, aprofundamos essa perspectiva, abordando como certos ideais culturais contribuem para o surgimento de neuroses a partir da repressão da pulsão sexual.
Ideais culturais e repressão da pulsão sexual: uma normatividade no desejo.
O discurso sexista, machista e misógino, responsável por regular os costumes e a sexualidade, sempre foi prerrogativa das elites dominantes, da religião e do Estado. Assim, não haveria nenhuma sociedade que não tivesse estabelecido limites para o uso da libido.
Não percebemos, contudo, que as normas que controlam nossa inserção social são construções, já que as consideramos como verdades imutáveis (Ceccarelli, 2010a).
Sobre o limite ao uso da libido imposto pela cultura, Freud, desde seu texto "Moral sexual civilizada e doenças nervosas modernas", de 1908, aborda essa questão e a aprofunda em 1930, em seu texto "Mal-estar na civilização". Ele considera que a civilização, em 1908, repousa sobre a supressão das pulsões, assim, cada sujeito renuncia uma parte do seu sentimento de onipotência ou da sua agressividade, o que resulta no acervo cultural de bens materiais e ideais. Em consequência disso, o processo civilizatório levaria à repressão das pulsões sexuais.
Sobre a importância dos ideais nesse processo, Ceccarelli (2000), em seu texto "Sexualidade e preconceito", defende a concepção de que as renúncias pulsionais impostas pela civilização não bastariam para que houvesse o retorno do sexual recalcado. Dessa forma, os ideais seriam importantes para auxiliar nesse processo. O autor afirma também que haveria dois movimentos simultâneos: o primeiro, presente na origem da história da espécie humana, que está relacionado com as grandes modificações psíquicas, para que houvesse o recalcamento das moções pulsionais; e o segundo movimento, que reforçaria o recalcamento a partir dos ideais, já que há pouca eficácia no primeiro movimento. Nas palavras do autor:
Temos, então, dois movimentos simultâneos: o primeiro, presente na origem mesmo da história da espécie humana, diz respeito à renúncia do gozo narcísico em detrimento dos valores culturalizados, o que levou a grandes modificações psíquicas para que as moções pulsionais fossem recalcadas; o segundo movimento, devido à pouca eficácia deste primeiro expediente, lança mão dos ideais para reforçar o recalcamento (Ceccarelli, 2000, p. 31).
Essa renúncia à pulsão tornou-se problemática, pois a pulsão não tem objeto fixo e está submetida à dimensão do desejo, assim, ela escapa das formas de controle, como afirma Ceccarelli (2000). Desse modo, os ideais, que são construções que dependem das formas culturais das quais emergem, serão criados para normatizar, controlar, enquadrar e direcionar as pulsões. O sexual infantil acaba retornando, contudo, por meio dos sonhos, dos atos falhos, dos sintomas, das fantasias e dos desejos (Ceccarelli, 2000).
Freud (1908∕1996), ao abordar essa relação conflituosa entre as exigências sociais e as pulsões sexuais, assevera que, com a supressão da pulsão, há o surgimento de fenômenos substitutivos, as doenças nervosas. Assim, apesar de as pulsões pervertidas serem suprimidas, essa supressão seria frustrada, já que elas continuam se expressando de outras formas, como podemos ler neste trecho:
Os instintos sexuais inibidos não são mais, é verdade, expressos como tais - e nisto consiste o êxito do processo -, mas conseguem expressar-se de outras formas igualmente nocivas para o sujeito, e que o tornam tão inútil para a sociedade quanto o teria inutilizado a satisfação de seus instintos suprimidos. Aí reside o malogro do processo, malogro que um cômputo final mais do que contrabalança a sua parcela de êxito. Os fenômenos substitutivos surgidos em consequência da supressão do instinto constituem o que chamamos de doenças nervosas ou, mais precisamente, de psiconeuroses (Freud, 1908∕1996, p. 176).
Portanto, a repressão das pulsões sexuais a partir de uma moral sexual é responsável pelo surgimento de neuroses. Para Freud (1908∕1996), uma das grandes injustiças sociais seria a exigência pelos padrões de civilização de uma idêntica conduta sexual, já que ela impõe pesados sacrifícios para aqueles que não se adequam a tais padrões. Contudo, essa injustiça é sanada com a desobediência às junções morais.
É também nesse artigo de 1908 que Freud aborda a existência de uma dupla moral sexual. Ela se daria a partir da existência de uma maior liberdade sexual para os homens, enquanto as mulheres manteriam sua conduta de acordo com a moral vigente, sucumbindo a graves neuroses. Nas palavras de Freud:
A experiência mostra que, com muita frequência, eles recorrem - embora com relutância e em segredo - à parcela de liberdade sexual que lhes é concedida até mesmo pelo código sexual mais severo. Essa moral sexual 'dupla' que é válida em nossa sociedade para os homens é a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita que seus preceitos possam ser obedecidos (Freud, 1908∕1996, p. 179-180).
Tomando por base essa concepção freudiana sobre a relação entre supressão da pulsão sexual e neurose, Kehl (2008) considera que, com o surgimento do novo padrão de feminilidade burguesa, houve uma expressiva manifestação de sintomas histéricos; dessa maneira, a histeria tornou-se o modo dominante de expressão de sofrimento psíquico no século XIX. Para a autora:
A histeria é a "salvação das mulheres" justamente porque é a expressão (possível) da experiência das mulheres, em um período em que os ideais tradicionais de feminilidade (ideais produzidos a partir das necessidades da nova ordem familiar burguesa) entraram em profundo desacordo com as recentes aspirações de algumas dessas mulheres enquanto sujeitos (Kehl, 2008, p. 182).
Dessa forma, diante dos ideais tradicionais de feminilidade e do surgimento de novos ideais que possibilitavam que as mulheres se posicionassem como sujeitos, há a emergência de sintomas histéricos de forma expressiva, no século XIX.
Ante o exposto, compreende-se que certos ideais de feminilidade contribuem para a repressão das pulsões sexuais para as mulheres, o que ocasiona o surgimento de neuroses como a histeria. Neste trabalho abordamos o ideal de feminilidade criado a partir de Rousseau, o qual contribuiu e ainda contribui para que mulheres se tornem passivas, submissas, capazes de suportar sofrimento e sacrifício em nome do marido e dos filhos.
Assim, a civilização, por meio dos seus ideais, busca criar normas de conduta que não permitem que as mulheres se tornem quem gostariam de ser a partir do seu desejo. Vale ressaltar que as regras do uso da libido, estabelecidas pelos discursos construídos ao longo da história, quando atreladas ao poder e à ordem política, ditam o "normal" e o "patológico" em termos de desejos. Nesse sentido, ao confinar o sexual a uma única ordem discursiva, acabam fixando a pulsão em uma única forma de satisfação (Ceccarelli, 2012). Com isso, sem considerar o percurso pulsional de cada subjetividade, resta ao sujeito a neurose, como a histeria que atingiu tantas mulheres no século XIX.
Considerações finais.
Em vários momentos da história, as mulheres estiveram silenciadas, pois não podiam contar suas concepções sobre o lugar que ocupavam na sociedade. Além disso, eram impedidas de decidir, a partir dos seus desejos, que mulheres gostariam de ser, assim como não podiam produzir saberes sobre o feminino na cultura ocidental. Os homens eram os grandes teóricos sobre o corpo da mulher, a sexualidade feminina e a feminilidade. Dessa forma, elas estavam condenadas a se identificarem com discursos misóginos que as mantinham submetidas aos desejos masculinos.
Um desses homens foi Jean-Jacques Rousseau, cuja teoria sobre a existência de uma essência feminina dominou a Europa dos séculos XVIII e XIX. Considerado o pai do ideal de amor romântico, foi responsável por construir um projeto amoroso que também é uma proposta filosófica, moral e política para a sociedade burguesa em ascensão (Lejarraga, 2002). Nesse projeto, ele conjuga sexo, amor e casamento, além disso, estabelece uma relação de complementaridade entre homens e mulheres, que se baseava na anatomia, ou seja, cada um apresentaria uma função na sociedade, a partir do seu sexo biológico.
Assim, seria por conta da anatomia sexual das mulheres que elas deveriam abdicar dos seus próprios desejos e se submeterem ao desejo dos homens, para que, com isso, se dedicassem unicamente a cuidar deles, dos filhos e do lar.
A maternidade passa, então, a ter um papel fundamental nessa nova proposta de feminilidade, como o único destino possível para a mulher. Diante disso, ela deveria renunciar a seus desejos, "aprender desde cedo a sofrer até injustiças e a suportar os erros do marido sem se queixar" (Rousseau 1762∕1973, p. 430), para que assim se tornasse mãe e esposa dedicada. Nesse sentido, a partir de Rousseau, criou-se um novo ideal de feminilidade responsável por normatizar, controlar, regular e definir o que é ser feminina em nossa cultura.
O saber psicanalítico contrapõe-se a essa perspectiva no momento em que Freud teoriza sobre o tornar-se mulher e ao propor novos conceitos fundamentais, como o de inconsciente, identificação, pulsão sexual, entre outros, o que permitiu que escutássemos cada sujeito, cada mulher a partir do seu desejo e não a partir de uma norma criada pela cultura. Dessa forma, uma moral que estabelece uma única possibilidade para todos e não leva em consideração a história pulsional de cada subjetividade acaba produzindo neuroses, como foi o caso da histeria, mal-estar feminino presente no século XIX. A histérica tinha como universo simbólico a maternidade, a passividade e a submissão ao homem, os quais compunham um contexto cultural que não possibilitava que ela escolhesse que mulher gostaria de ser a partir da sua singularidade pulsional.
Freud deparou-se com esse feminino em seu consultório e possibilitou que as mulheres falassem de seus sofrimentos, gerados por uma cultura repressora e misógina. Foi a partir da escuta dessas mulheres que ele pôde investigar o sexual na neurose e o infantil na sexualidade (Kehl, 2008). Além disso, ao se calar diante de uma mulher, Emmy Von R., Freud descobriu a regra fundamental da psicanálise, associação-livre, sem a qual a psicanálise não poderia existir. Dessa forma, Freud esteve à frente do seu tempo, pois permitiu que o sofrimento psíquico de mulheres fosse escutado em seu consultório, já que em muitos outros lugares as mulheres não poderiam falar.
Coube aos pós-freudianos o aprofundamento de questões teóricas como o "tornar-se mulher". Sobre a feminilidade no discurso psicanalítico, Kehl (2008, p. 270) considera que ela "(...) nasceu da tentativa de enfrentar e desfazer as leituras naturalizantes sobre o que é uma mulher".
A psicanálise é, portanto, um instrumento teórico e clínico fundamental para o combate aos ideais misóginos, pois aborda a história pulsional de cada sujeito, de cada mulher e, dessa forma, afirma a existência de diferentes modos femininos de ser que independem do sexo biológico. Assim, considerando o aporte teórico psicanalítico, cada mulher pode "construir os seus destinos" a partir do seu desejo, dos seus diferentes caminhos pulsionais e dos diversos campos de possibilidades identificatórias, tornando-se, assim, sujeito e não apenas objeto do gozo masculino.
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Recebido em: 11/01/2019
Aprovado em: 15/09/2019