SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 número2Pulgas que habitam as minhas rugas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2020v2p.142 

ARTE

 

Isolamento social e tour virtual: uma visita ao MASP em alta definição

 

Social isolation and virtual tour: a visit to MASP in high definition

 

 

Greta Fernandes Moreira

Psicanalista. Doutoranda pelo programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida no Rio de Janeiro. Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade (2017). E-mail: gretafernandes@hotmail.com

 

 


 

É atribuída a Alexander Graham Bell a autoria de uma grande lição de vida: "quando uma porta se fecha, outra se abre. Mas, muitas vezes, nós ficamos olhando tanto tempo, tristes, para a porta fechada, que nem notamos aquela que se abriu" (1962, p. 524). Em que pese toda a sua sabedoria avant-garde, passados mais de 140 anos de sua grande invenção, o criador do telefone dificilmente poderia imaginar a importância que sua criação ganharia em um mundo pós-moderno, marcado pelo aumento exponencial na velocidade e na quantidade de informações emitidas e recebidas, e muito menos a sua evolução em direção aos smartphones, que se vêm tornando, cada dia mais, um prolongamento do próprio corpo humano, item indispensável na rotina de um mundo globalizado e intensamente conectado.

Literalmente tão conectado que, em questão de poucos meses, uma epidemia iniciada no que já foi uma "longínqua" China, destino exótico das caravanas na milenar Rota da Seda, alcançou o temido patamar de pandemia, fechando não só fronteiras, mas também escolas, comércios, igrejas, restaurantes, shoppings, cinemas, teatros e museus ao redor do mundo, em prol de um grande imperativo: fique em casa! E, assim, nos vimos privados de um mundo exterior, tendo, como única janela de acesso, a tela de computadores, tablets e celulares. As aulas se tornaram virtuais, o trabalho se tornou virtual, os shows se tornaram virtuais, as compras se tornaram virtuais, os cultos se tornaram virtuais...

Ficam claros, então, nesse momento tão atípico que vivemos, os apontamentos levantados por McLuhan (2003), a ensinar-nos que os meios de comunicação não são apenas transmissores de informação, mas verdadeiras extensões dos seres humanos, da percepção humana, possibilitando-nos ampliar a nossa percepção em relação à quantidade de fenômenos que podemos ter contato, fazendo-nos enxergar mais longe que o limite de nossos olhos, escutar mais sons do que o limite de nossos ouvidos, desfrutando de experiências sensoriais que extrapolam o limite de nossos sentidos, multiplicando, dessa forma, a quantidade e a velocidade de informações que podemos receber.

De fato, enquanto testemunhamos o fechamento de tantas portas e o caos instalado do lado de fora - hospitais superlotados, ausência de leitos de UTIs e respiradores para tantos necessitados, imagens de dezenas de covas abertas nos cemitérios das cidades, prontas para receber as vítimas de um inimigo invisível tão agressivo - pudemos experienciar a abertura de outra grande porta, ou melhor, de uma grande janela virtual, que nos mostrou todo esse horror em primeira mão, noticiando em tempo real, dia após dia, o avanço exponencial do vírus e do número de suas vítimas.

 

 

Por outro lado, essa mesma janela virtual proporcionou-nos, também, acesso a um sem-número de produções culturais, colocando, literalmente, em nossas mãos a chave para ingressar em um mundo de filmes, séries, shows, peças, musicais, palestras, podcasts e lives, sem falar em aplicativos tais como o Google Arts & Culture, que nos abre as portas de mais de 2.000 museus ao redor do mundo, trazendo para além de 100.000 obras de arte em alta definição, que podem ser livremente exploradas diretamente da tela de nossos smartphones, bem do sofá de casa.

Em meio a tantas possibilidades de entretenimento, mesmo a portas fechadas, destaque deve ser dado ao tour virtual interativo disponibilizado pelo MASP - Museu de Arte de São Paulo, considerado hoje o museu de arte mais importante do Hemisfério Sul, tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, e que possui em seu acervo cerca de 10.000 peças de origem variada, contendo exemplares da arte africana, das Américas, asiática, brasileira e europeia, da Antiguidade ao século XXI, exibindo desde pinturas e esculturas, a desenhos, fotografias e roupas.

Como pode ser constatado em breve visita ao site do MASP, além de nomes do acervo europeu - com obras de Rafael, Ingres, Van Gogh, Cézanne, Renoir, Monet e Picasso - o museu expõe, ainda, trabalhos de grandes artistas brasileiros, tais como Maria Auxiliadora, Agostinho Batista de Freitas, Albino Braz, José Antônio da Silva e Rafael Borjes de Oliveira, artistas autodidatas que atuavam fora do circuito tradicional da arte e da academia, frequentemente deixados de lado na história da arte, mas que ajudaram a construir um panorama mais amplo e diverso da cultura brasileira, ao lado dos já amplamente reconhecidos Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Candido Portinari, Victor Meirelles e Tarsila do Amaral.

A visita virtual inicia-se, por conseguinte, com as boas-vindas do nosso guia-narrador ao segundo andar do MASP, trazendo alguns fatos importantes sobre a história do museu e seu acervo, dando destaque à arquitetura do icônico prédio, sua segunda sede, na Avenida Paulista, para onde foi transferido em 1968, cujo arrojado projeto - que levou 12 anos para concretizar-se - traz a assinatura de Lina Bo Bardi, e é considerado um marco da arquitetura modernista mundial.

Logo na entrada, sentimo-nos igualmente impactados ao reencontrar os icônicos cavaletes de cristal, feitos de concreto e vidro, criados especificamente para exibição das obras, numa tentativa de questionar o tradicional modelo de museu europeu, proporcionando um espaço amplo e livre, que permite uma boa circulação - mesmo que virtualmente -, além de possibilitar uma maior aproximação com as obras do acervo ao retirá-las do distanciamento das clássicas paredes frias que estamos tão acostumados a encontrar nos museus.

 

 

Seguindo a visitação, somos convidados a "transitar" livremente por entre as diversas obras expostas de forma cronológica em seu enorme salão de mais de 2.000 metros quadrados, ladeando Rafael, Ticiano, Tintoretto, em um passo a passo de cliques e setas virtuais, às vezes confusas para quem está acostumado a locomover-se com pés no chão, e não com cursores nas mãos. Esse estranhamento, todavia, é logo superado, decerto, ao avançarmos no tour e descobrirmos os áudios disponibilizados em determinadas grandes obras, por meio dos quais é possível acompanhar um breve histórico da vida do artista e de sua produção, tal como ocorre em visitas presenciais guiadas nos grandes museus ao redor do mundo.

 

 

Avançamos lentamente, clique a clique pelo salão, e logo saímos da arte renascentista e mergulhamos no impressionismo de Monet e Renoir, nas cores de Van Gogh e Gauguin, nas bailarinas de Degas, e encontramos La Petite Danseuse de Quatorze Ans (1880), bem ali no centro, em sua redoma de vidro, posando lindamente em seu tutu já envelhecido de tantos anos de dançante encantamento. Não posso deixar de comover-me com tal visão, nem de lembrar-me da última vez que a encontrei passeando pelo mundo, no Museum of Fine Arts, em Boston, quando soltei um alegre e surpreso: "Olha só quem está ali!", como quem se depara, inesperadamente, com uma velha conhecida.

Em mais um piscar de olhos - e alguns cliques no cursor - chegamos ao cubismo de Picasso e podemos perceber a sua influência no modernismo brasileiro ao nos depararmos com as obras de Anita Malfatti e Portinari, cuja temática social, estampada em O Lavrador de Café (1934) e, mais ainda, em Retirantes (1944), obriga-nos a abandonar uma posição passiva de espectador, ao estampar algo desse inominável que tenta permanecer invisível, revelando-nos um ser humano desamparado, não somente em virtude da extrema pobreza que vivencia, mas pelo próprio estado de inacabamento existente entre o sujeito e seu corpo, revelando a falta estrutural, constitutiva do ser humano, colocando em cena o sujeito barrado, do qual a Psicanálise se ocupa.

Compreendemos, então, o poder da obra contemporânea ao perceber que o nosso olhar de espectador, aqui, enquanto ainda parece comandar, deixa escapar algo à visão (LACAN, 1964, p. 78), entregando-se o sujeito ao olhar do Outro, sendo olhado em sua essência, em sua falta. Na medida em que a obra traz à tona a mancha mencionada por Lacan em seu Seminário 11 (1964), ela fura a organização semântica do quadro e revela o sujeito como mancha, como castrado, aniquilado e sem representação.

Como nos diz Mello (2014, p. 53), em relação à arte contemporânea, "quando o belo é deposto, quando o visual é desvalorizado, o sujeito é levado a lidar com sua falta estrutural. É o real revelando aquilo que aterroriza o sujeito". E é nessa passagem de espectador passivo, da arte tradicional, a sujeito implicado na obra trazido à cena pela modernidade, que a arte reabre um diálogo com a Psicanálise.

Chegando ao fim do grande salão e da intrigante - e instigante - visita virtual ao mais importante museu da América Latina, sigo tocada pela experiência de ter podido, a partir de uma tela de celular, me aproximar de tantas obras de artistas renomados, recebendo informações pontuais e diretas a respeito de várias delas, conseguindo, inclusive, por meio da realidade aumentada, testar se um Renoir ficaria bom na parede do meu quarto, após analisar, em um zoom de até 100% se os detalhes das pinceladas do grande mestre são de fato do meu agrado.

Gracejos a parte, resta importante pontuar, por fim, que o tour virtual do MASP se revelou como uma grata surpresa ao mostrar-nos que Graham Bell, de fato, tinha razão. Fecham-se as portas de nossas casas em virtude da grande pandemia, mas, por outro lado, abrem-se novas portas ao redor do mundo, ainda que de forma virtual, proporcionando-nos novas vivências e experiências ao apresentar diferentes possibilidades de estímulo aos nossos sentidos, tão privados de contato real nesse isolamento social, fazendo nascer - ou aumentando exponencialmente - o desejo de explorar, fisicamente, todos esses lugares, tão logo as portas (re)comecem a abrir-se.

 

Referências

BELL, Alexander Graham. (1962). In BRAUDE, Jacob Morton. Lifetime speaker's encyclopedia. New Jersey: Prentice-Hall, 1962.         [ Links ]

LACAN, Jacques. (1964). O Seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.         [ Links ]

MASP. Acervo em transformação. Disponível em: https://masp.org.br/acervo/explore. Acesso em: 01.09.2020.         [ Links ]

MCLUHAN, M. (2003). Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. Cultrix: São Paulo.         [ Links ]

MELLO, Leticia. (2014). Um estudo sobre o real e sua relação com a invenção artística e psicanalítica. In Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana, 9 (18),50-60. Rio de Janeiro, mai. a out. 2014. Disponível em: http://www.isepol.com/asephallus/numero_18/pdf/um_estudo.pdf. Acesso em: 01.09.2020.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 05/08/2020
Aprovado em: 10/10/2020

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons