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Revista Psicologia e Saúde
versão On-line ISSN 2177-093X
Rev. Psicol. Saúde vol.5 no.1 Campo Grande jun. 2013
RELATO DE PESQUISA
Comunicação em saúde da criança: estudo sobre a percepção de pediatras em diferentes níveis assistenciais
Health communication in children's health: study on the perception of pediatricians at different care levels
Comunicación en salud del niño: estudio sobre la percepción de pediatras en diferentes niveles asistenciales
Lilian Meire de Oliveira de Cristo1,2; Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araujo2
Universidade de Brasília - Instituto de Psicologia - Laboratório de Saúde e Desenvolvimento Humano
RESUMO
Considerando que serviços de saúde diferentes engendram culturas específicas as quais influenciam o modo de interagir e se comunicar, foi realizado um estudo comparativo em dois níveis assistenciais no campo da Saúde da Criança. Para tanto, entrevistaram-se pediatras em um centro de saúde e um hospital, visando descrever, analisar e compreender suas percepções acerca da comunicação na tríade médico-paciente-acompanhante. Identificaram-se fatores facilitadores e perturbadores da comunicação; estratégias para lidar com dificuldades; participação do acompanhante e do paciente na consulta; rotina de atendimento e influência de aspectos institucionais. Os resultados evidenciaram que os profissionais atuam a partir de uma concepção sobre o perfil de cada instituição. Assim, na atenção básica, enfatizaram o acolhimento e a participação do paciente, ao passo que, em média e alta complexidade, destacaram a realização de exames e a presença do acompanhante. Recomendam-se mais pesquisas sobre o tema, em especial com uso de metodologia observacional.
Palavras-chave: Relação profissional-paciente pediátrico; Saúde da criança; Comunicação em saúde.
ABSTRACT
Whereas different health services engender specific cultures which influence the way they interact and communicate, we made a comparative study was conducted in two levels of care in the field of Children's Health. In this case, pediatricians of a outpatient health center and a hospital were interviewed in order to seek to describe, analyze and understand their perceptions in regard to communication within the triad doctor-patient-guardian. Factors that facilitate and disrupt communication were identified along by strategies for handling with difficulties; participation of the guardian and the patient in consultation; care routine and influence of institutional aspects. Results highlight that professionals work based on a profile of each institutional design. In primary assistance, user welcoming care and patient participation is emphasized, while at medium and high complexity care levels point out the examinations and the presence of the companions is a pivotal spotlight. We recommend further studies on the topici, especially with the use of observational methods.
Key-words: Pediatrician-patient relationship; Children's health; Health communication.
RESUMEN
Considerando que los servicios de salud generan culturas específicas que influyen en la manera de interactuar y comunicarse, se realizó un estudio comparativo en dos niveles asistenciales de la salud del niño. Fueron entrevistados pediatras en un centro de salud y en un hospital, objetivando describir, analizar y comprender sus percepciones acerca de la comunicación en la tríada médico-paciente-acompañante. Se identificaron factores facilitadores y perturbadores de la comunicación; estrategias para afrontar las dificultades; participación del acompañante y paciente en la consulta; la rutina de atención y la influencia de aspectos institucionales. Los resultados evidenciaran que los profesionales actúan a partir de una concepción sobre el perfil de cada institución. En la atención básica, enfatizaran la acogida y participación del paciente, mientras que, en la atención de mediana y alta complejidad, destacaran la realización de exámenes y la presencia del acompañante. Se recomienda más investigaciones sobre el tema, usando especialmente metodología observacional.
Palabras-clave: Relación profesional-paciente pediátrico; Salud del niño; Comunicación en salud.
Introdução
Uma comunicação efetiva tem sido considerada essencial para adesão ao tratamento, satisfação com o atendimento e redução de custos. De fato, diversos estudos foram realizados ao longo das últimas décadas, mas ainda são necessárias mais pesquisas que ampliem os conhecimentos sobre as especificidades do processo comunicacional em saúde, visando seu aprimoramento progressivo tanto no nível social - por exemplo, campanhas nacionais com uso das mídias contemporâneas - quanto no nível interpessoal - como na relação profissional-paciente-família (Araujo, 2009; Inui & Carter, 1985; Kaplan, 1997).
Inui e Carter (1985) já destacaram que estratégias comunicacionais são habitualmente utilizadas pelos profissionais para oferecerem condições mais adequadas para o enfrentamento e tratamento de doenças. Mas, para tanto, é essencial que médico e paciente adotem perspectivas mais próximas. Em linhas gerais, a comunicação corresponde ao processo de compreender e compartilhar mensagens verbais ou não-verbais, enviadas e recebidas, sendo que estas mensagens exercem influências nos comportamentos das pessoas envolvidas em um campo de interações com características estruturais e funcionais que modulam as expressões e as consequências do ato comunicacional. Neste sentido, a literatura sugere a existência de culturas específicas nos diferentes serviços de saúde, as quais influenciam o modo de perceber e exercer o trabalho, assim como o modo de interagir e se comunicar (Barbosa & Araujo, 2006; Cosnier, Grosjean & Lacoste, 1994).
Sendo assim, para melhor conhecer a comunicação em saúde, fundamentalmente com o intuito de aperfeiçoar a formação e a prática clínica, é importante realizar investigações em diferentes contextos, comparando-se suas peculiaridades, notadamente em termos de facilitadores e perturbadores da comunicação (Araujo, 2009; Lambert et al., 1997; Martins & Araujo, 2008; Ruiz-Moral, 2007).
Vale destacar que uma revisão da literatura, abrangendo estudos desenvolvidos entre 1966 e 2003, reafirmou que quanto mais bem informado sobre sua condição, maior é a participação do paciente nos seus cuidados de saúde e, por conseguinte, o alcance das metas terapêuticas e preventivas (Epstein, Alper & Quill, 2004). Em consonância, um trabalho de Brown, Stewart e Ryan (2003) evidenciou que a principal queixa relacionada aos atendimentos refere-se a dificuldades na comunicação com o médico (como repasse incompleto de informações sobre diagnóstico), as quais superam críticas exclusivamente relacionadas à competência técnica do profissional.
Um exame atento das pesquisas indica que, até os anos 1990, privilegiavam-se as características pessoais dos agentes da interação (ex.: idade, nível de escolaridade, tempo de formação) como parâmetro das investigações. Porém, desde então, o evento comunicativo, como um todo, passou a interessar a um número cada vez maior de estudiosos. Assim, com tal preocupação, Byrne e Long (in Marks, Murray, Evans & Willing, 2004) buscaram identificar o estilo comunicacional de 71 médicos durante 2.500 atendimentos. Os autores concluíram que os profissionais se diferenciavam conforme dois estilos principais: a) "centrado no paciente", no qual se utiliza o conhecimento e as experiências do paciente, permitindo eventuais silêncios para propiciar uma escuta atenta por parte do profissional e b) "centrado no médico", no qual se desenvolve a interação com base em aspectos técnicos (ex.: exame físico), valendo-se principalmente dos conhecimentos e das habilidades dos profissionais.
Estudos anteriores identificaram atitudes e comportamentos profissionais que contribuem para o estabelecimento de uma comunicação adequada com os usuários: compreender expectativas e experiências; construir vínculos; fazer recomendações contextualizadas; prestar informações detalhadas; avaliar a compreensão do paciente e do acompanhante; utilizar linguagem acessível; falar pausadamente; observar comportamentos não-verbais; conhecer valores culturais, sociais e espirituais do paciente; repetir orientações; empregar um checklist e realizar roleplay (Barbosa &Araujo, 2006; Martinali, Bolman, Brug, van der Borne & Bar, 2001; Martins & Araujo, 2008; Ruiz-Moral, 2007).
Em relação aos fatores que prejudicam essa comunicação, alguns autores destacam: diferenças pronunciadas de instrução, cognição, idade e cultura; elevada carga de informações e não verificação da compreensão dos usuários; impacto emocional gerado pelos informes; escassez de tempo; uso demasiado de perguntas fechadas; contato visual restrito; hipervalorização do saber técnico-científico e uso excessivo de jargões; desqualificação das crenças, costumes e valores do paciente; não inclusão do paciente nas decisões sobre a conduta terapêutica; declarações contraditórias; mudanças bruscas de assunto; não esclarecimento de dúvidas e características do quadro patológico tratado (Marks et al., 2004; Martins, 2001; Ruiz-Moral, 2007).
Saúde da criança: um contexto específico
Conforme abordado anteriormente, é preciso reunir mais conhecimentos sobre a comunicação em diferentes contextos. Especificamente no campo da saúde da criança e do jovem, persistem importantes desafios de natureza assistencial, alguns dos quais se vinculam a questões comunicacionais que merecem atenção de pesquisadores, profissionais e dos responsáveis pelas instituições (Gomes, 2007; Perosa, Gabarra, Bossolan, Ranzani & Perreira, 2006; Tates & Meeuwesen, 2001).
Em se tratando de atendimentos pediátricos, a literatura aponta tendências pouco favoráveis à consecução dos objetivos terapêuticos, tais como excluir o paciente das etapas da consulta como levantamento de informações e tomada de decisão. Em geral, as trocas comunicacionais com a criança se limitam a iniciativas do médico visando obter cooperação nos exames físicos. Na realidade, em Pediatria, predominam interações direcionadas à obtenção de dados e ao fornecimento de orientações para pais ou acompanhantes (Leite, Caprara & Coelho Filho, 2007; Tates & Meeuwesen, 2001; Van Dulmen, 2004). Em outras palavras, apesar de se caracterizar como uma interação triádica, as consultas são organizadas em torno dos adultos (profissional, familiar ou acompanhante). Mas, alguns autores defendem a inclusão do paciente pediátrico, desde que a quantidade de informações e o detalhamento do diagnóstico estejam em consonância com o interesse e a capacidade sócio-cognitiva da criança (Rocha, 2008; Tates & Meeuwesen, 2001; Van Dulmen, 2004). Quanto ao acompanhante, consideram que sua participação é necessária, mas ponderam que o pediatra não deve supor a priori, que sua percepção coincida com a da criança ou corresponda às condições reais de vida da família. Relembram, ainda, que conflitos e vínculos pouco saudáveis podem prejudicar o repasse de informações para um atendimento eficaz (Armelin, Wallau, Sarti & Pereira, 2005; Leite et al., 2007; Mendonça, 2007).
De acordo com as pesquisas, médicos dirigem pouca atenção à criança por três motivos principais: 1) concepção de que ela não é capaz de entender e assumir responsabilidades por escolhas e decisões relativas ao tratamento; 2) dificuldade do próprio profissional em abordá-la por meio de um vocabulário compreensível e do ajuste da quantidade e da qualidade das informações; e 3) crença que a informação infligirá sofrimento e o profissional deve protegê-la dessa exposição entendida como desnecessária (Mendonça, 2007; Perosa et al., 2006; Tates & Meeuwesen, 2001).
Evidentemente, as intervenções em saúde da criança se desenvolvem em circunstâncias diversas e, no Brasil, diferenciam-se em níveis assistenciais atualmente denominados "atenção básica" (nível primário) e cuidados de "média e alta complexidade" (níveis secundário e terciário). É válido retomar que o Sistema Único de Saúde (SUS) determina que em cada nível sejam implementadas ações de promoção de saúde e prevenção de doenças em prol da melhoria da qualidade de vida da população. Para o Ministério da Saúde, a atenção básica é a etapa inicial de um processo contínuo caracterizado pelo uso de tecnologias acessíveis e proximidade geográfica dos serviços em relação às moradias e locais de trabalho dos cidadãos. Em complementaridade, serviços de média e alta complexidade realizam ações planejadas para atender às necessidades decorrentes de eventos agudos e crônicos do ciclo de vida. Mas, todos os atendimentos, e principalmente os pediátricos, devem ter como perspectiva promover saúde, prevenir doenças ou danos, conter riscos, tratar, reabilitar e dar suporte individual e familiar para o autocuidado (Brasil, 1998; Mendes, 2001; Monnerat, Senna & Souza, 2002). Grande parte dessas ações é desenvolvida em consultas organizadas em centros de saúde, hospitais, clínicas ou espaços comunitários. Evidentemente, essas organizações definem rotinas de atuação e metas institucionais que norteiam as práticas comunicativas nos diferentes níveis assistenciais. É indispensável, portanto, entender as modalidades de comunicação engajadas nestes diversos contextos.
Em síntese, considerando-se a relevância científica e o interesse clínico de melhor conhecer o processo comunicacional no âmbito da Saúde da Criança - no intuito de contribuir para o aprimoramento da formação profissional, assim como para o incremento da eficácia assistencial - realizou-se uma pesquisa de natureza descritiva e qualitativa, visando conhecer e compreender as percepções de pediatras sobre aspectos da comunicação na tríade médico-paciente-acompanhante em diferentes níveis assistenciais (atenção básica e em média e alta complexidade). Para tanto, estabeleceram-se como objetivos específicos descrever, analisar e comparar tais percepções sobre: a) fatores facilitadores e perturbadores da comunicação; b) estratégias adotadas para lidar com as dificuldades; c) participação do paciente e do acompanhante na consulta e d) rotina de atendimento e características do contexto institucional.
Método
A investigação foi conduzida em duas instituições distintamente cadastradas no SUS:
- Centro de Saúde - unidade de atendimento de nível primário (ou atenção básica), destinada ao acompanhamento do desenvolvimento de crianças com agendamento prévio de consultas. Porém, neste serviço, composto por três consultórios, são atendidos, sobretudo, casos motivados por queixas imediatas, em modalidade de "agenda aberta". Por ocasião da pesquisa, quatro pediatras atuavam no local, cuja jornada de trabalho era de 40 horas semanais (n=2) ou 20 horas semanais (n=2).
- Hospital - voltado para o nível terciário de assistência (ou média e alta complexidade). No setor da Pediatria, trabalham oito pediatras em jornadas de 40 horas semanais (n=3) ou 20 horas semanais (n=5). Após preenchimento de uma ficha de solicitação pelos acompanhantes, os atendimentos das crianças são executados em um dos três consultórios por ordem de chegada.
Participantes
Compuseram uma amostra de conveniência, oito pediatras do sexo feminino - sendo três do Centro de Saúde e cinco do Hospital - com idade entre 42 e 55 anos (M = 46,6 no centro de saúde e M = 47,6 no hospital) e tempo de formação entre 19 e 31 anos (M = 22,3 e M = 23,6, respectivamente). O tempo de atuação na instituição variou de três meses a 27 anos (M = 13,6 no CS e M = 9,4 no hospital). Além da formação em Pediatria, uma profissional do Centro de Saúde era especializada em Reumatologia pediátrica. No Hospital, uma médica possuía o título de especialista em Neurologia pediátrica, outra em Alergologia pediátrica e uma terceira pediatra em Homeopatia e Acupuntura.
Instrumento
Foi elaborado um roteiro para entrevista semiestruturada, composto de 12 questões organizadas a partir dos eixos norteadores da pesquisa, a saber: fatores facilitadores e perturbadores da comunicação, rotina de atendimento, aspectos institucionais e organizacionais, participação do paciente e de seu acompanhante e estratégias para lidar com problemas de comunicação.
Procedimentos de coleta e análise de dados
Preliminarmente, realizaram-se visitas às instituições envolvidas para apresentação do projeto de pesquisa aos chefes de serviço e aos profissionais. Em seguida, obteve-se a concordância de cada pediatra por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Concluída esta fase, durante aproximadamente 30 dias, a pesquisadora responsável efetuou observações dos serviços com a intenção de se familiarizar com as rotinas, minimizar as influências provocadas pela coleta de dados e ponderar a necessidade de ajustes nos procedimentos previstos. Destarte, as entrevistas foram conduzidas imediatamente após cada consulta. Os relatos foram gravados em áudio e integralmente transcritos e submetidos à análise de conteúdo temática dedutiva e indutiva por dois pesquisadores independentemente.
Resultados e Discussão
Facilitadores da comunicação
Foram organizados em quatro categorias relacionadas respectivamente ao paciente, ao acompanhante, ao próprio profissional e à instituição. Assim, no Centro de Saúde, consideraram-se como aspectos favoráveis associados ao paciente: participação e interesse pelo atendimento, colaboração durante o exame; estar calmo e relaxado. No Hospital, mencionaram cooperação por parte do paciente e bom nível de escolaridade da criança. Quanto ao acompanhante, as pediatras do centro de saúde ressaltaram a importância de ser um bom informante, conhecedor das necessidades da criança, posto que, muitas vezes, trata-se de alguém que não convive com ela e não está a par da sua história de vida, doenças e tratamentos passados. Já no Hospital, além de salientarem que um facilitador importante é a capacidade do acompanhante em informar, as médicas acrescentaram bom nível de escolaridade; atitude colaborativa e ser do gênero feminino. Segundo estas entrevistadas, mulheres são mais observadoras, têm mais sensibilidade para as dificuldades da criança e, por conseguinte, revelam-se melhor informantes do que os acompanhantes masculinos.
No que diz respeito aos próprios profissionais, no Centro de Saúde, estimaram como facilitadores da comunicação: experiência e direcionamento do atendimento tanto para o paciente, como para acompanhante. No Hospital, somente uma pediatra reconheceu fatores facilitadores relacionados ao profissional, citando: bom estado físico e emocional do médico, realização de acolhimento e evitar posturas autoritárias. Segue-se um trecho deste relato:
Outra coisa que eu acho, que facilita, é a questão do acolhimento. A forma como você recebe o paciente... Você olhar pra ele... Você prestar atenção nele...Você querer escutar. Você não ter prepotência e achar que é dono de tudo, do paciente.... Que não é nada disso! Essa coisa toda facilita: que é a relação mesmo de você escutar e entender o outro.
Como facilitadores vinculados à instituição, indicaram: no Centro de Saúde, número suficiente de profissionais para atender a demanda e, no Hospital, baixa demanda do serviço. Chama atenção que, contrariamente ao destaque feito pela literatura especializada (Araujo, 2009; Epstein et al., 2004; Ruiz-Moral, 2007; Silva, 2006), as participantes não mencionaram aspectos relacionados à sua prática e insistiram nas características dos pacientes e acompanhantes para o estabelecimento de uma comunicação julgada como satisfatória. Cabe comentar que muitos destes fatores não são modificáveis, pelo menos a curto prazo, como por exemplo, ter acompanhantes com escolaridade mais avançada ou ser bom observador e sensível.
Perturbadores da comunicação
Em analogia aos facilitadores, os perturbadores foram organizados em quatro categorias. Desse modo, no Centro de Saúde, as pediatras apontaram: paciente não colaborativo com quadro patológico agudo e limitações físicas (ex.: deficiências e dor) e sociais (ex.: desestruturação familiar e baixo desempenho escolar). Também enfatizaram a falta de conhecimento prévio da criança consultada. No hospital, avaliaram como fator perturbador proeminente: paciente não colaborativo, nervoso ou agitado durante o atendimento.
No que se refere aos acompanhantes, para as pediatras do Centro de Saúde, somente o fato de não se mostrar focado no atendimento do paciente, dispersando a atenção dos profissionais, dificulta a comunicação. No Hospital, vários fatores foram identificados: ansiedade, crença excessiva na eficácia de exames laboratoriais e por imagem em detrimento do exame clínico, informação do diagnóstico anterior em vez de relatar a queixa atual, baixo grau de instrução, ser do gênero masculino, desconhecimento da situação da criança e recursos financeiros limitados.
No Centro de Saúde, as médicas avaliaram como fatores perturbadores pautados nos profissionais, as barreiras suscitadas pelo autoritarismo e jogos de poder desencadeados pelo profissional. Do ponto de vista das pediatras do Hospital, as dificuldades são decorrentes do mal-estar físico e emocional sofrido pelo próprio profissional em decorrência de aspectos pessoais.
Vale enfatizar que apenas as médicas do Centro de Saúde notaram fatores perturbadores relacionados à instituição, a saber: falta de privacidade, constantes interrupções durante o atendimento e presença de vários interlocutores na consulta (ex.: mais de uma criança para ser atendida, como no caso de irmãos; ou de diversos acompanhantes, como mãe, avó, pai e tios).
De modo geral, estes resultados corroboram aqueles reportados pela literatura: diferenças pronunciadas de instrução, cognição, cultura e idade do emissor e receptor; introdução de assuntos aleatórios ao foco da consulta; pouco tempo para atendimento em razão da grande demanda e insuficiência do contingente profissional que restringem a consulta à busca de sintomas; poder exercido pelo médico e valorização de recursos tecnológicos em prejuízo das relações interpessoais e da atuação clínica (Barbosa & Araujo, 2006; Brown et al, 2003; Martins, 2001; Ogden, 2004). Cabe comentar também que outros fatores - como mais de uma criança em consulta e gênero do acompanhante - foram percebidos como relevantes pela amostra, mas não ressaltados em estudos anteriores, o que indica necessidade de pesquisas que enfoquem estas condições.
Estratégias para lidar com dificuldades de comunicação
As médicas do Centro de Saúde disseram que, diante de dificuldades de compreensão da comunicação realizada, elas repetem suas orientações e indagam o interlocutor quanto à sua efetiva compreensão, solicitando inclusive que retomem as informações emitidas por elas. Elas afirmaram adaptar o vocabulário empregado na consulta em função das peculiaridades culturais ou da fase de desenvolvimento do ouvinte, estabelecendo comparações com vivências significativas do interlocutor na intenção de ampliar seu entendimento. Também acreditam que estão mais atentas aos comportamentos não-verbais. Disseram pedir auxílio ao acompanhante para facilitar a comunicação com o paciente e quando percebem que a conduta do acompanhante prejudica a consulta, interrompem sua fala.
Na perspectiva de duas pediatras que atuam no Hospital, para minimizar os problemas de comunicação em saúde é necessário: desfazer as barreiras de poder e assumir uma postura mais ativa desde a etapa da anamnese. Sugerem, ainda, estratégias como: fornecer esclarecimentos repetidamente e incluir brincadeiras e distrações destinadas ao paciente pediátrico. Verificam-se, portanto, diversos aspectos que coincidem com estratégias citadas em trabalhos anteriores, tais como: avaliar os conhecimentos prévios do paciente, ter empatia, falar pausadamente, utilizar linguagem simples e acessível, prestar atenção em comportamentos não verbais (Armelin et al., 2005; Tates & Meeuwesen, 2001).
Em contrapartida, três profissionais relataram que, quando algum problema de comunicação emerge, "não há muito com o que se preocupar", pois "confiam" no exame físico e laboratorial. Ora, tais atitudes revelam uma hipervalorização do saber técnico-científico, em detrimento de conhecimentos, crenças e valores pessoais (Ogden, 2004). De acordo com uma dessas entrevistadas que trabalha no Hospital:
O profissional e a população, de uma forma geral, acreditam muito em exames. Se for 'no médico', e ele não passar remédio, ou ele não fizer exame, ele não é bom médico. 'Eu vou procurar outro serviço'. Infelizmente, então, eu acho que isso é a crença, a questão da crença tanto do profissional, quanto do paciente, e isso dificulta.
Participação do acompanhante
Para as três médicas do Centro de Saúde, tal participação é importante, pois o acompanhante é um auxiliar da comunicação quando o paciente não é colaborativo por recusa expressa ou por sentir alguma dor. Ademais, ele fornece uma visão diferenciada sobre o estado da criança e transmite dados sobre a dinâmica da família e "faz o paciente sentir-se cuidado". No Hospital, por sua vez, quatro médicas consideram que o acompanhante não é só importante como é o principal informante, pois "a criança não sabe informar". Contudo, na opinião de uma pediatra, essa participação pode ser negativa, quando o acompanhante interfere autoritariamente na expressão espontânea da criança, direcionando forçosamente as trocas comunicacionais. De fato, diversos estudos realçam as vantagens da participação dos acompanhantes em consultas pediátricas como informantes privilegiados. Entretanto, alertam também que suas percepções sobre a doença, o tratamento e a prevenção podem se antagonizar aos sentimentos, concepções e necessidades da criança, o que pode prejudicar a consistência das informações repassadas à equipe de saúde (Brown et al, 2003; Leite et al., 2007; Mendonça, 2007).
Participação do paciente
No Centro de Saúde, o paciente é visto pelas três pediatras como ator principal do tratamento, pois têm percepções próprias de seus incômodos que não necessariamente convergem com aquelas relatadas pelos adultos. Segundo uma das médicas entrevistadas:
É muito importante: eles são atores dentro da busca da saúde deles. Eles são crianças, mas, eu acredito muito nisso: que se a gente não começar a educar a criança para a saúde, daqui a vinte anos eles vão ser adultos não saudáveis.
Em contraposição, no Hospital, apenas uma pediatra afirma que a participação da criança surge como fundamental, pois facilita identificar outros problemas além da queixa principal. Outra profissional reconhece o interesse de tal participação para localização mais precisa da dor, desde que a criança seja colaborativa e não demonstre resistências. Para três profissionais, a presença da criança não é crucial, uma vez que o acompanhante é o principal informante. Segue-se um relato ilustrativo dessa visão:
É importante, mas não é essencial. O essencial é a participação do acompanhante que é o informante principal, que são os pais ou responsáveis. Porque as respostas das crianças não são confiáveis. Elas omitem ou exageram os sintomas, o mais comum é a omissão.
Resumindo, a percepção sobre a importância da colaboração da criança na consulta médica não foi amplamente reconhecida, apesar das pesquisas realçarem que uma participação ativa favorece a satisfação com o atendimento e a adesão ao tratamento (Tates & Meeuwesen, 2001; Van Dulmen, 2004).
Rotina de atendimento
No Centro de Saúde, duas pediatras afirmaram seguir um padrão de consulta com o intuito de acolher o paciente e atingir a meta de promoção da saúde. Tal como descrito na literatura especializada, essa rotina de atendimento abrange as seguintes ações básicas: chamar o paciente, levantar dados de identificação e caracterização, investigar a queixa, realizar exame físico, informar sobre a conduta terapêutica e prestar esclarecimentos. Mas, uma das pediatras ponderou que sua intervenção corresponde mais a um pronto-atendimento, já que não há continuidade no tratamento e muitos pacientes não retornam ao Centro de Saúde, procurando outros serviços de saúde.
No Hospital, três pediatras adotam o padrão descrito na literatura, mas afirmam dar destaque ao momento do exame físico. Outra entrevistada ressaltou o momento do acolhimento da criança, a exemplo da conduta já citada no Centro de Saúde. Uma quinta médica insistiu que aplica um protocolo próprio de atendimento, o qual varia de acordo com a situação.
As diferenças entre as rotinas de ambos os níveis assistenciais revelam que a tendência atual é distinguir os atendimentos independentemente da demanda e da queixa relatadas pelos usuários. Em outras palavras, se a consulta é na atenção básica, o acolhimento e a promoção são enfocados, se for executada em uma instituição de média e alta complexidade, a ênfase é dada aos exames clínicos.
Influências institucionais
As profissionais foram capazes de identificar influências negativas ou positivas exercidas pela estruturação, organização e perfil da instituição em que trabalham sobre a comunicação estabelecida durante o atendimento. No Centro de Saúde, avaliaram que o modo como o atendimento é estabelecido possibilita construir uma melhor relação médico-paciente e realizar um atendimento integral, uma vez que é possível: investigar questões estruturais da vida do paciente (como hábitos de vida e dinâmica familiar) e acompanhar pacientes já conhecidos. Relataram ainda que, na assistência básica, tem a oportunidade de atuar na educação da saúde, transformando as pessoas em agentes multiplicadores. Todavia, queixaram-se da exigência de cumprimento de uma cota elevada de atendimentos realizados por jornada de trabalho; falta de privacidade durante as consultas e extrapolação das atribuições funcionais previstas (consultas de adultos e atendimento por telefone). Para as médicas, estes aspectos negativos comprometem seu desempenho e a comunicação com os usuários. No que se refere às diferenças percebidas em relação ao nível de assistência terciário, uma das profissionais comentou: "no pronto atendimento se faz atendimento focado na queixa, não se faz promoção de saúde, nem prevenção de doenças".
No Hospital, estimaram-se como aspectos institucionais positivos para a comunicação na assistência: baixa demanda institucional, privacidade e local adequado para as intervenções e mais recursos disponíveis. Como aspectos negativos, mencionaram a imposição de atender em período curto, pois o serviço é de pronto-atendimento. Quanto à distinção entre uma atuação realizada no Centro de Saúde para um pronto-atendimento executado no Hospital, três pediatras tiveram a mesma concepção, sendo ilustrada pela fala de uma das pediatras: "no Centro de Saúde as consultas são marcadas previamente e há mais tempo, podendo ser feito a promoção de saúde e a prevenção de doenças".
Verifica-se assim que a consulta é predominantemente configurada pelas pediatras em função do nível de atenção em saúde no qual está inserida. Desta forma, por não ser o foco do nível terciário, algumas pediatras do hospital não realizavam ações de promoção e educação em saúde mesmo havendo tempo pela baixa demanda de atendimento e mesmo sendo estas ações metas globais que constam dos propósitos estruturais do SUS.
É fundamental comentar que duas pediatras do Hospital discordam destas concepções e explicitaram que também atuam na assistência básica, agindo da mesma forma nestes diferentes contextos institucionais. A seguir, reproduz-se um trecho do relato de uma destas participantes:
Teoricamente eu teria mais possibilidade de ajudar o outro lá (Centro de Saúde) porque eu posso conversar, posso escutar, eu posso orientar de forma preventiva, e aqui é uma coisa mais rápida, teoricamente, tá? Embora que lá também tenha muita coisa pesada [...] Mas eu acho que essa questão de acolher nem que seja o mínimo, de prestar atenção ao outro, eu acho que isso é fundamental em qualquer consulta.
Em suma, constataram-se em cada nível, diferenças nos padrões de consulta que parecem estar associadas a comunicações distintas na tríade pediatra-paciente-acompanhante. Também se depreende das entrevistas desenvolvidas que o modo como as pediatras percebem, de um lado, os direitos de seus pacientes pediátricos e, de outro lado, a função institucional do serviço de saúde influenciam a relação com os usuários (Coelho Filho, 2007; Cosnier et al., 1994; Gomes, 2007; Lambert et al., 1997; Maldonado & Canella, 2009).
Considerações Finais
Identificaram-se estilos de consulta distintos em cada nível assistencial, associados a padrões de comunicação diferentes, embora o SUS determine que no campo da Saúde da Criança, os atendimentos da rede devam promover saúde, prevenir doenças ou danos e dar suporte individual e familiar para o autocuidado. Assim, na atenção básica, predominou o estilo centrado no paciente pediátrico, estimulando-se a comunicação triádica e o caráter educativo da intervenção. Na atuação em média e alta complexidade, houve primazia da interação centrada no médico, privilegiando-se o saber especializado e incentivando-se a participação do acompanhante em comparação com o paciente.
Como o presente estudo baseou-se em autorrelatos das participantes, recomenda-se que futuras investigações adotem metodologia observacional para complementar os conhecimentos já obtidos acerca da comunicação triádica no campo da saúde da criança. Tendo em vista a complexidade deste tema de pesquisa, é crucial empregar metodologias mistas e, em particular, aquelas que possibilitem registrar e analisar os comportamentos nos atendimentos em diferentes níveis assistenciais.
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Recebido: 09/08/2012
Última revisão: 26/11/2012
Aceite final: 20/12/2012
Apoio recebido: Capes e CNPQ.
Sobre os autores:
Lílian Meire de Oliveira Pinto - Mestre e Doutoranda em Psicologia da Saúde no Programa de Pós-Graduação em Processos do Desenvolvimento Humano e Saúde da Universidade de Brasília.
E-mail: lilianmeiredeoliveira@hotmail.com
Tel: 61 3526-3351
Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araujo - Doutora pela Université de Paris X-Nanterre e Pós-Doutora pela Unesco (França), Professora da UnB e Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
E-mail: araujotc@unb.br
1 Endereço 1: CLN 213, Bloco D, apt. 219, Brasília, DF, 70872-540
2 Endereço 2: Universidade de Brasília, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Instituto de Psicologia, Brasília, DF, 70910-900 Tel.: (61) 3273- 0838/Fax: (61) 3349-0183