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Revista Psicologia e Saúde
versão On-line ISSN 2177-093X
Rev. Psicol. Saúde vol.10 no.3 Campo Grande set./dez. 2018
https://doi.org/10.20435/pssa.v10i3.636
ARTIGOS
Da anormalidade na saúde para a anormalidade na educação
From abnormality in health to abnormality in education
De la anormalidad en la salud a la anormalidad en la educación
Cláudia Regina da Silva DouradoI; Anita Guazzelli BernardesII
IDourado - Professora na Secretaria de Estado e Educação e Esporte do Acre. Doutora em Psicologia na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mestre em Educação Escolar e Pedagoga. E-mail: claudiadrd@gmail.com
IIPossui graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1996), mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002) e doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006). Atualmente é professora e pesquisadora do Mestrado e Doutorado em Psicologia da Saúde da Universidade Católica Dom Bosco. E-mail: anitabernardes1909@gmail.com
RESUMO
Este texto tem como temática a relação entre políticas públicas e Psicologia da Saúde a partir da articulação entre formas de governo da população e modos de condução de condutas. Para tanto, problematiza o deslocamento de enunciados de normalidade e anormalidade do campo da saúde para o campo da educação, como estratégia para compreender uma ontologia do presente. O texto apoia-se em autores da Psicologia Social, mais especificamente do pós-estruturalismo, que são ferramentas conceituais para pensar em Psicologia da Saúde. A Psicologia da Saúde aqui é um plano forjado por distintas articulações teórico-conceituais que se ocupam de problematizar a saúde. Desse modo, torna-se uma superfície mediante a qual é possível considerar não o que é a saúde, mas os efeitos daquilo que produz, quando articulada a outros campos, como as políticas públicas e mais especificamente a Educação.
Palavras-chave: anormalidade, saúde, educação
ABSTRACT
This text investigates the relationship between public policies and Health Psychology based on the articulation between forms of government of the population and ways of conducting behaviors. To do so, it analyzes the drift of normality and abnormality statements from the field of health to the field of education, as a strategy to understand current ontology. The work is supported by authors of Social Psychology, more specifically from post-structuralism, which are conceptual tools for thinking about Health Psychology. Health Psychology is understood here is a plan forged by distinct theoretical conceptual articulations that are concerned with problematizing health. Thus, it becomes a surface through which it is possible to consider not what health is, but the effects that it produces when articulated to other fields, such as public policies and more specifically Education.
Keywords: abnormality, health, education
RESUMEN
Este texto tiene como temática la relación entre políticas públicas y Psicología de la Salud a partir de la articulación entre formas de gobierno de la población y modos de conducir conductas. Para ello, problematiza el desplazamiento de enunciados de normalidad y anormalidad del campo de la salud hacia el campo de la educación, como estrategia para comprender una ontología del presente. El texto se apoya en autores de la Psicología Social, más específicamente del post estructuralismo, que son herramientas conceptuales para pensar en Psicología de la Salud. La Psicología de la Salud aquí es un plan forjado por distintas articulaciones teórico-conceptuales que se ocupan de problematizar la salud. De este modo, se convierte en una superficie mediante la cual es posible considerar no lo que es la salud, sino los efectos de lo que produce cuando se articula a otros campos, tales como las políticas públicas y, más específicamente, la Educación.
Palabras clave: anormalidad, salud, educación
Introducción
Este texto tem como temática a relação entre políticas públicas e Psicologia da Saúde a partir da articulação entre formas de governo da população e modos de condução de condutas. Nesse sentido, compreende-se que as políticas públicas vêm construir determinadas formas de ser sujeito e de se relacionar com elas (Cruz, Hillesheim & Guareschi, 2005). No que diz respeito à condução de condutas, discute-se com Foucault, como "a atividade que consiste em conduzir" e "à maneira pela qual conduzimos a nós mesmos, o modo pelo qual nos deixamos conduzir, a maneira pela qual somos conduzidos e pela qual, enfim, nos comportamos sob efeito de uma conduta, que seria ato de conduta ou de condução" (Foucault, 2008, p. 197). Para tanto, problematiza o deslocamento de enunciados de normalidade e anormalidade do campo da saúde para o campo da Educação Escolar como estratégia para compreender uma ontologia do presente.
O texto apoia-se em autores da Psicologia Social, mais especificamente do pós-estruturalismo. Esses autores fornecem ferramentas conceituais para pensar em Psicologia da Saúde. A Psicologia da Saúde aqui é um plano forjado por distintas articulações teórico-conceituais que se ocupam de problematizar a saúde. Desse modo, torna-se uma superfície mediante a qual é possível considerar não o que é a saúde, mas os efeitos daquilo que produz quando articulada a outros campos, como as políticas públicas e, mais especificamente, a Educação escolar.
Em um primeiro momento, apresentam-se algumas considerações a respeito da relação entre saúde e normalidade/anormalidade. A partir disso, discute-se o modo como essa relação migra para o campo da Educação escolar, apoiando-se em algumas Leis que organizam as políticas educacionais. Para finalizar, são apontados os efeitos dessas articulações entre saúde, normalidade/anormalidade e Educação no que diz respeito às formas de condução das condutas e daquilo que escapa a essas formas.
Primeiras linhas: articulações entre o anormal e as políticas públicas
Os seminários de Foucault da primeira metade da década de 1970 (2005, 2008, 2010) têm como foco fazer uma genealogia das relações de poder para compreender como nos tornamos o que somos a partir do limiar da modernidade. Para isso, Foucault toma alguns objetos que considera formularem problemas quando se tornam acontecimentos. Entre esses objetos, aparecerá a figura do Anormal. A figura do anormal é investigada pelo autor não no sentido do que ela é, ou seja, do seu significado, mas sim em termos das condições de emergência e dos jogos que se constituem, de modo a torná-la um elemento fundamental na organização e investimento nas formas de governo das condutas. A figura do anormal será discutida neste texto a partir de duas condições de emergência: a primeira, relacionada a uma problemática jurídico-psiquiátrica; a segunda, relativa às formas de circulação e governo das condutas nos espaços da cidade.
O autor escreve como uma problemática que se apresentará no campo jurídico - a figura do anormal - se tornará imprescindível a partir do século XIX. Essa problemática diz respeito a situações nas quais não se conseguia classificar o sujeito de uma determinada ação penal pelas nosografias de alienação mental, isto é, o aparato conceitual não era suficiente para auxiliar na avaliação da responsabilidade pelo ato cometido. Isso significará um deslocamento do problema do ato em si para quem o cometeu. Esse deslocamento encontrará um avizinhamento com a Psiquiatria, permitindo a formulação de um duplo jurídico-psiquiátrico: o delinquente (Foucault, 2010).
Além disso, outros elementos começam a ter visibilidade não no campo jurídico, mas nas formas de circulação nos espaços da cidade. A cidade torna-se foco de investimento de práticas de governo como estratégia de fortalecimento do Estado. Esse investimento se dará sobre a população, de maneira a organizar um conjunto heterogêneo de tecnologias que permitem regular seus modos de viver.
Esses dois planos - o da delinquência e o da população - encontram um espaço de apoio mútuo a partir das estratégias de investimento na circulação nas cidades. Tanto se investirá em "coisas", tais como a organização arquitetônica e os planejamentos urbanos, quanto se investirá na distribuição e organização da população nos espaços da cidade.
A figura do anormal se tornará um elemento fundamental nessas formas de distribuição, organização e investimento na população. Não se trata de tomá-la como um elemento isolado, mas como um enunciado que permitirá a justificativa de certas estratégias que tomam a forma de políticas do corpo social. A figura do anormal aparecerá em um plano de bifurcação: é tanto relativa a certos modos de caracterização do funcionamento do organismo, no que concerne à relação entre órgãos e funções e ao que a qualifica como normalidade e anormalidade orgânica, quanto relativa ao modo de adaptação ao campo social, ou seja, o que se aproxima ou se distancia das exigências morais de certos modos de viver (Foucault, 2010).
Essa forma de operacionalização da figura do anormal tem como condição de possibilidade certos acontecimentos que lhe darão substância e estabilização. Há uma modificação no campo social, principalmente a partir da segunda metade do século XVIII, quando começa a engendrar-se uma preocupação maior com o fortalecimento dos Estados Nacionais e, com isso, o aparecimento de uma economia política que se ocupará de pensar como se governa. Nesse processo, o que anteriormente caracterizou o que Foucault (2008) nomeou de sociedades disciplinares ou jurídico-legais começa a ser caracterizado por uma sociedade de segurança, mais especificamente, por dispositivos de segurança. Se antes a organização da sociedade disciplinar apoiava-se na definição de uma norma a partir da qual se estabeleceriam as figuras do normal e do anormal, agora o normal e o anormal são tomados como regularidades dos acontecimentos no campo social, portanto, naturalizados, e a partir deles se estabelecerá uma norma.
Desse modo, aquilo que era tomado como anormal na sociedade disciplinar tornava-se foco de estratégias de normatização - tornar normal o anormal. O anormal figura como um elemento não natural da sociedade e, portanto, como aquilo que deveria ser eliminado. Isso é observado nas estratégias de enclausuramento ao longo do século XVII, mediante as quais se isolava o que de algum modo se afastava da norma, do normal. No âmbito jurídico, por exemplo, isso se dava pelas formas de aprisionamento do sujeito. No âmbito da saúde, ocorria pelas formas de afastamento do sujeito doente. Nos dispositivos de segurança, haverá um deslocamento, como foi escrito anteriormente; a questão não reside mais em se o sujeito é imputável ou inimputável em relação a uma infração, mas sobretudo em quem é esse sujeito, que características pessoais o fizeram cometer uma infração, quais as possibilidades de ele vir a cometê-la novamente. Isso significará outro tipo de investimento, que não será mais propriamente o isolamento, mas a regulação da conduta, ou seja, criação de mecanismos para controlar os desvios. Não se considerará mais um elemento fora da norma, mas uma anormalidade dentro de uma normalidade.
Explica-se melhor. Ao migrar do ato em si para a conduta e para o sujeito, a questão que se forja é justamente que a anormalidade faz parte do sujeito, de uma ontologia do sujeito moderno, e sobre ela se voltará um conjunto heterogêneo de práticas de regulação que se produzem no âmbito da saúde, da educação, do planejamento urbano, da justiça, do trabalho, etc. O desafio para o dispositivo de segurança é justamente conseguir alinhavar as curvas de normalidade a estratégias de governo das condutas como forma de investimento no próprio fortalecimento do Estado. Isso constituirá, entre outros elementos, um campo articulado de políticas, sobretudo de políticas públicas. Essas políticas não operam de forma isolada, tampouco emanam exclusivamente do Estado, mas têm como sua justificativa o Estado e a própria sociedade. Isso implicará os modos de condução da população e da regulação da anormalidade de distintos fenômenos populacionais, quer sejam individuais ou coletivos.
Nessa linha de argumentação, as políticas públicas constituem-se como tecnologias do dispositivo de segurança, voltadas, entre outros focos, para a regulação das anormalidades do corpo social, tornando possíveis não apenas respostas do Estado a certas problemáticas que adquirem visibilidade, mas o próprio Estado. O anormal entrará, então, como elemento a ser governado: de uma curva que se faz primeiramente no âmbito da justiça e da psiquiatria, portanto, um problema jurídico e orgânico, migra para o campo social, adquirindo uma densidade mais coletiva que requer investimentos tanto para regular quanto para prevenir, porém sem anular.
As estratégias, então, voltam-se para o presente, em termos de regulação, e para um futuro, em termos de prevenção. O anormal deixa de ser uma figura circunscrita aos espaços da justiça e da psiquiatria para entrar como um enunciado do próprio corpo social, de modo a criar a própria necessidade de sua regulação: essa necessidade vai apresentar-se pela figura da cidadania. O enunciado do anormal será justificado por um conjunto heterogêneo de práticas, inclusive quando estas compõem sistemas teóricos, alinhavando as necessidades de investimento e suas justificativas no âmbito das políticas públicas, por exemplo. Nesse caso, o anormal não só se constitui em relação aos fenômenos de saúde e doença, de imputabilidade e inimputabilidade; sobretudo, quando se desloca para a sociedade, torna-se um enunciado para a cidadania, ou seja, regulá-lo é justificativa da própria cidadania. Saúde e doença, pela figura do anormal, se aproximarão da cidadania, esvanecendo seus contornos de afecção de um corpo individual.
Essas práticas são pensadas em sua extensão como linhas. Linhas de composição de objetos, de sujeitos, de mundo. Linhas que segmentarizam a relação entre o normal/anormal. Desse modo, quando o campo da saúde organiza e estabiliza certos modos de pensar e intervir no anormal, torna-se um campo profícuo de justificativas de intervenção do próprio Estado nas formas de viver da população, torna-se uma linha de composição do que virão a ser as próprias condições para a cidadania. A saúde, nesse caso, sai de uma região constitutiva de órgãos do corpo humano e migra para a organização da sociedade e de cidadãos, estabelecendo articulações com distintos campos, como no caso da própria Educação Escolar.
Inflexão de linhas para pensar o presente
Ao seguir esses rastros iniciais de articulação entre a figura do anormal e as políticas públicas, a reflexão deste texto toma como objeto de análise leis e documentos do campo da Educação, considerados como macropolíticas. As leis e documentos oficiais da Educação escolar brasileira no século XX são linhas segmentares que atravessam e organizam as políticas educacionais, constituindo um agenciamento social da máquina abstrata da educação, um dispositivo de segurança.
Tais linhas tornam possível uma "segmentarização dos corpos educacionais", produzindo o que pode ser dito como aceitável e inaceitável, bom, normal, cidadão, sociável para sociedade, País, nação, efetuando, mais que conhecimentos sociais ou conhecimentos socialmente ou cientificamente elaborados para ou na Educação, mas condutas educacionais, códigos e territorialização dos corpos educacionais (Deleuze, 1998). Controles e regulações da população da nação, da Educação. As macropolíticas num plano de organização de um dispositivo de segurança efetuam uma normalização, pois se constituem a partir de uma norma. E como ocorre uma normalização do ponto de vista de um dispositivo de segurança?
Temos, portanto aqui uma coisa que parte do normal e que se serve de certas distribuições consideradas, digamos assim, mais normais que as outras, mais favoráveis em todo caso que as outras. São essas distribuições que vão servir de norma. A norma está em jogo no interior das normalidades diferenciais. O normal é que é primeiro, e a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório (Foucault, 2008, p. 83).
Entende-se também que, com a construção de normas a partir de um normal, ou ações de normalização, as macropolíticas educacionais e seus dispositivos de poder (no caso, o dispositivo de segurança) atuam como máquinas de sobrecodificação no território educacional a serviço do Estado Moderno.
A máquina abstrata de sobrecodificação assegura a homogeneização dos diferentes segmentos, sua convertibilidade, sua traduzibilidade, ela regula as passagens de uns nos outros, e sob que prevalência. Ela não depende do Estado, mas sua eficácia depende do Estado como do agenciamento que a efetua em um campo social (Deleuze, 2012, p. 101).
Assim, um dos primeiros documentos em que se percebe a ligação educação e cidadania se encontra em um agenciamento na forma de governo do regime militar ditatorial no Brasil: "o ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento [...] qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania" (Brasil, 1971). Quando (re)estabelecida a democracia, essa ligação continua: "a educação básica deve assegurar a todos a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhes meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores" (Brasil, 1996). Embora atualizada com outras estratégias, com ênfases ainda maiores em minúcias de como pode ser essa relação - educação e cidadania -, especificam-se assuntos que devem ser da Educação. Como dito:
O compromisso Nacional inclui tópicos considerados indispensáveis para compor uma agenda mínima de recuperação da educação básica nacional, destacando-se, entre eles, a profissionalização do magistério, a qualidade do ensino fundamental, a autonomia da escola, a equidade na aplicação dos recursos e o engajamento dos segmentos sociais mais representativos na promoção, avaliação e divulgação dos esforços de universalização e melhoria da qualidade da educação fundamental (Brasil, 1993, p. 15).
Seria a relação educação e cidadania, na democracia, continuação de uma ação ditatorial? Continuação de uma soberania ditatorial? Com outros mecanismos e estratégias? Ou, de outra forma, poderíamos dizer que o governo de forma democrática reterritorializa as políticas educacionais (com novos encontros, estratégias e códigos para educação), mas não abandona o uso de políticas de normalização para educação (estratégias no regime militar). Estariam, nessas duas formas de governo (ditatorial e democrático), as relações do poder de normalização em ação? Ou ainda, dizer que as políticas de normalização "referem-se às técnicas de assujeitamento utilizadas pelo poder" (Bert, 2013, p. 124). Considerando que ambas, cada uma com seus agenciamentos, desejam uma formação necessária ao acesso e exercício da educação e da cidadania, vemos então uma continuidade do poder de normalização pela educação na democracia? Sim - mas com descontinuidades na operacionalização e nos mecanismos da norma. Segundo Foucault (2005, p. 294), "a norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar". E aqui, talvez, no caso do governo ditatorial, pudéssemos relacioná-lo mais a um dispositivo disciplinar de normalização ou normação:
A disciplina normaliza, e creio que isso é algo que não pode ser contestado. Mas é necessário precisar em que consiste, na sua especificidade, a normalização disciplinar. A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo ótimo que é construído em função de certo resultado, e a operação de normalização disciplinar consiste em procurar tomar as pessoas, os gestos, os atos, conformes a esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não é capaz. Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na normalização disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma (Foucault, 2008, p. 85).
Por outro lado, as estratégias do governo democrático no Brasil ligam-se mais a um dispositivo de segurança de normalização. O que aparece como normal em um dispositivo de segurança é que é o primeiro e fundamental, e a partir do normal regulam-se as curvas de normalidade e anormalidade. Então, como se produz essa relação educação, cidadania, normalização e seu funcionamento nos caminhos da democracia do Brasil?
Primeiramente, com um código, que é o de "uma escola que deve buscar a formação de cidadania" (Brasil, 1996). Segundo, com o surgimento de uma ideia de necessidade de seguir um padrão de educação, um mínimo normal pela educação para o País, e assim criar orientações normativas das ações educacionais no País. Terceiro, com uma escola ou educação escolar como produtora de um desenvolvimento individual e social, construtora de uma igualdade social, de uma sociedade democrática. Porém, torna-se necessário dizer também de outra linha que se mistura e atravessa as já citadas - o documento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 2001a), no qual se considera possível encontrar ainda mais em detalhes a ligação e a existência do encontro educação e cidadania, assim como seus códigos e territórios.
Com o documento dos Parâmetros (Brasil, 2001a), é possível considerar que, apesar de a Educação escolar tornar-se um direito humano e social do estado democrático (ONU, 1948; Brasil, 1988) e a cidadania princípio fundamental pela Constituição Federal de 1988, ambas aparecem conectadas com uma ênfase maior na construção de conduta social, de padrões sociais:
No contexto da proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais se concebe a educação escolar como uma prática que tem possibilidade de criar condições para que todos os alunos desenvolvam suas capacidades e aprendam os conteúdos necessários para construir instrumentos de compreensão da realidade e de participação em relações sociais, políticas e culturais diversificadas e cada vez mais amplas, condições estas fundamentais na construção de uma sociedade democrática e não excludente (Brasil, 2001a, p. 45).
Assim, os conteúdos escolares "necessários" e suas aprendizagens tornam-se instrumentos ou mecanismos que acessam a cidadania. A norma, o padrão social, aparece na Educação nos e pelos conteúdos escolares. Os conteúdos fixam um ponto de relação com eles próprios, que deve ser de interesse, de busca de aprendizagem, pois com eles se torna possível exercer a cidadania. É dito que eles são instrumentos capazes de desenvolvimento, socialização e cidadania. São instrumentos capazes de normalização, na medida em que agenciam modos de condução de condutas; não são imposições de condutas, mas necessidades de condução de condutas, e suas justificativas, portanto, fazem-se como mecanismo de normalização das normalidades e anormalidades: desenvolver e socializar o sujeito para a cidadania. Os conteúdos fazem-se como estratégias de normalização da Educação para a cidadania. Pelos conteúdos escolares, conectam-se a norma, a Educação e a cidadania.
A importância dada aos conteúdos revela um compromisso da instituição escolar em garantir o acesso aos saberes elaborados socialmente, pois estes se constituem como instrumentos para o desenvolvimento, a socialização, o exercício da cidadania democrática e a atuação de refutar ou reformular as deformações dos conhecimentos, as imposições de crenças dogmáticas e petrificações de valores (Brasil, 2001a, p. 44).
Tona-se possível uma regulação social pela educação; pelos conteúdos escolares, torna-se possível ver e dizer de ações sociais normais e anormais. Mediante linhas de normalidade e anormalidade - ser ou não cidadão -, constituem-se, pelos conteúdos, estratégias de normalização do cidadão e cria-se o que seria uma Educação para cidadania. "Apresenta-se para a escola, hoje mais do que nunca, a necessidade de assumir-se como espaço social de construção dos significados éticos necessários e constitutivos de toda e qualquer ação de cidadania" (Brasil, 2001a, p. 34). A cidadania aparece, então, como uma linha de composição para a normalidade.
Com isso, as formas de ser social, ser cidadão, ser aluno, são linhas que atravessam e constituem um mapa educacional a partir de um mecanismo de normalização que se engendra pelo estabelecimento do normal e do anormal. Por isso, é diante da regularidade e da irregularidade de certos eventos - nesse caso, o acesso à Educação Escolar - que se constituirá um conjunto estratégico de ações de normalização que permitem o controle do normal/anormal: acessar a Educação é uma condição para a cidadania. Desse modo, a cidadania torna-se a própria norma. Da norma, partirá a normalização como exercício de produção da Educação para a cidadania, compondo um mapa educacional como elemento do dispositivo de segurança. Se antes, no Brasil, os significados éticos eram definidos pela Igreja e os interesses da Corte Imperial eram relacionados a uma moral, com a constituição do País como Estado Moderno, a escola e suas relações com os conteúdos escolares passam a defini-los relacionados a uma cidadania ou a uma moral cidadã.
Com os conteúdos escolares, definem-se as intensidades que podem passar na realidade educacional. Por eles, pode-se dizer o que é bom, qualificável, admirável, necessário, desnecessário, saudável, normal e anormal para o governo da sociedade. No dizer dos Parâmetros:
Todos os documentos aqui apresentados configuram uma referência nacional em que são apontados conteúdos e objetivos articulados, critérios de eleição dos primeiros, questões de ensino e aprendizagem das áreas, que permeiam a prática educativa de forma explícita ou implícita, propostas sobre a avaliação em cada momento da escolaridade e em cada área, envolvendo questões relativas a que e como avaliar. [...] efetivando uma proposta articuladora dos propósitos mais gerais de formação de cidadania, com sua operacionalização no processo de aprendizagem (Brasil, 2001a, p. 37).
Então, é possível dizer que, para se exercer a cidadania, é preciso ir para a escola, e se vai para a escola para se exercer a cidadania, como uma estratégia de normalização, ou seja, regulação de condutas sociais, como estratégia de um governo moderno democrático para as condutas sociais.
Capturas do anormal
Outras relações podem aparecer ligadas às relações acima ou de diferentes maneiras e com outras linhas, constituindo substâncias escolares, além dos conteúdos, por exemplo, com o que a imagem de um jornal apresenta:
A articulação da cidadania no dispositivo de segurança não se faz apenas por macropolíticas; a estas, ligam-se outras estratégias que tanto reforçam as políticas públicas e sua necessidade, quanto extravasam o seu campo e compõem-se com outras linhas. Entretanto, é nessas articulações que a figura do anormal vai ganhando consistência. A relação entre o anormal e a cidadania faz-se por um jogo estratégico que, assim como encontra nas bases curriculares uma justificativa, também terá suporte em outros campos de visibilidade. No dispositivo de segurança, as justificativas apoiam-se em linhas heterogêneas que se reforçam, e isso será importante para o dispositivo de segurança agir nos detalhes. Então, quem não vai para a escola, como visto acima, pode tornar-se um criminoso? Pelas informações do Jornal Extra on-line, sim.
Seriam esses os anormais, os que não acessam a escola ou não conseguem permanecer na escola? E o que pode acontecer com quem não vai para a escola ou mesmo não quer ir (ou decide não ir) para a escola? Pode acontecer, talvez, o que a imagem acima apresenta? Pela mídia, torna-se possível relacionar um crime à falta de escola e família. Essa enunciação encontra-se com o que diz o artigo 205 da Constituição (Brasil, 1988): "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". A articulação entre as linhas acaba por compor a densidade de um campo de visibilidade. Nesse caso, ao constituir-se a cidadania como norma e a Educação como uma estratégia de regulação da normalidade e anormalidade, um plano de composição será articulado. Aqui, o dispositivo opera também com aquilo que ameaça a própria norma, não no sentido de anular a ameaça, mas de tomá-la como justificativa: a cidadania é acessada mediante o dever do Estado, mas também da família e da sociedade, e a escola é um mecanismo privilegiado para tornar-se cidadão. O que se quer apontar é que a cidadania dará visibilidade à própria anormalidade, e é nos movimentos da curva da cidadania que se encontra a anormalidade. A anormalidade entra no jogo com a cidadania.
Essas curvas do normal aparecem no âmbito micropolítico; podem aproximar-se tanto da justiça, quando no caso de situações de infração, quanto das irregularidades no interior da própria escola. O que dizer de educandos que não conseguem realizar atividades ou não têm interesse em alguns conteúdos propostos para a escola, como: "escrever textos com domínio da separação em palavras de ortografia regular e de irregulares mais frequentes na escrita e utilização de recursos do sistema de pontuação para dividir as frases" (Brasil, 2001b, p. 124). Estes seriam também os anormais, os desviantes das normas escolares, os que desviam da curva do normal criado para a Educação? Os que não atendem ou correspondem aos critérios de avaliação estabelecidos, às práticas educativas organizadas com seus valores, normas e atitudes (Brasil, 2001a), podem surgir com ações desviantes, ações difíceis para a escola, com diferentes nomeações e relações: ações de desinteresse, ações de falta de atenção, preguiça, falta de responsabilidade, assim como dislexia, disgrafia, déficit de atenção, hiperatividade, hipoatividade, que, mesmo amparadas em normas neurobiológicas, não deixam de surgir como desviantes de uma norma, de uma forma de condução de conduta.
Esses anormais não estão jogados fora do campo da Educação. É nesse campo que aparecem, que se dão a conhecer, mesmo que seja para marcar um lugar fora (fora da escola, fora dos gradientes de desenvolvimento etc.). Eles se dão a conhecer pelo dever do Estado, da família e da sociedade nos mecanismos dos próprios projetos educacionais, do projeto para a cidadania. A cidadania coloca o anormal dentro da Educação; é dentro que se produz, é a mesma máquina, na medida em que o próprio mecanismo de regulação vai criando seus excedentes. Ao mesmo tempo que se traçam linhas de normalidade, vão se constituindo linhas de anormalidade, que servem, inclusive, de parâmetros para a própria normalidade.
Com isso, aprovação, reprovação e evasão escolar são problemas escolares, mas também problemas de cidadania, elementos que impedem o acesso à cidadania. Impedem a participação democrática social, uma vez que o exercício da cidadania consiste em ir para a escola e apropriar-se dos conteúdos da escola.
Esses problemas fazem parte de uma explicação binária da realidade educacional e da realidade social, apresentando dualidades como forma de entender a educação (acesso/permanência/evasão; aprovação/repetência). Ideias de aprovação, evasão e repetências tornam-se códigos e territorializações escolares, uma vez que são constituídas de juízos das ações educacionais, por meio de estratégias de normalização. A normalização, então, não estabelece apenas ações que permitam as regularidades num dispositivo de segurança, mas também ações que controlem as irregularidades. Desse modo, aquilo que desvia da norma também será focalizado, porém com outros mecanismos - insuficiências, deficiências, atrasos -, o que permitirá, a partir da relação entre cidadania e educação, num dispositivo de segurança, a composição com outros campos, tais como o da medicina, da justiça, da assistência social, da família.
Entretanto, esses desvios também podem ser linhas de fuga em movimentos de desterritorialização, se pensarmos que "evasão" e "repetência" se tornam ações que não se deixam capturar ou não conseguem ser organizadas pela norma, não conseguem ser encaixadas nos códigos ou prescrições normativas escolares. Elas não se encaixam nos padrões ou ações de normalização determinantes das macropolíticas, mesmo sendo efeitos delas.
Aqueles que, no sentido de territorialização educacional, podem ser tidos como os anormais da escola, num olhar de desterritorialização da máquina abstrata, podem ser os nômades da educação, aqueles que se constituem por diferentes conexões, em encontros com outras modalidades de existência. Segundo Deleuze,
O que é esmagado e denunciado como nocivo é tudo o que pertence a um pensamento sem imagem, o nomadismo, a máquina de guerra, os devires, as núpcias contra natureza, as capturas e os roubos, os entre-dois-reinos, as línguas menores ou as gagueiras na língua etc (Deleuze,1998, p. 12).
As linhas segmentárias conduzem os sujeitos a caminhos lineares, ou seja, à maneira de se relacionar das (re)territorializações (relações binárias, codificações, normas); ao conduzir-se por outros caminhos não lineares, esses podem tornar-se os anormais da escola. Da sociedade. Na verdade, é esse movimento de saída dos códigos e das normas que também dirige as reterritorializações como modo de captura daquilo que escapa.
Como movimento de desterritorialização, a evasão e a repetência podem funcionar não como anormalidade educacional, mas como uma linha de fuga da máquina abstrata educacional, que tem a emissão do "quanta de desterritorialização", desejos de novos agenciamentos, numa máquina de guerra que não tem a guerra como objeto, mas a desterritorialização, sua potência de mudar.
Considerações
O que se percebe é que, mesmo com acesso à escola e ainda que haja uma aprovação em todos os níveis escolares, isso não se torna de fato acesso e igualdade em termos de direitos sociais, nem o fim das desigualdades sociais: "os 0,9% mais ricos do País detêm entre 59,90% e 68,49% da riqueza, [...] E 91,88% são considerados os mais pobres" (Receita Federal, 2014, p. 8). Contudo, considera-se que, se a escola não pode alcançar o fim das desigualdades e das guerras, nem a igualdade nos direitos sociais, como é proposto em seu funcionamento, no funcionamento da máquina abstrata, como é possível, então, seu funcionamento? Isso acontece porque seu funcionamento, sua organização, a organização do conhecimento, da aprendizagem, daquele que busca conhecer, se torna estratégia da condição de cidadania - ações de governamentalidade de uma sociedade democrática, ações de governo de condutas.
Então, as linhas da macropolítica, com seus encontros - dentre eles, o encontro cidadania e educação -, trazem uma maneira de pensar e agir para a escola, para a sociedade, para a cidadania, estabelecendo não só um direito, mas uma prática normalizadora da escola para a existência do cidadão.
Referências
Bert, Jean-François. (2013). Pensar com Michel Foucault. São Paulo: Parábola, 2013. [ Links ]
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Recebido: 21/07/2016
Última revisão: 25/04/2017
Aceite final: 03/10/2017