Introdução
O contexto democrático possibilitou a ocupação dos espaços públicos pela população e ampliou as possibilidades de maiores reivindicações da sociedade civil na elaboração, implantação e avaliação das políticas públicas, num movimento de ruptura com a lógica instaurada no período da ditadura militar. As políticas públicas se constituem como a materialização de ações do Estado, sendo implementadas após o processo de sensibilização de algum problema advindo da sociedade (Pinto et al., 2014). Nas duas últimas décadas, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) passaram a configurar entre as principais políticas públicas brasileiras.
O SUS foi gestado a partir do final da década de 1970 e ao longo da década de 1980, tendo sido impulsionado pelo movimento sanitarista, que lutava pelo reconhecimento do direito à saúde como determinante à conquista da cidadania (Vieira-da-Silva et al., 2014). Sua criação foi garantida pela Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, pelas Leis 8.080 e 8.142, ambas de 1990, responsáveis por dispor sobre seus princípios e diretrizes de funcionamento. Entre os inúmeros desafios do SUS, está a ampliação qualificada do acesso e transformação da atenção em saúde, transitando de um modelo fragmentado, hospitalocêntrico, médico-centrado e curativo, para um modelo em redes de atenção integradas e contínuas, com ênfase na atenção primária, viés preventivo e trabalho multiprofissional e interdisciplinar (Mendes, 2010).
A Assistência Social é uma política que objetiva, em conjunto com outras políticas de seguridade social, garantir a proteção social básica, voltando-se para a família e o fortalecimento de seus vínculos com a comunidade, para o desenvolvimento de suas potencialidades e diminuição de suas vulnerabilidades, almejando uma efetiva transformação social (Lei n. 8.742, 1993). Essa política foi regulamentada no Brasil pela Lei Orgânica da Assistência Social e possui como marco importante a implantação do SUAS, em 2005. Apesar de recente em comparação com outras políticas, como a de saúde, o SUAS passou por expressiva expansão. O senso SUAS, realizado em 2019 (Secretaria Nacional de Assistência Social, 2019a; 2019b), indicou a presença de 8.357 Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e 2.723 Centros de Referência Especializados em Assistência Social (CREAS) implantados no país, entre outros equipamentos que compõem a rede socioassistencial, os quais contam com a previsão da presença de psicólogas2 nas equipes básicas.
Conforme afirma Lobato (2017), apesar dos avanços conquistados pelo SUS e SUAS, as heranças do período ditatorial - como a centralização, burocratização, baixo nível de transparência e participação da população - ainda se fazem presentes no contexto das políticas públicas, constituindo desafios de superação. O contexto de implantação dessas políticas também é marcado por forças que tensionam a Psicologia e outras profissões a alargarem seus campos de atuação. Desde a década de 1980, observa-se uma preocupação em estender a Psicologia para novas áreas, além daquelas tidas como habituais da profissão.
Sob a influência de críticas sobre o papel da Psicologia em nossa sociedade, a quem atende e a quais interesses, as políticas públicas vêm se constituindo como um importante campo de atuação e de transformação social. Segundo dados do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2012), em pesquisa realizada em 13 estados do Brasil, em 2012, eram aproximadamente 29.212 psicólogas atuando no SUS e 20.463 psicólogas na Assistência Social, constituindo estas duas políticas como as de maior inserção de psicólogas no país.
Tanto o SUS quanto o SUAS apresentam vasta capilarização pelo território nacional, fazendo-se presentes em todos os municípios brasileiros. Tal movimento de expansão dos sistemas públicos de proteção social são acompanhados por movimentos de expansão e descentralização da Psicologia. Macedo e Dimenstein (2011) chamam a atenção para levantamentos pós-anos 2000 que evidenciam maior prevalência de psicólogas atuando fora das capitais brasileiras. Os autores atribuem esse processo a três movimentos:
a) a estruturação de serviços ligados ao campo do bem-estar social, b) o processo de reestruturação, expansão e interiorização da educação superior no nosso país e c) o processo de transição e reestruturação urbana por que passa o Brasil na atualidade (Macedo & Dimenstein, 2011, p. 298).
Essa breve contextualização permite afirmar que, se nas décadas de 1980 e 1990 a inserção em serviços de saúde e promoção social conformavam práticas emergentes na Psicologia, após os anos 2000, observa-se expansão e consolidação da inserção da Psicologia nas políticas públicas. Diferentemente de estudos acerca da inserção da Psicologia nas políticas públicas em âmbito local (Cintra & Bernardo, 2017; Scott et al., 2019) ou nacional (Spink, 2010; Macedo et al., 2011), o presente estudo coloca em evidência o âmbito regional. As Regionais de Saúde constituem-se como instâncias intermediárias entre a Secretaria Estadual de Saúde e os municípios, assim como os Escritórios Regionais de Assistência Social são instâncias intermediárias entre a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e os municípios, com a função de orientação quanto à descentralização, à implantação e ao monitoramento de políticas públicas.
No Paraná, existe correspondência entre os municípios que conformam as Regionais de Saúde e os Escritórios Regionais de Assistência Social. A regional analisada neste estudo congrega nove municípios, sendo que o maior deles tem entre 50.000 e 60.000 habitantes, o segundo maior tem entre 20.000 e 30.000, e os outros sete municípios tem entre 5.000 e 15.000 habitantes (IBGE, 2010). Desta forma, esta regional é caracterizada pelos municípios de pequeno porte, destacando-se também o fato de quatro deles possuírem população rural superior à população urbana, aspecto considerado um importante marcador para a gestão das políticas públicas (Secretaria Nacional de Assistência Social, 2015).
A realidade desta regional dialoga com o cenário nacional, considerando-se que 4.915 (88%) dos 5.570 municípios brasileiros têm menos de 50.000 habitantes, congregando 32% da população e 78% da área territorial do país (Secretaria Nacional de Assistência Social, 2015). Segundo estimativas populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019a; 2019b) para o ano de 2019, 306 das 399 cidades paranaenses possuem menos de 20.000 habitantes. Apesar do presente estudo efetuar um recorte específico de municípios, compreendemos que ele dialoga com outros cenários no estado e no país, podendo ser contrastado com estudos feitos em outras regiões. Outra peculiaridade deste estudo é a possibilidade de cruzamento de informações acerca das duas principais políticas públicas de inserção da Psicologia, aspecto este pouco encontrado na literatura.
Diante desse contexto, este estudo teve como objetivo mapear a presença de psicólogas nas políticas de saúde e assistência social em municípios da área de abrangência de uma Regional de Saúde e Escritório Regional de Desenvolvimento Social no Paraná. Os objetivos específicos foram: a) identificar os serviços nos quais as psicólogas estão inseridas; b) identificar o número de psicólogas atuantes nas políticas de saúde e assistência social e os vínculos de trabalho; c) verificar se os dados coletados por meio dos Cadastros Nacionais são convergentes com os dados fornecidos pelas gestões municipais e/ou serviços de Saúde e Assistência Social.
Método
Este estudo corresponde à primeira etapa de uma pesquisa mais ampla denominada O Psicólogo no contexto das políticas públicas de Saúde e Assistência Social em cidades de pequeno porte: formação e atuação profissional, vinculada ao edital Universal CNPQ 2016. O projeto de pesquisa ao qual este artigo está vinculado foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), com número do parecer 2.515.252.
Foi realizada uma pesquisa descritiva, com viés quantitativo, que tem como principal característica a descrição de determinada população ou realidade, destacando suas características e levantando hipóteses que possibilitem a sua compreensão (Gil, 2008). O levantamento de dados foi realizado de novembro de 2017 até abril de 2018 e consistiu em dois movimentos: a) consulta ao Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e Cadastro Nacional do Sistema Único da Assistência Social (CadSUAS); b) consulta às gestões municipais e/ou serviços de saúde e assistência social.
No primeiro movimento, acessamos o CNES, instituído pela Portaria n. 511, de 29 de dezembro de 2000. O CNES é um cadastro que possui a lista de estabelecimentos públicos, conveniados e privados que realizam algum serviço de saúde em território nacional, utilizado pelas gestões municipais para tomada de decisões e controle da saúde. Foram pesquisados no cadastro apenas estabelecimentos que obedeciam ao critério “Atende SUS” dos nove municípios que fazem parte da Regional de Saúde analisada. No descritor “Gestão”, optamos por fazer a busca em todas as opções: “dupla”, “estadual” e “municipal”.
Consultamos também o CadSUAS, cadastro nacional de informações relativas às entidades que prestam serviços socioassistenciais em território nacional, instituído pela Portaria n. 430, de 3 de dezembro de 2008. Fizemos uma busca pelos dados dos 9 municípios circunscritos à Regional. A consulta foi feita nos descritores “Rede Socioassistencial” e “Órgãos Governamentais”, buscando identificar os órgãos gestores e as entidades socioassistenciais nos nove municípios. Os dados referentes ao SUS e ao SUAS foram organizados no programa Excel, agrupando-os em grupos descritores no sentido vertical e as cidades correspondentes em linhas na horizontal.
No segundo movimento de pesquisa, entramos em contato, por via telefônica, com as Secretarias de Saúde e Assistência Social dos nove municípios, solicitando uma lista das psicólogas atuantes (nome, local de atuação, sexo, vinculação, carga horária) na respectiva secretaria. Também solicitamos esses dados ao Consórcio Intermunicipal de Saúde (CIS/AMCESPAR) - associação entre os nove municípios da Regional de Saúde, responsável pelos serviços de saúde ambulatoriais especializados - e aos hospitais conveniados ao SUS nos municípios.
Desse modo, foi possível obter um quadro com os dados fornecidos pelos cadastros e outro segundo as informações das gestões municipais. Após a realização do cruzamento dos dados, foi formado um único quadro, utilizado para a caracterização da inserção das psicólogas nas políticas de saúde e assistência social. Os resultados são expostos e, na sequência, discutidos em três linhas de análise, as quais respondem aos objetivos propostos: a) (Des)encontros: os dados cadastrais e a checagem junto aos gestores e serviços; b) Quantas são e onde estão lotadas: psicólogas no SUS e no SUAS; c) vínculos de trabalho.
Resultados
Os dados obtidos pelas plataformas cadastrais CNES e CadSUAS e os dados obtidos por meio da consulta às gestões municipais e/ou serviços apresentaram discordância. De acordo com os dados fornecidos pelas gestões e/ou serviços, o número total de psicólogas na Regional que trabalham para o SUS é de 20 profissionais, e o das que trabalham para o SUAS é de 28 profissionais. Em comparativo, conforme os dados do CNES e CadSUAS, existiam 22 profissionais registrados pelo SUS e 47 profissionais registrados pelo SUAS. Alguns profissionais tinham seu nome registrado em mais de um serviço nos cadastros.
No SUS, foram identificados sete profissionais citados pelas gestões que não tinham seu nome registrado no CNES. Já nos dados do SUAS o número foi menor, com um total de três profissionais citados pelas gestões que não estavam registrados no CadSUAS. Outra diferença visualizada foi o número de profissionais que possuem seu nome registrado no sistema vinculado a um serviço, mas que não trabalham no serviço ao qual estão vinculados. No CNES, foram identificados oito profissionais registrados e que não foram citados pelas gestões do SUS, e, no CadSUAS, foram achados 21 profissionais registrados que não foram citados pelas gestões do SUAS.
Segundo dados da gestão, em 2018, existiam 17 psicólogas (85%) e 3 psicólogos (15%) atuando pelo SUS nos municípios de abrangência da Regional de Saúde, e 26 psicólogas (93%) e 2 psicólogos (7%) atuando pelo SUAS nos municípios de abrangência do Escritório Regional. Em relação à carga horária profissional, observa-se predomínio dos contratos na faixa entre 31h e 40h semanais, sendo 14 psicólogas do SUAS e 8 psicólogas do SUS; entre 21h e 30h semanais, foram encontradas 10 psicólogas no SUAS e sete psicólogas no SUS; entre 11h e 20h, foram encontradas uma psicóloga no SUAS e três no SUS; e, com até 10h semanais, três no SUAS e duas no SUS. O mínimo de horas semanais desempenhadas por uma psicóloga é de quatro horas na Política de Saúde e de seis horas na Política de Assistência Social. O máximo encontrado de horas semanais trabalhadas foi de 40 horas, número verificado em ambas as políticas.
Em relação à distribuição de profissionais nos níveis de atenção, existiam, na saúde, oito psicólogas atuando na Atenção Primária (40%), nove atuando na Atenção Secundária (45%) e três na Atenção Terciária (15%). Na atenção primária, foram identificadas profissionais atuantes em Unidades Básicas de Saúde (UBS), Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e Secretarias Municipais de Saúde. Destaca-se que existem três NASF implantados em três diferentes municípios da Regional, respectivamente nos anos de 2013, 2015 e 2017. Os serviços que se enquadraram como de Atenção Secundária, com a presença de psicólogas, foram um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), ambulatórios vinculados ao Consórcio Intermunicipal de Saúde (CIS) com abrangência regional ou municipal e dois ambulatórios municipais de saúde mental. Também foram incluídas como atenção secundária três profissionais vinculadas ao CIS, mas que atuam em municípios específicos com atenção clínico-ambulatorial. Duas dessas profissionais atendem em espaços da Secretaria Municipal de Saúde e uma delas atende no consultório particular. Já na Atenção Terciária identificamos a presença de psicólogas em dois hospitais.
Na saúde, existe maior concentração de psicólogas na cidade de maior porte da Regional (nove), enquanto os outros municípios contam com a atuação de uma a duas psicólogas. Entretanto, das(os) nove profissionais atuantes no município-sede da Regional, seis atuam em serviços de caráter regionalizado, sendo referências para os nove municípios. Na política de assistência social, existe um predomínio de psicólogas atuantes em CRAS (11 profissionais), dispositivo que compõe o nível de proteção social básica do SUAS. No CREAS, foram encontrados seis profissionais; em serviços de Alta Complexidade, foram identificados quatro profissionais; na gestão da Assistência Social, uma profissional; e, atuando em mais de um nível de complexidade, seis profissionais. Sobre os serviços de Alta Complexidade, observamos duas psicólogas no Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (Casa Lar), uma psicóloga no Acolhimento Institucional para mulheres em Situação de Violência e uma psicóloga em Residência Inclusiva.
Foi identificada uma psicóloga que trabalha como gestora da política de Assistência Social, fato não encontrado na política de Saúde. Não foram encontrados registros de psicólogas atuantes na gestão da Regional de Saúde ou do Escritório Regional de Assistência Social. No SUAS, o município-sede concentrava 11 psicólogas, enquanto os outros municípios contam com a presença de duas a três psicólogas. Na assistência social, diferentemente da política de saúde, a maioria dos serviços de média e alta complexidade não tem caráter regionalizado - com exceção da Residência Inclusiva.
Em relação às modalidades de vínculos de trabalho, as categorias criadas para análise foram de “Estatutário”, “Celetista”, “Terceirizado” e “Pessoa Jurídica”. Com o vínculo estatutário, foram identificados 22 profissionais no SUAS e nove no SUS; com vínculo celetista, um profissional no SUAS e três no SUS; terceirizado, apenas um profissional no SUAS; e com vínculo de pessoa jurídica, quatro profissionais no SUAS e oito no SUS.
Foram identificadas diferenças entre as políticas públicas em relação às formas de vinculação. Na saúde, predominam os vínculos não estatutários (celetista e pessoa jurídica), enquanto na assistência social predominam os vínculos estatutários. No SUS, a maioria dos vínculos de pessoa jurídica correspondem aos profissionais que atuam em serviços geridos por um Consórcio Intermunicipal de Saúde, sendo a contratação realizada por meio de credenciamento. Informações complementares coletadas junto aos gestores também indicaram a presença de profissionais contratados de forma temporária por pregão eletrônico, os quais foram incluídos na categoria “pessoa jurídica”.
Discussão
(Des)encontros: os dados cadastrais e a checagem junto aos gestores e serviços
O primeiro analisador emerge a partir da divergência encontrada entre os dados produzidos por meio da consulta aos cadastros nacionais e as informações fornecidas pelas gestões municipais e serviços de saúde e assistência social. Na saúde, de acordo com a Portaria n. 118, de 18 de fevereiro de 2014, os estabelecimentos de saúde que não atualizarem seus bancos de dados em no mínimo seis meses podem ser desativados do CNES. Macedo et al. afirmam também sobre o CadSUAS, embasados pela legislação nacional, que “O gestor municipal deve atualizar regularmente os dados, e se não o fizer, ficará em pendência junto ao Ministério do Desenvolvimento Social em relação aos seus planos de gestão e, consequentemente, será bloqueado o repasse do financiamento” (2011, p. 482). Tais afirmativas e legislações nos conduzem a pensar que deveria existir consonância entre os dados encontrados nos cadastros nacionais e os dados encontrados na consulta às gestões municipais e aos serviços, o que não foi observado em sua integralidade.
Identificamos que os estabelecimentos procederam conforme as exigências legais, possuindo a última atualização nacional dos cadastros dentro do prazo, entretanto, sem terem registro de novos profissionais ou, o mais comum, sem excluírem do sistema profissionais que não mais estavam atuando. Nesse sentido, conclui-se que ter o cadastro atualizado, do ponto de vista do registro de envio de informações, não significa que as informações contidas neles sejam fidedignas ao quadro de profissionais contratados. Esta constatação pode indicar que pesquisas e consultas feitas exclusivamente nesses bancos, tal qual a pesquisa realizada por Macedo et al. (2011), servem como uma forma de estimativa e aproximação, mas podem apresentar graus de defasagem em relação à realidade dos sistemas.
Em pesquisa realizada por Spink (2010), em 2006, foram observadas dificuldades ao usarem os dados do CNES na busca por psicólogas das cinco regiões do Brasil para serem entrevistadas, identificando-se baixa consistência dos dados do CNES. Apesar de passados cerca de 12 anos do estudo realizado por Spink (2010) em relação à presente pesquisa, observa-se que os sistemas ainda se encontram em defasagem em relação à realidade dos serviços.
Observamos também a existência de arranjos de trabalho que não são explícitos no CNES. Como exemplo, citamos as três profissionais que aparecem vinculadas ao CIS, com endereço no município-sede da Regional. Entretanto, as três atuam em municípios diferentes, só sendo possível essa compreensão por meio da consulta direta à gestão dos serviços. O campo das políticas públicas é dinâmico, tendo em vista o processo de estruturação tanto do SUS quanto do SUAS, nos municípios de pequeno e médio porte estudados, o que resulta na criação contínua de novos serviços, deslocamentos de profissionais de um serviço a outro ou rotatividade de profissionais, especialmente daqueles que têm vínculos instáveis. Tais aspectos podem auxiliar na compreensão acerca de algumas defasagens dos sistemas de cadastro, indicando seus limites para a realização de pesquisas e a importância de levantamentos complementares de informações.
Quantos são e onde estão lotadas: psicólogas no SUS e no SUAS
Apesar do levantamento do CFP (2012) indicar maior presença de psicólogas no SUS do que no SUAS, era observada a tendência de que o número de psicólogas no SUAS ultrapassasse o do SUS, fato constatado na Regional analisada. A criação do SUAS é recente em comparação com o SUS, mas a Psicologia ocupa um importante lugar de protagonismo na política de assistência social, sendo que é prevista como parte da equipe de todos os equipamentos do SUAS. Em relação ao gênero, a diferença na proporção de psicólogos e psicólogas na Regional pesquisada é semelhante ou até superior àquela encontrada nos cadastros do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2018), afirmando a Psicologia como uma profissão majoritariamente feita por mulheres. Segundo dados do CFP (2018), 87% dos profissionais do Paraná são mulheres.
Desde a implantação do SUS, em 1990, tem-se observado um complexo processo de reorganização da atenção em saúde, com forte ênfase na atenção básica (AB) e preventiva, com destaque para a criação do Programa Saúde da Família (PSF), em 1994, e do NASF, em 2008, tendo este último incentivado a inserção de equipes multiprofissionais no apoio ao trabalho das equipes de atenção básica. A atuação de psicólogas por meio da equipe dos NASF é prevista, contudo, não é obrigatória, estabelecendo-se como um dos possíveis profissionais de nível superior recomendado. Apesar disso, os três NASF implantados na Regional analisada contam com a presença de psicólogas.
As gestões municipais têm autonomia para atuar na atenção básica com recursos próprios, podendo contratar mais profissionais em outros formatos em relação ao previsto na política nacional. Deste modo, além das três psicólogas vinculadas a equipes de NASF, outras três atuam na AB por meio de outros arranjos. Esse achado contraria a afirmação de CFP (2019a), de que “Se hoje, ao nos referirmos à atuação de psicólogas no âmbito da AB do SUS, quase que automaticamente estamos nos referindo à inserção desses profissionais no NASF” (p. 53), indicando que, na região analisada, a vinculação com a atenção básica não implica ligação com o modelo NASF. Importante também considerarmos que mudanças políticas recentes tendem a tornar essa ligação entre a Psicologia e o NASF ainda mais frágil. A Nota Técnica n. 3, do Departamento de Saúde da Família, de 2020, informa que, a partir desse ano, o Ministério da Saúde não faria o credenciamento de novos NASF, excluindo também os processos em trâmite para implantação de novas equipes. Giovanella et al. (2020) afirmam que esta medida enfraquece o componente multiprofissional da atenção básica e desestimula a interprofissionalidade, o matriciamento e a educação permanente. Argumentam que, desde 2017, tem havido uma direcionalidade das políticas públicas que desconfigura o modelo assistencial da saúde da família e ameaça a efetivação dos princípios de universalidade, integralidade e equidade do SUS (Giovanella et al., 2020). Compreendemos que essa discussão expressa a disputa dos modelos de atenção na composição das políticas públicas e a necessidade de que tais disputas possam ser lidas e analisadas criticamente pelas psicólogas, possibilitando uma tomada de posição diante de tais embates. A inserção da Psicologia na atenção básica exige a consciência da inserção em um processo de transformação social, visto que a ampliação da atenção básica em nosso país tem por objetivo diminuir a desigualdade na oferta e no acesso à saúde (CFP, 2019a).
Em relação aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em suas diferentes modalidades (I, II, III, AD, Infantil), encontramos duas psicólogas no único CAPS da Regional estudada. O CAPS requer porte populacional mínimo para sua implantação, critério que restringiria sua presença em sete dos nove municípios estudados, levando a região a adotar a estratégia de criação de um CAPS regionalizado. No nível secundário de atenção, também foram observadas linhas guias da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná (SESA) que recomendam a presença de psicólogas na equipe mínima da Rede Mãe Paranaense, Rede de Atenção à Saúde Mental, Rede de Hipertensão, Rede de Diabetes e Rede de Saúde do Idoso.
Nos municípios analisados, percebemos que a Atenção Básica está presente em todos de forma descentralizada, enquanto a Atenção Especializada tende a convergir para referências localizadas em centros regionais, macrorregionais ou estaduais. Este aspecto explica a maior concentração de psicólogas no nível secundário e no município-sede da Regional de saúde. Além disso, compreendemos que a maior presença da Psicologia encontrada no nível secundário na Regional remete a aspectos históricos de constituição da profissão, visto que a cultura profissional da Psicologia a identifica com o lugar do especialista e da clínica individual. Segundo Spink (2007), a Psicologia se inseriu no campo da saúde em duas dimensões principais: na clínica particular e na área hospitalar/ambulatórios de saúde mental, espaços hegemonicamente marcados por saberes médicos e por uma tradição clínica que insistia em explicar fenômenos de ordem social por meio de teorias baseadas em uma lógica causal intrapsíquica, dificultando o processo de transformação do modelo de atuação em saúde (Spink, 2007).
Diferentemente do SUS, onde a atenção básica é atribuição dos municípios e a especializada tem caráter regionalizado, no SUAS, tanto o nível básico quanto o especializado são atribuições dos municípios. No SUAS, a prevalência de psicólogas ocorre nos CRAS, dispositivos da proteção básica do SUAS. Essa maior prevalência em CRAS foi encontrada em estudo de âmbito nacional (Macedo et al., 2011), justificando-se pelo fato de o CRAS ser considerado o componente básico do SUAS. Nos serviços do SUAS, devem fazer parte da equipe de referência, em todos os níveis de proteção social, pelo menos, uma psicóloga, dependendo das condições e da vulnerabilidade do território do serviço. Essa obrigatoriedade da presença de psicólogas na equipe de referência dos serviços de Assistência Social é um dos aspectos que justificam o número maior de profissionais da Psicologia nos serviços do SUAS em comparação ao SUS.
Dados do censo SUAS de 2019 indicam que 65,7% dos CRAS e 67,8% dos CREAS brasileiros estão em cidades de pequeno porte I e II, evidenciando que são as pequenas cidades que tendem a ter maior absorção de profissionais (Secretaria Nacional de Assistência Social, 2019a). Soares e Melo (2010) destacam que a compreensão sobre as cidades de pequeno porte deve levar em consideração alguns aspectos, como a desigualdade no acesso às tecnologias, a tendência a maior ligação com o entorno rural, a tendência à perda ou estagnação populacional aliada ao processo de envelhecimento, a dependência de um sistema urbano regional, entre outros. Do ponto de vista das relações sociais, os autores destacam a pessoalização das relações, afirmando que “o conhecimento íntimo e a proximidade entre as pessoas, nas pequenas cidades, se estendem às diversas dimensões da vida local, como nas referências para a localização de endereços nas cidades, nas atividades comerciais e nas relações políticas” (Soares & Melo, 2010, p. 245). Essa pessoalização também pode se estender à relação entre o poder público (no qual as psicólogas são representantes, enquanto agentes das políticas públicas) e a população, visto que a “dependência, assistencialismo, demandas e atenção pessoais (questões são tratadas no âmbito da pessoalidade) são uma das características fundamentais da política na pequena cidade brasileira” (Soares & Melo, 2010, pp. 242). Apesar destas pistas para a compreensão de cidades de pequeno porte, tanto Soares e Melo (2010) quanto Secretaria Nacional de Assistência Social (2015) ponderam a existência de uma diversidade em torno dos modos de constituição de uma cidade de pequeno porte, ressaltando análises de vários aspectos, a fim de não as reduzir ou homogeneizá-las.
Em pesquisa desenvolvida por Reis e Cabreira (2013), foi identificado que a atuação de psicólogas atuantes em CRAS ocorre tanto com populações rurais quanto urbanas; entretanto, o estudo concluiu que as ações desenvolvidas são as mesmas, sem uma atenção às peculiaridades do meio rural, dificultando o desenvolvimento e a adequação das ações a estas populações. Assim como as políticas públicas se capilarizaram no território nacional, a formação em Psicologia também obedeceu à lógica da descentralização e municipalização, espalhando-se para municípios de médio e pequeno porte. O contato com os problemas advindos de territórios rurais fez com que a formação em Psicologia se apropriasse de novas demandas, sendo necessária a afirmação de uma atuação profissional contextualizada. Isso envolve o reconhecimento dos modos de funcionamento das redes de saúde e assistência social como prerrogativa, assim como sobre os mandatos e as funções atribuídas a cada ponto da rede. O lugar que a Psicologia conquista nessas políticas está vinculado aos esforços empreendidos pelo discurso do compromisso social da profissão, afirmando a necessidade de intervenções críticas que promovam a transformação nas condições de vida da população.
Vínculos de trabalho
Observa-se que, no SUAS, prevaleceram vínculos com maior proteção social, como o estatutário. Este dado contrasta com o apresentado por Macedo et al. (2011), com base em levantamento nacional, que identificou que apenas 27% das psicólogas de CRAS e 37,6% das atuantes em CREAS eram estatutárias. Estudo realizado em 2012 (Ferreira & Zambenedetti, 2015), em um dos municípios de abrangência da Regional analisada, indicou um movimento de transição de vínculos de trabalho frágeis no SUAS, realizados por meio de pregão eletrônico, para vínculos com maior grau de proteção social. Podem-se afirmar avanços no cenário de estudo em relação às formas de vínculos de trabalhos no SUAS nos últimos anos. A NOBRH - SUAS estabelece como diretriz o concurso público como forma de acesso à carreira (Ferreira, 2011). Esta via de acesso garante maior estabilidade e proteção ao trabalhador e ao trabalho desenvolvido junto à população, sendo também uma importante estratégia para combater o clientelismo e assistencialismo que historicamente caracterizam a assistência social no país (Fiuza & Costa, 2015).
No SUS, contudo, a soma dos vínculos não estatutários prevaleceu sobre os estatutários. Esse tipo de contratação não possui proteção social e costuma ser cada vez mais comum no mercado de trabalho brasileiro (Azevedo & Tonelli, 2014). Profissionais com o tipo de vínculo descrito como Pessoa Jurídica não possuem direitos garantidos pela CLT, como férias, décimo terceiro, seguro-desemprego, multa por demissão etc. o que fragiliza a segurança no emprego, causando uma precarização das relações de trabalho. Segundo Azevedo e Tonelli (2014), em alguns segmentos de trabalhadores no Brasil, houve a expansão de venda de serviços e produtos com o aumento de profissionais autônomos, pessoas jurídicas, terceirizados, entre outros, inclusive no âmbito público. Na Regional analisada, chamou atenção a existência de uma profissional que atende em seu consultório particular e é remunerada pelo SUS por atendimento realizado. Além da fragilidade do vínculo, destaca-se o borramento dos limites entre público e privado, assim como a reafirmação do modelo clínico tradicional.
Gonçalves (2010) indica que a implantação de políticas públicas ocorre em um contexto contraditório, em que forças que tendem à expansão das políticas de bem-estar social -convivem com o atravessamento neoliberal. Como resultado, a expansão de sistemas, como o SUS e o SUAS, pode ocorrer de forma parcial, expressando-se na presença de serviços, mas com condições ou contratos precários, ou equipes incompletas etc. Os vínculos precários podem estar associados ao sentimento de insegurança e desvalorização dos profissionais, rotatividade e descontinuidade do trabalho desenvolvido (Ferreira & Zambenedetti, 2015; Pauli et al., 2019). Outro aspecto que interfere nesse processo é a instabilidade do campo das políticas públicas cofinanciadas pelo nível federal, visto que as descontinuidades de governos são vistas como possibilidades de descontinuidade de políticas e financiamento de serviços e programas - exemplo disso é o que ocorre com o NASF, que não é mais credenciado pelo Ministério da Saúde desde 2020. Desse modo, a descontinuidade da política em nível federal traz insegurança aos gestores, que justificam formas de contratação que respondam também a possibilidades de demissão, no caso de descontinuidade de programas e desfinanciamento.
Apesar dos avanços em relação à expansão dos sistemas e das formas de vínculo, o cenário do final da década de 2010 indica possível intensificação da fragilização das políticas públicas e dos vínculos de trabalho. A aprovação da Emenda Constitucional (EC) n. 95, de dezembro de 2016, também chamada de EC do Teto de Gastos Públicos, implicou na limitação das despesas do governo brasileiro, em seus diferentes níveis (federal, estadual e municipal), durante 20 anos. Embora as políticas públicas sejam criadas para atenuar as relações de mercado contemporâneas e devam assegurar direitos fundamentais aos trabalhadores e cidadãos, devemos compreender que surgem e aplicam-se em um contexto neoliberal e que se adaptam à lógica do capital com vistas a reduzir custos para o Estado por meio da contratação de mão de obra barata, constituindo um paradoxo (Ferreira & Zambenedetti, 2015). Esse paradoxo, entretanto, está longe de ser resolvido, sendo constitutivo do campo de forças que atravessa as políticas públicas em um contexto neoliberal.
Considerações Finais
A criação do SUS e do SUAS propiciou a expansão dos serviços de caráter público e universal, assim como dos postos de trabalho para psicólogas, consolidando as políticas públicas como importantes campos de atuação profissional e reconfigurando a tradição liberal de atuação da Psicologia. Uma das novidades que este estudo apresenta é a representatividade do SUAS, que passa a ser a política com maior potencial de inserção de psicólogos, superando o SUS. O lugar que a Psicologia conquistou nessas políticas está fortemente vinculado aos esforços empreendidos pelo compromisso social da profissão; contudo, há também desafios para a sustentação da Psicologia na relação com o SUS e o SUAS.
O primeiro desafio é o de que essa inserção seja acompanhada por modelos de atuação condizentes com as realidades do SUS e do SUAS, que colocam em xeque o modelo clínico-tradicional e a ênfase intrapsíquica na concepção de sujeito. Tanto o SUS quanto o SUAS demandam reconfigurações das práticas psicológicas, de modo que as teorias sejam tomadas como caixas de ferramentas, porosas em relação aos movimentos e à complexidades do viver e seus diversos marcadores (gênero, raça, cor, orientação e identidade sexual, renda, trabalho) e inserções geográficas (relações centro-periferia, rural-urbano etc.). Alia-se o desafio de compreensão e leitura crítica acerca das políticas públicas, as quais devem ser -compreendidas não apenas como um campo de aplicação das práticas profissionais, mas um campo de tensões e disputas em torno do nível de bem-estar e da justiça social almejado por cada sociedade. Sem essa compreensão, há o risco de que a inserção de psicólogos represente apenas mais um campo de empregabilidade, desvinculado de seu mandato ético-político.
O segundo desafio versa sobre o olhar para as cidades de pequeno e médio porte, seus contextos, formas de sociabilidade e impactos sobre as práticas profissionais. A inserção em municípios de pequeno porte e com realidades ainda marcadas pelos contextos rurais levanta o desafio de uma atuação psicológica contextualizada aos modos de vida e arranjos sociais e subjetivos em tais realidades, conformando uma atuação atenta às marcas dos territórios, numa perspectiva não colonialista.
Por fim, destaca-se o desafio relativo à garantia de vínculos de trabalho protegidos, visando romper com o clientelismo e a precarização. Apesar dos avanços observados no SUAS, onde houve predomínio do vínculo estatutário, no SUS prevaleceram contratos não estatutários, levando-nos a problematizar em que condições ocorre a inserção profissional e quais as condições de possibilidade para uma atuação ética, técnica e politicamente comprometida. Esses desafios, apesar de não serem novos, precisam ser atualizados e reafirmados diante da realidade apresentada e das disputas engendradas no cenário contemporâneo. Diante disso, torna-se necessária a análise constante das condições de possibilidade nas quais se desenvolve a atuação da Psicologia, assim como a permanente interrogação acerca de que forças mobilizamos em nossas intervenções e a serviço de que(m) nos colocamos.