Introdução
A violência autoprovocada pode ser identificada na língua portuguesa por diferentes nomenclaturas, como automutilação, autolesão e comportamentos autolesivos (Guerreiro & Sampaio, 2013). Os termos violência autoprovocada, lesão autoprovocada e autolesão são considerados no contexto das violências autoinfligidas, pela Organização Mundial da Saúde (World Health Organization [WHO], 2019). Portanto, serão utilizados, no presente estudo, por estarem em consonância com a terminologia empregada pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) (Ministério da Saúde, 2016).
De acordo com a WHO (2019), as lesões autoprovocadas consistem em ações deliberadas do indivíduo de causar danos a si com ou sem a intenção de provocar a morte. Assim, neste trabalho, também serão discutidas as particularidades do comportamento suicida, tendo em vista que o SINAN abarca diferentes tipos de autoagressão e que, por isso, podem existir dificuldades na diferenciação dos casos no momento da notificação. Além disso, serão analisados os dados totais referentes à violência autoprovocada no Brasil, com ênfase na discussão dos seus impactos no desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Os dados epidemiológicos obtidos nos últimos cinco anos sugerem que a prevalência global de autolesão oscila entre 7,5% e 46,5% (Cipriano et al., 2017). A expressiva variação observada nas taxas pode estar relacionada a fatores como a falta de consenso quanto à terminologia utilizada e a diferenças amostrais, geográficas e culturais (Cipriano et al., 2017). No Brasil, uma pesquisa abrangendo 517 participantes com idades entre 10 e 14 anos demonstrou que 9,4% deles reportaram lesão autoprovocada no ano anterior ao estudo (Fonseca et al., 2018). Já as autolesões que ocasionaram suicídio foram a terceira principal causa de morte de jovens brasileiros em 2015 (Ministério da Saúde, 2019a).
Em relação à faixa etária, evidências indicam maior prevalência de lesão autoprovocada entre adolescentes de 12 a 14 anos de idade (Ammerman et al., 2018; Cipriano et al., 2017). Quanto ao sexo, alguns trabalhos apontam que os casos são mais recorrentes entre as meninas (Muehlenkamp et al., 2019; Wilkinson et al., 2022), porém não há consenso sobre essa informação na literatura (Klonsky et al., 2015). A pesquisa conduzida com 3.351 adolescentes e jovens adultos não encontrou diferenças significativas na frequência, gravidade e idade de início dos comportamentos autolesivos entre participantes do sexo feminino e masculino (Victor et al., 2018). Todavia, no que tange às autolesões com intenção suicida, uma metanálise constatou que os homens apresentavam risco três vezes maior de consumar o ato (Miranda-Mendizabal et al., 2019).
Dentre os fatores de risco relacionados à violência autoprovocada, destacam-se as relações familiares marcadas pela hostilidade e/ou pelo distanciamento emocional, conflitos com pares, presença de intenso sofrimento psíquico, situações de vulnerabilidade, histórico de maus-tratos e exposição à polivitimização ao longo do desenvolvimento (Liu et al., 2018; Klonsky et al., 2015; Zang et al., 2016). Os comportamentos autolesivos ainda estão associados ao desencadeamento ou agravamento de diversas condições psicológicas e sociais, como abuso de substâncias, suicídio (Muehlenkamp et al., 2019), isolamento e ambiente familiar conflituoso (Gromatsky et al., 2017). Por outro lado, algumas variáveis podem atuar como fatores protetivos e preventivos, a exemplo do apoio familiar, da formação de vínculos sólidos em contextos educacionais, sociais e de saúde e do investimento contínuo em estratégias que assegurem a garantia dos direitos e a promoção de saúde das crianças, dos adolescentes e de suas famílias (Coutinho & Madureira, 2021; Raupp et al., 2021).
Assim, os comportamentos autolesivos são compreendidos como um problema de saúde pública devido à alta ocorrência em amostras transculturais e aos danos de ordem -psicossocial associados (Cipriano et al., 2017; Liu et al., 2018). Diante das demandas interpostas por esse complexo fenômeno e das controvérsias que obstruem a sua fidedigna compreensão, a implementação da Ficha de Notificação Individual de Violência Interpessoal/Autoprovocada configura-se como uma iniciativa para a apuração dos casos de lesão autoprovocada no cenário nacional. A notificação das situações de violência interpessoal e autoprovocada faz parte do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), integrante do SINAN.
O VIVA é composto pelo VIVA SINAN, o qual prevê a coleta contínua em serviços de saúde públicos e privados, e pelo VIVA Inquérito, responsável pela análise dos casos atendidos em unidades sentinela de urgência e emergência. Cabe destacar que a vigilância epidemiológica dos agravos foi fortalecida com a publicação da Portaria n. 104, de 2011, que instituiu a notificação compulsória dos casos de violência doméstica, sexual e de outras violências para todos os serviços de saúde. Já em 2014, foi publicada a Portaria n. 1.271, com a atualização da lista de doenças e agravos de notificação compulsória e a implementação da notificação imediata (em até 24 horas pelo meio de comunicação mais rápido) dos casos de violência autoprovocada.
Apesar das medidas propostas pelo poder público e do reconhecimento dos impactos ocasionados por esta conduta (Oliveira et al., 2020), ainda são necessários avanços na investigação da problemática na realidade brasileira, especialmente no que tange à infância e adolescência, consideradas etapas de maior vulnerabilidade para a autolesão (Fonseca et al., 2018). Contextualmente, o Brasil tem 69.000.000 crianças e adolescentes entre zero e 19 anos de idade em seu território, o que representa 33% da população total (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2021). Diante desse cenário, pesquisas sobre a incidência e o perfil epidemiológico da violência autoprovocada são fundamentais para o monitoramento, a concepção de políticas públicas e o fornecimento de indicadores em saúde (Ministério da Saúde, 2016; Fonseca et al., 2018).
Portanto, o presente estudo tem como objetivo caracterizar os casos de violência autoprovocada notificados no Brasil a partir dos registros do SINAN correspondentes ao período de 2009 a 2021, com ênfase na discussão dos casos envolvendo crianças e adolescentes. Especificamente, foram caracterizados: (a) o perfil sociodemográfico das pessoas que praticaram violência autoprovocada (e.g., idade, sexo, raça, escolaridade); e (b) as características da situação de violência (e.g., local de ocorrência, violência de repetição). O recorte temporal abrange todo o período disponível para acesso na versão atual do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), plataforma digital a partir da qual os dados foram coletados.
Método
Delineamento e amostra
Trata-se de um estudo descritivo epidemiológico, do tipo ecológico de séries temporais. Foram analisadas 627.863 notificações de violência autoprovocada realizadas em todo o território nacional entre 2009 e 2021. Os casos foram notificados durante a prática dos profissionais de saúde em serviços públicos e privados (e.g., hospitais, unidades básicas de saúde e serviços de emergência). Após, foram repassados para órgão de vigilância governamental e incluídos no SINAN.
Procedimentos éticos e de coleta de dados
Esta pesquisa atende ao disposto na Resolução nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde, acerca da dispensabilidade de cadastro e avaliação das propostas que utilizem informações de acesso público pelos Comitês de Ética em Pesquisa e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Art. 1º, parágrafo único).
Em relação à coleta dos dados, os registros referentes às Doenças e Agravos de Notificação foram acessados entre agosto de 2021 e março de 2022, por meio da seção Epidemiológicas e Morbidades presente no DATASUS, plataforma digital vinculada ao Ministério da Saúde. Dentre os campos de busca disponíveis para consulta, foram selecionadas as informações relativas ao perfil sociodemográfico das pessoas que cometeram violência autoprovocada, a saber: faixa etária, sexo, raça e escolaridade. Embora a plataforma forneça indicadores referentes às faixas etárias abaixo de 1 ano e entre 1 ano e 4 anos, foram incluídos apenas os casos a partir dos 5 anos de idade. Também foram excluídas as categorias “Em branco” e “Ignorado” da variável sexo. Adicionalmente, foram consideradas as características da conduta, priorizando-se as variáveis local de ocorrência e violência de repetição.
As variáveis analisadas e a maneira como encontram-se designadas no SINAN foram: sexo (feminino; masculino); faixa etária (5 a 9 anos; 10 a 14 anos; 15 a 19 anos; 20 a 29 anos; 30 a 39 anos; 40 a 49 anos; 50 a 59 anos; 60 anos ou mais); raça/cor (branca; preta; amarela; parda; indígena; ignorado/em branco); escolaridade (analfabeto; 1º ao 4º ano; 5º ao 8º ano; ensino fundamental completo; ensino médio incompleto; ensino médio completo; educação superior incompleta; educação superior completa; não se aplica; ignorado/em branco); local de ocorrência (residência; habitação coletiva; escola; local de prática esportiva; bar ou similar; via pública; comércio/serviços; indústrias/construção; outros; ignorado; em branco); e violência de repetição (sim; não; ignorado; em branco).
Procedimento de análise dos dados
Os dados foram extraídos com a ferramenta Tabnet disponível no DATASUS e exportados para o software Microsoft Excel 2007. Foram realizadas análises estatísticas descritivas por meio das distribuições absoluta (n) e relativa (%). As variáveis sexo e faixa etária foram consideradas na tabulação dos dados de modo a possibilitar a visualização da distribuição dos casos entre pessoas do sexo masculino e feminino de diferentes idades.
Resultados
Foram computadas 627.863 notificações de violência autoprovocada no território nacional ao longo do período analisado. A fim de caracterizar a população investigada, o Brasil possui mais de 214.000.000 de habitantes, sendo composto por 27 unidades federativas (26 estados e o Distrito Federal), distribuídas em cinco regiões: Norte; Nordeste; Centro-Oeste; Sudeste; e Sul (IBGE, 2021).
A Figura 1 indica o crescimento dos registros no intervalo temporal englobado entre os anos de 2009 e 2019 e o subsequente decréscimo em 2020 e 2021. Além disso, reporta o predomínio de situações envolvendo pessoas do sexo feminino em todos os anos avaliados. As Unidades da Federação com maiores índices de notificações foram, respectivamente, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul. A faixa etária compreendida entre os 15 e os 29 anos representou uma parcela considerável do total de registros realizados nos referidos estados, correspondendo a 48,38% dos casos em São Paulo, 46,72% em Minas Gerais, 50,58% no Paraná e 46,06% no Rio Grande do Sul.
Em relação ao perfil sociodemográfico, 429.955 (68,48%) dos casos corresponderam a pessoas do sexo feminino, enquanto 197.908 (31,52%) foram referentes a indivíduos do sexo masculino. Na Tabela 1, são exibidas as características sociodemográficas da amostra, como sexo, faixa etária, raça e escolaridade. Os dados apontam que as notificações de violência autoprovocada encontram-se distribuídas em todas as idades, sendo a faixa etária dos 15 aos 29 anos sobressalentes em comparação às demais.
Masculino | Feminino | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |
Total | 197.908 | 31,52 | 429.955 | 68,48 | 627.863 | 100,00 |
Faixa etária (anos) | ||||||
5 a 9 | 1.287 | 0,65 | 1.349 | 0,31 | 2.636 | 0,42 |
10 a 14 | 8.472 | 4,28 | 41.153 | 9,57 | 49.625 | 7,90 |
15 a 19 | 34.221 | 17,29 | 94.249 | 21,92 | 128.470 | 20,46 |
20 a 29 | 61.434 | 31,04 | 115.958 | 26,97 | 177.392 | 28,25 |
30 a 39 | 41.345 | 20,89 | 83.865 | 19,51 | 125.210 | 19,94 |
40 a 49 | 25.468 | 12,87 | 56.155 | 13,06 | 81.623 | 13,00 |
50 a 59 | 14.273 | 7,21 | 25.536 | 5,94 | 39.809 | 6,34 |
60 ou mais | 11.408 | 5,76 | 11.690 | 2,72 | 23.098 | 3,68 |
Raça | ||||||
Branca | 92.061 | 46,52 | 208.013 | 48,38 | 300.074 | 47,79 |
Preta | 13.496 | 6,82 | 26.551 | 6,18 | 40.047 | 6,38 |
Amarela | 1.385 | 0,70 | 3.028 | 0,70 | 4.413 | 0,70 |
Parda | 68.805 | 34,77 | 145.996 | 33,96 | 214.801 | 34,21 |
Indígena | 1.773 | 0,90 | 2.039 | 0,47 | 3.812 | 0,61 |
Ignorado/Em branco | 20.388 | 10,30 | 44.328 | 10,31 | 64.716 | 10,31 |
Escolaridade | ||||||
Analfabeto | 2.049 | 1,74 | 2.395 | 0,88 | 4.444 | 1,14 |
1ª a 4ª série incompleta EF | 11.154 | 9,46 | 15.717 | 5,81 | 26.871 | 6,92 |
4ª série completa EF | 6.660 | 5,65 | 11.462 | 4,23 | 18.122 | 4,66 |
5ª a 8ª série incompleta EF | 25.441 | 21,58 | 61.009 | 22,54 | 86.450 | 22,25 |
EF completo | 13.326 | 11,31 | 28.717 | 10,61 | 42.043 | 10,82 |
Ensino Médio incompleto | 20.516 | 17,41 | 54.327 | 20,07 | 74.843 | 19,26 |
Ensino Médio completo | 28.229 | 23,95 | 69.409 | 25,64 | 28.229 | 23,95 |
Educação Superior incompleta | 5.325 | 4,52 | 14.262 | 5,27 | 5.325 | 4,52 |
Educação Superior completa | 4.518 | 3,83 | 12.568 | 4,64 | 17.086 | 4,40 |
Não se aplica | 647 | 0,55 | 834 | 0,31 | 647 | 0,55 |
Ignorado/Em branco | 80.043 | 67,91 | 159.255 | 58,83 | 239.298 | 61,59 |
Do total de casos notificados, 305.862 (48,71%) referem-se a adolescentes e jovens adultos. Os indicadores raciais demonstram que a raça/cor branca foi atribuída mais frequentemente (47,79%) às notificações, seguida pela parda (34,21%). No que diz respeito à escolaridade, ensino médio completo (25,13%) e 5° ao 8° ano incompleto do Ensino Fundamental (22,25%) foram os níveis de escolaridade mais prevalentes. No entanto, destaca-se o elevado índice de respostas em branco ou ignoradas (61,59%) nessa variável.
As características da situação de violência podem ser observadas na Tabela 2. Os dados sinalizam que as agressões ocorreram majoritariamente na própria residência (81,94%). No tocante à repetição do ato, constata-se que um contingente expressivo de casos (36,90%) envolveu outros episódios de lesão autoprovocada prévios à notificação. Nos últimos dois anos abarcados pela pesquisa, ou seja, 2020 e 2021, o percentual de violência de repetição entre as meninas foi maior do que a ocorrência de episódio único.
Masculino | Feminino | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | |
Total | 197.908 | 31,52 | 429.955 | 68,48 | 627.863 | 100,00 |
Local de ocorrência | ||||||
Residência | 148.686 | 75,13 | 365.784 | 85,07 | 514.470 | 81,94 |
Habitação coletiva | 2.016 | 1,02 | 2.491 | 0,58 | 4.507 | 0,72 |
Escola | 1.393 | 0,70 | 3.678 | 0,86 | 5.071 | 0,81 |
Local de prática esportiva | 365 | 0,18 | 316 | 0,07 | 681 | 0,11 |
Bar ou similar | 2.167 | 1,09 | 1.607 | 0,37 | 3.774 | 0,60 |
Via pública | 16.552 | 8,36 | 15.726 | 3,66 | 32.278 | 5,14 |
Comércio/serviços | 1.623 | 0,82 | 2.054 | 0,48 | 3.677 | 0,59 |
Indústrias/construção | 303 | 0,15 | 197 | 0,05 | 500 | 0,08 |
Outros | 8.229 | 4,16 | 8.552 | 1,99 | 16.781 | 2,67 |
Ignorado | 16.136 | 8,15 | 28.786 | 6,70 | 44.922 | 7,15 |
Em branco | 438 | 0,22 | 764 | 0,18 | 1.202 | 0,19 |
Violência de repetição | ||||||
Sim | 62.282 | 31,47 | 169.429 | 39,41 | 231.711 | 36,90 |
Não | 85.916 | 43,41 | 163.727 | 38,08 | 249.643 | 39,76 |
Ignorado | 48.525 | 24,52 | 94.676 | 22,02 | 143.201 | 22,81 |
Em branco | 1.185 | 0,60 | 2.123 | 0,49 | 3.308 | 0,53 |
Discussão
O presente estudo investigou as características dos casos de violência autoprovocada notificados no Brasil entre 2009 e 2021 a partir dos registros do SINAN. Os resultados encontrados apontaram para o aumento gradativo das notificações até 2019, em todo o território nacional, com taxas particularmente superiores em estados da região Sudeste (São Paulo, Minas Gerais) e Sul (Santa Catarina, Rio Grande do Sul). No entanto, ressalta-se que São Paulo e Minas Gerais são os estados mais populosos do país (IBGE, 2021) e que, neste estudo, não foi realizado o cálculo de proporcionalidade entre número de habitantes e casos notificados. Assim, não é possível presumir que estas localidades apresentam um número superior de notificações. De qualquer forma, estudos vêm indicando o aumento do reconhecimento dos casos de lesão autoprovocada em nível mundial (Plener et al., 2016), sendo que, no Brasil, o acréscimo pode estar associado à implementação da notificação dos casos de violência mediante a publicação das Portarias n. 104, de 2011, e n. 1.271, de 2014.
Em contraponto às estimativas de aumento das notificações, é plausível supor que o declínio observado nos anos de 2020 e 2021 ocorreu pelo enfraquecimento das ações de vigilância durante a pandemia de Covid-19, conforme sinalizado por Levandowski et al., 2021) em um estudo que avaliou as alterações das taxas de notificação de violência envolvendo crianças e adolescentes no período da pandemia. A consulta ao DATASUS revela que o número de registros referentes aos outros tipos de violência (e.g., física, psicológica/moral, sexual) também sofreu queda considerável no referido período. Esta informação sinaliza que os dados provenientes do SINAN não devem ser interpretados de maneira acrítica e -descontextualizada, visto que outras estimativas indicam potencial aumento dos casos de violência doméstica e autoprovocada durante a pandemia (Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz], 2020).
Por exemplo, Zetterqvist et al. (2021) investigaram a prevalência de comportamentos autolesivos em 3.060 adolescentes suecos em três momentos distintos, constatando que nos anos de 2011 e 2014 os índices foram muito semelhantes, variando de 17,2% a 17,7%. Entretanto, no período de 2020 a 2021 houve aumento para 27,6%. Na mesma direção, o estudo desenvolvido com 1.060 escolares do Taiwan identificou a ocorrência de autolesão em 40,9% da amostra durante a pandemia, taxa notadamente superior à prevalência média no país anteriormente, que costumava ser de 17% (Tang et al., 2021). A redução das notificações no Brasil pode ter sido impactada por múltiplos fatores, a exemplo da reestruturação dos serviços de saúde e da interrupção das atividades de transporte coletivo na pandemia (Platt et al., 2020). Paralelamente, houve a atuação limitada dos dispositivos da rede de proteção a crianças e adolescentes e o fechamento das escolas (Platt et al., 2020), consideradas agentes elementares na identificação das situações de violência (Fiocruz, 2020).
Quanto ao papel das instituições de ensino diante das situações de autolesão, cabe atentar para o expressivo número de casos ignorados na variável escolaridade. Essa verificação demonstra uma limitação no registro dos casos notificados dado que a escolaridade é um critério relevante para o delineamento de estratégias de cuidado frente aos casos de comportamentos autolesivos (Muehlenkamp et al., 2019). Ademais, o direito à educação, que engloba o acesso e a permanência na escola, deve ser priorizado por ser uma das políticas fundamentais previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente na garantia do pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes (Lei n. 8.069 de 1990).
No que se refere a outras possíveis inconsistências das notificações, é pertinente questionar os indicadores raciais encontrados. Embora os dados revelem que a raça/cor branca foi atribuída mais frequentemente (47,79%), isso não significa que a autolesão seja um fenômeno que envolve principalmente pessoas brancas. Estes dados podem resultar das barreiras enfrentadas pela população negra e por outros grupos raciais no acesso aos serviços de saúde em função do racismo estrutural (Silva et al., 2020). Nesse cenário, o Ministério da Saúde frisa a urgência de linhas de cuidado voltadas para migrantes, refugiados e povos indígenas, tendo em vista o risco acentuado de suicídio entre esses grupos (Ministério da Saúde, 2021). Além disso, indica-se, mais uma vez, a necessidade de prudência na análise destas taxas, pois não foi realizado o cálculo de prevalência considerando a distribuição populacional dos grupos raciais no território nacional.
Adicionalmente, possíveis erros de notificação devem ser considerados, pois estes incidentes tendem a ser relatados como acidentais ou subdeterminados devido à vergonha, ao estigma ou à falta de indícios da sua ocorrência (Miranda-Mendizabal et al., 2019). Os indicadores sobre a efetiva incidência do fenômeno também são limitados pelos desafios encontrados pelos profissionais da saúde no preenchimento da ficha de notificação de violência interpessoal e autoprovocada. O estudo realizado com 57 trabalhadores das Unidades de Saúde da Família da cidade do Recife indicou que 61,4% deles relataram desconhecer a ficha do SINAN e 80,7% nunca a tinham aplicado durante a atuação profissional (Cruz et al., 2019). Essas evidências alertam para a necessidade de investimentos contínuos na educação permanente dos profissionais, de modo a possibilitar a identificação e o acolhimento dos -casos, bem como a devida implementação dos mecanismos de atenção em saúde (Ministério da Saúde, 2019b; Cruz et al., 2019).
A sistematização adequada dos casos de violência autoprovocada é ainda complexificada pela dificuldade de distinção entre os comportamentos autolesivos com e sem intencionalidade suicida (Guerreiro, 2013). Apesar desses fenômenos, por vezes, sobreporem-se, cada um deles apresenta especificidades em termos de sexo, faixa etária, implicações e funções atribuídas, tornando necessária a discussão de ambos à luz da literatura vigente. No que tange aos comportamentos autolesivos sem intenção suicida, os resultados obtidos neste trabalho estão parcialmente de acordo com a literatura em relação ao sexo e à faixa etária, o que pode ter sido influenciado por eventuais falhas na diferenciação dos tipos de autolesão ou pelo perfil etário dos usuários que acessaram os serviços de saúde.
Quanto ao sexo, alguns trabalhos apontam que a autolesão é mais recorrente entre as meninas (Fonseca et al., 2018; Klonsky et al., 2015), o que também foi observado neste estudo. No entanto, não há consenso sobre esta correlação, uma vez que investigações como a de Barrocas et al. (2015) encontraram maior correspondência com o sexo masculino. Desse modo, pontua-se que o engajamento em comportamentos autolesivos deve ser compreendido como resultante da convergência de componentes biopsicossociais, não estando atrelado apenas aos padrões de sexo e idade (Oliveira et al., 2020). No que concerne à faixa etária, na presente pesquisa, os períodos do desenvolvimento mais acometidos foram a adolescência e o início da vida adulta, ao passo que os estudos da área indicam maior incidência da conduta entre adolescentes mais novos (Ammerman et al., 2018; Cipriano et al., 2017).
A prevalência de autolesão não suicida tende a aumentar entre os 12 e os 14 anos de idade, diminuindo ao final da adolescência (Ammerman et al., 2018). O estudo nacional desenvolvido com escolares provenientes de diferentes instituições educacionais do município de Rolim de Moura - RO constatou que os adolescentes implicados em comportamentos autolesivos tinham idades entre 12 e 15 anos e estavam matriculados entre o 7º e o 9º ano do ensino fundamental (Silva & Siqueira, 2017). Após os 14 anos, a faixa etária compreendida entre os 16 e os 20 anos corresponde ao segundo período do ciclo vital no qual há importante engajamento em condutas autolesivas (Cipriano et al., 2017; Wilkinson et al., 2022). De modo similar ao observado nos dados oriundos do SINAN, verifica-se que a prática está presente, em maior ou menor grau, em diversas etapas da vida, alertando para os fatores atinentes a cada fase do desenvolvimento implicados no curso da lesão autoprovocada (Klonsky et al., 2015).
De todo modo, observou-se um percentual significativo de crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos com comportamentos autolesivos, o que adverte para os riscos do envolvimento precoce na prática (Ghandi et al., 2018). Ammerman et al. (2018) sinalizaram que idade de início inferior aos 12 anos está associada à maior versatilidade dos métodos, a taxas elevadas de internação hospitalar na adolescência e ao desenvolvimento de um plano de suicídio. Ademais, tendo em vista que quanto mais precoce for a iniciação da lesão autoprovocada, maiores serão as probabilidades de aumento da sua frequência (Ghandi et al., 2018), também se alerta para o considerável número de casos com envolvimento repetitivo em comportamentos autolesivos nesta pesquisa.
A hipótese da identificação implícita sugere que o reconhecimento da autolesão como uma estratégia de enfrentamento eficaz para o alívio do sofrimento favorece a sua -recorrência (Steinhoff et al., 2021). Este é um dado preocupante, pois a violência autoprovocada de repetição está associada a efeitos nocivos, como o risco acentuado para suicídio (Bennardi, McMahon, Corcoran, Griffin, & Arensman, 2016). Os resultados do estudo conduzido por Wilkinson, Qiu, Neufeld, Jones e Goodyer (2018), com 945 adolescentes ingleses sem histórico prévio de adoecimento psíquico, sinalizaram que comportamentos autolesivos reiterados relacionaram-se mais fortemente a sintomas de depressão do que os episódios esporádicos.
Em contraponto às informações mencionadas nos trabalhos sobre autolesão sem intenção suicida, o comportamento suicida parece ser mais recorrente ao final da adolescência e início da idade adulta (Voss, 2019). Em relação ao sexo, uma revisão sistemática sobre o tema estimou que os homens têm risco quase três vezes maior de cometer suicídio (Miranda-Mendizabal et al., 2019). As taxas superiores de morte por suicídio entre jovens do sexo masculino podem estar associadas a maior presença de sintomas externalizantes, os quais influenciam a escolha de métodos letais (Miranda-Mendizabal et al., 2019). Além disso, a maior mortalidade desse grupo populacional tende a ser influenciada por questões culturais, já que, perante episódios de sofrimento intenso, meninos e homens recorrem a estratégias de enfrentamento com maior risco de morte por serem mais consistentes com os estereótipos de masculinidade difundidos socialmente (Steinhoff et al., 2021).
As demais informações sobre as características dos episódios de violência autoprovocada reportados pelo SINAN revelaram que a própria residência foi o principal local de ocorrência. Ressalta-se o paradoxo presente neste dado, já que o ambiente doméstico, muitas vezes compartilhado com os familiares, poderia atuar como um entrave para a execução das condutas autolesivas devido aos esforços de uma parcela considerável de adolescentes e jovens em manterem o ato em segredo (Berger, Hasking, & Martin, 2013). Esses achados evidenciam as dificuldades de comunicação observadas nas famílias, (Arbuthnott & Lewis, 2015). Somado a isso, um estudo com 2.637 adolescentes australianos desvelou que os participantes com histórico de autolesão foram menos propensos a reconhecer a ajuda dos pais no processo de enfrentamento do problema e/ou durante o tratamento psicológico (Berger et al., 2013).
Além dos aspectos relacionados à percepção de suporte parental após a consumação da violência autoprovocada, estressores do sistema familiar, como exposição a vulnerabilidades, baixa afetuosidade, falta de apoio parental e conteúdos transgeracionais, podem predizer o engajamento em práticas autolesivas (Gromatsky et al., 2017). Estudos empíricos reportaram que indivíduos com comportamentos autolesivos na adolescência foram desencorajados pelos responsáveis a expressarem seus afetos ao longo do desenvolvimento (Garisch et al., 2017; Silva & Siqueira, 2017). Apesar das relações familiares associarem-se à ocorrência de autolesão em algumas circunstâncias, elas também podem ser um fator de proteção valioso pela sua importância no desenvolvimento socioemocional ao longo de toda a vida (Berger et al., 2013; Carter et al., 2016).
Os pais ou responsáveis desempenham um papel essencial na prevenção e no acompanhamento das situações de violência autoprovocada (Arbuthnott & Lewis, 2015). Os adolescentes e os jovens parecem demonstrar maior inclinação a buscar ajuda quando sentem que os pais se interessam autenticamente em compreender as suas experiências (Garisch et al., 2017) e são capazes de discutir abertamente sobre as questões atinentes aos comportamentos autolesivos (Arbuthnott & Lewis, 2015). O documento para a prática clínica publicado pela Royal Australian & New Zealand College of Psychiatrists (Carter et al., 2016) enfatiza a importância do apoio familiar no manejo dos casos de autolesão, indicando a relevância do estabelecimento de relações pautadas no afeto e na segurança. Desse modo, recomenda-se a inclusão da família em intervenções que visem ao acolhimento, à expressão afetiva, à promoção da comunicação, ao fortalecimento dos vínculos familiares e ao cuidado ampliado (Garisch et al., 2017).
Por fim, destaca-se que a atenção à saúde mental de crianças e adolescentes vem progredindo ao estabelecer e expandir serviços direcionados a essa população mediante mobilizações sociais e políticas (Braga & Oliveira, 2019), a exemplo da instituição da Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio (Lei 13.819, de 2019). No entanto, é preciso apostar continuamente na construção desse percurso de promoção da cidadania por meio de esforços intersetoriais e coordenados, que não se limitem à noção de riscos e que invistam na educação em saúde alinhada à realidade social e na garantia do protagonismo de crianças e adolescentes na formulação das estratégias em saúde coletiva (Braga & Oliveira, 2019).
Conclusões
A notificação da violência autoprovocada propicia maior compreensão de determinadas características de sujeitos que se autolesionam e colabora para o fornecimento de uma assistência em saúde alinhada às particularidades da população. Nesse cenário, o presente estudo avançou ao sistematizar os dados divulgados pelo SINAN em um período temporal abrangente, o que possibilitou a observação da evolução do referido sistema em todo o território nacional. Os resultados indicaram o crescimento das notificações até 2019, envolvendo, predominantemente, pessoas do sexo feminino, com idades entre 15 e 29 anos, de cor branca e ensino fundamental incompleto ou médio completo. Como limitações do estudo, ressalta-se a utilização de análises descritivas, as quais, apesar de facilitarem a visualização de um conjunto expressivo de dados, propõem-se apenas a descrevê-los e não a explicá-los a partir de hipóteses estatísticas. Ademais, devem ser consideradas as fragilidades inerentes à própria natureza dos dados, como possíveis erros de notificação, estimativas subestimadas, vieses em função do perfil dos usuários alvo de notificação, dentre outras.
A despeito das limitações, o reconhecimento das particularidades sociodemográficas implicadas nos relatos de violência autoprovocada é uma ação primordial para o adequado dimensionamento da problemática e para a concepção de estratégias direcionadas à prevenção e ao acompanhamento dos casos (Ministério da Saúde, 2019b). Contudo, destaca-se a necessidade de estas evidências serem examinadas de maneira crítica, para não serem interpretadas de maneira isolada e descontextualizada. A utilização de dados qualitativos, a análise dos indicadores do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e a articulação com os achados compartilhados por outros pesquisadores podem contribuir para um enquadramento mais acurado do tema. Além de fornecer um panorama das notificações, a conjugação de múltiplos tipos de dados subsidia a elaboração de ações sensíveis às particularidades de diferentes contextos, a exemplo dos territórios nos quais os sujeitos estão inseridos, da família, da escola, dos serviços de saúde e dos demais pontos da rede intersetorial (Steinhoff et al., 2021).
Alerta-se que as escolas são espaços relevantes para o reconhecimento e desenvolvimento de ações de cuidado frente às situações de lesão autoprovocada, por reunirem uma parcela substancial do público infantil e jovem do país. Assim, os conteúdos de suas atividades podem envolver a escuta de pais, alunos e profissionais, o fortalecimento dos vínculos e dos fatores de proteção e o estímulo à busca por ajuda (Muehlenkamp et al., 2019). Em termos de saúde pública, a otimização dos pontos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) contribui para a apuração das demandas em cada território e para o fornecimento de cuidados ampliados às pessoas com histórico de violência autoprovocada e aos seus familiares (Ministério da Saúde, 2019b).
Apesar da importância dessas ferramentas, ainda se verifica a subutilização dos dispositivos de saúde, principalmente entre adolescentes, o que é preocupante devido à elevada incidência de comportamentos autolesivos nesta faixa etária (Steinhoff et al., 2021). Portanto, reafirma-se a necessidade da disseminação de informações sobre as possibilidades de acesso aos serviços e sobre as estratégias de cuidados disponíveis (Arbuthnott & Lewis, 2015). O adequado enfrentamento deste complexo fenômeno prevê o emprego de esforços intersetoriais que visem à redução do estigma, à identificação dos casos e de suas singularidades, à sistematização dos dados epidemiológicos acerca da temática, ao protagonismo infantojuvenil e ao delineamento de políticas públicas (Ministério da Saúde, 2019b).