Introdução
Nos últimos anos, a entrada dos alunos nas Instituições de Ensino Superior (IES) no Brasil esteve em constante ascensão. O número de estudantes da Educação Superior, de acordo com o censo realizado pelo Ministério da Educação (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [INEP], 2019), entre os anos de 2009 e 2019, aponta que o número de matriculados no ensino superior teve um crescimento de 5.985.873 para 8,6 milhões, sendo um aumento de 43,7%.
A entrada no ensino superior causa bastante tensão, pois acontece na transição para a vida adulta, além das diversas alterações sistêmicas, como as físicas, psicológicas e sociais, que interagem com o novo ambiente e alteram a qualidade de vida do sujeito (Claumann et al., 2017; Silva et al., 2012; Vargas et al., 2020). De acordo com Organização Mundial da Saúde (1998), a definição de Qualidade de Vida (QV) é a percepção do indivíduo sobre sua posição na vida no contexto da cultura e dos sistemas de valores em que vive e sua relação com objetivos, expectativas, padrões e preocupações. Sendo essa implicação da QV dos estudantes universitários, ela carece de ser vista e compreendida desde a formação inicial, para que possamos produzir melhores profissionais.
A formação inicial, além dos conteúdos específicos, deve proporcionar aprendizado do cenário profissional para que o estudante universitário tenha condições de lidar com a autonomia de vida, com o controle financeiro, na saída da casa dos pais para morar com pessoas e em espaços diferentes, repercutindo na qualidade de vida durante a vida acadêmica e, consequentemente, do futuro profissional (Nur et al., 2017; Ogushi & Bardagi, 2015; Pinho et al., 2015).
Diversos fatores relacionados ao bem-estar dos jovens universitários, como felicidade, satisfação com a vida e si mesmo, amigos, moradia, composição corporal, têm sido cada vez mais presentes nos estudos da qualidade de vida dos universitários, principalmente dos alunos dos cursos de saúde. Esses futuros profissionais têm como missão o cuidado de outro ser humano, assumindo o papel de multiplicadores da promoção de saúde e qualidade de vida, modificando a comunidade onde estão inseridos (Amadeu & Justi, 2017; Backhaus et al., 2020; Barros et al., 2017; Mendes-Neto et al., 2012; Nur et al., 2017).
No entanto, uma vez que o mundo foi assolado pelo SARS-CoV-2 (covid-19), os estudos sobre a saúde e qualidade de vida de universitários sofrem interferência, pois a vida se tornou remota, o isolamento social fez com que as pessoas permanecessem dentro de casa para conter o avanço da transmissão e mortalidade da população (Ferreira et al., 2021), o que sugere alteração na qualidade de vida da população. A mudança para o ensino remoto trouxe alterações comportamentais para todos os envolvidos, desde as famílias que tiveram de conviver com as aulas dentro de casa quanto para os professores que tiveram de aprender a lidar com os desafios de ensinar por meio dos recursos tecnológicos. Entretanto, para os jovens que trazem nesta faixa etária o traço de conviverem em grupos sociais e alterações no estilo de vida diante da entrada na universidade, há muito o que compreender sobre as consequências do isolamento social. A inesperada pandemia ainda instiga muitos estudos a compreender as alterações comportamentais que ela possa ter desencadeado. Neste contexto, este estudo direciona-se primariamente a compreender, por meio da comparação de uma mesma população, um estado comportamental diferente determinado pela pandemia.
Será que a pandemia alterou a percepção de QV em estudantes universitários ingressantes? Será que já havia diferença na percepção da QV entre licenciatura e bacharelado do curso de Educação Física antes da pandemia? Isso permaneceu durante a pandemia? Será que há diferença de percepção da QV entre os sexos? Achados desta natureza podem ajudar no planejamento do retorno presencial e nas alterações comportamentais que, com certeza, traçarão características de um retorno presencial das aulas após o isolamento social, até que o fim da pandemia seja decretado.
Portanto, esta pesquisa buscou verificar a influência do isolamento social devido à pandemia da covid-19 na autopercepção de QV dos ingressantes na universidade, nos cursos de Educação Física.
Metodologia
Trata-se de um estudo quantitativo, descritivo, comparativo do nível de percepção da qualidade de vida (QV). Os procedimentos adotados neste estudo foram seguidos conforme a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa, pelos pareceres n. 3.612.489 e 4.144.346 da universidade do pesquisador principal.
Participaram do estudo 361 discentes ingressantes dos cursos de Educação Física de uma universidade pública federal do interior de Minas Gerais, dos quais 76% (n = 273) entraram na universidade antes da pandemia, e 24% (n = 88), durante a pandemia, sendo 54% discentes do curso de licenciatura, e 46%, do de bacharelado. Ainda, 55% da amostra se identificou como do sexo masculino, e 45%, como sendo do sexo feminino. A caracterização da amostra se encontra na Tabela 1.
Variáveis | Frequência | % |
---|---|---|
Antes da pandemia | 273 | 75,6 |
Durante a pandemia | 88 | 24,4 |
Homem | 197 | 54,6 |
Mulher | 164 | 45,4 |
Estudantes de 1ª entrada | 167 | 46,3 |
Estudantes de 2ª entrada | 194 | 53,7 |
O instrumento utilizado para verificar a percepção da qualidade de vida foi o questionário WHOQOL-Bref, em sua versão curta em português (Group, 1998), contendo 26 questões, sendo duas perguntas gerais de qualidade de vida e as outras 24 questões divididas em quatro domínios: Domínio Físico (sete questões), Domínio Psicológico (seis questões), Domínio Social (três questões) e Domínio Meio Ambiente (oito questões). As questões foram respondidas por meio de uma escala likert de cinco pontos. O escore final foi transformado em uma escala de 0 a 100 pontos, na qual valores mais próximos de zero indicam pior qualidade de vida, enquanto os mais próximos de 100, melhor qualidade de vida.
A aplicação do questionário foi realizada por meio de formulários on-line vinculados ao Google Forms®. A coleta antes da pandemia ocorreu nos anos de 2016 a 2019, e durante a pandemia, nos anos de 2020 e 2021.
Após a coleta, os dados foram tabulados no programa Microsoft Excel® e analisados com o software estatístico Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 20. A análise aplicada foi a estatística descritiva por medidas de dispersão, comparativa entre grupos com teste t student para amostras independentes, e a diferença significância adotada foi de p ≤ 0,05 após testada a normalidade.
Resultados
Na Tabela 2, os valores da comparação da qualidade de vida dos alunos que entraram antes com os alunos que entraram durante a pandemia demonstram que houve diferença significativa na QV global.
Variáveis | Antes | Durante | Valor de p* |
---|---|---|---|
M±DP | M±DP | ||
Físico | 71,22 ± 13,67 | 69,97 ± 12,93 | 0,451 |
Psíquico | 63,76 ± 14,84 | 61,70 ± 13,44 | 0,248 |
Social | 69,77 ± 17,60 | 67,81 ±18,13 | 0,370 |
Ambiente | 61,27 ±12,55 | 63,75 ± 13,07 | 0,112 |
QV global | 64,15 ± 18,53 | 71,68 ± 15,40 | 0,001* |
Nota: QV (Qualidade de Vida); M = média; DP = desvio-padrão *Valor de P referente ao teste t de amostras independentes (p ≤ 0,05).
Ao comparar a percepção da qualidade de vida entre os alunos de 1ª entrada e 2ª entrada dos cursos de Educação Física, encontrou-se diferença significativa nas dimensões física, psíquica e ambiente, sendo os maiores escores no grupo de alunos de 1ª entrada. E, para ambas entradas de graduandos, as dimensões física e social foram as que apresentaram maiores escores (Tabela 3).
Variáveis | 1ª entrada | 2ª entrada | Valor de p* |
---|---|---|---|
M±DP | M±DP | ||
Físico | 72,45 ± 13,52 | 69,60 ± 13,35 | 0,045* |
Psíquico | 65,00 ± 13,06 | 61,75 ± 15,54 | 0,034* |
Social | 68,17 ± 18,11 | 70,30 ± 17,37 | 0,243 |
Ambiente | 63,63 ± 14,12 | 60,37 ± 11,16 | 0,015* |
QV global | 67,37 ± 19,36 | 64,82 ± 16,88 | 0,188 |
Nota: QV (Qualidade de Vida); M = média; DP = desvio-padrão *Valor de P referente ao teste t de amostras independentes (p ≤ 0,05).
Buscando entender se entre os cursos já havia alguma dimensão que se apresentasse significativamente diferente antes da pandemia, realizamos o teste também depois, e somente no momento anterior à pandemia, na dimensão psicológica, é que encontramos a diferença (Tabela 4).
Variáveis | 1ª entrada | 2ª entrada | Valor de p* | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Antes | Durante | Antes | Durante | |||
M±DP | M±DP | M±DP | M±DP | Antes | Durante | |
Físico | 72,57 ± 13,53 | 72,15 ± 13,62 | 70,19 ± 13,72 | 67,24 ± 11,62 | 0,155 | 0,077 |
Psíquico | 66,18 ± 13,18 | 62,16 ± 12,44 | 61,91 ± 15,78 | 61,12 ± 14,74 | 0,018* | 0,719 |
Social | 68,16 ± 17,30 | 68,00 ± 20,13 | 71,00 ± 17,79 | 67,59 ± 15,51 | 0,190 | 0,917 |
Ambiente | 62,82 ± 14,02 | 65,56 ± 14,34 | 60,09 ± 11,21 | 61,48 ± 11,03 | 0,075 | 0,146 |
QV global | 64,37 ± 19,79 | 74,48 ± 16,39 | 63,98 ± 17,58 | 68,17 ± 13,46 | 0,862 | 0,056 |
Nota: QV (Qualidade de Vida); M = média; DP = desvio-padrão; *Valor de P referente ao teste t de amostras independentes (p ≤ 0,05)
Na comparação entre os sexos nos dois momentos traçados pela pandemia, não foi identificada diferença significativa.
Discussão
O presente trabalho buscou verificar a influência do isolamento social da pandemia da covid-19 na autopercepção da QV dos estudantes universitários. Na comparação, os alunos que entraram antes da pandemia tiveram os maiores escores nos domínios físico, psíquico e social do que os que entraram durante o isolamento. Os escores mais elevados para os domínios ambiente e QV global foram dos alunos que entraram durante a pandemia.
Durante o isolamento, o sistema educacional passou a funcionar de forma remota, deixando o aluno dentro de casa, fazendo com que a população modificasse seu estilo de vida. Os universitários ficaram muito tempo sentados ou deitados, tiveram seu espaço reduzido para a prática de atividade física e aumentaram o tempo de tela com jogos, programas de televisão, redes sociais, aulas ou relacionando-se com amigos e parentes (Cabral et al., 2021; Crochemore-Silva et al., 2020; Florêncio Júnior et al., 2020; Sá et al., 2021). Para manter a segurança e diminuir a disseminação da covid-19, a permanência dentro de casa contribuiu com o aumento de ansiedade e depressão (Cunha et al., 2021) e alterou o estilo de vida (Malta et al., 2021) e os hábitos alimentares das pessoas isoladas (Oliveira et al., 2021), interferindo na percepção da QV. Tais alterações colaboram para o aumento de doenças crônicas degenerativas, como problemas cardíacos, hipertensão, diabetes mellitus e obesidade (Carleto et al., 2019; Costa et al., 2015; Oliveira et al., 2021; Sá., 2021).
Na diferença entre os estudantes de 1ª e 2ª entradas, os que entraram no primeiro semestre do ano letivo possuíam maiores escores significativos nas dimensões física, psíquica e ambiente. Isto pode estar relacionado à entrada tardia da segunda turma na universidade, após os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e do Sistema de Seleção Unificada (SiSU). A espera interferiu na ansiedade desses estudantes para entrarem no curso somente no segundo semestre letivo, dando mais tempo a fim de que eles se organizassem para a mudança de rotina, podendo influenciar na qualidade de vida e na dimensão social.
Com a entrada no mundo universitário, os alunos acabam obtendo alta carga de atribuições, que, somada às sobrecargas da pandemia, poderia desencadear sofrimento psíquico (Cunha et al., 2021; Daldegan et al., 2021; Pinto Junior et al., 2021). Muitos têm de trabalhar no período diurno para contribuírem com as despesas e, no período noturno, estudarem. A formação inicial não é composta somente por aulas e tarefas acadêmicas, mas por participação em projetos de extensão, iniciações científicas e participação em laboratórios, fazendo com que a duração do sono e a prática de exercício físico diminuam (Barros et al., 2017; Oliveira et al., 2021; Vargas et al., 2020; Vo et al., 2020).
Na comparação entre as entradas antes e durante a pandemia, os alunos que iniciaram na 2ª apresentaram maiores escores comparados aos alunos da 1ª, no período anterior ao isolamento social. Porém, houve uma inversão durante a pandemia, fazendo com que os alunos do curso da primeira entrada apresentassem maiores escores, existindo possibilidade de esses alunos terem um descanso dos estudos, não entrando direto na vida universitária, além de poderem ter uma interação com a família durante o isolamento social. Consideramos este achado o mais importante do estudo e o qual faz pensar também o quanto a suspensão das atividades presenciais e estar com a família foram algo necessário como apoio aos estudantes no início da pandemia, pelo menos, para os ingressantes. As vivências acadêmicas geradoras de sofrimento e que podem atuar como fator de proteção no pós-pandemia devem ser analisadas com mais cuidados posteriores, além das consequências do mesmo isolamento social.
Compreende-se que essa situação é diferente da realidade de muitos universitários, em que saíam de seus lares, morando distantes da família para residirem sozinhos, em quitinetes, repúblicas ou dividindo casa/apartamento com colegas universitários, além de terem que trabalhar para complementar a renda (Amadeu & Justi, 2017).
Não foram encontradas diferenças significativas na comparação entre os sexos dos alunos nos dois momentos traçados pela pandemia, resultado também encontrado por Claumann et al. (2017).
O isolamento social proporcionou diferenças na qualidade de vida dos ingressantes universitários. Esse momento inicial dos ingressantes envolve mudanças expressivas que são caracterizadas por novos vínculos afetivos desenvolvidos ao longo do curso. Dentro dessas mudanças, dúvidas e desilusões com relação à carreira escolhida, autonomia financeira, administração do tempo, independência na resolução das demandas acadêmicas, adaptação ao mundo universitário e sobrecarga de estudo, aparecem o estresse e a ansiedade em muitos estudantes (Langame et al., 2016; Lantyer et al., 2016; Pinho et al., 2015).
Por fim, as condições determinadas pela pandemia limitam as ações de pesquisa que poderiam trazer mais atributos a este estudo. A impossibilidade de acesso do aluno aos equipamentos tecnológicos dificultou o processo de ensino, mas ocasionou o aumento de pesquisas por meio de questionários. O alto número de questionários respondidos pode ter interferido no interesse e cuidado nas respostas, limitando os achados. Este estudo também se limitou aos alunos de uma única universidade.
Conclusão
É possível perceber que o isolamento social devido à pandemia da covid-19 influenciou na autopercepção dos ingressantes na universidade na qualidade de vida. O resultado não esperado foi que, durante a pandemia, os alunos sinalizaram melhor qualidade de vida comparados aos acadêmicos antes da pandemia.
Todas as relações com o tempo pandêmico carecem de mais estudos, o que demonstra a necessidade de se pesquisar para confirmar algo que as pessoas acham ou provar o contrário do senso comum, essa é a interferência e a visão que a ciência deve trazer contribuições baseada em evidencias neste momento de “ter salvado vidas”, sendo assim reconhecida e valorizada na sociedade.
Os resultados permitem uma detecção sobre possíveis dificuldades que serão vivenciadas pelos alunos no novo normal, em um período pós-pandêmico, já que esses não estarão com suas famílias no retorno presencial. Por isso, é importante sensibilizar a comunidade acadêmica para o desenvolvimento de programas de intervenção e prática de atividade física, para prevenção e promoção da saúde para uma melhor qualidade de vida dos graduandos e organização no ambiente universitário, contribuindo para a saúde geral dos futuros profissionais.