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Revista EPOS

versão On-line ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.6 no.2 Rio de Janeiro dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Desigualdade, relações raciais e a formação de psicólogo(as)1

 

Inequality, racial relations and the training of the psychologist

 

 

Alessandro de Oliveira dos SantosI; Lia Vainer SchucmanII

IDoutor em Psicologia. Professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: alos@usp.br
IIDoutora em Psicologia. Pós-Doutoranda do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: liavainers@gmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo qualitativo descritivo exploratório investigou a concepção de estudantes de Psicologia de uma universidade pública da região metropolitana de São Paulo sobre a categoria raça na compreensão da desigualdade e sobre a relevância das relações raciais na formação de psicólogo(as). A coleta de dados ocorreu entre os meses de agosto de 2009 e maio de 2010 por meio de 16 entrevistas com estudantes de pós-graduação e 4 grupos focais com estudantes de graduação. A análise de conteúdo dos dados mostrou que os(as) estudantes consideram a cor da pele uma categoria importante na compreensão da desigualdade e as relações raciais, um tema relevante na formação de psicólogo(a). Porém, segundo os(as) estudantes, foi dada pouca importância às relações raciais no Brasil em sua formação, sendo a discussão sobre cotas na universidade pública o principal fator que possibilitou refletir abertamente sobre esse tema em sala de aula. O estudo evidenciou que as relações raciais merecem mais atenção dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia e que a formação de psicólogos(as) deve incluir a reflexão crítica sobre a categoria raça e o racismo.

Palavras-chave: desigualdade; relações raciais; formação do psicólogo; pesquisa qualitativa.


ABSTRACT

This exploratory descriptive qualitative study investigated the conception of psychology students from a public university at the metropolitan region in São Paulo about the race subject to understand inequality and the relevance of racial relations to shape psychologists. Data collection occurred between August 2009 and May 2010 through 16 interviews with graduate students and 4 focus groups with undergraduate students. Content analysis of the data showed that students consider skin color an important category to understand inequality and racial relations an important subject to shape psychologists. However, according to the students the racial relations subject in Brazil didn´t receive enough attention during their training. The racial quotas discussion in a public university was the major factor that caused reflection about racial relations subject in the classroom. The study showed that the racial relations deserves more attention from undergraduate and postgraduate disciplines and a critical reflection about the race category and racism should be included during the shaping of psychologists.

Keywords: inequality; racial relations; psychologists training; qualitative research.


 

 

Introdução

O termo desigualdade diz respeito a uma relação de ordem ou hierarquia entre dois ou mais elementos, a comparação entre grupos ou pessoas em torno de uma variável ou característica e, também, a expressão das diferenças de acesso às condições (econômicas, políticas, sociais) consideradas necessárias para uma vida digna (LOPES, 2005; CHOR & LIMA, 2005).

Embora nunca tenha se concretizado oficialmente um regime de segregação racial no Brasil, a desigualdade entre brancos e negros (pretos e pardos na classificação do IBGE) no que tange, em especial, ao acesso à educação, à saúde e ao mercado de trabalho tem tido graves consequências para a população negra, evidenciando que a categoria raça é importante para entender as assimetrias no país (LOPES, 2005; PINHO, BERQUÓ, LOPES, OLIVEIRA, LIMA & PEREIRA, 2002).

No que tange à educação, estudos têm mostrado que as experiências desiguais entre negros e brancos aumentam a partir do ensino médio, atingindo seu ápice no ensino superior (BARRETO, 2015; SILVA, 2013; PAIXÃO, ROSSETTO, MONTOVANELE & CARVANO, 2010). Silva (2013), por exemplo, ao analisar dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referentes ao Censo Demográfico de 2010, constatou que o percentual de brancos no ensino superior correspondia a 73,2% enquanto o de negros, a 24,7%. Já no ensino médio esse percentual correspondia a 54,3% de brancos e 44,2% de negros.

Em relação à saúde, negros e brancos têm tido experiências desiguais no que diz respeito ao nascimento, ao tratamento de agravos e às causas de óbito. Mulheres negras apresentam maior índice de mortalidade materna em relação às mães brancas e probabilidade de ter o primeiro filho antes dos 16 anos de idade. Também têm menor chance de fazer consultas ginecológicas e de pré-natal e de receber as informações necessárias sobre o parto (LOPES, 2005). Já dentre as causas de morte dos homens negros, destacam-se os óbitos por doenças infecciosas e parasitárias (como tuberculose e HIV/Aids), transtornos mentais (principalmente uso abusivo de álcool e outras drogas) e causas externas (em especial o homicídio) (BATISTA, ESCUDER & PEREIRA, 2004).

No mercado de trabalho, o salário dos negros é sistematicamente inferior ao dos brancos, mesmo entre aqueles que têm o mesmo nível de escolaridade. Segundo Abramo (2006), em cada uma das faixas de escolaridade os(as) negros(as) recebem aproximadamente 30% a menos que os(as) brancos(as). Considerando que a diferença de anos de escolaridade não é suficiente para explicar a diferença nos rendimentos, a autora defende que: "há outros fatores que a explicam, entre elas uma série de mecanismos indiretos de discriminação" (ABRAMO, 2006, p. 41). Tais mecanismos indiretos acontecem pela atuação dos estereótipos negativos relacionados aos(as) negros(as), que intervêm nos procedimentos organizacionais, influenciando na participação deles(as) em processos de seleção, admissão, desenvolvimento de carreira e promoção, visto que interferem na avaliação de seu potencial e habilidades (BENTO, 2002).

A categoria raça é um constructo sociológico que faz sentido somente em um contexto histórico e no corpo de uma teoria, uma vez que não é possível definir geneticamente diferentes raças humanas. Trata-se de uma construção social que remete a discursos sobre as origens de um grupo, com base em traços fisionômicos transpostos para qualidades morais e intelectuais. A cor, categoria mais habitualmente utilizada no Brasil, por sua vez, é orientada pela própria ideia de raça, ou seja, por um discurso classificatório sobre qualidades, características e essências transmitidas pelo sangue (GUIMARÃES, 2003).

Ao lado de gênero e classe social, a raça é uma das categorias que constitui, diferencia, hierarquiza e localiza as pessoas na sociedade (SCHUCMAN, 2010). Ela é uma construção social cujo racismo é a ideologia resultante. Trata-se de uma ideologia segundo a qual existem raças puras, umas superiores a outras, com características genéticas que são transmitidas hereditariamente e que determinam e são reconhecidas através da cor da pele, traços de inteligência e caráter, e manifestações culturais. No Brasil, o racismo é um dos principais organizadores da desigualdade, produzindo humilhação social e sofrimento psíquico, além de justificativas naturalizantes das injustiças sociais (SANTOS, 2012).

A opressão, a discriminação e a humilhação social, produzidas pelas desigualdades de classe e de gênero têm sido objeto crescente de investigação da Psicologia no Brasil (GONÇALVES FILHO, 2007; SAWAIA, 2009; FERRAZ & KRAICZYK, 2010; D’ABREU, 2013). Contudo, apesar desse avanço e da tradição da Psicologia no estudo das relações raciais no país (BICUDO, 1947; GINSBERG, 1955; LEITE, [1966] 2008; SANTOS, SCHUCMAN & MARTINS, 2012), ainda parece haver uma falta de legitimidade da categoria raça como característica e variável importante para o ensino e pesquisa em Psicologia, sendo importante ouvir estudantes de graduação e pós-graduação da área sobre esse tema.

Levantamento contínuo realizado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) junto aos profissionais cadastrados no Sistema Conselhos registrou até fevereiro de 2016 o quantitativo de 270.015 psicólogos(as) em todo o país (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2016). Na pesquisa "Uma profissão de muitas e diferentes mulheres", realizada em 2012 pelo CFP, constatou-se que a maioria dos 1.331 profissionais que responderam à pesquisa era do sexo feminino (89%), com idade entre 30 e 59 anos (76%) e de cor da pele branca (67%) (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013). Outro dado que ajuda a descrever a distribuição de psicólogos(as) no Brasil revela que 46,7% dos cursos de graduação e 58,72% das vagas de Psicologia ofertadas estão concentradas nas regiões Sul e Sudeste (MACEDO & DIMENSTEIN, 2011).

A abordagem das relações raciais no ensino e pesquisa em Psicologia pode beneficiar diversas áreas de atuação dos(as) psicólogo(as). Por exemplo, é uma demanda para os(as) psicólogos(as) clínicos(as) que precisam lidar com sua própria racialidade, na maioria das vezes com a branquitude (identidade racial da pessoa de pele branca), já que ainda temos uma maioria de psicólogos(as) brancos(as). Também é uma demanda para os(as) psicólogos(as) organizacionais, visto que raça tem sido uma característica levada em conta na decisão de contratação de funcionários; e para os(as) psicólogos(as) que atuam em serviços de saúde, uma vez que existem especificidades em relação aos agravos e formas de adoecimento para os segmentos da população negra, indígena, amarela e branca no Brasil. No caso dos usuários de serviços de saúde, por exemplo, a sensação de que não se é bem recebido e tratado por conta do pertencimento racial pode causar uma reação de não buscar mais o serviço. Nesse sentido, combater o preconceito e a discriminação racial derivados do racismo está diretamente relacionado ao acolhimento e humanização na assistência, temas caros aos(as) psicólogos(as).

Em consonância com essa realidade, o presente estudo investigou a concepção de estudantes de Psicologia (de graduação e pós-graduação) sobre a categoria raça na compreensão das desigualdades e sobre a relevância da abordagem das relações raciais na formação de psicólogo(as).

 

Método

Trata-se de um estudo qualitativo do tipo descritivo exploratório realizado por meio de entrevistas com estudantes de programas de pós-graduação strictu sensu e grupos focais com estudantes de graduação, ambos de Psicologia.

Os(as) estudantes pertenciam a uma universidade pública da região metropolitana de São Paulo, que à época do estudo não oferecia nenhuma disciplina específica sobre relações raciais na graduação e pós-graduação em Psicologia. A coleta de dados ocorreu entre os meses de agosto de 2009 e maio de 2010 mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos(as) estudantes, que foram convidados(as) para participar voluntariamente do estudo por meio de uma carta-convite entregue pessoalmente. O estudo foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPH) em junho de 2009, recebendo o número de protocolo 2009.028.

Foram realizadas 16 entrevistas com estudantes de pós-graduação com idade entre 25 e 45 anos, sendo 11 de mestrado (4 homens e 7 mulheres) e 5 de doutorado (mulheres). As entrevistas duraram em média 35 minutos. Apenas um estudante de mestrado homem se autodeclarou de cor parda, os(as) demais estudantes de pós-graduação se autodeclararam de cor branca. Também foram realizados 4 grupos focais com estudantes de graduação do 3º ao 5º ano do curso de Psicologia, de ambos os sexos e com idade entre 22 e 26 anos. Os grupos tiveram em média a participação de 4 estudantes e a duração de 45 minutos, sendo formados majoritariamente por homem e mulheres autodeclarados de cor branca, seguido de mulheres autodeclaradas de cor amarela. Como fio condutor das entrevistas e grupos focais, roteiros semiestruturados foram utilizados, incluindo perguntas abertas do tipo: "O que é desigualdade?"; "A categoria raça é relevante para a Psicologia na compreensão da desigualdade?"; "O tema relações raciais foi abordado durante a graduação?"; "É importante inserir esse tema na formação dos(as) psicólogos(as)?".

As entrevistas e grupos focais foram conduzidos por duas estudantes de graduação do 5º ano de Psicologia da universidade onde os dados foram coletados. Elas receberam treinamento para o desempenho dessa função e supervisão durante o período de coleta de dados. O material das entrevistas e grupos focais foi gravado em áudio, e após a sua transcrição e leitura descrevemos os aspectos que apareceram de forma recorrente e fizemos uma análise de conteúdo, conforme proposto por Franco (2005). Na análise, optamos por trabalhar em conjunto os dados provenientes das entrevistas e grupos focais, tendo em vista se tratar de um estudo exploratório baseado no levantamento e descrição densa de conteúdos.

O foco da análise de conteúdo se centrou na concepção dos(as) estudantes sobre a categoria raça para a compreensão da desigualdade e sobre a presença ou ausência de discussão sobre as relações raciais na grade curricular dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia. Isso permitiu o agrupamento dos principais conteúdos que emergiram em quatro categorias: o incômodo com a categoria raça; a concepção sobre desigualdade; a abordagem das relações raciais na graduação; e a relevância das relações raciais para formação de psicólogos(as). A construção dessas categorias foi feita com base nas similaridades temáticas presentes nas falas dos(as) estudantes, permitindo agrupamentos mais homogêneos sobre o conteúdo das mesmas.

 

Resultados e discussão

O incômodo com a categoria raça

A maioria dos(as) estudantes mostrou incômodo com o uso da categoria raça. De acordo com as entrevistadoras, quando as perguntas remetiam diretamente a essa categoria ou não eram respondidas de imediato, havendo espaços de silêncio, ou eram respondidas imediatamente de forma contrariada, como exemplificam as falas a seguir:

Na verdade a classificação de raça para mim é uma coisa que é uma bobagem tão grande, todo mundo tem dois olhos, um nariz, uma boca, todo mundo tem um cérebro, um coração, enfim (entrevista 13, estudante de mestrado, mulher branca, 23 anos).

Essa questão a partir do momento que se coloca a pessoa não fica indiferente. Você pode lidar com essa questão da raça e toda essa terminologia complicada, que você pode trabalhar no sentido de uma pretensa igualdade e na verdade você está exacerbando uma diferença (grupo focal 3, estudante do 4º ano, homem branco, 23 anos).

A cor da pele, enquanto categoria de classificação racial, foi mais utilizada pelos(as) estudantes. Segundo participantes dos grupos focais: "(...) classificar-se é um padrão humano (...). E a gente faz isso de acordo com o que é mais fácil e mais condizente (...) daí a cor" (grupo focal 1, estudante de graduação do 5º ano, homem branco, 25 anos); "No Brasil a gente sempre liga raça a cor" (grupo focal 2, estudante de graduação do 5º ano, homem branco, 22 anos).

Tal incômodo dos(as) estudantes em utilizar a categoria raça pode estar relacionado a uma associação direta da ideia de raça com os horrores da Segunda Guerra Mundial, onde muitos judeus foram exterminados com base em uma ideologia racista. Também pode estar relacionado com os achados científicos do pós-guerra, que demostraram que a raça como categoria biológica não existe, havendo apenas a raça humana.

Contudo, apesar do incômodo dos(as) estudantes em utilizar a categoria raça, o significado social dela, enquanto "construto social, forma de identidade baseada numa ideia biológica errônea, mas eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios" (GUIMARÃES, 1999, p. 153), apareceu no relato da maioria dos(as) estudantes pelo pronunciamento da palavra cor, como exemplificam as falas a seguir:

(...) penso que identidade tem a ver com a representação social da cor, de como as outras pessoas vêm os sentidos que elas atribuem à cor da pessoa. Por exemplo, o negro, o que é ser negro na nossa sociedade? É algo sempre com uma associação à pobreza e coisas ruins (entrevista 2, estudante de mestrado, mulher branca, 25 anos).

Então, não tem como você, sendo uma negra ou um negro, não acabar se depreciando, se desqualificando, exatamente por causa da sua cor (entrevista 9, estudante de mestrado, homem branco, 33 anos).

É feio falar isso, mas na rua se você vê uma pessoa de uma cor ou de outra, você vai avaliar que o risco que você está correndo é diferente. Você se reprova ao fazer isso, mas se vê fazendo isso (entrevista 8, estudante de mestrado, mulher branca, 24 anos).

Quando eu vejo um negro, corre mais risco de que ele seja um possível assaltante. Então tem algumas compreensões sociais que vão influenciar na construção da identidade de uma pessoa (entrevista 4, estudante de mestrado, homem branco, 25 anos).

Como se cada cor tivesse meio que características, então um estudante negro pode ter benefício nessa Universidade, uma pessoa parda num serviço, talvez se espere que o branco seja melhor, não estou concordando com nada disso, de jeito nenhum, mas acho que tem a ver com expectativa (entrevista 5, estudante de doutorado, mulher branca, 28 anos).

A categoria cor da pele opera no imaginário dos(as) estudantes como uma metáfora para dizer raça, pois é através da relação da cor, colada à ideia de raça, que as pessoas classificam a diversidade humana em grupos fisicamente contrastados que têm características fenotípicas comuns, sendo estas tomadas como responsáveis pela determinação de características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas. A cor da pele substitui a ideia de raça, mas permanece com os significados desta categoria produzida pela ciência moderna durante os séculos XIX e XX (MUNANGA, 2004).

 

A concepção sobre desigualdade

Na concepção dos(as) estudantes, desigualdade significa tratamento desigual no que diz respeito à garantia dos direitos. De acordo com participantes dos grupos focais:

(...) tem os direitos humanos, universais, [desigualdade] é você descumprir esses direitos (...) se você não cumpre para um e cumpre para outro para mim isso é desigualdade (grupo focal 4, estudante de graduação do 4º ano, mulher branca, 21 anos).

(...) a pessoa já parte de um ponto em desvantagem, é como se ela tivesse a princípio em uma posição de não garantia dos direitos, é como se ela tivesse direitos, mas não é cumprido, então ela sai de uma posição já em desvantagem (grupo focal 4, estudante de graduação do 4º ano, mulher amarela, 22 anos).

Na verdade no Brasil ninguém tem direitos, mas algumas pessoas podem comprar. Eu acho que isso é uma desigualdade imposta e arbitrária, então quem sofre essa desigualdade sente como injustiça (grupo focal 1, estudante de graduação do 3º ano, mulher amarela, 26 anos).

Para os(as) estudantes, a desigualdade reside no fato de uma pessoa não ter a mesma condição de vida que outra pessoa tem. Essa condição se refere, por exemplo, à saúde e educação de qualidade, à chance de obter um bom emprego, de usufruir dos bens culturais. As pessoas deveriam ter a mesma condição de vida e garantia de direitos, mas o acesso e posse de recursos materiais/financeiros determina essa possibilidade e mostra que a desigualdade é construída historicamente. As falas abaixo exemplificam esses pontos de vista:

A desigualdade é as pessoas não serem tratadas como iguais, e aí existe nesse sentido uma hierarquia em relação aos seres humanos que vai produzir desigualdade (...). As pessoas deveriam ter iguais oportunidades de acesso a bens culturais, as condições básicas de vida, coisas que garantem a sua sobrevivência (...). Então, a desigualdade é esse abismo no acesso (entrevista 7, estudante de doutorado, mulher branca, 31 anos).

(...) a desigualdade vem das diferentes oportunidades que as pessoas têm e se você não der oportunidades para os filhos das pessoas que tiveram poucas oportunidades, isso vai manter a desigualdade (entrevista 14, estudante de doutorado, mulher branca, 25 anos).

(...) desigualdade é uma construção social (...). Desigualdade é não ser igual (...) eu penso que isso foi uma construção social e na nossa sociedade o que é homogêneo, o que é igual, o que é normal, é o que é historicamente valorizado (entrevista 11, estudante de mestrado, mulher branca, 25 anos).

(...) parece que é uma coisa que vem desde o começo do Brasil e que acaba sendo repetida, como se não fosse uma contingência ou resultado de um processo histórico (...) acho que tem muita coisa econômica atrás (...) (entrevista 1, estudante de mestrado, homem pardo, 27 anos).

(...) acho que o financeiro está muito relacionado à desigualdade no Brasil (...) não estou me baseando em nenhuma pesquisa, mas eu acho que é grana sim. Se o cara tem grana, ele tem uma imagem. Se ele não tem grana ele acaba tendo uma imagem diferente. Não sei se isso é certo ou errado, mas eu acho que a grana tá muito ligada à desigualdade (entrevista 16, estudante de mestrado, homem branco, 33 anos).

Alguns estudantes também chamaram a atenção para o fato de a desigualdade construída historicamente privilegiar os brancos em detrimento dos negros, como é possível ver nas falas abaixo:

(...) é só você pegar os dados, você mostra que os brancos moram em lugares que têm esgoto, luz, moram em lugares com mais desenvolvimento, enquanto têm muito mais negros na favela. Aí você vê as desigualdades de acesso à educação, acesso à saúde, não são tratados como iguais (entrevista 3, estudante de doutorado, mulher branca, 36 anos).

Se você pega a taxa de escolaridade de brancos e de negros é diferente, o valor do salário de brancos e de negros vai ser diferente, a forma como se recebe em determinados lugares o branco e o negro é diferente, a competição no mercado de trabalho é diferente (entrevista 10, estudante de doutorado, mulher branca, 45 anos).

Se eu for para um restaurante de chinelo ninguém vai olhar feio, mas se uma pessoa negra for de chinelo as pessoas vão olhar feio. Isso é desigualdade, tratar de forma diferente pessoas que por cor são diferentes (...) (entrevista 3, estudante de mestrado, mulher branca, 32 anos).

(...) considerando o país que a gente vive, que existe uma discriminação em relação aos negros, muito forte, que a gente não se dá muita conta sendo branco dos efeitos que tem (...) eu enxergo que a gente tem muitos privilégios por conta de ser branco. Então no meu caso, eu vou sentindo dessa forma, nos privilégios que eu vou recebendo, e que por muito tempo eu não me dei conta, mas hoje eu vejo dessa forma (...). Todas as oportunidades que eu tive de estudo, de hoje poder estar fazendo um mestrado (...) (entrevista 6, estudante de mestrado, mulher branca, 26 anos).

Embora alguns estudantes tenham reconhecido que brancos têm melhores condições sociais que negros na sociedade brasileira, a maioria afirmou que a desigualdade no país deriva, sobretudo, da classe social de pertença dos indivíduos. Desse modo, demostraram não fazer uma associação direta da categoria raça com a compreensão das desigualdades. Esta concepção pode estar relacionada com o mito da democracia racial no Brasil. Tal mito, difundido a partir de 1930 por parte da elite intelectual brasileira, baseia-se na ideia de que haveria uma convivência harmoniosa entre brancos e negros no Brasil, fruto da miscigenação e do fato de que aqui não houve formas explícitas de segregação racial como, por exemplo, o apartheid nos EUA e na África do Sul. Logo, o preconceito e a discriminação racial não seriam uma barreira para os(as) negros(as) atingirem a ascendência social e tampouco um aspecto muito relevante na formação da sua identidade (IANNI, 2004). Como afirma uma das entrevistadas:

No Brasil a gente tem uma questão de mistura de raças que acaba perdendo o que é a raça e o que define quem pertence a cada raça. Então, acho que fica mais relativizado se a raça interfere ou não. Por que o que é raça no Brasil quando tem tantas misturas? (...) pensando numa sociedade com relativamente menos preconceito em função da mistura que acontece aqui (entrevista 14, estudante de doutorado, mulher branca, 25 anos).

 

Abordagem das relações raciais na graduação

Dentre os(as) estudantes que participaram das entrevistas e grupos focais nenhum(a) afirmou ter estudado o tema das relações raciais com profundidade durante a graduação em Psicologia. A maioria deles(as) disse ter entrado em contato com o tema em momentos pontuais da graduação.

Segundo os(as) estudantes, o tema foi abordado de forma periférica em disciplinas como Psicologia Diferencial e Psicologia Social. Houve também relatos afirmando que o tema foi tratado durante eventos extracurriculares, discussões levantadas por professores ou ainda por meio de debates espontâneos sobre cotas raciais no ensino público superior. As falas a seguir dos(as) estudantes exemplificam os momentos que possibilitaram a discussão do tema:

Eu me lembro de um trabalho sobre preconceito (...) era uma pesquisa entre jogadores de basquete brancos e negros e as pessoas atribuíam características (...) a gente viu que o preconceito existia mesmo, mas foi uma coisa rápida [na disciplina] (grupo focal 1, estudante de graduação do 3º ano, mulher amarela, 22 anos).

Eu tive Psicologia Diferencial, que falava de gênero, de classe, mas raça nunca se incluiu. Falava de grupos étnicos, mas uma coisa meio folclórica, uma coisa tipo assim: "Os japoneses comem comida japonesa." Até falava dos negros, mas como afrodescendência, aquela coisa imaginária da África, tipo: "Mãe África" (entrevista 3, estudante de doutorado, mulher branca, 36 anos).

A [disciplina] Psicologia Social talvez, mas muito "un passant", não chegou a se aprofundar. Eu acho que teve muito mais a questão da loucura, a questão de manicômio, e aí falava um pouco de preconceito e você acabava esbarrando um pouco por aí. Mas não que tivesse um tema: "Então agora vai ter um módulo sobre igualdade/desigualdade, relações raciais." Eu pelo menos não lembro. Acho que eu me lembraria, não foi algo que realmente foi trabalhado na graduação (entrevista 12, estudante de mestrado, mulher branca, 40 anos).

Eu me lembro de algumas poucas vezes, não tanto focando na cor da pele, mas na questão social mais ampla. Mas não é um tema que foi muito aprofundado. É engraçado perceber o incômodo que isso causa. Mesmo em atendimento, se isso é uma questão ou não para o paciente pardo ou negro (entrevista 8, estudante de mestrado, mulher branca, 24 anos).

Foi na graduação. Acho que pelo pessoal de [Psicologia] Social, mas eu não lembro se teve alguma aula específica. Eu lembro muito de discussão entre os alunos porque foi na época em que apareceu essa questão das cotas em universidades. Eu não tenho lembrança de uma coisa oficializada em uma aula, ou alguma disciplina que tratasse especificamente disso, mas é uma coisa que apareceu nas discussões. Mas, de matéria [disciplina] eu não consigo lembrar agora. Que esquisito! Não sei se não teve, se eu não prestei muita atenção (...) (entrevista 5, estudante de doutorado, mulher branca, 28 anos).

Foi abordada a questão das cotas (...) houve muitos debates, não em uma disciplina específica, eram os professores que tinham mais interesse em saber o que a gente pensava sobre isso (...) tinha alguma coisa que surgia com a questão de cotas e aí todo mundo tinha espaço para falar (entrevista 2, estudante de mestrado, mulher branca, 25 anos).

(...) foi uma época em que estava começando a falar sobre cotas (...). Daí a gente discutiu um pouco sobre isso, mas porque o tema estava rondando toda a universidade, era um tema de universitários, universidades, e não porque a faculdade se preocupava com uma coisa assim (entrevista 15, estudante de mestrado, mulher branca, 30 anos).

As falas dos(as) estudantes acima indicam aspectos importantes sobre a formação de psicólogos(as) no que se refere às relações raciais: (1) o tema não foi abordado com o devido cuidado, seja especificamente ou transversalmente, de modo a permitir que os(as) estudantes pudessem se apropriar do mesmo com profundidade; (b) quando o tema foi abordado, ocorreu devido ao interesse de alguns professores, mas sem uma associação direta com a compreensão da desigualdade entre os grupos racializados no Brasil; (c) muitos(as) estudantes que afirmaram ter ouvido algo sobre o tema durante as aulas comentaram não se lembrar de como o mesmo foi abordado, demonstrando se tratar de um tema periférico.

Também é importante destacar que foi a adoção de cotas raciais pelas universidades públicas o que, segundo os(as) estudantes, favoreceu o aumento da discussão sobre o tema das relações raciais. Isso mostra que o tema, quando apareceu em sala de aula, não foi trazido por sua relevância para formação de psicólogos(as), mas como um aspecto de política universitária.

 

Relevância das relações raciais para formação de psicólogos(as)

Embora o tema relações raciais não tenha recebido muita importância na formação dos(as) estudantes, a maioria deles(as) manifestou interesse em aprofundar o conhecimento e discussão sobre o mesmo. De acordo com uma entrevistada, é fundamental:

(...) o tema ser debatido dentro da universidade (...) o primeiro ponto é esse porque eu acredito que não haja muito essa discussão. Eu acho que a partir da discussão, do estudo teórico, que você vai fazer com que o psicólogo realmente pense sobre isso (entrevista 12, estudante de mestrado, mulher branca, 40 anos).

O interesse dos(as) estudantes pelo tema se relaciona, sobretudo, com a vontade de compreender como a cor da pele pode influenciar na produção da subjetividade e da identidade, como exemplificam as falas a seguir: "uma pessoa não nasce com uma essência, mas ela vai se formando no seu meio familiar e social. Então ser negro influencia (...)" (entrevista 3, estudante de doutorado, mulher branca, 36 anos); "questões sociais e culturais produzem diferentes formas de subjetivação" (entrevista 11, estudante de mestrado, mulher branca, 25 anos); "(...) isso aparece muito no atendimento de negros e pardos, e o que a gente faz na hora se achar que é tudo igual?" (entrevista 8, estudante de mestrado, mulher branca, 24 anos).

De acordo com os(as) estudantes, o tema das relações raciais poderia ser abordado na graduação em Psicologia, por meio de uma disciplina específica, ou em todas as disciplinas, como um tema transversal. Outra forma de abordar o tema, bastante mencionada, foi a divulgação de pesquisas e a realização de eventos que promovam discussões sobre as relações raciais no Brasil com base em dados e evidências científicas.

Os(as) estudantes também destacaram a importância de conhecer a história que deu origem aos grupos racializados no Brasil, assim como a história da Psicologia e seu papel na compreensão das relações raciais, como exemplifica a fala abaixo:

(...) acho que é interessante ter consciência de como a ciência esteve ao lado, foi utilizada para justificar a inferioridade do negro, como a Psicologia está implicada nesse preconceito (...). E aí tanto pensando de uma forma histórica e cultural e como a Psicologia tem estudado e se envolvido nessas questões, tanto antes como agora (entrevista 11, estudante de mestrado, mulher branca, 25 anos).

Segundo um estudante, é importante trabalhar as relações raciais a partir de uma perspectiva evolucionista, com ênfase na história das diversas tribos ancestrais. De acordo com ele:

(...) a gente precisa pensar na origem do ser humano e na formação dos grupos de forma geral. Então, partindo de uma perspectiva um pouco mais evolucionista, que é o que eu acredito, voltaria para a questão desde os caçadores-coletores, que remonta mais de cinquenta mil anos atrás, passaria pela agricultura, passaria pelas tribos, passaria depois pelas navegações (entrevista 16, estudante de mestrado, homem branco, 33 anos).

Um aspecto que merece destaque é o fato de os(as) estudantes considerarem as relações raciais um tema importante para a formação pessoal, como exemplificam as falas a seguir: "(...) acho importante para formação de qualquer pessoa" (grupo focal 4, estudante do 3º ano, homem branco, 20 anos); "(...) não só [na formação] do psicólogo, é importante para o ser humano" (entrevista 7, estudante de doutorado, mulher branca, 31 anos); "acho importante para a formação do individuo" (grupo focal 2, estudante do 5º ano, homem branco, 22 anos). Por conseguinte, trata-se de um tema que deveria ser abordado desde a infância, em um processo contínuo, pois segundo uma entrevistada:

(...) não adianta do nada a faculdade: "vamos discutir sobre raça, preconceito, inclusão" (...). Eu acho que você tem que crescer desde pequenininho vendo aquilo como uma coisa comum, a mim, a você, a qualquer uma de nós. Então eu acho que deve ser feito mesmo [abordagem das relações raciais] no ensino fundamental (entrevista 3, estudante de mestrado, mulher branca, 32 anos).

Houve ainda estudantes que criticaram a forma abstrata e universalista que algumas disciplinas de Psicologia utilizam para compreender o ser humano, sem considerar as condições históricas que condicionam o desenvolvimento humano. As falas a seguir exemplificam essa crítica:

(...) o desenvolvimento humano pressupõe um desenvolvimento de um ser humano abstrato (...) precisa saber como a história de cada grupo afeta na subjetividade. Psicologia Social, Desenvolvimento Humano. Teoria da Personalidade, todas [essas disciplinas] podiam pensar nesta questão (entrevista 3, estudante de doutorado, mulher branca, 36 anos).

A gente tem TEP (Técnicas de Exame Psicológico) como se fosse uma coisa universal. A gente não tem estudo nenhum com pessoas que se dizem de raças diferentes (entrevista 2, estudante de mestrado, mulher branca, 25 anos).

Então o máximo que você tem é: "Ah, não, os negros estão piores." Não tem um questionamento sobre isso. Até falam: "Ah, está vendo, aqui nessa época se pensava isso e se usou isso para colocar os negros como inferiores." Mas, não tem um questionamento que diga: "Vamos mudar a técnica, vamos pensar o que está acontecendo aqui." Isso não tem, então tinha que ser incluído [o tema das relações raciais] em várias disciplinas e provavelmente ter algumas [disciplinas] mais específicas (entrevista 2, estudante de mestrado, mulher branca, 25 anos).

Para a maioria dos(as) estudantes que participaram do estudo, o(a) psicólogo(a) irá se deparar com o tema das relações raciais em sua atuação profissional, sendo importante conhecer a influência da cor da pele sobre a subjetividade e a identidade.

 

Considerações finais

Embora a Psicologia no Brasil tenha tradição no estudo das relações raciais (BICUDO, 1947; GINSBERG, 1955; LEITE, [1966] 2008; SANTOS, SCHUCMAN & MARTINS, 2012), ainda é tímida a abordagem desse tema nas disciplinas de graduação e pós-graduação da área, e o presente estudo vem reforçar essa constatação.

A análise de conteúdo dos dados coletados pelas entrevistas e grupos focais mostrou que os(as) estudantes de Psicologia, embora não estabeleçam uma associação direta da categoria raça com a compreensão das desigualdades, consideram a cor da pele importante para compreensão da subjetividade e da identidade e o tema relações raciais relevante para a formação e prática profissional dos(as) psicólogos(as). O que evidencia uma abertura por parte deles(as) para a abordagem e discussão desse tema.

Por outro lado, segundo os(as) estudantes, não foi dada muita importância às relações raciais em sua formação. Houve pouco acesso aos estudos clássicos e atuais da área sobre o tema, indicando uma baixa circulação e apropriação desse conhecimento e, talvez, uma dificuldade ou resistência por parte dos professores em lidar e trabalhar com o mesmo. Desse modo, o assunto não foi abordado de forma que os(as) estudantes tivessem a oportunidade de debater e construir um pensamento crítico a respeito. O incômodo com o uso da categoria raça é um indicador disso e mostra que essa categoria merece mais atenção e cuidado no ensino em Psicologia. Afinal, se não for possível falar abertamente sobre ela, possivelmente a intervenção no campo profissional, onde aparecem as vítimas do preconceito e discriminação racial, também não esteja construída como uma prática dos(as) psicólogos(as). A discussão sobre cotas raciais no ensino público superior, segundo os(as) estudantes, foi o que possibilitou falar abertamente sobre raça em sala de aula, sendo um mote importante para abertura dos universos de locução e possibilidade de construção de uma visão crítica sobre a escassa abordagem das relações raciais no âmbito dos currículos de graduação e pós-graduação em Psicologia.

A formação dos(as) psicólogo(as) e pesquisadores(as) em Psicologia é um momento privilegiado de construção de saberes e apresentação de teorias a respeito das mais diversas problemáticas. Por conseguinte, se nada ou muito pouco é visto durante essa formação a respeito de determinado tema, torna-se mais difícil o reconhecimento de sua relevância. Ao mesmo tempo, a distribuição e frequência dos temas tratados durante a formação ilustram a relevância que será dada aos mesmos, posteriormente, pelos(as) psicólogos(as) e pesquisadores(as) formados(as).

A Psicologia enquanto área de formação de profissionais e pesquisadores pode fortalecer sua compreensão sobre a desigualdade no Brasil se der mais atenção à categoria raça e aos condicionantes e à psicodinâmica das relações raciais no país. Nesse sentido, defendemos que a formação de psicólogo(as) e pesquisadores na área deve incluir a reflexão crítica sobre as relações raciais e sua preparação para o manejo adequado da categoria raça na análise da desigualdade.

Certamente trata-se de um enorme desafio, tendo em vista que no Brasil existe uma dificuldade em ouvir, opinar e debater sobre raça, relações raciais e racismo. Nesse sentido, é importante destacar duas situações que ocorreram durante o processo de coleta de dados deste estudo. A primeira diz respeito a uma resistência por parte dos(as) estudantes em participar das entrevistas e grupos focais. Inicialmente, responderam que participariam, porém não compareceram aos horários marcados por repetidas vezes, até que finalmente concretizaram sua participação. Além disso, houve estudantes que expressaram receio quanto a participar do estudo acreditando se tratar de uma investigação destinada a identificar "pessoas racistas". A segunda situação, por sua vez, diz respeito ao comentário de uma estudante de pós-graduação ao finalizar sua entrevista. Ela afirmou ser difícil responder às perguntas feitas porque havia, em sua opinião, respostas corretas e incorretas politicamente. Contou que respondeu o que sabia, mas que ficou pensando se iriam julgá-la por conta de suas respostas.

Tais situações mostram que raça, relações raciais e racismo são temas de difícil tratamento na sociedade brasileira e ainda pouco discutidos, seja no âmbito da escolarização formal ou do ensino superior. Segundo Twine e Steinbugler (2006), para discussão desses temas em sociedades onde existe desigualdade e racismo as pessoas precisam ter posse de um "letramento racial" que facilite: a expressão das concepções sobre raça e racismo circulantes; a capacidade de traduzir e interpretar códigos e práticas racializadas da sociedade; e o reconhecimento do valor simbólico e material da branquitude. Este "letramento racial" ainda está por ser construído no Brasil. Logo, não surpreende que as pessoas fiquem apreensivas ou se sintam ameaçadas ao falar do tema, visto que historicamente aqui as concepções e atitudes em relação aos grupos racializados têm se traduzido em arranjos e políticas sociais que limitam oportunidades, formas de tratamento e expectativas de vida.

Defendemos o desenvolvimento de experiências pedagógicas que favoreçam o aprendizado sobre as relações raciais e a aquisição de "letramento racial" pelos(as) estudantes. O trabalho realizado por Castelar e Santos (2012) é um exemplo de como isso é possível. Em suas aulas de Psicologia as autoras exibiram filmes, retomaram textos clássicos da área sobre o tema, promoveram palestras com convidados e visitas a museus de história e cultura africana. Além disso, estimularam a participação dos(as) estudantes em atividades do Movimento Negro e na organização de eventos sobre relações raciais dentro do curso. Segundo as autoras, essas experiências ampliaram a capacidade de leitura e compreensão dos(as) estudantes sobre as relações raciais e a desigualdade no país, possibilitando um engajamento mais efetivo no enfrentamento do racismo.

Nessa mesma direção, acreditamos que no âmbito dos cursos de pós-graduação em Psicologia, além dessas experiências pedagógicas também é importante estimular a produção de mais conhecimento sobre: a história do pensamento psicológico brasileiro na compreensão das relações raciais; como se dá a abordagem desse tema nos currículos de graduação e pós-graduação em Psicologia; e qual tem sido a atuação dos(as) psicólogos(as) no enfrentamento do preconceito e discriminação racial derivados do racismo.

 

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Recebido em: 30/11/2015
Aprovado para publicação em: 28/12/2015

 

 

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