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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.4 no.2 Londrina dez. 2013

 

Artigos

 

 

Três considerações preliminares sobre o conceito de pulsão de morte

 

Three preliminary considerations on the concept of the death instinct

 

Tres consideraciones preliminares sobre el concepto de la pulsión de muerte

 

 

Daniel Polimeni Mairenoi, 1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

 


Resumo

O presente trabalho objetivou enquadrar a discussão sobre o conceito de pulsão de morte a partir de parâmetros defendidos aqui como fundamentais. O texto discute alguns dos pontos de vista que tendem a dificultar o entendimento teórico deste polêmico conceito freudiano e, a fim de solucioná-los, conclui que ao menos três considerações devem ser computadas em qualquer discussão sobre o tema: 1) o recurso de Freud à Biologia não se dá pela busca da forma; 2) é possível conceituar a pulsão de morte em termos exclusivamente psíquicos; 3) o conceito de pulsão de morte não se reduz a uma teleologia construtiva.

Palavras-chave: psicanálise, teoria pulsional, pulsão de morte.


Abstract

This study aimed to frame the discussion on the concept of death instinct starting from parameters from here defended as fundamental. The paper discusses some of the views that tend to hinder the theoretical understanding of this controversial Freudian concept and in order to resolve them, concludes that at least three considerations must be computed in any discussion on the topic: 1) the use of Freud to biology is not given by the pursuit of form; 2) it is possible to conceptualize the death instinct in exclusively psychological terms; 3) the concept of death instinct is not reduced to a constructive teleology.

Keywords: psychoanalysis, instinct theory, death instinct.


Resumen

Este estudio tuvo como objetivo enmarcar la discusión del concepto de pulsión de muerte dentro de los parámetros que se defiende aquí como fundamental. En el documento se analizan algunas de las opiniones que tienden a dificultar la comprensión teórica de este concepto freudiano polémica y con el fin de resolverlos, llega a la conclusión de que al menos tres consideraciones deben ser computado en cualquier discusión sobre el tema: 1) el uso de Freud la biología no es dado a la búsqueda de la manera, 2) es posible conceptualizar la pulsión de muerte exclusivamente en términos psíquicos, 3) el concepto de la pulsión de muerte no se reduce a una teleología constructiva.

Palabras-clave: psicoanálisis, teoría de las pulsiones, pulsión de muerte.


 

 

Introdução

Que o termo "psicanálise" diz respeito não só a um método clínico específico, mas é também o nome de uma ciência específica, é algo que não consta apenas no final do estudo autobiográfico de Sigmund Freud (1925/2011): é uma perspectiva já há muito familiar aos psicanalistas, da qual dificilmente poderia haver discordância. Que o melhor modo de tornar eficaz este método terapêutico seja pela articulação de três atividades interligadas (o estudo teórico deste ramo do saber, a prática clínica – de preferência supervisionada por alguém mais experimentado – e a análise pessoal) também é consenso entre os psicanalistas.

O presente artigo visa prioritariamente lidar justamente com o primeiro destes elementos do tripé psicanalítico, a psicanálise enquanto ramo do saber. O interesse maior aqui consiste em pensar uma problemática específica do campo psicanalítico com um interesse majoritariamente teórico. O motivo para tanto reside no fato desta problemática dizer respeito a um dos temas mais controversos da teoria psicanalítica, sobre o qual as inúmeras tentativas de formalizá-lo – ou ajustá-lo – por parte de alguns autores deste campo divergem consideravelmente. Trata-se do conceito de pulsão de morte, cujo "assentamento" na teoria psicanalítica permanece até hoje um tanto quanto desajeitado, inconcluso, talvez ainda em processo de elaboração. Ter um conceito nesta situação configura um problema para qualquer disciplina, o que justifica todo empenho com vistas a melhor situá-lo.

André Green é um dos grandes psicanalistas da atualidade que chegou a discutir pontualmente o conceito de pulsão de morte. Ao fazê-lo ilustrou bem a situação do problema que aqui comentamos. Segundo Green (1988, p. 54):

No que concerne à pulsão de morte, notemos que nenhum dos sistemas teóricos pós-freudianos assume a letra da teoria freudiana. Isto vale inclusive para o sistema kleiniano que adota abertamente a hipótese de sua existência. Sabe-se, aliás, que se o papel da agressividade é considerado fundamental em vários destes sistemas, o quadro teórico no qual esta é conceptualizada difere do de Freud.

Não só difere do de Freud como também dos demais que tentaram articular tal conceito dentro de uma determinada vertente teórica, seja para pensar a agressividade, como salientou Green, ou qualquer outro fenômeno que muitos relacionam com a pulsão de morte.

Daí o esforço aqui presente em pensar um pouco mais este tema. O objetivo consiste não em chegar a um consenso mínimo sobre sua definição, mas sim em fazer uma espécie de trabalho prévio, preliminar, uma tentativa de estabelecer o que não deve constar numa definição do conceito de pulsão de morte, apresentando antes o que este conceito não é para voltarmo-nos com maior firmeza para o que, afinal, ele representa.

Desnecessário dizer que também estas considerações preliminares estão longe de serem consensuais, cabendo aos estudiosos do tema, portanto, tomá-las como sugestões a serem avaliadas e julgadas quanto às suas pertinências.

 

1ª consideração: O recurso de freud à biologia não se dá pela busca da forma

Esta primeira consideração consiste num esforço para não cair em determinados rodeios argumentativos que, mais que esclarecer o campo psicanalítico, tendem a embaralhá-lo na medida em que tergiversam diante de pontos de difícil sustentação. A obra de Freud apresenta alguns exemplos destes pontos delicados – difíceis de engolir, na gíria popular – poderíamos citar a tese freudiana – implícita em Totem e Tabu, mas esmiuçada diversas vezes em Moisés e o Monoteísmo – segundo a qual a universalidade do complexo de Édipo exigiria uma transmissão filogenética, hereditária – tese de cunho essencialmente lamarckista2. Outro ponto problemático que aqui mais nos interessa consiste no empenho de Freud em fundamentar a pulsão de morte no campo da Biologia, empenho este que transparece em boa parte do seu Além do princípio do prazer. Há no capítulo VI desta obra, por exemplo, discussões em geral inconclusas sobre estudos e hipóteses de inúmeros autores sobre os temas como: diferenças entre soma mortal e plasma imortal a partir de A. Weismann, A. Goette; pesquisas experimentais com protozoários realizadas por Woodruff, Maupas e Calkins; teoria de E. Hering sobre processos anabólicos e catabólicos ininterruptamente operantes na substância viva etc.

Frente a tais posicionamentos teóricos duas alternativas são possíveis: uma delas é reconhecer suas inconsistências; outra é tergiversar sobre o assunto, tentando ajustá-lo, mesmo que frouxamente, pela via de ressalvas ou outros remendos. Esta segunda saída fica evidente no esforço de alguns psicanalistas que atribuem às inconsistências argumentativas do pai da Psicanálise o estatuto de metáforas, formas didáticas ou construções retóricas.

No que se refere ao tema da pulsão de morte, tal estratégia fica clara, por exemplo, no discurso de Eero Rechardt e Pentti Ikonen (1988, p. 66), quando estes afirmam que, no que diz respeito às formulações freudianas, "seus biologismos existem apenas enquanto forma. São, de fato, apenas modelos quase naturalísticos cuja função é dar forma a termos e modelos de pensamento referentes ao domínio psíquico".

Ora, parece não ter sido este o objetivo de Freud. Antes de qualquer coisa poderíamos afirmar que o próprio Freud costumava deixar explícito os momentos em que se utilizava de recursos metafóricos em seus escritos. Como exemplos poderíamos mencionar os textos Nota sobre o "bloco mágico" (1925/2011) e Introdução ao narcisismo (1914/2010): no primeiro Freud toma este objeto curioso para exemplificar sua estrutura hipotética da relação entre o sistema Pcpt.-Cs e os traços de memória permanentes; já no segundo leva o leitor a imaginar os movimentos dos pseudópodes de uma ameba para elucidar sua concepção quanto aos investimentos libidinais ao longo da vida de um sujeito. Estes sim são recursos metafóricos bastante didáticos a fim de dar condições para o leitor visualizar de modo mais concreto alguns conceitos metapsicológicos importantes. Tal busca da forma é o que não ocorre quando ele escreve sobre a pulsão de morte.

Daniel Delouya (1992, p. 39) acusou essa mesma atitude de alguns analistas frente aos biologismos de Freud. Em sua opinião, com a qual concordamos, trata-se de uma atitude que "[...] nos dispensa de refletir, de pensar e trabalhar algo que permeia a obra toda de Freud". Em seu artigo, Delouya não se poupou deste trabalho, o que o levou a pesquisar o peso que determinados conceitos importados da Biologia tiveram no campo psicanalítico. Porém, o maior problema, segundo o autor, não está no fato dos psicanalistas tomarem os argumentos freudianos como metáforas – o que o próprio Delouya por vezes faz, e que aqui estamos problematizando – mas sim no fato deles as dispensarem tão apressadamente, levianamente.

Ora, sabemos o estatuto dado por Freud à relação da pulsão de morte com o resgate de um modo de existência aquém da substância viva. Na já mencionada seção VI de Além do princípio do prazer, quando Freud denuncia a insuficiência do saber da Biologia sobre a morte, notamos que ele se lança numa argumentação para "provar" a inexistência, por parte da Biologia, de algo que pudesse contradizer suas formulações sobre a pulsão de morte. É muito provavelmente sobre esta seção que Jean Laplanche (1988, p.14) se refere ao tecer o seguinte comentário:

[...] um certo número de desenvolvimentos freudianos são insustentáveis se os tomarmos ao pé da letra: longa discussão das experiências sobre a imortalidade celular, onde Freud concluiu o inverso do que mostram estas experiências: suposta prioridade, na evolução do universo, de um estado de morte ou de igualdade energética em relação a um estado de altas diferenças de potencial [...].

Na sequência Laplanche não tem pudor algum em qualificar de "absurdos" tais desenvolvimentos freudianos. E por que haveria de ter pudores? É o que também não teve Jacques Lacan (1961-2/2003, p. 162) ao abordar de passagem o mesmo tema num de seus seminários, no qual disparou: "Espantamo-nos quando encontramos em algum lugar, sob a pluma de Freud, que a análise tenha levado a uma descoberta biológica qualquer. [...] Que bicho o terá mordido, naquele instante?". O tal lugar "sob a pluma de Freud" ao qual Lacan se refere deve ser, provavelmente, o capítulo VIII da Parte III do Esboço de psicanálise, onde Freud (1940/1996, p. 209) de fato afirma com todas as letras ter realizado descobertas biológicas. Mas poderia de igual modo ter se referido também, como Laplanche, ao Além do princípio do prazer.

Quanta diferença entre a postura de Laplanche e Lacan se comparados ao modo de Rechardt e Ikonen contornarem o problema. Os dois primeiros parecem ter reconhecido e assumido que o recurso de Freud à Biologia não se dá apenas pela busca da forma ou para se fazer entender por analogias, e que todo o debate ao qual o pai da Psicanálise se lançou na seção VI de seu texto com o domínio biológico evidencia uma tentativa genuína – e, segundo alguns, absurda – de fundamentar suas construções teóricas sobre a pulsão de morte no domínio biológico.

Se ainda persistir alguma suspeita de que, afinal, Freud estaria apenas servindo-se de um modelo teórico, de uma analogia, de uma forma conceitual para exemplificar suas ideias, vale citar uma breve passagem de Análise terminável e interminável, na qual Freud (1937/1996, p. 262) afirma existir quase que uma identidade entre sua teoria pulsional e as elaborações filosóficas de Empédocles, "[...] não fosse pela diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica". Esta passagem não deixa dúvidas quanto ao compromisso de Freud com a Biologia, um compromisso bem distinto de qualquer intenção retórica ou metafórica.

Além de Rechardt e Ikonen, Hanna Segal também parece ensaiar a mesma tentativa de relativizar o recurso de Freud à Biologia. Segundo ela, tal compromisso teria mais a ver com uma prévia postura defensiva às críticas que ele já esperava receber – e que de fato recebeu – por suas ideias do que com uma real convicção do estatuto biológico da pulsão de morte. Para corroborar sua posição, Segal (1988, p. 30) lembra que "[...] foram considerações puramente clínicas sobre a compulsão à repetição, o masoquismo, o aspecto mortífero do supereu melancólico etc. que motivaram suas especulações". Ora, de fato estas questões clínicas compõem boa parte da justificativa para a reformulação conceitual proposta por Freud neste texto tão polêmico, e são na realidade as questões que ainda hoje colocam dificuldades ao trabalho do psicanalista – eis a verdadeira justificativa para debruçarmo-nos sobre o tema. Porém, alguns pontos colocam em questão este argumento de Segal: primeiro que, como demonstrou extensivamente Luis Claudio Figueiredo (1999), Freud estava longe de ter sido motivado apenas por "considerações puramente clínicas" naquele período em que se dispusera a escrever Além do princípio do prazer: havia toda uma concatenação pessoal demais entre Freud e seu entusiasmado discípulo Sándor Ferenczi movendo os dois autores por esses caminhos especulativos; em segundo lugar, se o recurso de Freud à Biologia não fosse retórico nem metafórico, mas tão somente defensivo, como afirma Segal, seus debates biológicos não teriam ocupado tantas e tão pormenorizadas páginas. Por fim, se Freud tivesse mesmo a intenção de apenas se precaver sitiando-se numa disciplina de mais crédito acadêmico entre seus pares – a biologia –, ele jamais confessaria, da maneira tão aberta como faz, que muito do que os leitores iriam ali encontrar não passavam de especulações3.

Logo, pode-se entender que: primeiro, não é em busca da forma que Freud recorre à Biologia em suas especulações sobre a pulsão de morte; segundo, desconhecer este fato corresponde a tergiversar sobre as inconsistências da argumentação freudiana; terceiro, uma saída acadêmica mais honesta implica posicionar-se frente a tais inconsistências, reconhecendo-as antes de mais nada, e não tomá-las como formas argumentativas, analogias, metáforas etc. Talvez seja necessário refletir, pensar e trabalhar esta biologização da pulsão de morte – é o que fez Delouya, por exemplo, no artigo citado – para em seguida podermos dispensá-la, assumir outra direção que não se fundamente neste campo tão próximo à Psicanálise – o que será discutido na consideração seguinte.

 

2ª consideração: É possível conceituar a pulsão de morte em termos exclusivamente psíquicos

Se não é em busca da forma que Freud recorreu à Biologia, impõe-se a seguinte questão: o conceito de pulsão de morte necessita ou não do terreno biológico para se firmar no campo psicanalítico? Noutras palavras: é possível ou não prescindir do recurso à Biologia para se estabelecer um conceito de pulsão de morte coerente e útil?

Num primeiro olhar, algumas passagens escritas por analistas kleinianos – aqueles que, segundo Green, são os que mais prontamente aceitaram e incorporaram as teses freudianas a respeito da pulsão de morte – poderiam levar-nos a suspeitar que os mesmos comungariam de uma fundamentação biológica para a agressividade. E se é verdade que "[...] na tradição kleiniana, consagra-se equivalência entre 'pulsão de morte' e a agressividade/destrutividade auto e hetero dirigida" (Figueiredo, op. cit., p. 28), poderíamos então afirmar que tais passagens se conformariam à fundamentação biológica para a pulsão de morte, tal como sustentada por Freud.

Analisemos uma destas passagens. Quando Joan Rivière (1937/1970, p. 18) anuncia logo no início de seu texto ser "inato no homem" o instinto de agressividade, poderíamos concluir a partir deste "inato" que haveria aí uma referência à hereditariedade, à filogênese, às matrizes orgânicas do funcionamento humano que estariam dispostas antes mesmo de qualquer contato do sujeito com a cultura – logo, antes de qualquer constituição do psiquismo. O peso da palavra "inato" permite concluir neste sentido. Porém, contrariando esta conclusão, podemos ler no mesmo texto a afirmação de que "[...] o ódio e a agressividade, a inveja, o ciúme e a voracidade experimentados e manifestados por adultos são todos derivativos, em geral extremamente complicados, tanto desta experiência original como da necessidade de superá-la." (Ibid., p. 25, grifo nosso)

A experiência original acima referida é aquela que, em seu entendimento, conta-se "[...] dentre as mais primitivas, experimentada por nós na tenra infância – a da criança de peito". (Ibid., p. 22). Segundo a autora, nesta experiência primordial, o bebê experimentaria a insatisfação de seus desejos decorrente da sua dependência em relação a outrem. Em que momento surgiria a agressividade? De acordo com Rivière, das reincidentes insatisfações inevitáveis do bebê decorreria o reconhecimento primitivo da dependência, e neste momento apareceria então a agressividade, sob a forma de choro e gritos. Sendo assim, a agressividade teria sua origem muito bem apontada numa experiência primitiva. Há, portanto, uma ambiguidade que acompanha o texto de Joan Rivière no que se refere às fontes primeiras da agressividade – se se poderiam afirmá-las como psíquicas (ontogenéticas) ou biológicas, hereditárias.

Melanie Klein (1937/1970, p. 92), ao comentar o trabalho de sua colega, disse que tais emoções por ela descritas "[...] aparecem inicialmente no primitivo relacionamento da criança com o seio de sua mãe [...]", novamente nos conduzindo a um entendimento da agressividade enquanto fundamentada da relação com o objeto primordial. No entanto, logo adiante também Klein (ibid., p. 94) transparece a mesma ambiguidade mencionada acima, como quando afirma que na ausência da esperada gratificação na relação bebê/seio materno, "[...] o ódio e os sentimentos agressivos são despertados e ele vê-se dominado pelos impulsos de destruir a pessoa mesma que é o objeto de todos os seus desejos [...]".

Ora, se tais sentimentos hostis são "despertados", é porque existiam já independentemente da relação com o objeto, tendo permanecido até ali adormecidos, inativos. Isto poderia bem aproximar o pensamento kleiniano de uma fundamentação biológica à lá Freud, distanciando-se assim de um discurso fundado exclusivamente em termos psíquicos; haveria também aqui uma ambiguidade entre considerações puramente psicológicas e considerações que insistem em se colocar no âmbito da Biologia.

Em meio às ambiguidades, muitos psicanalistas pós-freudianos se empenharam em demonstrar de maneira mais inequívoca a pertinência teórica e prática de pensar a pulsão de morte em termos exclusivamente psíquicos. Ao fazê-lo, recusaram qualquer fundamento biológico para tal conceito. É o que fez Jean Laplanche (op. cit.) ao apontar que a pulsão de morte derivaria do recalque originário – ou seja, de um mecanismo essencialmente psíquico, e não de uma tendência biológica. Com isto concordou a kleiniana Hanna Segal (1988, p. 30) ao afirmar claramente que "o conflito entre a pulsão de vida e a pulsão de morte poderia ser formulado em termos puramente psicológicos". O próprio Eero Rechardt (op. cit., p. 41), a despeito do fato de tropeçar na estratégia de tomar a escrita freudiana como mera busca pela forma, se colocou de igual maneira neste ponto: para ele, ao se pensar a pulsão de morte "não se trata, num plano psicanalítico, de um princípio biológico demonstrável, mas sim de uma aspiração psíquica fundamental".

L. A. Garcia-Roza (1999, p. 9), referindo-se à tradução americana de Trieb por Instinct, qualificou como "[...] um dos mais lamentáveis desvios impostos à teoria psicanalítica" a aproximação que esta tradução estabeleceu entre a natureza das pulsões e o domínio biológico. Segundo este autor, o corpo tomado pela Psicanálise como objeto de estudo e de intervenção em nada se aproxima de um corpo biológico, natural. Se é do corpo erógeno que se trata, se por pulsão deve-se entender uma certa potência indeterminada cujos destinos jamais são dados por natureza, a priori, mas sim que se organiza segundo as estruturas significantes – transmitidas pelo Outro e responsáveis tanto pela fundação do desejo, motor da ação, quanto da fantasia, meio de aproximação aos objetos – qualquer atrelamento da Psicanálise com os domínios biológicos deve ser entendido como impertinente. E isso no que diz respeito tanto às pulsões em geral quanto à pulsão de morte, em específico.

Não se trata de recusar categoricamente qualquer proximidade entre as duas disciplinas, Psicanálise e Biologia, o que seria distanciar áreas que podem sim se articular de diversas maneiras; acompanhamos Delouya (op. cit., p. 41) em sua compreensão da Biologia como "[...] uma das fontes da psicanálise". Mas o que está aqui em questão é a perspectiva de se pensar a pulsão de morte num plano destacado dos domínios biológicos. Esta alternativa ficaria mais clara se esboçássemos aqui algumas das contribuições de psicanalistas que a seguiram, como é o caso de Jean Laplanche, que incluiu a pulsão de morte no campo das pulsões sexuais, fazendo-a também derivar do que ele denominava recalque original. Também é o caso de Hanna Segal, que insistiu que a tendência à mortificação e à agressividade se inauguram, simultaneamente, na impossibilidade de satisfação plena no contato com o objeto primário. Se estender, porém, nas elaborações de cada um destes autores extrapolaria os limites e objetivos deste artigo.

Basta, portanto, indicarmos que ao assumir a alternativa de se pensar a pulsão de morte em termos exclusivamente psíquicos, estamos nos distanciando de um pensamento estritamente freudiano. Tal passo permite-nos, inclusive, evitar o risco de chegarmos talvez a apostar num entendimento da agressividade como derivada de fatores orgânicos, hereditariamente transmitidos etc. Entendemos que um dos saldos de se pensar a pulsão de morte e a agressividade a ela articulada em termos exclusivamente psíquicos é a noção de que poderia ser em vão, portanto, buscar no DNA ou numa possível má formação cerebral a causa da agressividade, da tendência homicida ou suicida. Nossa aposta é de que a psicanálise pode contribuir neste debate com seus próprios fundamentos, construídos a partir do acúmulo de experiências clínicas que a especifica.

 

3ª consideração: O conceito de pulsão de morte não se reduz a uma teleologia construtiva

Por último, vale o esforço em se posicionar também no que diz respeito à função que é conferida à pulsão de morte em algumas importantes elaborações psicanalíticas. Há quem diga que haveria no funcionamento da pulsão de morte algo que aqui se optou por nomear de teleologia construtiva. O que quer dizer isso? Por teleologia construtiva designo a atribuição de uma finalidade última que abriria caminho para o estabelecimento de ligações – no sentido erótico, como se Tânatos estivesse, em última instância, também a serviço de Eros.

Um bom exemplo desta posição que aqui se pretende evitar é vista nas elaborações de Garcia-Roza em seu livro O Mal Radical em Freud, já citado na consideração anterior. Ao tomar a pulsão como "lugar do acaso" (op. cit, p. 127), Garcia-Roza começa a introduzir certo teleologismo construtivo ao se servir das noções extraídas da pesquisa termodinâmica, como por exemplo, o conceito de entropia, de acaso criador e, principalmente, de uma dispersão que seria também geradora de ordem. Nas palavras do autor,

[...] essa transformação sofrida pela ideia de desorganização, que de degradação e morte de um sistema transformou-se na ideia de um acaso criador, será para nós da maior importância quando tratarmos, mais à frente, do conceito de pulsão de morte em psicanálise. (ibid., p. 50, grifos do autor)

E de fato, quando adiante Garcia-Roza (ibid., p. 130) se restringe a tratar do conceito de pulsão de morte, tais noções se fazem mesmo presentes, por exemplo, quando ele insiste na afirmação de Lacan e Freud "[...] conceberem a repetição como algo que implica o novo, a criação, a produção de diferenças [...]", o que em sua opinião seria o suficiente para suspeitar da afirmação freudiana segundo a qual haveria nas pulsões em geral um esforço do organismo de reproduzir um estado anterior de coisas.

Retornando ao seu texto, vê-se que, a partir de uma leitura do Seminário 9 de Jacques Lacan, Garcia-Roza (ibid., p. 131) entende a pulsão de morte como uma vontade de destruição que traria em sua esteira uma "[...] vontade de recomeçar com novos custos". Assim sendo, a destrutividade dela decorrente não deveria então ser entendida como uma encarnação do mal, um retorno ao inanimado ou mesmo um nihilismo psicanalítico, mas sim um esforço de fazer-se existir a despeito do que a natureza ou a cultura condicionam. Seria uma tentativa de recriação do natural e do cultural, o que traria em si certa dose de destrutividade de ambas, mas apenas enquanto destrutividade criadora, cuja finalidade última seria construir outras coisas.

Não foi no Seminário 9, mas sim no 7, que encontramos uma passagem de Lacan (1997, p. 259) sobre a "[...] vontade de destruição. Vontade de recomeçar com novos custos. Vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa a partir da função do significante". Fica claro, portanto, que nesta passagem Lacan tem por meta articular o conceito de pulsão de morte à sua teoria do significante, articulação esta que respaldará também a asserção de Garcia-Roza sobre o potencial criador da pulsão de morte, na medida em que, segundo Lacan, "[...] ela põe em causa tudo o que existe. Mas ela é igualmente vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar".(ibid., p. 260)

Ora, desta articulação entre potencial criador e pulsão de morte fica a dúvida sobre que papel teria então Eros nisso tudo. Afinal, não é a Eros que caberiam tais funções criadoras? Segundo a leitura de Garcia-Roza (ibid., p. 134), não: [...] enquanto a pulsão sexual é conservadora, pois além de constituir uniões tende a mantê-las, a pulsão de morte é renovadora. Ao colocar em causa tudo o que existe, ela é potência criadora. [...] a pulsão de morte, como princípio disjuntivo, é produtora de diferenças. Eis uma forma bastante curiosa de se conceber o conflito entre Eros e a destrutividade. Nesta perspectiva a pulsão de morte seria a garantia da sobrevivência do desejo, do próprio sujeito e das diferenças intersubjetivas, na medida em que a ação disjuntiva evitaria a ação unificadora e cristalizadora de Eros com sua tendência a "[...] dissolver as diferenças numa grande união final [...]". (Ibidem, p. 157).

De fato, este caráter conservador de Eros parece estar em conformidade com os pontos de vista de outros psicanalistas, a começar por Freud, e de fato também parece inquestionável que a destrutividade romperia com tal constância, tal mesmidade, ao exercer sobre as ligações e ampliações eróticas sua força disjuntiva. Daí, porém, atribuir à própria atividade disjuntiva uma inclinação a estabelecer novas criações, novas ligações, eis o que parece ser uma tese bastante problemática. Trata-se de uma posição que não condiz, por exemplo, com a concepção freudiana da pulsão de morte como pura destrutividade, tal como reconhecida pelo próprio Garcia-Roza no último capítulo de seu livro. Também não condiz, curiosamente, com uma passagem do mesmo Jacques Lacan (1998, p. 62), porém quatro seminários adiante, segundo o qual não a pulsão de morte, mas "[...] a repetição demanda o novo".

Ora, não se pode confundir a repetição com a pulsão de morte: a repetição é um fenômeno observável; a pulsão de morte é o fundamento não-fenomênico que subjaz a diversos fenômenos, dentre eles a repetição. A repetição tende ao ligamento; a pulsão de morte ao desligamento. Em nosso ponto de vista, muito do que Garcia-Roza – mas também Lacan no seminário 7 – afirma quanto à pulsão de morte caberia bem ao conceito de repetição, e que este conceito, por sua vez, traria em si um caráter bastante paradoxal: demandar o novo sim, mas por meio da repetição do mesmo. É o que se pode entender do que Lacan (ibid., p. 62) afirma na sequência: "Tudo que, na repetição, varia, modula, é apenas alienação de seu sentido." Ou seja, o paradoxo consistiria no seguinte: o que quer que surja de novo pela via da repetição acaba por contrariar o sentido de sua própria ação, que é apenas repetir, repetir, repetir. Mas tais modulações ou mutações só são possíveis porque há essa insistência no mesmo que é a repetição – daí poder então se afirmar que, além de repetir o mesmo, a repetição demanda também a novidade.

Logo, "recomeçar com novos custos" não seria uma tendência enraizada no funcionamento da pulsão de morte, mas sim um passo além, posterior ao trabalho disjuntivo – um passo além que deveria ser atribuída a Eros, mas que também poderia ter sua fonte primeira na atividade da repetição.

Luís Claudio Figueiredo (2008, p. 153) propõe que a pulsão de morte pode ser pensada a partir de três vértices: o primeiro assinalaria a faceta puramente destrutiva e de descarga da pulsão de morte; no segundo entraria em jogo algo próximo do conceito de narcisismo de morte, também de Green, que apesar de seu caráter radicalmente mortífero "[...] é, ainda assim, narcisismo, constituição do próprio". O terceiro vértice diz respeito a um movimento psíquico de expectativa por novas experiências que cumpram de modo mais suficiente as funções básicas malogradas no contato com o objeto primário, uma posição subjetiva de cuidado para com o ambiente, onde se passa uma difícil procura por objetos sadios bem como uma tentativa de cura – reparação – dos objetos danificados. Entendemos que este último vértice soa bastante familiar às considerações de Garcia-Roza discutidas aqui, guarda uma proximidade com o "recomeçar com novos custos". Porém, Garcia-Roza parece pensar a pulsão de morte como restrita apenas a este terceiro vértice – o que parece ser uma posição equivocada, da qual nos distanciamos.

Renato Mezan (2006, p. 261), por sua vez, chega a utilizar o termo "teleologia" ao discutir o conceito de pulsão de morte, "[...] a teleologia que se instala no seio da Natureza [...]", quando comenta a bem conhecida passagem freudiana segundo a qual todo organismo estaria fadado a morrer à sua própria maneira. Mas o que se decanta desta discussão é a ideia de que se fosse legítimo falar em teleologia nesse caso, se houvesse na pulsão de morte uma finalidade última, esta seria apenas aquilo que a nomeia: nada além da morte. Segundo Mezan, caberia à pulsão de morte "[...] a faina laboriosa de separar o que a vida criou [...]" (ibid., p. 268), e ponto final.

Seguindo o mesmo raciocínio, em Freud, Pensador da Cultura, Mezan (1997, p. 444) escreve que a pulsão de morte:

[...] combate o aumento das tensões inerentes à conservação dos corpos complexos e busca sem cessar o retorno a formas menos diferenciadas, mais próximas do silêncio do inorgânico, e que, como se exerce em organismos vivos, pode ser legitimamente dita aspirar à morte como fim último.

Desta forma estaria mantida a noção de que nada além de uma atividade de desligamento rumo à morte poderia ser atribuída a Tânatos. Contariam então entre as manifestações da pulsão de morte apenas aquelas prenunciadoras da morte do sujeito, de seu fim, de sua tendência ao zero, ao nirvana, ao rompimento dos vínculos objetais, devendo todo o restante ser atribuído a outras forças em jogo.

 

Considerações finais

Por mais que o estudo teórico ocupe uma posição terciária no tripé psicanalítico, na opinião da maioria dos membros que compõem este campo, guardo a expectativa de que, a despeito disto, nosso empenho em lidar com seus fundamentos conceituais, apertando seus parafusos quando necessário, não ceda ao princípio da constância. Tal esforço acadêmico é de suma importância para que esta disciplina assuma de fato o estatuto que anseia.

As três considerações teóricas preliminares aqui propostas para se pensar o conceito de pulsão de morte poderão ter os mesmos destinos que Freud previra quanto escreveu Além do princípio do prazer, ou seja, serem apreciadas ou dispensadas conforme a atitude própria de quem as ler. Mas cabe ainda enfatizar algumas vantagens que a assunção de cada uma delas pode trazer ao estudo do tema em específico e da psicanálise como um todo: da primeira, por ensejar a fuga do dogmatismo e da idolatria; da segunda, por incentivar reflexões mais conformes à nossa esfera de atuação – o psiquismo humano; da terceira, por evitar fusões de conceitos-chave que, para fins de clareza, devem ser mantidos separados: "pulsão de morte" e "repetição", por exemplo.

Seja lá qual for o destino do que aqui se propõe discutir, uma passagem de A. G. Cabas (2005, p. 234) resume o fundamento de qualquer intenção semelhante esta:

[...] o trabalho sobre a teoria importa porquanto ela é nosso instrumento de trabalho. Se a teoria é um instrumento, e se à medida que a revisamos vamos aperfeiçoando nossa ferramenta, então, trabalhar teoricamente significa nada mais nada menos que esgotar certas incógnitas que nos permitam utilizar nosso instrumento – a capacidade de interpretar – com maior eficácia e soltura possíveis.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Daniel Polimeni Maireno
e-mail: dpmaireno@gmail.com

Recebido em: 27/11/2013
Revisado em: 27/12/2013
Aceito em: 31/01/2014

 

 

iDoutorando em Psicologia Clínica pela PUC/SP
1O presente artigo é resultado dos estudos que subsidiaram minha dissertação de mestrado intitulada Assassinos em Cena: um estudo sobre os fundamentos metapsicológicos da indústria cinematográfica dos assassinos em série (PUC/SP, 2010), com apoio do CNPq
2Em Totem e Tabu conferimos Freud recorrer a uma vaga noção de "psique das massas" para tentar explicar uma série de concordâncias entre os mais diversos fenômenos, dentre os quais o surgimento da religião, da moral, da arte etc. Também vemo-lo sugerir a impossibilidade de tais concordâncias serem explicadas como resultantes de comunicação direta ou da tradição; em vez disso, Freud (1913/2012, p. 239-40) aposta numa "[...] herança de disposições psíquicas, que, porém, necessitam de determinados ensejos na vida individual para se tornarem efetivas". Uma ideia já prenunciada no mesmo texto, quando é assinalada por exemplo uma possível contraposição entre "ideias inatas" ou "patrimônio psíquico herdado" e educação (ibid. p. 60) ou mesmo a presença de "[...] uma constituição arcaica como resíduo atávico [...]" (ibid., p. 110). Já em Moisés e o monoteísmo o caráter filogenético da transmissão desta herança é explicitado com todas as letras em diversas passagens: quando expõe a ideia de que dentre as forças atuantes na vida mental de um indivíduo encontram-se "[...] não apenas o que ele próprio experimentou, mas também coisas que estão inatamente presentes nele, quando de seu nascimento, elementos com uma origem filogenética – uma herança arcaica" (Freud, 1938/1996, p. 112, grifo do autor); quando afirma que as reações das crianças imersas nos complexos de Édipo e de castração "[...] parecem injustificadas no caso individual e só se tornam inteligíveis filogeneticamente [...]" (ibid., p. 113); ou ainda quando afirma não haver prova maior da presença de traços de memória nesta herança arcaica do que "[...] os fenômenos residuais do trabalho da análise que exigem uma derivação filogenética [...]" (ibid., p. 114) – o que no entendimento de Freud seria uma prova suficiente para poder aproximar a psicologia individual da social